25 de março de 2001

O caráter da periferia especial

Coletânea reúne artigos e ensaios de Ruy Marini, um dos formuladores da teoria da dependência

Francisco de Oliveira


Dialética da Dependência
296 págs., R$ 26,00
de Ruy Mauro Marini. Organização de Emir Sader. Laboratório de Políticas Públicas/Clacso/Vozes (r. Frei Luís, 100, CEP 25689-900, Petrópolis, RJ, tel. 0/xx/24/ 237-5112).

Edita-se em boa hora uma coletânea de artigos de Ruy Mauro Marini sobre o tema da dependência; ela é também uma homenagem a um lutador do socialismo, um intelectual brasileiro e latino-americano -poucos brasileiros foram tão latino-americanos quanto ele- dos mais importantes nas quatro últimas décadas. Suas elaborações são das mais profícuas de nossa ciência social no século que findou e ajudarão a fazer frente aos desafios à esquerda na presença do processo avassalador da mundialização do capital. Ainda mais quando uma parte significativa da produção intelectual se refugiou no "sexo dos anjos", na abulia de um pensamento sem radicalidade.

Ruy Mauro Marini saiu do Brasil depois de preso e torturado no sinistro Cenimar (Centro de Informações da Marinha), triste precursor da celerada Escola de Mecânica da Marinha argentina. Processado pela ditadura militar, foi para o Chile e, depois do golpe que derrubou Salvador Allende em 1973, se fixou no México durante duas décadas. Ali ganhou uma relevância extraordinária no debate intelectual e político, na época do exílio de milhares de intelectuais latino-americanos, e a difusão pelas grandes editoras mexicanas o transformou em patrimônio comum da América Latina. Voltou ao Brasil na década de 90, vindo a morrer em 1997; publicou pouco depois da volta e a maior parte de sua produção permanece inédita.

Em tempos de globalização, suas posições são mais do que atuais, posto que suas principais preocupações teóricas estiveram sempre ligadas às questões da mundialização do capital e seu contrário, a mundialização do socialismo. O tratamento da questão do imperialismo era constante em Ruy Mauro, não apenas como desdobramento de tradições muito caras aos socialistas e comunistas como porque a divisão do mundo em esferas de competição imperialista e a exacerbação do monopólio do imperialismo pelos EUA reclamam a prossecução de investigações sobre essa perversa e quase inexorável dinâmica.

No ciclo das ditaduras latino-americanas, rastilho de pólvora do golpe de Estado no Brasil em 1964, o imperialismo e seus sátrapas exigiam teoria e ação, a que Ruy Mauro não fugiu, buscando entender as determinações daquela dinâmica, em que suseranias subimperialistas se insinuavam nas relações entre as próprias ditaduras. Esse foi um tema importante na sua discussão sobre o que chamou de subimperialismo do Brasil em relação a nações como o Paraguai e a Bolívia e a divisão do trabalho "sujo" entre Brasil e Argentina.

Caráter do capitalismo Esta coletânea que se oferece ao público se abre com uma palpitante discussão sobre o caráter do golpe militar de 1964, talvez a mais importante elaborada ao calor da hora; mas não se trata de uma análise de "conjuntura", feita ao modo em que nomes de figuraços -que às vezes são palhaços- enchem os olhos e substituem as relações concretas entre as classes.

Ao contrário, Marini procede a uma pesquisa sobre o caráter do capitalismo na periferia, para situar e entender o golpe militar. Nos anos 70 Marini esteve no centro dos formuladores do que veio a ser chamado de "teoria da dependência", que teve, entre outros propositores de uma nova interpretação da inserção e subordinação dos países da periferia capitalista, Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto. Mais tarde, em artigo que é citado por Marini e que é conhecido pela geração acadêmica daquela época, José Serra se juntou a Fernando Henrique para responder às formulações dependentistas de Marini. Nomes também expressivos foram os de André Gunder Frank e o de Teotônio dos Santos. Cardoso e Faletto -e também Serra- formulavam uma teoria da dependência de inspiração derivada da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) e da teoria do subdesenvolvimento, com um largo apelo e emprego das categorias teóricas de Max Weber. O marxismo ali comparecia como "noblesse oblige", mas de fato o coração da teorização era mais weberiano, o que é inteiramente legítimo.

Até porque eles vinham do Ilpes (Instituto Latino-Americano de Planejamento Econômico e Social), onde a figura e a influência de dom José Medina Echavarría, provavelmente o melhor weberiano da Ibero-América -ele era espanhol-, eram importantes e generosas.

Marini, Frank e Dos Santos, por seu lado, fundavam suas elaborações em Marx e Lênin, deste último, sobretudo, sua teorização sobre o imperialismo e o desenvolvimento "desigual e combinado". A teoria da dependência, assim, em Marini e nos demais, seria a forma do imperialismo numa periferia especial, caracteristicamente a América Latina, por determinações que não eram desimportantes: tratava-se de economias periféricas, as maiores produtoras mundiais de matérias-primas e bens primários, mas com uma longa história de independência política, o que adicionava complicadores extraordinários à dependência.

A tese básica da dependência, nas mãos de Marini, se construía por meio da superexploração do trabalho na periferia como contra-restação da permanente deterioração dos termos de intercâmbio na troca desigual entre países produtores de manufaturas e produtores de matérias-primas. Tratava-se, portanto, de uma tese apoiada e construída sobre a luta de classes. E centrava-se, como na melhor tradição marxista, nos problemas gerados pela produção de mercadorias mediante a exploração da força de trabalho.

A circulação ou a troca compareciam como momento decisivo porque momento da realização do valor. Mas Marini não derivava a dependência da circulação, senão que esta se achava comprometida e enredada desde a constituição das formas da produção capitalista na periferia, a partir do escravismo no Brasil e no Caribe, e da "encomienda" e da "mita" no resto da América espanhola.

Ao contrário, Cardoso e Faletto e, posteriormente, Serra faziam da circulação e das relações entre nações o fulcro de fundação da dependência. À época, Francisco Weffort assinalava, em crítica a Cardoso e Faletto, essa substituição do conflito de classes por um conflito entre nações. A coletânea traz ao público brasileiro, pela primeira vez, a discussão entre Cardoso e José Serra, e Marini.

Período excepcional Tais discussões realizavam-se por meio de prestigiosas revistas latino-americanas, mas no Brasil não foram nem sequer publicadas e portanto tiveram pouca repercussão. Elas são um registro de uma época importante, em que a produção teórica latino-americana se elevou notavelmente, em contraste com o marasmo que o "pensamento único" instaurou nas duas últimas décadas do século 20.

Para além das preferências teóricas, ideológicas e pessoais, é forçoso reconhecer que se tratou de um período excepcional que, felizmente, parece renascer agora com a crítica aos processos da mundialização do capital e das experiências de esterilização popular, no sentido nazista do termo, do neoliberalismo latino-americano.

O leitor vai se beneficiar dessa discussão de alto nível, embora, como notará, a produção de Marini se coloque, sempre, num nível de elaboração e exigência teóricas muito superiores às de Cardoso e Serra; estes discutiram bem pouco habermasianamente, em quem a presunção de verdade é pressuposto sem a qual não há "ação comunicativa". Jogaram sujo com o adversário, falsificando-lhe as proposições, escamoteando questões e pressupostos relevantes para a correta compreensão do que estava em jogo. Ao leitor "sem medo" -para usar a expressão de Renato Janine Ribeiro- importa saber e distinguir, por entre a terminologia conceitual marxista que era, à época, a moeda de troca mais constante nos meios acadêmicos, o joio e o trigo.

A melhor forma de homenagear Ruy Mauro Marini não é, certamente, lhe fazer a beatificação. Para um batalhador exigente como ele o foi, importante é interrogar-lhe sobre a atualidade de suas proposições. Assim a questão da dependência coloca um problema muito sério, que Cardoso e Serra -e não mais Faletto, que há muito deixou de ser dependentista- resolvem pela tangente do apelo à inserção acrítica no processo da mundialização, como o provam sobejamente suas opções no governo: com a mundialização do capital, o conceito de dependência ainda tem força explicativa, capacidade heurística para interpretar os processos outrora "dependentes" da periferia? Mas não nos cabe responder por eles.

Simulacros do dólar Quanto a Marini, a mesma questão pode se colocar: se a dependência exigia, ainda que em graus e ritmos bastante predeterminados, um certo grau de autonomia, expressão do conflito de classes interno, que se mostrava no próprio e precário controle da moeda, o que dizer hoje, quando as moedas nacionais de fato são apenas simulacros do dólar e em muitos casos a dolarização já é real? Pode-se pensar ainda nos Estados latino-americanos como instâncias reguladoras do conflito de classes, das quais emergia a tendência à dependentização, mas que nunca se davam diretamente e dependiam, por sua vez, da intermediação do Estado? Se a moeda, na teoria marxista, não é senão o conflito de classes mediatizado e modificado pelo dinheiro que é a violência da desigualdade codificada e transformada em equivalente geral, como se põe, hoje, essa questão?

A questão nacional é ainda relevante? E há, ainda, uma especificidade que esteja a pedir uma teorização que dê conta dela ou servem os manuais do FMI?

Não há dúvida de que Marini se disporia a esse desafio, como o prova o último dos ensaios contidos nesta coletânea, "Processo e Tendências da Globalização Capitalista". A Sem-Face não deixou que ele desdobrasse em novas investigações o tema que o apaixonou durante toda a vida. Mas sua produção bem pode ser um ponto de partida para muitos que se colocam as mesmas questões, a serviço da causa do socialismo e da libertação humana.

Sobre o autor

Francisco de Oliveira é professor titular do departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e presidente do Cenedic (Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania) da FFLCH-USP.

19 de março de 2001

Estado do crédito

Fernando Nogueira da Costa


O estado do crédito representa as expectativas dos credores em relação aos negócios de seus clientes. Os balanços dos bancos, recém-publicados, revelam que houve um expressivo crescimento de suas operações de crédito, durante o ano passado.

No entanto o tradicional indicador entre o crédito total e o PIB manteve-se em patamar pouco inferior a 29%, dois pontos percentuais abaixo do atingido há quatro anos. Em outros países, como o Chile e os EUA, atinge o dobro. No Japão, o saldo dos empréstimos supera o PIB, assim como em alguns países europeus.

Determinismo histórico-cultural? A cultura do regime de alta inflação não foi ultrapassada? A memória inflacionária não mais justifica a fuga do crédito indexado em razão de uma taxa de inflação imprevisível.

Determinismo geográfico? Nessa "terra abençoada", as companhias lucram mais e devem menos do que as instaladas alhures. Isso apesar de abandonarem o velho hábito inflacionário de remarcar preços sempre com uma superestimativa da taxa de inflação futura como margem de proteção. Era a forma de reter lucros suficientes para o autofinanciamento. Hoje, o lucro das companhias no Brasil tem aumentado num ritmo superior ao da receita. Redução dos custos fixos, elevação da eficiência e ganhos de escala são apontados pelos empresários como as causas fundamentais. Automação, corte de custo com mão-de-obra e aumento da produtividade estão nelas embutidos.

Determinismo financeiro? A bandeira de luta pela reforma financeira está anacrônica. O problema da realização de empréstimos no país não é, como os reformistas acham, de racionamento da quantidade ofertada. Não basta "criar as condições institucionais" para o crédito surgir. Se não houver demandante, não haverá o "milagre da multiplicação". O multiplicador monetário opera por meio de várias rodadas de empréstimos-depósitos-empréstimos, dentro do sistema bancário. Um banco não é auto-suficiente. Isoladamente, sem contar com clientes devedores e depositantes, não pode criar moeda de crédito.

As condições adequadas para uma operação de tomada de empréstimo exigem, em primeiro lugar, uma expectativa otimista a respeito do horizonte de crescimento da economia. A decisão de empréstimo depende do risco do tomador quanto à confirmação da renda esperada. Não se pode ameaçá-la, com o banco central acenando que "a economia já está batendo em seu teto, dado pelo produto potencial". Na verdade, ele desconhece qual é exatamente o potencial de crescimento dessa economia.

O custo do crédito é também fundamental. Embora tenha ocorrido uma redução na taxa de juros básica da economia brasileira, ela ainda não atingiu, significativamente, a taxa de juros dos empréstimos em geral. Está próxima do patamar de 50% ao ano, 33% para pessoa jurídica, 63,5% para pessoa física e 150,9% para cheque especial!

O "spread" bancário tem caído em ritmo insuficiente, para estimular os empréstimos. Mas, como a tendência é os juros no presente serem maiores do que os juros no futuro, os bancos começam a alongar os prazos dos empréstimos. Obtendo prazos mais longos para pagar as dívidas, as empresas administram melhor seus fluxos de caixa.

As exigências de capitalização dos bancos não são o principal empecilho para uma maior expansão das operações de empréstimos. Com o patrimônio que dispõem, atualmente, os bancos como um todo poderiam emprestar até R$ 1 trilhão sem desobedecer ao limite exigido pelo Banco Central do Brasil de manter patrimônio líquido mínimo de 11% dos ativos ponderados pelo risco. No entanto o volume total das operações de crédito do sistema financeiro nacional é menor que um terço desse valor.

Por que acontece essa baixa alavancagem financeira? O grau de alavancagem expressa a medida pela qual o endividamento financia operações ativas das empresas, elevando a taxa de retorno sobre o capital próprio. Ela é positiva quando o uso de capital de terceiros impõe custos inferiores ao rendimento obtido com seu uso. O custo ainda elevado face à renda esperada inibe a própria demanda do crédito.

Uma razão apontada para a manutenção de "spread" elevado e, consequentemente, de altas taxas de juros para os tomadores de empréstimos é a própria "fidelização" do cliente. Cada grande "banco universal" geralmente exige o papel de "parceiro fiel" de pessoas físicas e de empresas de pequeno porte. Esses clientes não têm nem cadastro nem receita suficientes para operar com mais de um banco. Nas operações de desconto de duplicata, os bancos costumam exigir garantias reais (via entrega desses títulos) equivalentes a 120% do valor do crédito. Limitam seus empréstimos a 10% do patrimônio líquido do cliente, para evitar exposição ao risco de endividamento crescente. Além disso, os juros são cobrados no momento da liberação dos recursos, isto é, de cara o devedor recebe um capital de giro líquido menor do que o contratado, nominalmente. A taxa de juros efetiva então se eleva, isso sem contar o impacto do IOF e CPMF.

Outras "reciprocidades" comumente exigidas pelo banco para conceder empréstimos são o saldo médio em depósitos à vista, a prática da venda casada com a aquisição de outro produto financeiro, um tempo de relacionamento a contar da abertura da conta corrente etc.

Nesse caso de relacionamento bancário, a fidelidade é uma virtude particular dos que estão sendo traídos...

Sobre o autor

Fernando Nogueira da Costa, 49, professor associado do Instituto de Economia da Unicamp, é coordenador da área de economia da Fapesp. É autor dos livros "Economia em 10 Lições" e "Economia Monetária e Financeira: Uma Abordagem Pluralista".

10 de março de 2001

Dois lados

Emir Sader

Folha de S.Paulo

A propósito da resenha de Reginaldo de Moraes sobre "Dialética da Dependência", de Ruy Mauro Marini (Jornal de Resenhas de 10/2), livro por mim organizado, gostaria que fosse publicado o que segue.

A obra de Marini constitui uma das mais importantes contribuições para a interpretação do Brasil e da América Latina. Seu artigo "Dialética do Desenvolvimento Capitalista no Brasil" -publicado no primeiro número da revista "Teoria e Prática"- constituiu-se na mais influente análise do golpe militar de 1964 no Brasil.

Tendo sido condenado no primeiro processo da ditadura militar a 15 anos de prisão, preso e torturado pelo Cenimar (Centro de Informações da Marinha), Marini, depois de um período de clandestinidade, saiu do Brasil e trabalhou sucessivamente no Chile e no México, onde toda a sua obra foi publicada, em dezenas de edições, enquanto permanecia quase inédita no Brasil.

Seu livro "Dialética da Dependência" contém as teses básicas da vertente marxista da teoria da dependência, segundo a qual a chegada tardia ao mercado internacional faz com que as burguesias periféricas se utilizem da superexploração do trabalho como "vantagem comparativa" para melhorar suas condições competitivas, ao mesmo tempo em que reproduzem um mercado interno seccionado entre uma alta e uma baixa esfera de consumo.

Suas teses -pela enorme influência que tiveram no pensamento social latino-americano- foram objeto de um longo artigo de FHC e José Serra, publicado na "Revista Mexicana de Sociologia", junto com a resposta de Marini. O primeiro dos artigos foi reproduzido na revista "Novos Estudos", do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), que não incluiu porém a resposta de Marini, impedindo que os leitores brasileiros, democraticamente, tivessem acesso aos dois lados do debate.

"Dialética da Dependência" (ed. Vozes) contém, pela primeira vez em português, além da íntegra da obra homônima, a resposta a FHC e a Serra, bem como artigos sobre o conceito de trabalho produtivo, sobre a origem da sociologia latino-americana e um dos últimos escritos de Marini (ele morreu em 1997) sobre os processos e tendências da globalização capitalista.

A resenha de Reginaldo de Moraes, talvez pelo espaço sempre relativamente limitado de que se dispõe, não pôde informar aos leitores do conteúdo do livro, assim como as razões da transcendência teórica da obra, saltando para observações, fundamentadas ou não, sobre a edição do livro.

Sobre o autor

Emir Sader é professor de sociologia da USP e autor, entre outros livros, de "Século 20 -Uma Biografia Não-Autorizada" (Perseu Abramo).

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