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30 de setembro de 2015

O jovem Ho Chi Minh

Quando jovem em Paris, Ho Chi Minh abraçou um internacionalismo radical.

Ian Birchall

Nguyen-Ai-Quoc (mais tarde conhecido como Ho Chi Minh) falando no congresso fundacional do Partido Comunista francês em dezembro de 1920. Michael Goebel

Tradução / Setenta anos atrás este mês, em dois de setembro, em Hanói, o Viet Minh, liderado por Ho Chi Minh, publicou a Declaração de Independência da República Democrática do Vietnã. Ho era pouco conhecido no Ocidente até então, mas nos anos 1960 seu nome era cantado por manifestantes no mundo todo, para quem ele se tornou um símbolo da vontade e habilidade do Terceiro Mundo para enfrentar o imperialismo americano.

Em uma época anterior, ele era conhecido como Nguyen-Ai-Quoc, o beneficiário de uma educação privilegiada que, supostamente, disse que assim que ouviu o slogan “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, quis conhecer a França. Mas, a lei colonial proibia os vietnamitas nativos de sair do país; o único meio pelo qual ele poderia ir para a Europa era conseguindo um trabalho em um navio. Ele viajou primeiro para Londres, depois para Paris.

Os contatos iniciais de Nguyen chegando à França parecem ter sido com a esquerda sindicalista. Ele visitou a Librairie du travail, uma livraria trabalhista, onde ficavam os escritórios de La Vie ouvrière, um jornal sindicalista revolucionário de Pierre Monatte e Alfred Rosmer, que tinham sido alguns dos internacionalistas mais consistentes do primeiro dia da Primeira Guerra Mundial.

Ele passou a se juntar ao Partido Socialista Francês (SFIO), que estava no meio de um intenso debate para decidir se deveria se filiar a recém-formada Internacional Comunista, criada no rescaldo da Revolução Russa.

O SFIO reuniu-se no Congresso em Tours em dezembro de 1920 para tomar sua decisão. O Congresso votou pela filiação, tornando-se o Partido Comunista Francês (PCF), com uma minoria socialista se separando por uma aversão ao domínio percebido dos bolcheviques russos na Internacional Comunista.

Nguyen falou como delegado, contando aos reunidos como sua terra natal era “vergonhosamente oprimida e explorada”, além de ser “envenenada” pelo álcool e ópio. Prisões eram mais numerosas do que escolas, e liberdade de imprensa não existia. Ele exortou que “o Partido deve fazer propaganda socialista em todas as colônias” e concluiu com um apelo: “Camaradas, salvem-nos”!

Ele foi aplaudido, mas certamente tocou alguns nervos doloridos. Ele foi interrompido duas vezes. Na primeira ocasião, Jean Longuet, neto de Karl Marx, gritou para defender sua própria reputação: “Eu tenho interferido para defender nativos”! Um pouco depois, quando um delegado sem nome interrompeu, Nguyen respondeu com um corte “silêncio, parlamentares”!

As palavras de Nguyen tinham um peso especial, uma vez que a condição da afiliação do partido exigia que os partidos comunistas

expusessem os truques e trapaças dos “seus” imperialistas nas colônias, para apoiar todo movimento de libertação colonial, não meramente em palavras, mas em ações, para exigir a expulsão dos seus próprios imperialistas dessas colônias, para inculcar entre os trabalhadores do seu país uma atitude genuinamente fraterna para com os trabalhadores da colônia e as nações oprimidas, e para lançar uma agitação sistemática entre as tropas do seu país contra qualquer opressão dos povos coloniais.

Um meio pelo qual o PCF tentou implementar sua nova política foi encontrar meios de se relacionar com o grande número de assuntos coloniais.

É estimado que entre 1914 e 1918, mais de 900.000 homens das colônias foram enviados para o conflito europeu – mais de meio milhão de soldados, pelo menos 250.000 do Norte da África e mais muitos milhares da Indochina, e ainda cerca de 220.000 trabalhadores. O PCF estabeleceu uma organização para aqueles de origem colonial vivendo na França, a Union inter-coloniale (UIC União Intercolonial), e em abril de 1922 começou uma publicação Le Paria editada por Niguyen-Ai-Quoc.

Le Paria foi um pouco desalinhado e claramente subfinanciado, e sua circulação foi sempre baixa. No entanto, reuniu um pequeno, porém dedicado grupo de camaradas comprometidos com a luta anti-imperialista. Estes incluíam não só Nguyen-Ai-Quoc, mas também um jovem norte africano, Hadjali Abdelkader, que se apresentou como candidato eleitoral pelo partido em 1924.

No curso da campanha, ele recrutou um trabalhador fabril chamado Messali Hadj. Juntos eles fundaram a Étoile Nord-Africaine, a primeira organização a pleitear a independência argelina, da qual a FLN (Frente de Libertação Nacional) dos anos 1950 foi, em última análise, descendente.

Le Paria, desse modo, semeou, pelo menos, algumas das sementes das duas grandes guerras de libertação nacional que dominaram a política francesa nas duas décadas seguintes a Segunda Guerra Mundial. Trinta e seis edições do Le Paria apareceram entre 1922 e 1926, usualmente impressas em uma única folha de grande formato, seu título flanqueado por caracteres chineses e árabes.

O interesse principal do jornal era a situação do império colonial da França. Nguyen-Ai-Quoc escreveu sobre a “crueldade inacreditável” de um “funcionário sádico” na administração colonial, e contrastou a barbaridade da prática colonial da França com a tradicional imagem da política republicana.

Evocando a figura feminina da Marianne, que desde a Revolução Francesa tem sido vista como a personificação da república, ele escreveu:

Há uma ironia dolorosa em observar que a civilização, simbolizada em suas várias formas – liberdade, justiça, etc. – pela gentil imagem da mulher, e arranjada por uma categoria de homem que são reputados por serem campeões na cortesia em relação às senhoras, deve fazer o símbolo vivo sofrer o mais ignóbil tratamento e ataca-lo vergonhosamente em seu comportamento, sua modéstia e sua própria vida.

Atenção igual foi dada para a luta por liberdades políticas, notavelmente liberdade de imprensa, e houve um protesto contra o serviço postal interferindo na correspondência para Le Paria. O jornal encorajou várias campanhas, em particular protestando contra a visita a Paris do imperador de Annam, Kai Dinh.

Le Paria apenas raramente levantou a demanda pela independência para os territórios coloniais. O principal impulso para as demandas do jornal foi por um fim da repressão e brutalidade nas colônias e pelas populações coloniais terem direitos iguais aos cidadãos da França metropolitana.

Para este fim, a unidade entre as classes trabalhadoras da Europa e Indochina foi encorajada. Em maio de 1922, em artigo para o jornal diário do PCF, L’Humanité, Nguyen-Ai-Quoc reconhece a profundidade da ignorância e preconceito que existia entre ambos, trabalhadores metropolitanos e coloniais.

Após citar Lenin sobre a necessidade de trabalhadores metropolitanos apoiarem as lutas nas nações subordinadas, observou com tristeza: “infelizmente, ainda há muitos militantes que pensam que uma colônia não é nada além de um país cheio de areia com o sol brilhando; alguns coqueiros verdes e alguns homens de cor, e isso é tudo”.

Enquanto isso, a maioria dos habitantes coloniais era ou repelida pela ideia do bolchevismo ou a identificava puramente com nacionalismo. Quanto a minoria educada, eles poderiam entender o que comunismo significava, mas não tinham interesse em vê-lo estabelecido; “como o cachorro da fábula, eles preferem vestir um colarinho e ter o seu pedaço de osso”.

Por isso ele argumentou:

Da ignorância mútua dos dois proletários preconceitos nascem. Para o trabalhador francês, o nativo é um ser inferior, insignificante, incapaz de entender e ainda menos de agir. Para o nativo, os franceses – quem quer que seja – são todos exploradores perversos. Imperialismo e capitalismo não falham em tirar vantagem dessa desconfiança recíproca e essa hierarquia racial artificial para obstruir a propaganda e dividir forças que deveriam se unir.

E ele concluiu: “Em face dessas dificuldades o que deveria fazer o partido? Intensifique a propaganda para supera-las”.

Diante disso, Le Paria argumentou pela unidade entre trabalhadores metropolitanos e coloniais. Em agosto de 1922, “Apelo às Populações Coloniais,” exortou: “Em face do capitalismo e imperialismo, nossos interesses são os mesmos; lembre as palavras de Karl Marx; trabalhadores de todos os países, uni-vos”. Na próxima edição, Max Cainville-Bloucourt insistiu: “Irmãos coloniais, é indispensável para vocês perceberem que não há salvação possível para vocês fora da conquista do poder político na Europa pelas massas trabalhadoras”.

Esta mensagem atingiu principalmente as colônias. Sua impressão inicial parece ter sido 1.000, subindo apenas para 3.000. A maioria destas foi para as colônias; de 2.000 cópias apenas 500 ficaram na França, enquanto 500 foram pra Madagascar, 400 para o Daomé, 200 para Magrebe, 100 para a Oceania, e 200 pra Indochina.

Já que a distribuição era clandestina, e cópias eram frequentemente apreendidas pela polícia, é difícil saber quão amplamente o jornal foi de fato distribuído. Mas Le Paria certamente fez sucesso em construir um entusiasmado time de ativistas que carregaram o jornal apesar da relativa apatia das camadas mais amplas dos membros do PCF.

Le Paria desapareceu virtualmente depois de setembro de 1925, com apenas uma última edição em abril de 1926. Havia conflitos crescentes entre o minúsculo quadro colonial do partido e o aparato burocrático. Lentamente, mas com toda certeza, o quadro entusiasmado e corajoso que construiu o Le paria foi dispersado. Nguyen-Ai-Quoc/Ho Chi Minh foi levado para Moscou em 1923 e logo abraçou o stalinismo dominante, linha comunista oficial.

Diminuindo o internacionalismo

O espírito do internacionalismo proletário que instruiu a pequena equipe de pioneiros entorno de Le Paria desapareceu junto com Ho Chi Minh, cimentando o relacionamento desigual da esquerda francesa com o imperialismo.

Em nenhum lugar isso foi mais claro do que no Sudeste Asiático. A Indochina Francesa foi formada pela primeira vez em outubro de 1887, depois da guerra Sino-Francesa. Um dos arquitetos da colonização foi Jules Ferry, primeiro ministro até 1885. Ferry foi um racista evidente que disse à Assembleia Nacional em 1885, “Nós devemos dizer abertamente que as raças superiores… tem o dever de civilizar as raças inferiores”.

Sua outra realização notável foi o estabelecimento da educação livre, compulsória e secular na França. Embora isso seja, algumas vezes, visto como parte da herança da esquerda, isso foi parte das suas aspirações imperiais. Se a França fosse se tornar um grande poder imperial, precisaria de um exército, largamente composto de camponeses, com um forte senso de identidade nacional.

Durante a Segunda Guerra Mundial, a Indochina foi controlada por uma administração colonial francesa controlada pelo regime Vichy pró-Alemanha, que fez um acordo com o Japão em 1940. Em 1945, o Japão ocupou o território. Depois do bombardeio de Hiroshima e Nagasaki, o Japão rapidamente se rendeu. Isso pegou os Aliados um pouco de surpresa; eles esperavam que a guerra continuasse até 1946.

Inicialmente, não foi a França que reocupou o Vietnã, mas a Grã-Bretanha, elas mesma governada por um governo trabalhista. Foi decidido na conferência de Potsdam em julho de 1945 que forças chinesas ocupariam a parte norte da Indochina, e tropas britânicas ocupariam a metade sul.

A França ainda estava se recuperando dos quatro anos de ocupação e precisou de tempo para reorganizar suas forças armadas. Tropas francesas começaram a deixar a Indochina (por navio) apenas em outubro. Forças britânicas, fazendo uso das recentemente derrotadas tropas japonesas, intervieram para garantir que a França estaria apta a recuperar sua colônia.

Charles de Gaulle, que liderou o governo provisório de 1945 da França, capturou o momento pós-guerra em sua transmissão anunciando a fundação da Quarta República.

Nossos postos estão reabrindo. Nossos campos estão sendo arados. Nossas ruínas estão sendo superadas. Quase todos que deixaram a França tem retornado. Estamos recuperando nosso Império. Estamos estabelecidos no Reno. Estamos retomando nosso lugar no mundo.

Os partidos de esquerda que dominaram o governo – comunistas socialistas e democratas cristãos – não fizeram oposição visível às exortações imperialistas de de Gaulle. Na verdade, até 1947, depois que a guerra em grande escala tinha estourado, ministros comunistas respeitaram a disciplina do gabinete votando pelos créditos de guerra (embora os deputados comunistas demostraram sua oposição votando pela abstenção).

Um delegado indochinês que visitou a França em 1946 reportou um encontro com o líder comunista Maurice Thorez em que este declarou que seu partido “não tinha intenção de ser considerado como potencial liquidador das posições francesas na Indochina e que ele desejava ardentemente ver a bandeira francesa voando em todos os cantos da União Francesa”.

O Partido Socialista foi igualmente interessado em preservar o império. O líder veterano Léon Blum favoreceu a fórmula de reconhecimento do Vietnã como em “estado livre dentro da União Francesa”, mas ele justificou isso com uma retórica que era muito aquela do imperialismo: “Há um meio, e um sozinho, de preservar na Indochina o prestígio da nossa civilização, nossa influência política e espiritual, e também aquele dos nossos interesses materiais legítimos, e esse é um acordo sincero na base da independência.”

A Guerra da Indochina começou em 1946, sob Blum como primeiro ministro, parcialmente porque ele falhou ao desafiar a liderança militar francesa, o que fez a guerra inevitável.

Apenas correntes menores da esquerda opuseram-se à recolonização da Indochina. Em 22 de dezembro de 1945, o jornal de esquerde independente Franc-Tireur publicou um vigoroso ataque à política externa francesa, citando uma carta de um soldado francês que comparava as ações francesas na Indochina ao massacre de Oradour, uma das piores atrocidades durante a ocupação nazi na França.

Uma série de fatores afetou o fracasso da esquerda francesa em se opor ao reestabelecimento do Império Francês, incluindo a lealdade do Partido Comunista a Rússia, que a esse ponto não desejava fazer algo que pudesse causar distúrbios ao desafiar o imperialismo do Ocidente.

Mas o principal foi a tradição republicana que dominava o pensamento político francês, especialmente na esquerda. Isso encorajou a noção de que o papel da França no mundo era progressivo, trazendo civilização e iluminação para mais territórios ignorantes – a assim chamada “ação civilizadora”.

Acreditava-se que os habitantes do mundo colonial poderiam e deveriam aspirar a nada mais do que serem cidadãos da República Francesa. É interessante contrastar isso com a abordagem mais pragmática mesmo do governo trabalhista britânico do pós-guerra, que aceitou a independência da Índia; a França agarrou-se a Indochina e Argélia até ser expulsa através de prolongadas e amargas lutas de independência.

O resto da história é bem conhecido. Os franceses lutaram para manter a Indochina, até finalmente serem derrotados na batalha de Dien Bien Phu em 1954. O Vietnã foi dividido, mas o envolvimento americano apoiando seu aliado sul vietnamita levou a mais guerra. Apenas em 1975 o Vietnã finalmente alcançou a independência depois de três décadas de guerra ter deixado uns dois milhões de mortos.

As coisas poderiam ter sido diferentes? Tal especulação é sempre difícil, mas se a esquerda francesa em 1945 tivesse sido fiel aos autênticos princípios internacionalistas, pelos quais o jovem Ho Chi Minh lutou no início dos anos 1920, a história poderia ter tido um curso menos trágico.

Colaborador

Ian Birchall é o autor de Sartre Contra o Stalinismo e de muitos artigos e ensaios sobre a obra de Jean-Paul Sartre.

29 de setembro de 2015

Os arquivos WikiLeaks da América Latina

Telegramas diplomáticos dos EUA revelam um ataque coordenado contra os governos de esquerda da América Latina

Alexander Main e Dan Beeton


Créditos: TelesurTV / Flickr

Tradução / No início deste Verão, o mundo viu a Grécia a tentar resistir a um desastroso “diktat” neoliberal e a receber uma sova dolorosa no processo. Quando o governo de esquerda grego decidiu fazer um referendo nacional sobre o programa de austeridade imposto pela “troika”, o Banco Central Europeu retaliou restringindo a liquidez dos bancos gregos. Com isso acarretou um fechamento prolongado dos bancos e submergiu a Grécia ainda mais na recessão.

Apesar dos eleitores gregos terem rejeitado em massa a austeridade, a Alemanha e o cartel de credores europeu foi capaz de subverter a democracia e obter exatamente o que queria: submissão total à sua agenda neoliberal. Na última década e meia, uma luta similar contra o neoliberalismo vem sendo travada em toda a extensão de um continente e majoritariamente fora do olhar do público. Ainda que Washington inicialmente tenha procurado anular toda a dissidência e frequentemente utilizando táticas mais violentas que as utilizadas contra a Grécia, a resistência da América Latina à agenda neoliberal tem sido parcialmente bem sucedida. É um conto épico que gradualmente vem sendo conhecido graças à contínua exploração do massivo tesouro de telegramas diplomáticos dos Estados Unidos e difundidos pela WikiLeaks.

O neoliberalismo foi firmemente implantado na América Latina bem antes da Alemanha e as autoridades da zona euro terem imposto ajustes estruturais à Grécia e a outros países periféricos endividados. Através da coerção (e.g., condições anexadas a empréstimos do FMI) e doutrinação (e.g., treinamento de “chicago boys” regionais apoiados pelos Estados Unidos), os Estados Unidos tiveram êxito, em meados dos anos 80, em difundir o evangelho da austeridade fiscal, desregulação, “mercados livres”, privatização e cortes draconianos no setor público por toda a América Latina.

O resultado foi incrivelmente parecido ao que vimos na Grécia: crescimento estagnado (quase nenhum crescimento per capita durante vinte anos de 1980-2000), aumento da pobreza, declínio do nível de vida para milhões e muitas novas oportunidades para os investidores internacionais e empresas fazendo dinheiro em pouco tempo. Começando nos finais dos anos 80, a região começou a ter convulsões e a levantar-se contra as políticas neoliberais. No início a rebelião era majoritariamente espontânea e desorganizada — como foi no caso venezuelano das revoltas do “Caracazo” no início de 1989.

Mas depois, candidatos anti-neoliberais começaram a ganhar eleições e, para choque do establishment da política externa dos EUA, um número crescente destes manteve as suas promessas de campanha e começou a implementar medidas anti-pobreza e políticas heterodoxas que reafirmavam o papel do estado na economia. De 1999 a 2008, candidatos com inclinação de esquerda ganharam eleições presidenciais em Venezuelana, Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia, Honduras, Equador, Nicarágua e Paraguai. Muita da história das tentativas dos governos dos EUA para conter e reverter a onda anti-neoliberal pode ser encontrada nas dezenas de milhares de telegramas diplomáticos dos EUA na região, difundidos pela WikiLeaks e datados desde os primeiros anos de George W. Bush até aos primeiros anos da administração do Presidente Obama.

Os telegramas — que analisamos no novo livro, The WikiLeaks Files: The World According to US Empire — revelam os mecanismos do dia-a-dia da política de intervenção de Washington na América Latina (e fazem do mantra do Departamento de Estado de que “os EUA não interfere na política interna de outros países” uma farsa). Apoio material e estratégico é providenciado aos grupos de oposição de direita, alguns dos quais são violentos e anti-democráticos. Os telegramas também pintam uma imagem vívida da mentalidade ideológica de Guerra Fria dos emissários mais velhos e os expõem a tentar usar medidas coercivas que fazem lembrar o recente estrangulamento aplicado à democracia grega.

De forma nada surpreendente, os principais meios de comunicação ignoraram ou falharam em grande medida em expor estas perturbadoras crônicas de agressão imperial, preferindo focalizar os relatos potencialmente embaraçosos dos diplomatas ou as ações ilegais de oficiais estrangeiros. Os poucos especialistas que deram uma análise de fundo aos telegramas afirmaram que não havia uma disparidade significativa entre a retórica oficial dos EUA e a realidade descrita nos telegramas. Nas palavras de um analista de relações internacionais dos Estados Unidos, “não obtemos uma imagem dos Estados Unidos como sendo esse todo poderoso mestre das marionetas a tentar puxar as cordas dos vários governos à volta do mundo para servir os seus interesses corporativos.” No entanto, uma leitura atenta dos telegramas desmente claramente esta afirmação.

“Isto não é chantagem”

No final de 2005, na Bolívia, Evo Morales teve uma vitória esmagadora nas eleições presidenciais com base em uma reforma constitucional, direitos indígenas e a promessa de lutar contra a pobreza e o neoliberalismo. No dia 3 de Janeiro, apenas dois dias após a sua tomada de posse, Morales recebeu uma visita do embaixador David L. Greenlee. O embaixador foi direto ao assunto: O visto dos EUA sobre a ajuda multilateral à Bolívia dependeria do bom comportamento do governo de Morales. Podia ser uma cena do Poderoso Chefão.

[O embaixador] mostrou a importância crucial das [instituições] financeiras internacionais, das quais a Bolívia dependia para assistência, tais como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. “Quando pensar no BID, deve pensar nos EUA,” disse o embaixador, “isto não é chantagem, é a simples realidade.”

No entanto, Morales aferrou-se à sua agenda. Durante os dias seguintes forjou planos para regular novamente o mercado de trabalho, renacionalizar a indústria dos hidrocarbonetos e estreitar a cooperação com o arqui-inimigo de Washington, Hugo Chavez. Em resposta, Greenlee sugeriu um menu de opções para forçar Morales a curvar-se perante a vontade do seu governo. Estas incluíam; vetar empréstimos multilaterais de vários milhões de dólares, adiar os já agendados alívios multilaterais da dívida, desencorajar os fundos da Millennium Challenge Corporation (que a Bolívia nunca recebeu até hoje, apesar de ser um dos países mais pobres do hemisfério) e cortar o “apoio material” às forças de segurança bolivianas.

Infelizmente para o Departamento de Estado, em pouco tempo, ficou claro que este tipo de ameaças seriam devidamente ignoradas. Morales já tinha decidido reduzir drasticamente a dependência da Bolívia nas linhas de crédito multilaterais que requisitassem uma habilitação do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos. Poucas semanas depois de tomar posse, Morales anunciou que a Bolívia já não estaria dependente do FMI, e deixaria o acordo de empréstimos com o Fundo expirar. Anos mais tarde, Morales, aconselharia a Grécia e outros países endividados da Europa a seguir o exemplo de Bolívia e a “libertarem-se da ordem do Fundo Monetário Internacional.”

Não conseguindo forçar Morales às suas jogadas, o Departamento de Estado começou, então, a centrar-se no fortalecimento da oposição boliviana. A região controlada pela oposição, Media Luna, começou a receber cada vez mais assistência dos Estados Unidos. Um telegrama de Abril de 2007, discute “um maior esforço da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) para fortalecer os governos regionais como contrapeso ao governo central.”

Um relatório da USAID de 2007 mencionava que o seu Office of Transition Initiatives (OTI) tinha aprovado 101 bolsas por US$4.066.131 para ajudar os governos departamentais a operar mais estrategicamente.” Também se fez chegar fundos aos grupos indígenas que se opunham à visão de Morales para as comunidades indígenas.”

Um ano mais tarde os departamentos de Media Luna, iriam empenhar-se na rebelião contra o governo de Morales, primeiramente com um referendo sobre a autonomia, apesar destes terem sido considerados ilegais pelas autoridades judiciais; e posteriormente apoiando os protestos violentos pró-autonomia que tiveram como consequência pelo menos 20 simpatizantes do governo mortos.

Muitos acreditavam que se estava a desenvolver uma tentativa de golpe de estado. A situação apenas se acalmou com a pressão de todos os outros presidentes da América do Sul, que emitiram uma declaração conjunta de apoio ao governo constitucional do país. Mas enquanto que a América do Sul se unia em apoio a Evo, os Estados Unidos seguiam em comunicação regular com os líderes da oposição do movimento separatista, mesmo quando estes falavam em “rebentar com as condutas de gás” e usar a “violência como uma probabilidade de forçar o governo a levar a sério qualquer diálogo.”

Contrariamente à posição oficial durante os eventos de Agosto e Setembro de 2008, o Departamento de Estado, levou muito a sério a possibilidade de um golpe de estado ou assassinato do presidente boliviano, Evo Morales. Um telegrama revela planos da Embaixada dos EUA em La Paz para tal caso: “[o Emergency Action Committee] irá desenvolver, com [o US Southern Command Situational Assessment Team], um plano de resposta no caso de uma urgência repentina, i.e. um golpe de estado ou a morte do Presidente Morales,” lê-se no telegrama.

Os acontecimentos de 2008 foram o maior desafio até agora da presidência de Morales e a situação em que ele esteve mais perto de ser derrubado. As preparações para uma possível saída da presidência de Morales revelam que os Estados Unidos, pelo menos, acreditaram que a ameaça a Morales era bastante real. O fato de não ter dito nada publicamente apenas sublinha de que lado Washington se posicionava durante o conflito e qual desfecho provavelmente preferiria.

Como funciona

Alguns dos métodos de intervenção usados na Bolívia foram emulados de outros países com governos de esquerda ou com movimentos fortes de esquerda. Por exemplo, após o regresso dos Sandinistas ao poder, em Nicarágua, no ano 2007, a embaixada dos EUA em Manágua trabalhou “a toda a velocidade” para reforçar o apoio ao partido de oposição de direita, o Alianza Liberal Nicaraguense (ALN). Em Fevereiro de 2007, a embaixada reuniu com o coordenador estratégico do ALN e explicou-lhe que os EUA “não providenciavam assistência direta a partidos políticos,” mas — de maneira a ultrapassar esta restrição — sugeriu que o ALN estivesse mais estreitamente coordenado com ONGs amigas que pudessem receber fundos dos EUA.

A líder do ALN disse que “avançaria com uma lista extensiva da lista ONGs que, de fato, apoiam os esforços do ALN” e a embaixada proporcionou-lhe “encontros com os diretores para o país do IRI [Instituto Republicano Internacional] e NDI [Instituto Internacional Democrata para os Assuntos Internacionais].” O telegrama também faz notar que a embaixada iria “dar seguimento ao incremento de angariação de fundos” para o ALN.

Telegramas como este deveriam ser de leitura obrigatória para estudantes da diplomacia dos EUA e aqueles que querem perceber como o sistema de “promoção de democracia” realmente funciona. Através do USAID, Fundação Nacional para a Democracia (NED), NDI, IRI e outras entidades para-governamentais, o governo dos EUA fornece uma ampla assistência aos movimentos políticos que apoiem os objetivos econômicos e políticos dos EUA.

Em Março de 2007, o embaixador dos EUA na Nicarágua pediu ao Departamento de Estado que providenciasse aproximadamente 65 milhões de dólares acima dos níveis de base recentes nos próximos quatro anos — ao longo das próximas eleições presidenciais de maneira a financiar o “fortalecimento dos partidos políticos, ONGs “democráticas” e “pequenas e flexíveis subvenções de decisão rápida a grupos comprometidos em desenvolver esforços críticos que defendam a democracia em Nicarágua, que façam avançar os nossos interesses e se contraponham a aqueles que se mobilizam contra nós.”

No Equador, a embaixada dos EUA opôs-se ao economista de esquerda, Rafael Correa, vencedor destacado nas eleições de 2006 e o levaram ao cargo presidencial. Dois meses antes dessas eleições, o conselheiro político da embaixada alertou Washington que “se podia esperar que Correa se juntasse ao grupo Chavez-Morales-Kirchner de líderes sul americanos nacionalistas-populistas,” e fazia notar que a embaixada tinha “avisado os nossos contatos políticos, econômicos e midiáticos da ameaça que Correa representa para o futuro de Equador e desencorajou as alianças políticas que podiam equilibrar a percepção de Correa com o radicalismo.” Imediatamente após a eleição de Correa, a embaixada enviou um telegrama ao Departamento de Estado com o seu plano de jogo:

Não mantemos ilusões de que as tentativas do Governo dos Estados Unidos possam influenciar a direção do novo governo ou do Congresso, mas esperamos maximizar a nossa influência junto com outros equatorianos e grupos que partilham os nossos pontos de vista. As propostas de reformas de Correa e atitude perante o Congresso e partidos políticos tradicionais, se não for controlada, pode prolongar o período atual de conflitos e instabilidade.

Os maiores medos da embaixada foram confirmados. Correa anunciou que fecharia a base aérea dos EUA em Manta, aumentaria os gastos sociais, e avançaria uma assembleia constituinte. Em Abril de 2007, 80 porcento de eleitores equatorianos validaram a proposta de uma assembleia constituinte e em 2008, 62 porcento aprovaram a nova constituição que consagrava uma série de princípios progressistas, incluindo a soberania alimentar, direito à habitação, saúde e emprego e controle governamental sobre o banco central (um enorme não-não à cartilha neoliberal).

No início de 2009, Correa anunciou que o Equador cumpriria parcialmente com a sua dívida externa. A embaixada estava furiosa com esta decisão e outras ações recentes, como a decisão de Correa de alinhar Equador mais estreitamente com a Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA) de esquerda (que tinha sido iniciada pela Venezuela e Cuba em 2004 como contrapeso à Área de Comércio Livre das Américas (ALCA), naquela altura promovida pela administração Bush. Mas o embaixador estava também consciente de que tinha pouca influência sobre ele:

Estamos a transmitir a mensagem em privado de que as ações de Correa irão ter consequências na sua relação com a nova administração de Obama, enquanto evitamos comentários públicos que seriam contraproducentes. Não recomendamos que se termine qualquer programa do Governo dos Estados Unidos que sirvam os nossos interesses uma vez que essa opção apenas enfraqueceria os incentivos de Correa de retroceder para uma posição mais pragmática.

O incumprimento parcial teve sucesso e aforrou ao governo equatoriano aproximadamente 2 bilhões de dólares. Em 2011, Correa recomendou o mesmo tratamento para os países europeus endividados, particularmente Grécia, aconselhando-os a não cumprir os pagamentos da dívida e 'ignorar o conselho do FMI.'

As ruas estão quentes

Durante a Guerra Fria, a suposta ameaça do avanço soviético e cubano serviu para justificar um sem número de intervenções para remover governos de inclinação de esquerda e apoiar regimes militares de direita. De maneira similar, os telegramas do WikiLeaks mostraram como, nos anos 2000, o espectro do “Bolivarianismo” foi usado para validar intervenções contra novos governos de esquerda anti-liberais, como o da Bolívia, representado como tendo “caído sem reservas no abraço venezuelano;” ou do Equador, visto como um “testa-de-ferro” para Chávez”

As relações com o governo de esquerda de Hugo Chávez amargaram desde o início. Chávez eleito presidente pela primeira vez em 1998, rejeitando amplamente as políticas econômicas neoliberais, desenvolveu uma relação estreita com Cuba de Fidel Castro e criticou, bem alto, o assalto da administração Bush ao Afeganistão após os ataques de 9/11 (os EUA retiraram o seu embaixador de Caracas após Chavéz ter proclamado: “Não podes lutar contra o terrorismo com terrorismo”).

Mais tarde fortaleceu o controle governamental do setor petrolífero, aumentando os valores de royalties pagos pelas empresas estrangeiras e usou as receitas do petróleo para financiar o sistema público de saúde, educação e programas alimentares para os pobres.

Em Abril de 2002, a administração Bush validou publicamente um golpe de estado, de pequena duração, que removeu Chávez do poder por quarenta e oito horas. Os documentos da Fundação Nacional para a Democracia, obtidos através da Freedom of Information Act [Lei pela Liberdade de Informação], mostraram que os EUA forneceram fundos para a “promoção da democracia” e treinamento a grupos que apoiassem o golpe de estado e que mais tarde viriam a estar envolvidos em esforços para remover Chávez através de “greves” administrativas que paralisaram a indústria petrolífera, nos finais de 2002 e mergulharam o país em recessão. Os telegramas da WikiLeaks mostram que após essas tentativas falhadas de derrubar o governo eleito venezuelano, os EUA continuaram a apoiar a oposição venezuelana através da NED e USAID.

Em um telegrama de Novembro de 2006, William Brownfield, embaixador naquela altura, explicava a estratégia de USAID/OTI para debilitar a administração de Chávez:

Em Agosto de 2004, o embaixador delineava os 5 pontos estratégicos da sua equipe para o país neste período [2004-2006] que serviriam de guia para a embaixada... o foco da estratégia é: 1) Fortalecimento das Instituições Democráticas, 2) Penetrar na Base Política de Chávez, 3) Dividir o Chavismo, 4) Proteger os negócios vitais dos EUA, e 5) Isolar Chávez internacionalmente.

Os laços apertados que existem entre a embaixada dos EUA e os vários grupos de oposição são evidentes em numerosos telegramas. Um telegrama de Brownfield relaciona a Súmate — uma ONG que teve um papel central nas campanhas de oposição — aos “nossos interesses na Venezuela.” Outros telegramas revelam que o Departamento de Estado fez pressão internacional para que se demonstrasse apoio à Súmate e encorajou apoio financeiro, político e legal dos EUA a esta organização, muito dele canalizado através da NED.

Em Agosto de 2009, a Venezuela foi atingida por protestos violentos de oposição (como tinha ocorrido um variado número de vezes sob Chávez e depois com o seu sucessor Nicolas Maduro). Um telegrama secreto de 27 de Agosto cita o contratante Development Alternatives Incorporated (DAI) referindo-se a “todas” as pessoas protestando naquele momento como “nossos beneficiários”:

[O empregado da DAI] Eduardo Fernandez disse que “as ruas estão quentes” referindo-se aos cada vez maiores protestos contra as tentativas de Chávez de consolidar o poder e que “todas estas pessoas (organizando os protestos) são nossos beneficiários.”

Os telegramas também revelam que o Departamento de Estado providenciou treinamento e apoio a um líder estudante que reconhecidamente tinha liderado multidões com a intenção de “linchar” um governador Chavista: “Durante o golpe de estado de Abril de 2002, [Nixon] Moreno participou nas manifestações no estado de Merida, liderando multidões que marcharam na capital do estado para linchar o governador Florencio Porras do MVR.”

No entanto, uns anos depois disto, outro telegrama mostra: “Moreno participou no International Visitor Program [do Departamento de Estado] em 2004.” Moreno viria mais tarde a ser procurado por tentativa de homicídio e ameaças a uma polícia, além de outras acusações. Também na linha da estratégia dos cinco pontos, como delineava Brownfield, o Departamento de Estado priorizava os seus esforços no isolamento internacional do governo venezuelano e em contrabalançar a sua influência em toda a região. Os telegramas mostram como os chefes das missões diplomáticas na região desenvolveram estratégias coordenadas para contrabalançar a “ameaça” regional.

Assim como a WikiLeaks inicialmente revelou em Dezembro de 2010, os chefes de missão para 5 países sul americanos encontraram-se no Brasil em Maio de 2007 para desenvolver uma resposta conjunta aos alegados “planos agressivos” do Presidente Chávez… de criar um movimento unificado Bolivariano por toda a América Latina.” Entre as áreas de ação que os chefes de missão havia um plano de “continuar a fortalecer laços com aqueles líderes militares na região que partilham a nossa preocupação com Chávez.” Um encontro similar dos chefes de missão dos EUA da América Central — focada na “ameaça” de “atividades políticas populistas na região” — realizou-se na embaixada dos EUA em El Salvador em Março de 2006.

Os diplomatas dos EUA fizeram grandes esforços para tentar prevenir que os governos das Caraíbas e América Central se juntassem à Petrocaribe, um acordo regional de energia de Venezuela que providencia petróleo aos seus membros em termos extremamente preferenciais. Telegramas vindos a público mostram que os oficiais norte-americanos reconheciam, de forma privada, os benefícios econômicos do acordo para os países membros, assim como mostravam preocupação que a Petrocaribe fosse aumentar a influência daVenezuela na região.

No Haiti, a embaixada trabalhou de forma estreita com grandes empresas de petróleo para tentar prevenir que o governo de René Préval se juntasse à Petrocaribe, apesar de reconhecerem que “liberaria 100 milhões de dólares por ano,” como foi reportado por Dan Coughlin e Kim Ives na Nation. Em Abril de 2006 a embaixada “telegrafou” de Porto Príncipe: “Continuaremos a pressionar [o presidente René do Haiti] Preval contra a sua adesão à PetroCaribe. O embaixador verá hoje o conselheiro chefe de Preval, Bob Manuel. Em reuniões anteriores este compreendeu as nossas preocupações e está consciente que um acordo com Chávez iria provocar problemas conosco.”

O histórico da esquerda

Devemos ter em conta que os telegramas do WikiLeaks não mostram vislumbres das atividades mais secretas das agências de informação dos EUA e são provavelmente apenas a ponta do icebergue no que toca às interferências políticas de Washington na região. No entanto os telegramas fornecem evidências alargadas da persistência e dos esforços determinados dos diplomatas dos EUA em intervir contra os governos de esquerda na América Latina, usando a alavancagem financeira e os múltiplos instrumentos disponíveis na caixa de ferramentas para a “promoção da democracia” — e às vezes até através de meios violentos e ilegais.

Apesar do restabelecimento das relações diplomáticas com Cuba por parte da administração Obama, não há indicações de que as políticas em relação à Venezuela e outros governos de esquerda da América Latina tenham mudado significativamente. Não há dúvida que a hostilidade da administração em relação ao governo eleito da Venezuela é inexorável. Em Junho de 2014, o Vice Presidente Joe Biden deu início à Caribbean Energy Security Initiative, visto como um “antídoto” à Petrocaribe. Em Março de 2015, Obama declarou Venezuela como “ameaça extraordinária à segurança nacional” anunciado sanções contra oficiais venezuelanos, uma atitude criticada de forma unânime por outros países na região.

Mas, apesar das agressões incessantes dos EUA, a Esquerda, em grande medida, tem prevalecido na América Latina. Com a excepção de Honduras e Paraguai, onde golpes de estado de direita derrubaram líderes eleitos, quase todos os movimentos de esquerda que chegaram ao poder nos últimos quinze anos mantêm-se ainda hoje no poder.

Principalmente como resultado destes governos, de 2002 a 2013 a taxa de pobreza da região baixou de 44% para 28% após ter, de fato, piorado nas duas décadas anteriores. Estes sucessos e vontades dos líderes de esquerda de correr riscos de maneira a se libertarem do diktat neoliberal, deve hoje ser uma fonte de inspiração para a esquerda anti-austeridade da Europa. É certo que alguns dos governos estão hoje a passar por dificuldades significativas, em parte devido à recessão econômica regional que afetou os governos de direita e de esquerda de igual maneira. Mas visto através das lentes dos telegramas, há boas razões para questionar se todas estas dificuldades são fomentadas internamente.

Por exemplo, em Equador — onde o presidente Correa está sob ataque da Direita e de alguns setores da Esquerda — os protestos contra as novas propostas de impostos progressivos envolve os mesmos homens de negócios, alinhados com a oposição, com quem os diplomatas dos EUA são vistos a definir estratégias nos telegramas.

Em Venezuela, onde um sistema de controlo monetário disfuncional gerou uma enorme inflação, protestos violentos de estudantes de direita desestabilizaram seriamente o país. As probabilidades são extremamente altas de que alguns destas pessoas que protestam tenham recebido financiamentos e/ou treinamento da USAID ou NED, que viram o seu orçamento para Venezuela aumentar 80 porcento de 2012 para 2014.

Ainda há muito mais a aprender dos telegramas da WikiLeaks. Para os capítulos América Latina e as Caraíbas” do “The WikiLeaks Files”, examinamos atentamente centenas de telegramas e fomos capazes de identificar distintos padrões de intervenção dos EUA que descrevemos em maior profundidade no livro (alguns destes já previamente reportados por outros). Outros autores do livro fizeram o mesmo para outras regiões do mundo. Mas há mais de 250,000 telegramas (quase 35,000 só da América Latina) e há sem dúvida muitos outros aspectos referenciáveis da diplomacia dos EUA na atualidade que estão à espera de ser desmascarados.

Tristemente, após a excitação inicial, na altura que os telegramas foram inicialmente divulgados, poucos jornalistas e acadêmicos têm mostrado grande interesse no assunto. Até que isto mude, não teremos uma discrição completa de como os EUA se vêem a si mesmos no mundo e como o seu braço diplomático responde aos desafios à sua hegemonia.

24 de setembro de 2015

Quem foi Stepan Bandera?

Celebrado como um herói nacionalista na Ucrânia, Stepan Bandera foi um simpatizante nazista que deixou um legado terrível.

Daniel Lazare


Poloneses sendo levados durante a campanha de assassinatos em massa do Exército Insurgente Ucraniano de 1943 a 1945.

Quando jornalistas ocidentais viajaram a Kiev no final de 2013 para cobrir os protestos do Euromaidan, encontraram uma figura histórica que poucos reconheciam. Era Stepan Bandera, cuja imagem jovem em preto e branco estava aparentemente em todos os lugares — em barricadas, na entrada da prefeitura de Kiev e nos cartazes segurados por manifestantes que pediam a derrubada do então presidente Viktor Yanukovych.

Bandera era evidentemente um nacionalista de algum tipo e altamente controverso, mas por quê? Os russos disseram que ele era fascista e antissemita, mas a mídia ocidental rapidamente desconsiderou isso como propaganda de Moscou. Então, eles se esquivaram.

O Washington Post escreveu que Bandera havia estabelecido um "relacionamento tático com a Alemanha nazista" e que seus seguidores "foram acusados ​​de cometer atrocidades contra poloneses e judeus", enquanto o New York Times escreveu que ele havia sido "vilipendiado por Moscou como um traidor pró-nazista", uma acusação vista como injusta "aos olhos de muitos historiadores e certamente para os ucranianos ocidentais". A Foreign Policy descartou Bandera como "o bicho-papão favorito de Moscou... uma metonímia para todas as coisas ruins da Ucrânia".

Quem quer que fosse Bandera, todos concordavam que ele não poderia ter sido tão desagradável quanto Putin disse que era. Mas, graças a Stepan Bandera: The Life and Afterlife of a Ukrainian Nationalist, de Grzegorz Rossoliński-Liebe, agora parece claro: aqueles terríveis russos estavam certos.

Bandera era de fato tão nocivo quanto qualquer personalidade criada pelos infernais anos 1930 e 1940. Filho de um padre greco-católico de mentalidade nacionalista, Bandera era o tipo de fanático autopunitivo que enfia alfinetes sob as unhas para se preparar para a tortura nas mãos de seus inimigos. Como estudante universitário em Lviv, ele teria se queimado com uma lamparina a óleo, batido a porta nos dedos e se chicoteado com um cinto. "Admita, Stepan!", ele gritava. "Não, eu não admito!"

Um padre que ouviu sua confissão o descreveu como "um übermensch... que colocava a Ucrânia acima de tudo", enquanto um seguidor disse que ele era o tipo de pessoa que "podia hipnotizar um homem. Tudo o que ele dizia era interessante. Era impossível parar de ouvi-lo".

Alistando-se na Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN) aos 20 anos, ele usou sua crescente influência para conduzir um grupo já violento a uma direção ainda mais extrema. Em 1933, organizou um ataque ao cônsul soviético em Lviv, que resultou na morte apenas de uma secretária. Um ano depois, comandou o assassinato do ministro do Interior polonês. Ordenou a execução de dois supostos informantes e foi responsável por outras mortes, enquanto a OUN passou a assaltar bancos, correios, delegacias de polícia e residências em busca de dinheiro.

O que levou Bandera a tomar uma direção tão violenta? O novo e abrangente estudo de Rossoliński-Liebe nos leva através dos tempos e da política que cativaram a imaginação de Bandera. A Galícia fazia parte do Império Austro-Húngaro antes da guerra. Mas enquanto a metade ocidental, controlada pelos poloneses, foi incorporada à recém-criada República da Polônia em 1918, a porção oriental, dominada pelos ucranianos, onde Bandera nasceu em 1909, só foi absorvida em 1921, após a Guerra Polaco-Soviética e um breve período de independência.

Foi uma péssima escolha desde o início. Amargurados por serem privados de um Estado próprio, os nacionalistas ucranianos recusaram-se a reconhecer a tomada do poder e, em 1922, responderam com uma campanha de ataques incendiários a cerca de 2.200 fazendas de propriedade de poloneses. O governo de Varsóvia respondeu com repressão e guerra cultural. Trouxe agricultores poloneses, muitos deles veteranos de guerra, para colonizar o distrito e mudar radicalmente a demografia da região. Fechou escolas ucranianas e até tentou proibir o termo "ucraniano", insistindo que os alunos usassem o termo um pouco mais vago, "ruteno".

Quando a OUN lançou outra campanha de incêndios criminosos e sabotagem no verão de 1930, Varsóvia recorreu a prisões em massa. No final de 1938, cerca de 30.000 ucranianos definhavam em prisões polonesas. Logo, políticos poloneses começaram a falar sobre o "extermínio" dos ucranianos, enquanto um jornalista alemão que viajou pelo leste da Galícia no início de 1939 relatou que os ucranianos locais clamavam para que o "Tio Führer" interviesse e impusesse uma solução própria aos poloneses.

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Stepan Bandera, quarto da esquerda, em 1928.

O conflito nas fronteiras polaco-ucranianas exemplificou as terríveis guerras étnicas que eclodiam por toda a Europa Oriental à medida que uma nova guerra mundial se aproximava. É concebível que Bandera pudesse ter respondido à crescente desordem movendo-se para a esquerda política. Anteriormente, as políticas culturais liberais bolcheviques na República Socialista Soviética da Ucrânia haviam causado um aumento do sentimento pró-comunista na vizinha província polonesa da Volínia.

Mas vários fatores se interpuseram: a posição de seu pai na Igreja, o fato de a Galícia, ao contrário da antiga Volínia russa, ser uma antiga possessão dos Habsburgos e, portanto, voltada para a Áustria e a Alemanha, e, claro, as desastrosas políticas de coletivização de Stalin, que, no início da década de 1930, haviam destruído completamente a Ucrânia soviética como qualquer modelo digno de ser imitado.

Consequentemente, Bandera respondeu movendo-se cada vez mais para a direita. No ensino médio, ele leu Mykola Mikhnovs’kyi, um nacionalista militante que havia falecido em 1924 e pregava uma Ucrânia unida que se estendesse "dos Cárpatos ao Cáucaso", uma Ucrânia livre de "russos, poloneses, magiares, romenos e judeus". Ingressou na OUN alguns anos depois e o expôs aos ensinamentos de Dmytro Dontsov, o "pai espiritual" do grupo, outro ultradireitista que traduziu "Mein Kampf", de Hitler, e "La Dottrina Del Fascismo", de Mussolini, e ensinava que a ética deveria ser subordinada à luta nacional.

Ingressou na OUN também o mergulhou em um ambiente marcado por crescente antissemitismo. O ódio antijudaico estava profundamente ligado ao conceito de nacionalidade ucraniana desde pelo menos o século XVII, quando milhares de camponeses ucranianos, enlouquecidos pelas extorsões dos latifundiários poloneses e seus administradores de terras judeus, se envolveram em um violento derramamento de sangue sob a liderança de um nobre menor chamado Bohdan Khmelnytsky.

A Ucrânia foi palco de pogroms ainda mais hediondos durante a Guerra Civil Russa. Mas as paixões antissemitas aumentaram ainda mais em 1926, quando um anarquista judeu chamado Sholom Schwartzbard assassinou o líder ucraniano exilado Symon Petliura em Paris.

"Matei um grande assassino", declarou Schwartzbard, que havia perdido quatorze familiares nos pogroms que varreram a Ucrânia quando Petliura liderou uma breve república antibolchevique em 1919-1920, ao se render à polícia. Mas, após ouvir depoimentos de sobreviventes sobre bebês empalados, crianças atiradas ao fogo e outras atrocidades antijudaicas, um júri francês o absolveu em apenas 35 minutos.

O veredito causou sensação, principalmente na direita ucraniana. Dontsov denunciou Schwartzbard como "um agente do imperialismo russo", declarando:

Os judeus são culpados, terrivelmente culpados, porque ajudaram a consolidar o domínio russo na Ucrânia, mas "o judeu não é culpado de tudo". O imperialismo russo é culpado de tudo. Somente quando a Rússia cair na Ucrânia poderemos resolver a questão judaica em nosso país de uma forma que atenda aos interesses do povo ucraniano.

Embora os bolcheviques fossem o principal inimigo, os judeus eram sua força de ataque avançada, então a maneira mais eficaz de combater um era eliminar completamente o outro. Em 1935, membros da OUN quebraram janelas de casas judaicas e, um ano depois, queimaram cerca de cem famílias judias em suas casas na cidade de Kostopil, onde hoje é o oeste da Ucrânia. Eles marcaram o décimo aniversário do assassinato de Petliura distribuindo panfletos com a mensagem: "Atenção, matem e espanquem os judeus pelo nosso líder ucraniano Symon Petliura, os judeus devem ser removidos da Ucrânia, vida longa ao Estado ucraniano".

A essa altura, Bandera já estava preso, cumprindo pena perpétua após dois julgamentos de assassinato amplamente divulgados, nos quais provocou o tribunal fazendo a saudação fascista e gritando Slava Ukraïni – "Glória à Ucrânia". Mas ele conseguiu escapar após a tomada alemã da Polônia ocidental, a partir de 1º de setembro de 1939, e seguir para Lviv, capital do leste da Galícia.

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Stepan Bandera

Mas a incursão soviética em 17 de setembro o fez fugir na direção oposta. Por fim, ele e o restante da liderança da OUN se estabeleceram em Cracóvia, controlada pelos alemães, a cerca de 320 quilômetros a oeste, onde começaram a preparar a organização para as próximas batalhas.

A invasão nazista da União Soviética, da qual a liderança da OUN parece ter tomado conhecimento com meses de antecedência, era o momento que eles esperavam. Não apenas prometia libertar a Ucrânia do controle soviético, mas também oferecia a perspectiva de unificar todos os ucranianos em um único Estado. O sonho de uma Ucrânia maior seria, assim, realizado.

Um mês antes, Bandera e seus principais tenentes — Stepan Lenkavs'kyi, Stepan Shukhevych e Iaroslav Stets'ko — haviam dado os retoques finais em um documento interno do partido intitulado "A Luta e as Atividades da OUN em Tempo de Guerra", uma lista de tarefas para quando a Wehrmacht cruzasse a fronteira soviética.

Convocou os membros a aproveitarem a "situação favorável" representada por uma "guerra entre Moscou e outros Estados" para criar uma revolução nacional que arrastaria toda a Ucrânia para seu vórtice. Concebeu a revolução como um grande processo de purificação no qual "moscovitas, poloneses e judeus" seriam "destruídos... em particular aqueles que protegem o regime [soviético]". Embora a OUN considerasse os nazistas como aliados, o documento enfatizava que os ativistas da OUN deveriam iniciar a revolução o mais rápido possível para apresentar à Wehrmacht um fato consumado:

Tratamos o exército alemão que se aproxima como o exército de aliados. Tentamos, antes de sua chegada, colocar a vida em ordem, por conta própria, como deveria ser. Informamos que a autoridade ucraniana já está estabelecida, está sob o controle da OUN, sob a liderança de Stepan Bandera; todos os assuntos são regulados pela OUN e as autoridades locais estão prontas para estabelecer relações amistosas com o exército, a fim de lutarmos juntos contra Moscou.

O documento prosseguia afirmando que "é permitido liquidar poloneses indesejáveis... membros da NKVD, informantes, provocadores... todos os ucranianos importantes que, em um momento crítico, tentariam fazer 'sua política' e, assim, ameaçar a mentalidade decisiva da nação ucraniana", acrescentando que apenas um partido seria permitido sob a nova ordem — a OUN.

Embora Bandera e seus seguidores mais tarde tentassem retratar a aliança com o Terceiro Reich como nada mais do que "tática", uma tentativa de colocar um Estado totalitário contra outro, ela era, na verdade, profundamente enraizada e ideológica. Bandera imaginava a Ucrânia como um Estado unipartidário clássico, com ele próprio no papel de führer, ou providnyk, e esperava que uma nova Ucrânia tomasse seu lugar sob a égide nazista, assim como o novo regime fascista de Jozef Tiso havia feito na Eslováquia ou o de Ante Pavelić na Croácia.

Certos nazistas de alto escalão pensavam de forma semelhante, principalmente Alfred Rosenberg, o recém-nomeado ministro do Reich para os territórios orientais ocupados. Mas Hitler, obviamente, tinha uma opinião diferente. Ele via os eslavos como "uma raça inferior", incapazes de organizar um Estado, e via os ucranianos, em particular, como "tão preguiçosos, desorganizados e niilistas-asiáticos quanto os Grandes Russos".

Em vez de um parceiro, ele os via como um obstáculo. Obcecado pelo bloqueio naval britânico da Primeira Guerra Mundial, que havia causado até 750.000 mortes por fome e doenças, ele estava determinado a bloquear qualquer esforço semelhante dos Aliados, expropriando os suprimentos de grãos do leste em uma escala sem precedentes. Daí a importância da Ucrânia, o grande celeiro no Mar Negro. "Preciso da Ucrânia para que ninguém possa nos matar de fome novamente como na última guerra", declarou ele em agosto de 1939. Apreensões de grãos em tal escala significariam condenar um grande número de pessoas à fome, vinte e cinco milhões ou mais no total.

No entanto, os nazistas não só não se importaram, como uma aniquilação em tal escala condizia perfeitamente com seus planos de transformação racial do que consideravam a fronteira oriental. O resultado foi o famoso Generalplan Ost, o grande projeto nazista que previa a matança ou expulsão de até 80% da população eslava e sua substituição por Volksdeutsche, colonos da antiga Alemanha e veteranos da Waffen-SS.

Evidentemente, não havia espaço em tal esquema para uma Ucrânia autogovernada. Quando Stets'ko anunciou a formação de um Estado ucraniano "sob a liderança de Stepan Bandera" em Lviv, apenas oito dias após a invasão nazista, alguns oficiais alemães o alertaram de que a questão da independência da Ucrânia dependia exclusivamente de Hitler. Oficiais nazistas transmitiram a mesma mensagem a Bandera alguns dias depois, em uma reunião em Cracóvia.

Posteriormente, eles escoltaram Bandera e Stets'ko até Berlim e os colocaram em prisão domiciliar. Quando Hitler decidiu, em 19 de julho de 1941, dividir a Ucrânia, incorporando o leste da Galícia ao "Governo Geral", como era conhecida a Polônia sob domínio nazista, os membros da OUN ficaram perplexos.

Em vez de unificar a Ucrânia, os nazistas a estavam desmembrando. Quando pichações apareceram com os dizeres "Fora a autoridade estrangeira! Vida longa a Stepan Bandera", os nazistas responderam fuzilando vários membros da OUN e, em dezembro de 1941, prendendo cerca de 1.500.

Ainda assim, como demonstra Rossoliński-Liebe, Bandera e seus seguidores continuaram a ansiar por uma vitória do Eixo. Por mais tensas que fossem as relações com os nazistas, não se podia falar em neutralidade na épica luta entre Moscou e Berlim.

Em uma carta a Alfred Rosenberg, em agosto de 1941, Bandera se ofereceu para atender às objeções alemãs reconsiderando a questão da independência da Ucrânia. Em 9 de dezembro, ele lhe enviou outra carta implorando por reconciliação: “Os interesses alemães e ucranianos na Europa Oriental são idênticos. Para ambos os lados, é uma necessidade vital consolidar (normalizar) a Ucrânia da melhor e mais rápida maneira e incluí-la no sistema espiritual, econômico e político europeu.”

O nacionalismo ucraniano, continuou ele, havia se moldado “em um espírito semelhante às ideias nacional-socialistas” e era necessário para “curar espiritualmente a juventude ucraniana” que havia sido envenenada por sua educação sob os soviéticos. Embora os alemães não estivessem dispostos a ouvir, sua atitude mudou quando sua sorte começou a mudar. Desesperados por mão de obra após a derrota em Stalingrado, eles concordaram com a formação de uma divisão ucraniana na Waffen-SS, conhecida como Galizien, que eventualmente cresceria para 14.000 membros.

Em vez de dissolver a OUN, os nazistas a reformularam como uma força policial administrada pelos alemães. A OUN desempenhou um papel de liderança nos pogroms antijudaicos que eclodiram em Lviv e dezenas de outras cidades ucranianas logo após a invasão alemã, e agora servia aos nazistas patrulhando os guetos e auxiliando em deportações, invasões e tiroteios.

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Dois soldados do Exército Insurgente Ucraniano com armas soviéticas e alemãs capturadas.

Mas, no início de 1943, membros da OUN desertaram em massa da polícia para formar uma milícia própria que viria a se chamar Exército Insurgente Ucraniano (Ukraïns’ka Povstans’ka Armiia, ou UPA). Aproveitando o caos atrás das linhas alemãs, seu primeiro ato importante foi uma campanha de limpeza étnica com o objetivo de expulsar os poloneses do leste da Galícia e da Volínia. "Quando se trata da questão polonesa, esta não é uma questão militar, mas sim de uma questão minoritária", disse um líder da UPA, citado por uma fonte clandestina polonesa. "Vamos resolvê-la como Hitler resolveu a questão judaica."

Citando o historiador polonês Grezegorz Motyka, Rossoliński-Liebe afirma que a UPA matou cerca de 100.000 poloneses entre 1943 e 1945 e que padres ortodoxos abençoaram os machados, forcados, foices, foices, facas e porretes que os camponeses mobilizados usaram para exterminá-los.

Simultaneamente, os ataques da UPA contra judeus continuaram em um nível tão feroz que os judeus buscaram a proteção dos alemães. "Os bandos banderitas e os nacionalistas locais atacavam todas as noites, dizimando os judeus", testemunhou um sobrevivente em 1948. "Os judeus se abrigavam nos campos onde os alemães estavam estacionados, temendo um ataque dos banderitas. Alguns soldados alemães foram trazidos para proteger os campos e, consequentemente, também os judeus."

Rossoliński-Liebe conta a história de Bandera e seu movimento desde a derrota nazista, quando a divisão galega lutou ao lado da Wehrmacht em retirada, até o período pós-guerra, quando os que ficaram para trás na Ucrânia montaram uma desesperada resistência de retaguarda contra os soviéticos invasores.

Essa guerra pós-guerra foi um caso mortalmente sério, no qual combatentes da OUN mataram não apenas informantes, colaboradores e ucranianos orientais transferidos para a Galícia e a Volínia para trabalhar como professores ou administradores, mas também suas famílias. "Em breve, os bolcheviques realizarão o imposto sobre grãos", alertaram em certa ocasião. "Qualquer um de vocês que levar grãos aos pontos de coleta será morto como um cachorro, e toda a sua família massacrada."

Cadáveres mutilados apareciam com cartazes proclamando: "Por colaboração com a NKVD". De acordo com um relatório da KGB de 1973, mais de 30.000 pessoas foram vítimas da OUN antes que os soviéticos conseguissem eliminar a resistência em 1950, incluindo cerca de 15.000 camponeses e trabalhadores de fazendas coletivas e mais de 8.000 soldados, milicianos e agentes de segurança.

Mesmo diante da barbárie da época, as ações do grupo se destacaram.

Stepan Bandera é um livro importante que combina biografia e sociologia ao apresentar a história de um importante nacionalista radical e da organização que ele liderou. Mas o que o torna tão relevante, é claro, é o poderoso ressurgimento da OUN desde 1991.

Embora a inteligência ocidental tenha acolhido Bandera e seus apoiadores com entusiasmo quando a Guerra Fria começou a se intensificar — "a emigração ucraniana no território da Alemanha, Áustria, França e Itália, em sua grande maioria, é um elemento saudável e intransigente na luta contra os bolcheviques", observou um agente de inteligência do Exército dos EUA em 1947 — as perspectivas de longo prazo do movimento não pareciam muito promissoras, especialmente depois que um agente soviético conseguiu se infiltrar na rede de segurança de Bandera em Munique, em 1959, e matá-lo com um tiro de pistola de cianeto.
Com isso, os banderistas pareciam seguir o mesmo caminho de todas as outras "nações cativas", exilados de extrema direita que se reuniam de tempos em tempos para cantar as velhas canções, mas que, de resto, pareciam relíquias de uma era passada.

O que os salvou, é claro, foi o colapso soviético. Veteranos da OUN voltaram às pressas na primeira oportunidade. Stets'ko havia morrido em Munique em 1986, mas sua viúva, Iaroslava, retornou em seu lugar, segundo Rossoliński-Liebe, fundando um partido de extrema direita chamado Congresso dos Nacionalistas Ucranianos e conquistando uma cadeira no parlamento. Iurii Shukhevych, filho do líder exilado da UPA, Roman Shukhevych, fundou outro grupo de ultradireita que se autodenominava Assembleia Nacional Ucraniana. Até o neto de Bandera, Stephen, fez uma aparição, viajando pela Ucrânia enquanto inaugurava monumentos, participava de comícios e elogiava seu avô como o "símbolo da nação ucraniana".

Enquanto isso, um grupo nacional de Banderitas formou o Partido Social-Nacional da Ucrânia, mais tarde conhecido como Svoboda. Em um discurso de 2004, seu líder, o carismático Oleh Tiahnybok, prestou homenagem aos combatentes da UPA:

O inimigo veio e tomou a Ucrânia deles. Mas eles não tiveram medo; da mesma forma, nós não devemos ter medo. Eles penduraram suas metralhadoras no pescoço e se adentraram na floresta. Lutaram contra russos, alemães, judeus e outros canalhas que queriam nos tirar o Estado ucraniano! E, portanto, nossa tarefa — para cada um de vocês, os jovens, os velhos, os grisalhos e os jovens — é defender nossa terra natal!

Exceto pela omissão dos poloneses, o discurso foi uma indicação de quão pouco as coisas haviam mudado. O movimento era tão xenófobo, antissemita e obcecado pela violência como sempre, só que agora, pela primeira vez em meio século, milhares de pessoas estavam ouvindo o que ele tinha a dizer.

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Stephan Bandera em um selo ucraniano.

Pode-se pensar que o Ocidente liberal não gostaria de ter nada a ver com tais elementos, mas a resposta não foi menos inescrupulosa do que durante os primeiros anos da Guerra Fria. Como os banderivtsi eram antirrussos, eles tinham que ser democráticos. Por serem democráticos, seus aparatos de ultradireita tinham que ser inconsequentes.

Os retratos de Bandera, que se tornaram cada vez mais proeminentes à medida que os protestos do Euromaidan se tornavam cada vez mais violentos, o anjo-lobo que antes era um símbolo da SS, mas agora era adotado pelo Batalhão Azov e outras milícias, o antigo grito de guerra da OUN de "Glória à Ucrânia, glória aos heróis", que agora era onipresente entre os manifestantes anti-Yanukovych — todos tiveram que ser ignorados, desconsiderados ou encobertos.

Citando "comentaristas acadêmicos" não identificados, o Guardian anunciou em março de 2014 que o Svoboda "parece ter abrandado" e agora estava "evitando a xenofobia". O embaixador dos EUA, Geoffrey Pyatt, disse que os membros do Svoboda "demonstraram sua boa-fé democrática", enquanto a historiadora Anne Applebaum anunciou na New Republic que o nacionalismo era uma coisa boa e que o que os ucranianos precisavam era mais dele: "Eles precisam de mais ocasiões em que possam gritar 'Slava Ukraini - Heroyam Slava' - 'Glória à Ucrânia, Glória aos seus Heróis', que era, sim, o slogan do controverso Exército Revolucionário Ucraniano [sic] na década de 1940, mas foi adotado em um novo contexto".

Muitos, como Alina Polyakova, do Conselho Atlântico, expressaram defesas semelhantes: “O governo russo e seus representantes no leste da Ucrânia têm consistentemente rotulado o governo de Kiev de junta fascista e o acusado de ter simpatizantes nazistas. A propaganda de Moscou é ultrajante e equivocada.” Dado o agravamento dos problemas econômicos da Ucrânia, ela continuou, “os observadores ucranianos deveriam se preocupar com o potencial crescimento de partidos de extrema direita?” Sua resposta: “De jeito nenhum.”

Isso foi em 9 de junho. Algumas semanas depois, Polyakova deu uma guinada de 180 graus. “O governo ucraniano”, declarou ela em 24 de julho, “tem um problema em mãos: um grupo de extrema direita se aproveitou da crescente frustração dos ucranianos com a economia em declínio e o fraco apoio do Ocidente.”

Como resultado, o Setor Direito tornou-se uma força "perigosa", "um espinho no pé de Kiev", um dos vários grupos de direita que "se aproveitam da frustração pública para angariar apoio para sua agenda equivocada". A comunidade internacional teria que intensificar a ajuda econômica e o apoio político, alertou ela, se não quisesse que a Ucrânia caísse nas mãos da direita radical.

O que aconteceu? Em 11 de julho, um tiroteio sangrento eclodiu na cidade de Mukacheve, no oeste do país, entre membros fortemente armados do neonazista Setor Direito e apoiadores de um político local chamado Mykhailo Lanio.

Os detalhes são obscuros e não está claro se o Setor Direito estava tentando impedir o contrabando altamente lucrativo de cigarros na província fronteiriça de Zakarpattia ou se estava tentando se intrometer no comércio. Uma coisa, no entanto, era óbvia: dada a desordem em suas próprias forças armadas, o governo ucraniano havia se tornado cada vez mais dependente de milícias privadas banderistas, como o Setor Direito, para combater separatistas pró-Rússia no leste e, como consequência, estava cada vez mais à mercê de ultradireitistas furiosos, que não conseguia controlar.

Graças ao apoio militar recebido, grupos como o Setor Direito e a Brigada Azov neonazista estavam maiores do que nunca, calejados pela batalha e fortemente armados, e fartos de políticos ricos que fizeram as pazes com os russos e continuaram a lucrar enquanto a economia afundava a novos patamares. No entanto, havia pouco que o governo em Kiev pudesse fazer em resposta.

O nervosismo de Polyakova era justificado. Dada a situação econômica desesperadora da Ucrânia — a produção econômica deve cair 10% este ano, após cair 7,5% em 2014, a inflação está em 57% devido ao colapso da hryvnia, enquanto a dívida externa agora está em 158% do PIB — havia um distinto cheiro de Weimar no ar.

Algumas semanas depois, em 31 de agosto, centenas de apoiadores do Setor Direito entraram em confronto com a polícia em Kiev enquanto o parlamento ucraniano votava a favor dos acordos de Minsk II, que visavam apaziguar a crise no leste. Três pessoas morreram quando um apoiador do Setor Direito lançou uma granada no meio do tumulto e mais de cem ficaram feridas enquanto o país se encaminhava para uma guerra civil.

Embora o presidente ucraniano, Petro Poroshenko, tenha rotulado o ataque de "uma facada nas costas", foi o mesmo líder que, em maio, sancionou uma lei que torna crime "exibir publicamente uma atitude desrespeitosa" em relação à OUN ou à UPA. Mais uma vez, os centristas que começaram a apaziguar os fascistas acabaram à mercê deles.

Colaborador

Daniel Lazare é o autor de The Velvet Coup: The Constitution, the Supreme Court and the Decline of American Democracy.

A Armadilha de Tucídides: Os EUA e a China estão caminhando para a guerra?

Em 12 dos 16 casos anteriores em que uma potência em ascensão confrontou uma potência dominante, o resultado foi derramamento de sangue.

Graham Allison


Mike Blake / Damir Sagolj / Reuters / alessandro0770 / Shutterstock / Zak Bickel / The Atlantic

Quando Barack Obama se reunir esta semana com Xi Jinping durante a primeira visita de Estado do presidente chinês aos Estados Unidos, um item provavelmente não estará em sua agenda: a possibilidade de que os Estados Unidos e a China se encontrem em guerra na próxima década. Nos círculos políticos, isso parece tão improvável quanto imprudente.

E ainda 100 anos depois, a Primeira Guerra Mundial oferece um lembrete preocupante da capacidade do homem para a loucura. Quando dizemos que a guerra é “inconcebível”, isso é uma afirmação sobre o que é possível no mundo – ou apenas sobre o que nossas mentes limitadas podem conceber? Em 1914, poucos poderiam imaginar uma matança em uma escala que exigia uma nova categoria: a guerra mundial. Quando a guerra terminou, quatro anos depois, a Europa estava em ruínas: o kaiser desaparecido, o império austro-húngaro dissolvido, o czar russo derrubado pelos bolcheviques, a França sangrando por uma geração e a Inglaterra despojada de sua juventude e tesouro. Um milênio em que a Europa havia sido o centro político do mundo chegou a um impasse.

A questão que define a ordem global para esta geração é se a China e os Estados Unidos podem escapar da Armadilha de Tucídides. A metáfora do historiador grego nos lembra dos perigos inerentes quando uma potência em ascensão rivaliza com uma potência dominante – como Atenas desafiou Esparta na Grécia antiga, ou como a Alemanha fez com a Grã-Bretanha um século atrás. A maioria dessas competições terminou mal, muitas vezes para ambas as nações, concluiu uma equipe minha do Harvard Belfer Center for Science and International Affairs após analisar o registro histórico. Em 12 dos 16 casos nos últimos 500 anos, o resultado foi guerra. Quando as partes evitavam a guerra, isso exigia enormes e dolorosos ajustes nas atitudes e ações não apenas do desafiante, mas também do desafiado.

Com base na trajetória atual, a guerra entre os Estados Unidos e a China nas próximas décadas não é apenas possível, mas muito mais provável do que se reconhece no momento. De fato, a julgar pelo registro histórico, a guerra é mais provável do que improvável. Além disso, as atuais subestimações e mal-entendidos dos perigos inerentes ao relacionamento EUA-China contribuem muito para esses perigos. Um risco associado à Armadilha de Tucídides é que o business as usual - não apenas um evento inesperado e extraordinário - podem desencadear conflitos em larga escala. Quando uma potência em ascensão ameaça deslocar uma potência dominante, crises comuns que de outra forma seriam contidas, como o assassinato de um arquiduque em 1914, podem iniciar uma cascata de reações que, por sua vez, produzem resultados que nenhuma das partes teria escolhido de outra forma.

A guerra, no entanto, não é inevitável. Quatro dos 16 casos em nossa revisão não terminaram em derramamento de sangue. Esses sucessos, assim como os fracassos, oferecem lições pertinentes para os líderes mundiais de hoje. Escapar da Armadilha requer um esforço tremendo. Como o próprio Xi Jinping disse durante uma visita a Seattle na terça-feira: “Não existe a chamada Armadilha de Tucídides no mundo. Mas, se os principais países cometerem erros de cálculo estratégico repetidamente, eles podem criar essas armadilhas para si mesmos”.

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Há mais de 2.400 anos, o historiador ateniense Tucídides ofereceu uma visão poderosa: “Foi a ascensão de Atenas e o medo que isso inspirou em Esparta que tornaram a guerra inevitável”. Outros identificaram uma série de causas que contribuíram para a Guerra do Peloponeso. Mas Tucídides foi ao cerne da questão, concentrando-se no estresse estrutural inexorável causado por uma rápida mudança no equilíbrio de poder entre dois rivais. Observe que Tucídides identificou dois principais impulsionadores dessa dinâmica: o crescente direito do poder crescente, o senso de sua importância e a demanda por mais voz e influência, por um lado, e o medo, a insegurança e a determinação de defender o status quo que isso gera no poder estabelecido, por outro.

No caso sobre o qual ele escreveu no século V a.C., Atenas havia emergido ao longo de meio século como um campanário da civilização, produzindo avanços em filosofia, história, drama, arquitetura, democracia e proezas navais. Isso chocou Esparta, que por um século foi a principal potência terrestre na península do Peloponeso. Na visão de Tucídides, a posição de Atenas era compreensível. À medida que sua influência crescia, também crescia sua autoconfiança, sua consciência de injustiças passadas, sua sensibilidade a casos de desrespeito e sua insistência em que arranjos anteriores fossem revisados para refletir novas realidades de poder. Também era natural, explicou Tucídides, que Esparta interpretasse a postura ateniense como irracional, ingrata e ameaçadora ao sistema que havia estabelecido — e dentro do qual Atenas havia florescido.

Tucídides narrou mudanças objetivas no poder relativo, mas também se concentrou nas percepções de mudança entre os líderes de Atenas e Esparta - e como isso levou cada um a fortalecer alianças com outros estados na esperança de contrabalançar o outro. Mas o emaranhamento funciona nos dois sentidos. (Foi por essa razão que George Washington notoriamente alertou os Estados Unidos para tomarem cuidado com “alianças emaranhadas”.) Quando o conflito eclodiu entre as cidades-estado de segundo nível de Corinto e Corcira (agora Corfu), Esparta sentiu a necessidade de vir em defesa de Corinto, o que deixou pouca escolha a Atenas a não ser apoiar seu aliado. Seguiu-se a Guerra do Peloponeso. Quando terminou, 30 anos depois, Esparta era o vencedor nominal. Mas ambos os estados estavam em ruínas, deixando a Grécia vulnerável aos persas.

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Oito anos antes da eclosão da guerra mundial na Europa, o rei da Grã-Bretanha, Eduardo VII, perguntou a seu primeiro-ministro por que o governo britânico estava se tornando tão hostil à Alemanha de seu sobrinho Kaiser Wilhelm II, em vez de ficar de olho na América, que ele via como o maior desafio. O primeiro-ministro instruiu o principal observador da Alemanha do Ministério das Relações Exteriores, Eyre Crowe, a escrever um memorando respondendo à pergunta do rei. Crowe entregou seu memorando no dia de ano novo de 1907. O documento é uma joia nos anais da diplomacia.

A lógica da análise de Crowe ecoou o insight de Tucídides. E sua questão central, conforme parafraseada por Henry Kissinger em On China, era a seguinte: a hostilidade crescente entre a Grã-Bretanha e a Alemanha derivava mais das capacidades alemãs ou da conduta alemã? Crowe colocou de forma um pouco diferente: a busca da Alemanha por "hegemonia política e ascendência marítima" representa uma ameaça existencial para "a independência de seus vizinhos e, finalmente, a existência da Inglaterra?"

A Grande Frota Britânica a caminho de encontrar a frota da Marinha Imperial Alemã para a Batalha da Jutlândia em 1916 (AP)

A resposta de Crowe foi inequívoca: capacidade era fundamental. À medida que a economia da Alemanha superasse a da Grã-Bretanha, a Alemanha não apenas desenvolveria o exército mais forte do continente. Em breve também "construiria uma marinha tão poderosa quanto pudesse pagar". Em outras palavras, escreve Kissinger, "uma vez que a Alemanha alcançasse a supremacia naval … isso em si – independentemente das intenções alemãs – seria uma ameaça objetiva à Grã-Bretanha e incompatível com a existência do Império Britânico."

Três anos depois de ler esse memorando, Eduardo VII morreu. Os participantes de seu funeral incluíram dois “principais enlutados” - o sucessor de Eduardo, George V, e o Kaiser Wilhelm da Alemanha - junto com Theodore Roosevelt representando os Estados Unidos. A certa altura, Roosevelt (um ávido estudante de poder naval e principal defensor da construção da Marinha dos Estados Unidos) perguntou a Wilhelm se ele consideraria uma moratória na corrida armamentista naval germano-britânica. O kaiser respondeu que a Alemanha estava inalteravelmente comprometida em ter uma marinha poderosa. Mas, como ele explicou, a guerra entre a Alemanha e a Grã-Bretanha era simplesmente impensável, porque “fui criado na Inglaterra, em grande parte; Sinto-me em parte um inglês. Depois da Alemanha, preocupo-me mais com a Inglaterra do que com qualquer outro país.” E, então, com ênfase: "ADORO A INGLATERRA!"

Por mais inimaginável que pareça o conflito, por mais catastróficas que sejam as consequências potenciais para todos os atores, por mais profunda que seja a empatia cultural entre líderes, até mesmo parentes consangüíneos, e por mais interdependentes economicamente que sejam os Estados – nenhum desses fatores é suficiente para evitar a guerra, em 1914 ou hoje.

De fato, em 12 dos 16 casos nos últimos 500 anos em que houve uma rápida mudança no poder relativo de uma nação em ascensão que ameaçou deslocar um estado governante, o resultado foi a guerra. Como sugere a tabela abaixo, a luta pelo domínio na Europa e na Ásia ao longo do último meio milênio oferece uma sucessão de variações sob um enredo comum.

Estudos de caso de Tucídides

Harvard Belfer Center for Science and International Affairs

(Para obter resumos desses 16 casos e a metodologia para selecioná-los, e para um fórum para registrar adições, subtrações, revisões e discordâncias com os casos, visite o Harvard Belfer Center’s Thucydides Trap Case File. Para esta primeira fase do projeto , nós do Belfer Center identificamos os poderes “dominantes” e “ascendentes” seguindo os julgamentos dos principais relatos históricos, resistindo à tentação de oferecer interpretações originais ou idiossincráticas dos eventos. Essas histórias usam “ascensão” e “governo” de acordo com suas definições convencionais, geralmente enfatizando mudanças rápidas no PIB relativo e na força militar. A maioria dos casos nesta rodada inicial de análise vem da Europa pós-Vestfália.)

Quando uma França revolucionária em ascensão desafiou o domínio da Grã-Bretanha sobre os oceanos e o equilíbrio de poder no continente europeu, a Grã-Bretanha destruiu a frota de Napoleão Bonaparte em 1805 e depois enviou tropas ao continente para derrotar seus exércitos na Espanha e em Waterloo. Enquanto Otto von Bismarck procurava unificar uma variedade de estados alemães em ascensão, a guerra com seu adversário comum, a França, provou ser um instrumento eficaz para mobilizar o apoio popular para sua missão. Após a Restauração Meiji em 1868, uma economia e um estabelecimento militar japoneses em rápida modernização desafiaram o domínio chinês e russo do Leste Asiático, resultando em guerras com ambos, das quais o Japão emergiu como a principal potência na região.

Cada caso é, claro, único. O debate contínuo sobre as causas da Primeira Guerra Mundial nos lembra que cada uma delas está sujeita a interpretações conflitantes. Um grande historiador internacional, Ernest May, de Harvard, ensinou que, ao tentar raciocinar a partir da história, devemos ser tão sensíveis às diferenças quanto às semelhanças entre os casos que comparamos. (De fato, em sua aula de Raciocínio Histórico 101, May pegava uma folha de papel, desenhava uma linha no meio da página, rotulava uma coluna de “Semelhante” e a outra de “Diferente” e preenchia a folha com pelo menos um meia dúzia de cada.) No entanto, reconhecendo muitas diferenças, Tucídides nos direciona para uma semelhança poderosa.

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O principal desafio geoestratégico desta era não são os extremistas islâmicos violentos ou uma Rússia ressurgente. É o impacto que a ascensão da China terá na ordem internacional liderada pelos EUA, que proporcionou paz e prosperidade sem precedentes às grandes potências nos últimos 70 anos. Como observou o falecido líder de Cingapura, Lee Kuan Yew, “o tamanho do deslocamento da China no equilíbrio mundial é tal que o mundo deve encontrar um novo equilíbrio. Não dá para fingir que se trata de mais um grande jogador. Este é o maior jogador da história do mundo.” Todo mundo sabe sobre a ascensão da China. Poucos de nós percebem sua magnitude. Nunca antes na história uma nação subiu tanto, tão rápido, em tantas dimensões de poder. Parafraseando o ex-presidente tcheco Vaclav Havel, tudo isso aconteceu tão rapidamente que ainda não tivemos tempo de ficar surpresos.

Minha palestra sobre esse tópico em Harvard começa com um questionário que pede aos alunos que comparem a China e os Estados Unidos em 1980 com suas classificações atuais. O leitor é convidado a preencher os espaços em branco.

Teste: Preencha os espaços em branco


As respostas da primeira coluna: em 1980, a China tinha 10% do PIB dos Estados Unidos, medido pela paridade do poder de compra; 7% de seu PIB às taxas de câmbio atuais do dólar americano; e 6% de suas exportações. A moeda estrangeira mantida pela China, enquanto isso, era apenas um sexto do tamanho das reservas americanas. As respostas para a segunda coluna: Em 2014, esses números eram 101% do PIB; 60 por cento às taxas de câmbio do dólar americano; e 106% das exportações. As reservas da China hoje são 28 vezes maiores que as dos Estados Unidos.

Em uma única geração, uma nação que não aparecia em nenhuma das tabelas da liga internacional saltou para os primeiros lugares. Em 1980, a economia da China era menor que a da Holanda. No ano passado, o incremento do crescimento do PIB da China foi aproximadamente igual ao de toda a economia holandesa.

A segunda pergunta do meu questionário pergunta aos alunos: a China poderia se tornar a número 1? Em que ano a China poderia ultrapassar os Estados Unidos para se tornar, digamos, a maior economia do mundo, ou o principal motor do crescimento global, ou o maior mercado de artigos de luxo?

A China poderia se tornar a número 1?

  • Fabricante:
  • Exportador:
  • Nação comercial:
  • Economizador:
  • Titular da dívida dos EUA:
  • Destino do investimento estrangeiro direto:
  • Consumidor de energia:
  • Importador de petróleo:
  • Emissor de carbono:
  • Produtor de aço:
  • Mercado automotivo:
  • Mercado de smartphones:
  • Mercado de comércio eletrônico:
  • Mercado de artigos de luxo:
  • Usuário de internet:
  • Supercomputador mais rápido:
  • Titular de reservas estrangeiras:
  • Fonte das ofertas públicas iniciais:
  • Principal motor do crescimento global:
  • Economia:

A maioria fica surpresa ao saber que em cada um desses 20 indicadores, a China já ultrapassou os EUA.

A China será capaz de sustentar taxas de crescimento econômico várias vezes superiores às dos Estados Unidos por mais uma década e além? Se e como o fizer, seus líderes atuais estão falando sério sobre substituir os EUA como a potência predominante na Ásia? A China seguirá o caminho do Japão e da Alemanha e assumirá seu lugar como participante responsável na ordem internacional que os Estados Unidos construíram nas últimas sete décadas? A resposta a estas perguntas é obviamente que ninguém sabe.

Mas se vale a pena dar atenção às previsões de alguém, são as de Lee Kuan Yew, o principal observador mundial da China e mentor dos líderes chineses desde Deng Xiaoping. Antes de sua morte em março, o fundador de Cingapura colocou as chances de a China continuar a crescer várias vezes às taxas dos EUA na próxima década e além como “quatro chances em cinco”. Sobre se os líderes da China estão falando sério sobre substituir os Estados Unidos como a principal potência da Ásia no futuro previsível, Lee respondeu diretamente: “Claro. Por que não... como eles não poderiam aspirar a ser o número um na Ásia e, com o tempo, o mundo?” E sobre aceitar seu lugar em uma ordem internacional projetada e liderada pelos Estados Unidos, ele disse absolutamente que não: “A China quer ser a China e aceita como tal – não como um membro honorário do Ocidente”.

***

Os americanos têm a tendência de dar sermões aos outros sobre por que eles deveriam ser “mais como nós”. Ao instar a China a seguir o exemplo dos Estados Unidos, nós, americanos, devemos ter cuidado com o que desejamos?

Como os Estados Unidos emergiram como a potência dominante no hemisfério ocidental na década de 1890, como eles se comportaram? O futuro presidente Theodore Roosevelt personificou uma nação extremamente confiante de que os próximos 100 anos seriam um século americano. Ao longo de uma década que começou em 1895 com o secretário de Estado dos Estados Unidos declarando os Estados Unidos “soberanos neste continente”, os Estados Unidos libertaram Cuba; ameaçou a Grã-Bretanha e a Alemanha com uma guerra para forçá-los a aceitar as posições americanas nas disputas na Venezuela e no Canadá; apoiou uma insurreição que dividiu a Colômbia para criar um novo estado do Panamá (que imediatamente deu aos Estados Unidos concessões para construir o Canal do Panamá); e tentou derrubar o governo do México, apoiado pelo Reino Unido e financiado por banqueiros londrinos. No meio século que se seguiu, as forças militares dos EUA intervieram em “nosso hemisfério” em mais de 30 ocasiões distintas para resolver disputas econômicas ou territoriais em termos favoráveis aos americanos ou expulsar líderes que julgavam inaceitáveis.

Theodore Roosevelt com tropas dos EUA na Zona do Canal do Panamá em 1906 (Wikimedia)

Por exemplo, em 1902, quando navios britânicos e alemães tentaram impor um bloqueio naval para forçar a Venezuela a pagar suas dívidas com eles, Roosevelt advertiu ambos os países de que seria “obrigado a interferir pela força se necessário” se eles não retirassem suas navios. Os britânicos e alemães foram persuadidos a recuar e resolver sua disputa em termos satisfatórios para os EUA em Haia. No ano seguinte, quando a Colômbia se recusou a arrendar a Zona do Canal do Panamá para os Estados Unidos, os Estados Unidos patrocinaram secessionistas panamenhos, reconheceram o novo governo panamenho horas depois de sua declaração de independência e enviaram os fuzileiros navais para defender o novo país. Roosevelt defendeu a intervenção dos EUA alegando que ela era “justificada pela moral e, portanto, justificada pela lei”. Pouco tempo depois, o Panamá concedeu aos Estados Unidos direitos sobre a Zona do Canal “em perpetuidade”.

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Quando Deng Xiaoping iniciou a rápida marcha da China para o mercado em 1978, ele anunciou uma política conhecida como “esconde-esconde”. O que a China mais precisava no exterior era estabilidade e acesso aos mercados. Os chineses, portanto, “esperariam nosso tempo e esconderiam nossas capacidades”, que os oficiais militares chineses às vezes parafraseavam como ficar fortes antes de se vingar.

Com a chegada do novo líder supremo da China, Xi Jinping, a era do “esconde-esconde” acabou. Quase três anos depois de seu mandato de 10 anos, Xi surpreendeu colegas em casa e observadores da China no exterior com a velocidade com que se moveu e a audácia de suas ambições. Internamente, ele contornou o governo de um comitê permanente de sete homens e, em vez disso, consolidou o poder em suas próprias mãos; acabou com os flertes com a democratização ao reafirmar o monopólio do Partido Comunista sobre o poder político; e tentou transformar o motor de crescimento da China de uma economia focada na exportação para uma impulsionada pelo consumo doméstico. No exterior, ele tem buscado uma política externa chinesa mais ativa e cada vez mais assertiva na defesa dos interesses do país.

Enquanto a imprensa ocidental é dominada pela história da “desaceleração econômica da China”, poucos param para notar que a taxa de crescimento mais baixa da China permanece mais de três vezes maior que a dos Estados Unidos. Muitos observadores fora da China não perceberam a grande divergência entre o desempenho econômico da China e o de seus concorrentes ao longo dos sete anos desde a crise financeira de 2008 e a Grande Recessão. Esse choque fez com que praticamente todas as outras grandes economias vacilassem e caíssem. A China nunca perdeu um ano de crescimento, mantendo uma taxa média de crescimento superior a 8%. De fato, desde a crise financeira, quase 40% de todo o crescimento da economia global ocorreu em apenas um país: a China. O gráfico abaixo ilustra o crescimento da China em comparação com o crescimento entre seus pares no grupo BRICS de economias emergentes, economias avançadas e no mundo. De um índice comum de 100 em 2007, a divergência é dramática.

GDP, 2007 — 2015

Harvard Belfer Center / IMF World Economic Outlook

Hoje, a China desbancou os Estados Unidos como a maior economia do mundo medida em termos da quantidade de bens e serviços que um cidadão pode comprar em seu próprio país (paridade do poder de compra).

O que Xi Jinping chama de “Sonho da China” expressa as aspirações mais profundas de centenas de milhões de chineses, que desejam ser não apenas ricos, mas também poderosos. No cerne do credo civilizacional da China está a crença – ou presunção – de que a China é o centro do universo. Na narrativa frequentemente repetida, um século de fraqueza chinesa levou à exploração e à humilhação nacional pelos colonialistas ocidentais e pelo Japão. Na visão de Pequim, a China agora está sendo restaurada ao seu lugar de direito, onde seu poder exige reconhecimento e respeito pelos interesses centrais da China.

Uma pintura em xilogravura retrata a Primeira Guerra Sino-Japonesa. (Toyohara Chikanobu / Wikimedia)

Em novembro passado, em uma reunião seminal de todo o establishment político e de política externa chinesa, incluindo a liderança do Exército Popular de Libertação, Xi forneceu uma visão abrangente de sua visão do papel da China no mundo. A demonstração de autoconfiança beirava a arrogância. Xi começou oferecendo uma concepção essencialmente hegeliana das principais tendências históricas em direção à multipolaridade (ou seja, não à unipolaridade dos EUA) e à transformação do sistema internacional (ou seja, não ao atual sistema liderado pelos EUA). Em suas palavras, uma nação chinesa rejuvenescida construirá um “novo tipo de relações internacionais” por meio de uma luta “prolongada” sobre a natureza da ordem internacional. No final, ele garantiu ao público que “a tendência crescente em direção a um mundo multipolar não mudará”.

Dadas as tendências objetivas, os realistas veem uma força irresistível se aproximando de um objeto imóvel. Eles perguntam o que é menos provável: a China exigindo um papel menor nos mares do Leste e do Sul da China do que os Estados Unidos fizeram no Caribe ou no Atlântico no início do século 20, ou os EUA compartilhando com a China a predominância no Pacífico Ocidental que a América tem apreciado desde a Segunda Guerra Mundial?

E, no entanto, em quatro dos 16 casos analisados pela equipe do Belfer Center, rivalidades semelhantes não terminaram em guerra. Se os líderes dos Estados Unidos e da China permitirem que fatores estruturais levem essas duas grandes nações à guerra, eles não poderão se esconder atrás de um manto de inevitabilidade. Aqueles que não aprenderem com os sucessos e fracassos do passado para encontrar um caminho melhor a seguir não terão ninguém para culpar a não ser a si mesmos.

Atores vestidos como soldados do Exército Vermelho marcam o 70º aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial, em Pequim. (Kim Kyung-Hoon/Reuters)

A esta altura, o roteiro estabelecido para a discussão dos desafios políticos pede um pivô para uma nova estratégia (ou pelo menos o slogan), com uma curta lista de tarefas que promete relações pacíficas e prósperas com a China. Encaixar esse desafio nesse modelo demonstraria apenas uma coisa: uma falha em entender o ponto central que estou tentando defender. O que os estrategistas mais precisam no momento não é uma nova estratégia, mas uma longa pausa para reflexão. Se a mudança tectônica causada pela ascensão da China representa um desafio de proporções genuinamente tucididianas, as declarações sobre “reequilíbrio” ou a revitalização do “engage and hedge” ou os apelos dos aspirantes à presidência por variantes mais “musculadas” ou “robustas” do mesmo, a pouco mais do que a aspirina para tratar o câncer. Historiadores do futuro compararão tais afirmações com os devaneios dos líderes britânicos, alemães e russos enquanto caminhavam como sonâmbulos até 1914.

A ascensão de uma civilização de 5.000 anos com 1,3 bilhão de pessoas não é um problema a ser resolvido. É uma condição – uma condição crônica que terá de ser gerenciada ao longo de uma geração. O sucesso exigirá não apenas um novo slogan, cúpulas de presidentes mais frequentes e reuniões adicionais de grupos de trabalho departamentais. Gerir esta relação sem guerra exigirá atenção constante, semana a semana, ao mais alto nível em ambos os países. Isso implicará uma profundidade de compreensão mútua não vista desde as conversas entre Henry Kissinger e Zhou Enlai na década de 1970. Mais significativamente, isso significará mudanças mais radicais nas atitudes e ações, por parte dos líderes e do público, do que qualquer um jamais imaginou.

Graham Allison é ex-diretor do Belfer Center for Science and International Affairs da Harvard Kennedy School e ex-secretário assistente de defesa dos EUA para políticas e planos. Ele é o autor de Destined for War: Can America and China Escape Thucydides's Trap?