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30 de novembro de 2015

A pior empresa do mundo

Corporação Vale do Brasil mascara exploração brutal com a linguagem da solidariedade Sul-Sul.

Judith Marshall

Jacobin


Tanto durante quanto depois de seus dois mandatos, o ex-presidente Lula apostou muito do seu legado na cooperação "Sul-Sul" com a África. Em troca, ele é tido pelo continente quase que com a mesma estima que os líderes das lutas de libertação, como o sul-africano Nelson Mandela ou o moçambicano Samora Machel.

Em sua primeira visita presidencial a Moçambique, em 2003, Lula foi recebido como um herói e fez discursos emotivos sobre a importância da solidariedade entre o Sul Global. Ele respondeu com empatia à epidemia de HIV e prometeu apoio brasileiro em um projeto de produção de medicamentos a preços acessíveis para combatê-la.

Mas, talvez, o mais revelador não tenha sido o que Lula disse na África, mas quem ele levou consigo. A comitiva brasileira incluía Roger Agnelli, ex-banqueiro que desempenhou um papel de destaque na avaliação de uma importante empresa estatal, a Companhia Vale do Rio Doce, antes de sua privatização em 1997.

Posteriormente, Agnelli tornou-se o primeiro presidente executivo da Vale, liderando a corporação nomeada a "pior empresa do mundo" em 2012 por ativistas devido a suas relações trabalhistas, seus impactos na comunidade e suas pegadas ambientais.

Não que isso tenha manchado a reputação de Agnelli. Impulsionado pelo "superciclo das commodities" com aumentos médios de 150% entre 2002 e 2012, pela aparente infinita demanda chinesa por minério de ferro e pelo abundante capital do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Agnelli parecia ter o toque de Midas. O tempo em que ele esteve no comando da Vale foi caracterizado por uma expansão global agressiva e por lucros e retornos fabulosos aos acionistas.

A equipe de relações públicas de Agnelli na Vale trabalhou duro para projetar um espírito de cooperação Sul-Sul em sincronia com a retórica de Lula, alegando que os investimentos em mineração do Brasil no Sul Global trariam empregos e desenvolvimento econômico, diferentemente das empresas do "Norte" imperialista.

Porém, ao rastrear a trajetória da Vale, seja em Moçambique, onde ela iniciou um investimento pioneiro em mineração de carvão, ferrovias e um complexo portuário, ou no Canadá, onde ela adquiriu operações de níquel já estabelecidas, ou dentro do Brasil, surge uma figura bem diferente, caracterizada pela dissonância clara entre a retórica da empresa e as realidades no terreno em todas as suas operações globais.

Como parte da equipe do fundo internacional de desenvolvimento dos trabalhadores, criado pela United Steelworkers (Trabalhadores do Setor de Metais Unidos, em tradução livre), o principal sindicato a representar os mineiros do Canadá, eu tive a oportunidade de monitorar essa desconexão durante a última década, tanto no Canadá, depois que a Vale comprou a Inco, a maior mineradora do país, quanto em Moçambique, onde o sindicato possui vínculos de longa data através de seus programas de formação sindical.

O histórico da Vale mostra que as práticas e atitudes de corporações multinacionais sediadas nos países-membros do BRICS não são diferentes das empresas internacionais de mineração ligadas aos países do centro capitalista.

Ao chegar no Canadá, a Vale gabou-se de sua experiência em gestão corporativa, das suas credenciais de Wall Street e da sua habilidade em lidar com sindicatos intrometidos. A empresa insistiu em grandes concessões como condições prévias até mesmo da mesa de negociação, provocando greves do sindicato de 11 e 18 meses, uma longa queda-de-braço na qual a Vale ganhou grande parte do que queria.

Tito Martins, um executivo da empresa, deixou bem claras as intenções da Vale ao fim da primeira greve numa reportagem intitulada "Vale comemora redução do poder do sindicato no Canadá", publicada no jornal Valor Econômico:

"O que era importante para a Vale nessa negociação era conseguir o alinhamento dos empregados do Canadá como um todo ao tipo de relação que a empresa mantém com seus funcionários no resto do mundo, que envolve três pontos cruciais: plano de pensão, bônus e linha de comando entre empregador e empregado sem intervenção direta do sindicato."

Desde 2011, a empresa viu acontecerem cinco mortes no país: uma em Thompson, no estado canadense de Manitoba, e quatro em Sudbury, Ontário, além de mais duas numa operação contratada a um braço de distância da Vale. Como um trabalhador disse: "Seja no subterrâneo ou na fundição e refinaria, a Vale tornou tudo mais perigoso do que era antes".

Mas a empresa deixou um legado ainda pior na África, onde é menos restringida por leis do governo. No entanto, é lá onde a Vale alega estar ajudando milhares de pessoas.

Vale na África

Diz a lenda que Lula apresentou Agnelli e a Vale a Moçambique, encorajando o então presidente Armando Guebuza a rejeitar a oferta chinesa pelos depósitos de carvão moçambicanos, porque os chineses levariam seus próprios trabalhadores, em vez de contratarem mão-de-obra local.

Seja qual for o envolvimento de Lula, Agnelli foi convidado pouco depois da visita do presidente brasileiro em 2003 para tornar-se membro do conselho consultivo internacional de Guebuza. Pouco depois, a Vale foi a primeira empresa multinacional a ganhar licença para desenvolver as principais reservas de carvão de Moçambique.

Semelhante à visita de 2003, durante seu retorno a Moçambique em 2012, Lula transmitiu mensagens contraditórias de solidariedade, por um lado, e propagandeou o investimento de empresas brasileiras, por outro. Mas dessa vez ele chegou com o sucessor de Agnelli, Murilo Ferreira.

Durante a viagem, o ex-presidente deu uma conferência pública intitulada "A luta contra a desigualdade social", apresentado por Graça Machel, viúva do primeiro presidente moçambicano, Samora Machel, e uma figura pública bem conhecida pelos seus próprios atos. Ela definiu Lula como um herói do povo, assim como Samora. Lula, por sua vez, falou sobre a experiência do Brasil sob o governo do Partido dos Trabalhadores (PT), caracterizando-o como um de crescimento e ao mesmo tempo de divisão do bolo econômico, além de garantir a criação de empregos e de programas sociais de redistribuição de renda que poderiam aliviar a pobreza.

Ele incitou empresas brasileiras a investirem em Moçambique para contribuir com a luta contra a desigualdade, em nome da justiça social. Porém, pouco depois da palestra, Lula uniu-se ao novo presidente da Vale numa campanha de lobby junto à ministra do trabalho de Moçambique, Helena Taipo, para reduzir as restrições aos trabalhadores estrangeiros nas operações da mineradora brasileira no país.

A revista Veja falou sobre o caso:

"A Vale foi uma das patrocinadoras do tour que Luiz Inácio Lula da Silva fez há duas semanas pela África. O presidente da empresa, Murilo Ferreira, viajou no mesmo jatinho do ex-presidente até Moçambique. Lá, eles se reuniram com a ministra do Trabalho, Helena Taipo, que vem colocando barreiras para a exploração de carvão pela empresa brasileira na mina de Moatize, uma das maiores do mundo. Na reunião, Lula tentou, sem sucesso, convencê-la a derrubar a exigência de empregar 85% de mão de obra moçambicana no empreendimento."

A pressão brasileira para reduzir o controle moçambicano sobre os trabalhadores estrangeiros não é novidade. Num encontro com trabalhadores de Canadá e Brasil em 2011, nos reunimos com o diretor de trabalho da província Tete e fomos informados de que a Vale constantemente pressiona as autoridades para que permitam à empresa exceder as cotas de trabalhadores estrangeiros anteriormente negociadas.

A fase de construção do projeto da mina incluiu não apenas um grande número de trabalhadores brasileiros, como também trabalhadores de construção das Filipinas. Muitos destes foram contratados pela Kentz Engineers and Contractors, uma empresa que opera em quase trinta países e comanda uma das maiores refinarias de níquel e cobalto do mundo, em Madagascar.

A Kentz emprega mais de 2.500 trabalhadores filipinos fora de seu país em suas operações globais. Depois que muitos filipinos trabalhando pela Kentz em Madagascar foram repatriados no fim de 2010, eles abriram denúncias junto à Administração Filipina de Emprego em País Estrangeiro (Philippines Overseas Employment Administration, ou POEA) alegando práticas de trabalho injustas pela Kentz, incluindo atrasos de pagamentos, alojamentos superlotados, falta de alimentos e atendimento médico inadequado.

A Kentz foi uma das muitas empreiteiras contratadas pela Vale Moçambique conforme esta construía em suas concessões de carvão em Moatize, no noroeste do país. Inspetores do departamento encontraram trabalhadores no canteiro de obras que tiveram negadas as férias, os fins de semana e o vestuário de proteção adequado. A Kentz também não registrou seus trabalhadores moçambicanos na previdência social.

Em 18 de novembro de 2011, o Ministério do Trabalho de Moçambique finalmente respondeu, expulsando 115 trabalhadores, a maioria da África do Sul e das Filipinas, ilegalmente levados ao país pelos subcontratados da Vale. A Kentz Engineers foi multada em quase 34 milhões de meticais (cerca de 1,1 milhão de dólares) e recebeu 30 dias para acertar as irregularidades.

Os trabalhadores com base em Tete que participaram nos intercâmbios internacionais indicaram que a fase operacional da mina de carvão de hoje emprega não apenas o número máximo da cota, ou mais, de trabalhadores brasileiros, como também muitos outros estrangeiros, com ou sem status de residência legal, vindos de países vizinhos e de fala inglesa, como Zimbábue, Zâmbia e Malawi. Filhos e sobrinhos de figuras do poderoso governo moçambicano e de empresários na capital nacional, Maputo, também ganham empregos cobiçados na Vale.

Além disso, o desenvolvimento mais amplo prometido pelo Partido dos Trabalhadores e pelos funcionários da Vale é incerto. Apesar de serem os mais impactados pelo crescimento da mineração — e de serem quem lida com a poluição, a escassez de moradias e de outros serviços, o trânsito, o barulho e o aumento do custo de vida —, as pessoas nas comunidades locais ao redor da mina e os nativos da cronicamente subdesenvolvida província Tete têm visto raros empregos novos e poucos benefícios a partir do projeto.

As poucas oportunidades de emprego geradas pelas operações de mineração e as drásticas desigualdades nos salários e benefícios entre estrangeiros e cidadãos nacionais criam uma indignação generalizada. Um trabalhador da Vale comentou: "Trabalho ao lado de estrangeiros, mas eles ganham quatro vezes mais do que eu". Outro disse: "Os operadores de máquinas moçambicanos trabalham junto aos brasileiros, alguns dos quais possuem menos treinamento do que os moçambicanos, mas o brasileiro é automaticamente o supervisor".

Estes sentimentos foram expressos numa pesquisa realizada em 2012 para determinar se as experiências dos trabalhadores da Vale no Brasil eram semelhantes às vividas pelos trabalhadores da empresa em Moçambique e no Canadá. Esses comentários expressam o vazio das promessas da Vale de criar postos de trabalho para moçambicanos, e também demonstram a força do sentimento antibrasileiro, que não é muito diferente dos sentimentos antiamericanos ou antibritânicos nos lugares onde se estabelecem empresas desses países.

Moçambique, assim como outros governos africanos, não possui os meios ou a vontade política de usar megaprojetos em mineração como pilares estratégicos para uma tática industrial mais ampla. Projetos de mineração tendem a se tornar enclaves, articulados globalmente, mas desconectados de seu próprio país.

Embora não haja estudos sistemáticos para analisar, o sentimento geral em Moçambique sugere que a Vale está, na verdade, diminuindo os empregos. Reassentamentos forçados para dar espaço às minas deixaram famílias rurais sem terra ou água para suas atividades agrícolas, e sem acesso aos mercados locais.

Um estudo recente realizado por Antonio Jone para o Observatório do Meio Rural moçambicano concluiu que famílias enviadas para reassentamentos rurais em Cateme foram afetadas negativamente. A aderência tão elogiada da Vale a todas as recomendações do Banco Mundial sobre reassentamentos forçados está, na verdade, longe da realidade.

Nos relatórios oficiais de sustentabilidade da Vale e em seus vídeos de Relações Públicas, os reassentamentos moçambicanos são considerados modelos de excelência. Mas o "relatório de insustentabilidade" preparado pela Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale vai além da agitação para capturar as vozes dos reassentados que contam a história da falta de terra, da falta de água e de casas com rachaduras nas paredes e fundações desintegrando-se depois da primeira estação chuvosa.

O estudo mais recente de Antonio Jone, sobre "segurança alimentar" nos reassentamentos da Vale, confirma que eles têm sido tudo, menos uma história de sucesso, e, na verdade, deixaram as condições dos produtores camponeses muito piores do que estavam antes da remoção. Além disso, os artesãos das áreas afetadas pela concessão de mineração, como os que fazem tijolos, por exemplo, ficaram sem lugar para venderem.

Nos últimos anos eles têm realizado atividades de lobby agressivas direcionadas tanto ao governo moçambicano quanto à Vale. Adotando uma prática da cartilha corporativa, os artesãos argumentam que sofreram perdas permanentes de seus meios de subsistência através dos quais poderiam esperar uma renda vitalícia em torno de 350 mil dólares, em vez dos 2 mil que a Vale lhes pagou a princípio.

Em junho de 2013, a Vale declarou que a questão estava definitivamente fechada. Ela foi forçada a reabrir as discussões sobre a compensação, no entanto, pois os fabricantes de tijolos continuaram exigindo suas demandas com barricadas que pararam a mineração, apesar da prisão de seus líderes. O governo moçambicano respondeu com contínuas expressões de preocupação com os lucros perdidos por seu "parceiro no desenvolvimento", a Vale.

Vale no Brasil

As ações da Vale também fizeram com que a empresa ganhasse inimigos em casa. A expansão agressiva da corporação nos anos desde a sua privatização transformou-a na terceira maior mineradora do mundo, com operações em 13 estados brasileiros e em 27 países em seis continentes.

Apesar de suas origens como uma empresa estatal próxima ao governo brasileiro, a ascendência da Vale para seu status atual de empresa global foi caracterizada, assim como qualquer outra corporação capitalista, por uma devoção desmedida e obstinada aos altos lucros e generosos dividendos para seus diretores e acionistas.

Muitos brasileiros estão particularmente indignados com a forma com que esse ícone nacional passou para as mãos privadas em 1997 como parte do padrão global de privatizações sob programas de ajustes estruturais. Nos anos antes da chegada do Partido dos Trabalhadores ao poder, o BNDES assumiu a responsabilidade de promover privatizações. A venda da Vale é considerada o episódio de privatização mais escandaloso na história do Brasil.

A empresa foi vendida por cerca de 3,3 bilhões de dólares num período de paridade entre o real e o dólar. Uma apresentação de 2004 ao Tribunal Regional Federal (TRF) em Brasília apontou uma série de irregularidades que provavam que a Vale foi subavaliada. Algumas minas foram ignoradas nos cálculos, e outras, incluindo o setor florestal, depreciadas. Incontáveis ativos de valores enormes (tecnologias, patentes e conhecimento técnico relacionado à geologia e engenharia de minas) não foram nem sequer considerados e a participação acionária da Vale em outras empresas foi ignorada.

A lista de irregularidades é enorme. O Bradesco, banco responsável pela avaliação, tomou o controle da Vale um ano depois, e, não por acaso, o primeiro presidente da Vale, Roger Agnelli, era um ex-diretor executivo do banco.

Até mesmo uma década depois, um plebiscito informal pela renacionalização da Vale, organizado por sindicatos, estudantes e o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) em 2007 conseguiu mobilizar três milhões de votos. Apesar de o presidente Lula aparentemente não dar atenção às demandas do plebiscito, ele pressionou publicamente a Vale durante a crise econômica global que se seguiu.

A Vale tentou tirar vantagem da crise de 2008 para realizar demissões em massa e suspender investimentos planejados na indústria siderúrgica brasileira. Lula usou o sentimento popular contrário à privatização expressado através do plebiscito para justificar uma bronca pública que deu em Agnelli. Ele sugeriu que, para uma empresa tão próxima do governo quanto a Vale, havia uma obrigação de responder ao momento de turbulência global desempenhando um papel estabilizador.

Durante o ano de 2009, a visão do governo brasileiro sobre o papel que a Vale deveria assumir e a visão de Agnelli estavam abertamente desalinhadas. Por volta de setembro, a revista brasileira Exame sugeria que o governo planejava destituir Agnelli. Numa reportagem intitulada "Lula critica Agnelli e articula saída do presidente da Vale", o jornalista Rafael Souza Ribeiro reportou:

"Não é de hoje a vontade do governo em elevar sua participação no controle administrativo da Vale. Só este ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva já falou algumas vezes que a mineradora precisa investir mais no Brasil para proporcionar emprego à população. Desde que demitiu mais de mil funcionários no ano passado em decorrência da crise econômica, Roger Agnelli, presidente da Vale, caiu em desencanto nos bastidores do governo."

É verdade que o uso da crise global por Agnelli para justificar a demissão de 1.300 trabalhadores e recuar nos seus compromissos de investimento na produção de aço no Brasil voltou para assombrá-lo quando o mandato de Lula terminou em 2011. A nova presidente do Brasil, Dilma Rousseff, orquestrou uma tentativa de mudança na liderança da Vale entre os blocos de acionistas da empresa próximos ao governo.

Murilo Ferreira assumiu o posto como novo presidente em 2011 e logo depois começou a visitar as operações da Vale por todo o mundo. A mudança na liderança de Agnelli para Ferreira e as promessas da Vale de uma gestão mais humana e de redução do estresse trouxeram esperança de mudança, mas as expectativas levantadas foram rapidamente frustradas pelo desprezo demasiado de Ferreira em relação aos líderes sindicais ao longo de sua turnê inaugural. No entanto, em resposta às críticas, ele concordou em se encontrar com 14 presidentes de sindicatos das operações da Vale ligadas à mineração no Brasil em setembro de 2011.

De acordo com um relatório de Valério Vieira, presidente do Sindicato Metabase Inconfidentes, que representa duas minas da Vale no estado de Minas Gerais, a maioria dos líderes sindicais presentes estavam felizes em comprar a ideia de Ferreira de uma Vale mais boazinha e amável e louvavam sua prontidão em dialogar. Eles elogiaram sua aparente emoção durante a discussão sobre as mortes no local de trabalho.

Mas Vieira – que, entre idas e vindas, trabalhou na Vale por 25 anos – não estava convencido. Em seu relatório para a Metabase, compartilhado com ativistas da Vale em outros países, Vieira contou que disse a Ferreira que o presidente levaria bem mais do que três meses para mudar o curso da Vale depois de uma década sobre a liderança de Agnelli. Além disso, demandaria um nível de vontade política que ainda não tinha sido demonstrada.

O relatório de Vieira da reunião identificou oito características do trabalho da Vale no Brasil: 1) A Vale é reconhecida por ser fortemente oposta aos sindicatos; 2) Um trabalhador da Vale tende a ganhar menos do que trabalhadores em lugares semelhantes; 3) Os gerentes da Vale constantemente constrangem os trabalhadores; 4) A Vale impõe metas de produção extremamente distantes da realidade; 5) Trabalhadores da Vale vivem sob ameaças constantes de serem demitidos sem justa causa; 6) Supervisores da Vale impõem medidas disciplinares arbitrárias frequentemente; 7) Trabalhar na Vale significa trabalhar em condições perigosas porque a Vale coloca a produção acima de todo o resto e muitas vezes encobre incidentes de saúde e segurança; 8) A Vale regularmente tenta comprar os sindicatos e os líderes do governo oferecendo veículos, viagens, cartões de crédito e outros privilégios.

Em 2012, um pequeno grupo de trabalhadores da Vale no Canadá, em Moçambique e no Brasil foram questionados sobre essas oito características do trabalho na Vale identificadas por Vieira para responderem se elas eram aplicáveis às suas realidades. Embora as situações em cada país sejam diferentes, a resposta esmagadora à pesquisa foi que a caracterização do trabalho na Vale feita por Vieira ressoava profundamente com outros países.

Por trás do marketing

Apesar dessas contradições, a Vale lidera as corporações brasileiras que alcançaram o status de "competidoras mundiais". Empresas como a Vale projetam uma imagem de si mesmas como "motores do desenvolvimento" tanto no Brasil quanto nos países onde investem, gerando emprego e crescimento econômico, um símbolo do "Brasil global".

Em contrapartida, o Estado brasileiro atribui grande importância ao apoio que dá a essas empresas. As grandes quantias de crédito concedidas pelo BNDES e outras políticas públicas criadas para apoiar e facilitar os investimentos globais das multinacionais brasileiras são vistas como plenamente justificadas e as atividades das empresas são retratadas como vantajosas para o Brasil como um todo.

O argumento é que através dessas "competidoras globais" o Brasil irá aumentar a entrada de capital estrangeiro (através dos depósitos dos lucros), aumentar as exportações, ampliar sua inserção nas cadeias de inovação global e beneficiar seus fornecedores, que também aumentam sua produção.

Esta narrativa está enquadrada no paradigma neoliberal: um país que quer ganhar uma posição hegemônica globalmente precisa de grandes empresas. Embora sejam tomadas por interesses privados e pela priorização aberta dos grandes lucros e retornos altos aos diretores e acionistas, as grandes empresas brasileiras e suas expansões globais são tratadas como sinônimos dos "interesses nacionais" brasileiros. A resistência dos trabalhadores e da comunidade às operações dessas empresas, seja em seu país natal ou no exterior, é prontamente vista como criminosa.

Será que essa tão anunciada ascensão dos BRICS a um grupo de elite de potências globais realmente abrange os interesses nacionais de todos os cidadãos do Brasil? Será que todos brasileiros veem o sucesso da Vale como uma "competidora global" como motivo para celebração? Será que pensam que a habilidade da Vale em entrar para a competição feroz entre as gigantes globais num mundo de grandes minerações significa que o Brasil "chegou lá", que agora pode ficar em pé, levantar a cabeça, ocupando orgulhosamente seu lugar no G20 entre os países "desenvolvidos" do Norte?

Assumir o sucesso da Vale e os interesses nacionais do Brasil como sinônimos é operar dentro de um velho discurso sobre desenvolvimento que vê a transição do estado-nação de uma sociedade agrária para industrial como o objetivo, com o Estado como o principal ator. Além disso, a sociedade nacional é considerada como o principal alvo de planejamento do desenvolvimento, e investidores estrangeiros diretos são apontados como a principal fonte de capital para realizar as metas de desenvolvimento de empregos, modernização e crescimento econômico.

Talvez compreenda-se melhor as corporações multinacionais dos BRICS ao sair desse velho discurso sobre desenvolvimento baseado em territórios, e situá-las, em vez disso, como agentes num novo discurso global baseado em fluxos. Este é um mundo onde há uma economia transnacional plenamente articulada em fluxos de capital, informação, tecnologia, equipamento e até mesmo terra, trabalho e forças de segurança particulares. Toda essa economia global opera fora da lógica e muito fora das regulações em jurisdições nacionais.

Uma grande mineradora tem responsabilidade mínima pelo território — e pelos cidadãos — no qual acontecem suas operações de mineração, atuando, em vez disso, através de cadeias de fornecimento globais e de fluxos altamente articulados que hoje caracterizam a economia global.

Corporações usam instrumentos de marketing para “pintar de verde” sua imagem com forte linguajar de sustentabilidade ou "pintá-la de azul", envolvendo-se no linguajar legitimador do Pacto Global das Nações Unidas. O que é apresentado ao público como necessidade de uma licença social para operar é, de fato, considerado internamente um exercício de gestão de riscos de segurança. Empresas são guiadas fundamentalmente por suas preocupações de controle de riscos, e veem qualquer pessoa, política ou instituição que entra no seu caminho como um risco de segurança e, consequentemente, um inimigo da corporação.

André Almeida, ex-diretor do Departamento de Inteligência e Segurança Corporativa da Vale, entregou recentemente um grande número de documentos a um promotor do Estado brasileiro que apontavam o envolvimento da Vale em uma ampla rede de espionagem e infiltração focada em pessoas e organizações consideradas pela empresa como inimigas. Entre estes estão jornalistas respeitados, advogados e ativistas de direitos humanos, assim como organizações, como Justiça nos Trilhos e Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale.

Por mais perturbador que possa ser o comportamento da Vale, ele não é diferente das divisões de classe tanto dentro do Brasil quanto fora. As forças sociais da elite brasileira e de outros BRICS que pretendem tornar seus países competitivos na economia global são parte de uma nova classe transnacional de vencedores produzidos pela globalização. Através de suas corporações multinacionais, como a Vale, eles aspiram um consumo de classe mundial.

O desejo do governo e dos líderes empresariais nos BRICS em alcançar status global, medido por triunfos como receber as Olimpíadas e a Copa do Mundo, pode genuinamente incluir um componente de recuperação de orgulho, dignidade e respeito depois de séculos de humilhação colonial. A visão buscada, no entanto, não oferece nenhuma outra alternativa à ordem mundial atual de produção exploradora e consumo para poucos. As práticas dos capitalistas emergentes do Brasil, da Índia, da África do Sul ou da China distinguem-se muito pouco do saque de seus competidores globais ligados aos velhos centros imperiais da Europa e da América do Norte.

A visão dos BRICS exclui os pobres dentro de suas próprias nações e ignora o impacto ambiental do modelo de crescimento que aspiram ter. O desejo dos BRICS em serem agentes no sistema global mundial e consumidores de "classe mundial" reforça as disparidades existentes e inflige mais danos ao ambiente, transformando-os em importantes perpetradores de instabilidade e injustiça global.

Sobre o autor

Judith Marshall se aposentou recentemente após vinte anos no sindicato dos metalúrgicos canadenses, onde coordenou projetos do Steelworkers Humanity Fund no sul da África e organizou programas de intercâmbio global.

28 de novembro de 2015

Edward Snowden recebe Arundhati Roy e John Cusack: "Ele era pequeno e ágil, como um gato de casa"

A escritora indiana recorda um encontro extraordinário em um hotel de Moscou com o denunciante da NSA

Arundhati Roy

The Guardian

Arundhati Roy com Edward Snowden e John Cusack. Fotografia: Ole Von Vexhull

Tradução / O que aconteceu em Moscou não foi uma entrevista formal. Tampouco foi um encontro secreto entre super-heróis mascarados. Fato é que John CusackDaniel Ellsberg (que vazou documentos do Pentágono durante a Guerra do Vietnam) e eu recebemos o cauteloso e diplomático Edward Snowden. E, infelizmente, as brincadeiras e as discussões que tiveram lugar no quarto 1001 não podem ser reproduzidas. A conferência que se deu ali não pode ser descrita em todos os seus detalhes. Na verdade, ela definitivamente não pode ser descrita. O mundo é uma centopeia que avança sobre as patas de milhões de conversas reais. E aquela certamente foi uma conversa real.

O que importava mesmo, talvez até mais do que foi conversado ali, era a atmosfera daquele quarto. Havia um Edward Snowden que, depois do 11/09, estava endossando Bush e se alistando para a Guerra do Iraque. E havia aqueles como nós que, após 9/11, tinham feito exatamente o contrário. Já era tarde para essa conversa, é claro. O Iraque foi completamente destruído. E agora o mapa do que condescendentemente chamamos de "Oriente Médio" está sendo brutalmente redesenhado (mais uma vez). E ainda assim lá estávamos nós, todos nós, conversando entre si em um hotel esquisito na Rússia.

O lobby opulento do Moscow Ritz-Carlton estava repleto de milionários bêbados, ébrios pela fortuna nova e pelas lindas mulheres jovens, meio camponesas, meio supermodels, laçadas nos braços de senhores bajuladores - gazelas em seu caminho para a fama e para a fortuna, pagando suas dívidas aos sátiros que irão carregá-las. Nos corredores, você passa por algumas brigas sérias, cantando alto e tranquilo, enquanto os garçons conduziam carrinhos com torres de comida e talheres, para dentro e para fora dos quartos. No quarto 1001, nós estávamos tão perto do Kremlin que, se você colocasse sua mão para fora da janela, poderia quase tocá-lo. Nevava lá fora. Estávamos profundamente mergulhados no inverno russo - nunca reconhecido suficientemente por seu importante papel na Segunda Guerra. Edward Snowden era muito menor do que eu imaginei. Pequeno, ágil e puro, como um gato. Ele cumprimentou Dan em êxtase e nos saudou calorosamente. "Eu sei porque você está aqui", ele me disse, sorrindo. "Por quê?" "Para me fazer radicalizar." Eu ri.

Nos estabelecemos nos vários bancos e cadeiras e na cama de John. O Dan e o Ed pareceram muito satisfeitos em se conhecer e tinham tanto a conversar, que até ficou difícil de se intrometer no assunto deles. Às vezes eles falavam em algum tipo de linguagem em código: "(...) TSSCI" "Não, porque, como eu disse, este não é DS, este é da NSA. Na CIA, ele é chamado COMO". PRISEC ou PRIVAC?" (...) “TS, SI, TK, GAMMA-G (…)" etc.

Demorou um pouco até que eu me sentisse à vontade para interrompê-los. Snowden desarmou minha pergunta sobre ser fotografado segurando a bandeira americana revirando os olhos e dizendo: "Ah, cara. Não sei. Alguém simplesmente me entregou uma bandeira e tirou a foto. "E quando eu perguntei por que ele se inscreveu pra Guerra do Iraque, enquanto milhões de pessoas do mundo todo se opunham ao conflito, ele respondeu de maneira igualmente desconcertante: "Eu fui enganado pela propaganda".

Dan falou um pouco sobre como era incomum aos americanos que atuavam no Pentágono e na Agência Nacional de Segurança [NSA] terem lido alguma coisa sobre o Excepcionalismo americano e sobre sua história de guerra. (E, depois de terem entrado, era pouco provável que o assunto lhes interessasse). Ele e o Ed tinham observado isso ao vivo, em tempo real, e ficaram horrorizados o suficiente para arriscar suas vidas e sua liberdade quando decidiram ser denunciantes. O que os dois claramente tinham em comum era uma forte e quase corpórea sensação de força moral - de certo e errado.

Um senso de justiça que, obviamente, funcionava não apenas quando eles decidiam denunciar aquilo que eles consideravam moralmente inaceitável, mas também na época em que eles se inscreveram para os seus empregos - Dan para salvar seu país do comunismo, Ed para salvá-lo do terrorismo islâmico. E o que eles fizeram, quando veio a desilusão, foi tão eletrizante e tão dramático, que passaram a ser identificados por esse único ato de coragem.

Perguntei ao Ed Snowden o que ele achava da capacidade de Washington para destruir países e sua incapacidade para vencer guerras (apesar da vigilância de massa). A pergunta foi formulada de um jeito grosseiro - algo como: "Quando foi a última vez que os EUA venceram uma guerra?" Discutimos se as sanções econômicas e a posterior invasão do Iraque poderiam ser classificadas como genocídio. Conversamos sobre o papel da CIA - que se preparava - em um mundo onde a guerra não se travava apenas entre países, mas funcionava através de guerras internas, no qual seria necessário controlar as populações com vigilância de massa. E sobre como os exércitos estavam se transformando em forças policiais para administrar os países invadidos e ocupados, enquanto a polícia - mesmo em lugares como a Índia e o Paquistão ou Ferguson, Missouri, nos Estados Unidos - estava sendo treinada para operar como exército e acabar com insurreições internas.

Ed falou por algum tempo sobre vigilância. E aqui eu vou citar coisas que ele havia dito muitas vezes antes: "Se não fizermos nada, seremos sonâmbulos em um estado de vigilância total, uma espécie de super-Estado com capacidade ilimitada para aplicar a força bruta e para saber (sobre as pessoas) - e isso é uma combinação muito perigosa. Esse é o futuro sombrio. O fato de que eles sabem tudo sobre nós e nós não sabemos nada sobre eles - porque eles são secretos, eles são privilegiados, eles são uma classe separada... são uma elite, a classe política, a classe que tem acesso aos recursos - não sabemos onde eles vivem, não sabemos o que eles fazem, nós não sabemos quem são seus amigos. Eles têm a capacidade de saber tudo sobre nós. Esse é o futuro, mas eu acho que há esperança."

Eu perguntei ao Ed se a NSA não estava apenas fingindo se irritar com suas revelações, e secretamente ficando satisfeita por ser reconhecida como essa agência onisciente que tudo vê - afinal isso ajuda a manter as pessoas com medo, fora de equilíbrio, sempre olhando por cima dos ombros e fáceis de gerenciar. Dan falou sobre como, mesmo nos EUA, ainda faltava outro 9\11 para que chegássemos em um estado policial: "Nós não vivemos em um estado policial agora, ainda não. Eu estou falando do que pode vir a acontecer. Veja bem: pessoas brancas, de classe média, com acesso a educação, como eu, não estão vivendo em um estado policial; mas as pessoas negras e pobres estão vivendo essa realidade. A repressão começa com o semi-branco, aquele do Oriente Médio, incluindo seus aliados, e daí em diante só piora. Mais um 9/11 e então teremos centenas de milhares de detenções. Pessoas do Oriente Médio ou muçulmanos serão colocados em campos de detenção ou deportados. Depois do 9/11, tivemos milhares de pessoas presas sem acusação. Mas eu estou falando do futuro. Eu estou falando sobre algo à nível dos japoneses nos EUA durante a Segunda Guerra Mundial. Eu estou falando de centenas de milhares em campos de concentração ou deportados. E a vigilância é muito relevante para isso. Eles saberão quem perseguir - os dados já foram recolhidos." (Quando ele disse isso, eu me perguntei como tudo seria diferente se Snowden não fosse branco.)

Nós conversamos sobre guerra e ganância, sobre terrorismo e sobre qual seria sua definição mais precisa. Falamos sobre países, bandeiras e sobre o sentido do patriotismo. Nós conversamos sobre a opinião pública e sobre o quão inconstante poderia ser seu conceito de moralidade, tão facilmente manipulável. Não era uma conversa só de perguntas. Estávamos em uma reunião incongruente. Ole von Uexküll da Fundação Right Livelihood, na Suécia, eu e três norte-americanos problemáticos. John Cusack, que organizou tudo, vem também de uma excelente tradição - de músicos, escritores, atores, atletas que se recusam a engolir toda essa baboseira e, no entanto, são muito bem tratados.

O que será de Edward Snowden? Será que ele vai poder voltar pros EUA? Suas chances não parecem boas. O governo dos EUA, bem como ambos os principais partidos políticos - querem puni-lo pelo enorme dano que causou, na percepção deles, às políticas de segurança. (Também Chelsea Manning e os demais denunciantes). Se não for possível matar ou prender Snowden, ele tendem a usar tudo que puderem para limitar os danos que ele causou e continua a causar. Uma das formas é tentar conter, cooptar e manobrar o debate em torno das denúncias. E, em certa medida, eles conseguem fazer isso.

No debate da Segurança Pública vs. Vigilância de Massa que está ocorrendo nos meios de comunicação ocidentais tradicionais, o objeto de amor são os EUA. Os EUA e suas ações. Eles são morais ou imorais? Eles estão certos ou errados? São os denunciantes patriotas ou traidores americanos? Dentro dessa matriz de moralidade limitada, outros países e culturas - mesmo quando são vítimas de guerra dos norte-americanos - geralmente aparecem apenas como testemunhas no julgamento principal. Eles reforçam tanto o ultraje dos acusadores quanto a indignação da defesa.

O julgamento, quando efetuado nesses termos, serve para reforçar a ideia de que é possível existir uma superpotência moderada e moral. Será que nós não estaríamos testemunhando sua existência e ação? Sua mágoa? Sua culpa? Seus mecanismos de auto-correção? Sua mídia? Seus ativistas que não aceitam cidadãos americanos comuns (inocentes) sendo espionados por seu próprio governo? Nesses debates, que muitas vezes parecem ferozes e inteligentes, palavras como público, segurança e terrorismo são atiradas a esmo, mas elas continuam, como sempre, vagamente definidas e são usadas muito frequentemente na forma como o Estado norte-americano gostaria que fossem usadas.

É chocante que Barack Obama tenha aprovado uma "lista de morte" com 20 nomes. Mas é mesmo chocante? Que tipo de lista resumiria os milhões de mortos por todas as guerras americanas? Nesse contexto, Snowden, em seu exílio, deve permanecer estratégico e tático. Ele se encontra na posição impossível de ter de negociar os termos de sua anistia com as próprias instituições dos EUA que se sentem traídas por ele e, ao mesmo tempo, negociar os termos de sua estadia na Rússia com Vladimir Putin, não exatamente uma referência em humanitarismo. Assim as superpotências mantêm Snowden em uma posição difícil, na qual ele deve ser extremamente cuidadoso sobre como utiliza os holofotes que conquistou e o que diz publicamente.

Deixando de lado o que não pode ser dito, a conversa em torno da denúncia foi emocionante - com direito a uma boa dose de Realpolitik - atarefada, importante e cheia de juridiquês. Ela envolve espiões e caçadores de espiões, aventuras, segredos e denunciantes. É um universo, digamos, muito particular e perigoso. Que, no entanto, abriu margem para considerações políticas mais amplas, mais radicais, como a conversa que Daniel Berrigan, padre jesuíta, poeta e opositor à guerra (contemporâneo de Daniel Ellsberg) queria ter quando disse que "cada Estado-nação tende ao imperialismo - esse é o ponto”.

Fiquei contente de ver quando Snowden fez sua estréia no Twitter (ultrapassando meio milhão de seguidores em menos de um segundo) e disse: "Eu costumava trabalhar para o governo. Agora eu trabalho para o público". O implícito nessa frase é a perspectiva de que o governo não atua em função da população. E esse é o início de uma conversa subversiva e inconveniente. Por "governo", naturalmente, ele se refere ao governo dos EUA, seu antigo empregador. Mas o que ele quer dizer com "público"? O público norte-americano? Que parte do público dos EUA? Ele terá que decidir ao longo do caminho. Nas democracias, a separação entre um governo eleito e um "público" nunca é muito clara. A elite geralmente é fundida com o governo de forma homogênea. Visto por uma perspectiva internacional, se realmente existe tal coisa como "o público norte-americano", seria ele um público muito privilegiado. O único "público" que eu conheço é um labirinto complicado.

Estranhamente, quando penso sobre a reunião no Moscou Ritz-Carlton, a memória que lampeja é uma imagem do Daniel Ellsberg. Dan, depois de todas essas horas de conversa, deitado de costas na cama, com os braços abertos, semelhante a um Cristo, chorando por que os EUA se transformou em um país cujas "melhores pessoas" precisam ir para a prisão ou para o exílio. Fiquei comovida e preocupada com suas lágrimas - porque eram as lágrimas de um homem que viu a máquina de perto. Um homem que esteve lado a lado com as pessoas que a controlavam e que friamente contemplavam a ideia de aniquilar a vida na Terra. Um homem que arriscou tudo para denunciar esses absurdos. Dan conhece todos os argumentos. Ele freqüentemente usa a palavra imperialismo para descrever a história e a política externa dos EUA. E ele sabe que agora, 40 anos depois de tornar públicos os documentos do Pentágono, que mesmo se esses indivíduos em específico tiverem ido embora, a máquina continua a funcionar.

As lágrimas de Daniel Ellsberg me fizeram pensar sobre o amor, sobre a perda, sobre os sonhos - e, acima de tudo, sobre o fracasso. Que tipo de amor é esse que temos por países? Algum país virá um dia a viver de acordo com os nossos sonhos? Que tipo de sonhos são estes que foram arruinados? Não seria a grandeza das grandes nações diretamente proporcional à sua capacidade de ser cruel e genocida? Não seria razoável afirmar que a altura do "sucesso" de um país geralmente acompanha as profundezas de seu fracasso moral? E o que dizer sobre o nosso fracasso? Escritores, artistas, radicais, anti-nacionais, independentes, descontentes - o que dizer sobre o fracasso da nossa imaginação? O que dizer sobre a nossa incapacidade de substituir a ideia das bandeiras e dos países por um objeto de amor menos letal? Os seres humanos parecem incapazes de viver sem guerra, mas eles também são incapazes de viver sem amor. Então a questão que se coloca é: a que devemos devotar nosso amor?

Escrever esse texto num momento em que os refugiados inundam a Europa - resultado de décadas de intervenção norte-americana e europeia no "Oriente Médio" - me faz pensar: quem é um refugiado? Edward Snowden é um refugiado? Certamente ele é. Por causa do que ele fez, ele não pode mais voltar para o lugar que ele considera seu país (embora possa continuar a viver onde ele fica mais confortável - na internet). Os refugiados de guerras no Afeganistão, no Iraque e na Síria fogem da guerra enquanto modo de vida. Mas os milhares de pessoas em países como a Índia, que estão sendo presas e mortas por esse mesmo estilo de vida, os milhões que estão sendo expulsos de suas terras e fazendas, exilados de tudo o que jamais conheceram - sua língua, sua história, a paisagem que os formou - esses não são refugiados. Afinal, enquanto sua miséria estiver contida dentro de fronteiras arbitrariamente traçadas, dentro do seu "próprio" país, então eles não serão considerados refugiados. Mas eles são refugiados. Embora, certamente, em termos numéricos, essas pessoas sejam a grande maioria no mundo atual. Infelizmente, nas imaginações limitadas por bandeiras e fronteiras, eles não fazem parte desse recorte.

Talvez o mais famoso dos refugiados desse modo de vida em guerra seja Julian Assange, o fundador e editor do WikiLeaks, que atualmente está servindo seu quarto ano consecutivo como hóspede fugitivo em um quarto da embaixada equatoriana em Londres. Até recentemente, a polícia permanecia estacionada em um pequeno lobby do lado de fora da porta da frente. Havia atiradores no telhado, com ordens para prendê-lo, alvejá-lo e arrastá-lo para fora caso ele colocasse ao menos um dedo do pé para fora da porta, o que para todos os efeitos legais é uma fronteira internacional. A embaixada equatoriana fica na rua em frente ao Harrods, a loja de departamentos mais famosa do mundo.

No dia em que conhecemos Julian, a Harrods estava cheia de frenéticos compradores de Natal. Aquela rua de Londres cheirava a opulência e a excesso, mas também a encarceramento e a medo de um Mundo Livre, com verdadeira liberdade de expressão. Naquele dia (na verdade, naquela noite) nós nos encontramos com Julian, e não fomos autorizados pela segurança a levar telefones, câmeras ou quaisquer dispositivos de gravação para o quarto. E assim, sem registro, manteremos também a conversa que ali se travou.

Apesar das probabilidades jogarem contra seu fundador e editor, o WikiLeaks continua com seu trabalho, tão fresco e despreocupado como sempre. Recentemente, ele ofereceu um prêmio de US$100.000 para qualquer um que pudesse fornecer "documentos fortes" sobre o Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (APT), um acordo de livre comércio entre a Europa e os Estados Unidos que visa dar a corporações multinacionais o poder de processar governos soberanos que impactarem negativamente os lucros de suas empresas. Por “atos criminosos” poderíamos incluir governos que aumentam o salário mínimo dos trabalhadores, que não são vistos reprimindo os aldeões "terroristas" que impedem o trabalho das empresas de mineração, ou, digamos, que tem a ousadia de recusar as sementes geneticamente modificadas e patenteadas pelas corporações da Monsanto. O APT é apenas mais uma das armas, como a vigilância intrusiva ou o urânio empobrecido, que são utilizados para garantir esse modo de vida baseado na guerra.

Olhando para Julian Assange do outro lado da mesa, pálido e desgastado, sem ter tido cinco minutos de sol nos últimos 900 dias, e ainda assim se recusando a desaparecer ou capitular, como seus inimigos gostariam, eu sorri com a ideia de que ninguém pensa nele como um herói australiano ou um traidor australiano. Para seus inimigos, Assange traiu muito mais do que um país. Ele traiu a ideologia dos poderes dominantes. E, por isso, eles o odeiam ainda mais do que odeiam Edward Snowden. E isso quer dizer muita coisa.

Nos dizem, com bastante frequência, que nós estamos à beira do abismo enquanto espécie. Será possível que nossa inflada inteligência tenha superado nosso instinto de sobrevivência e que não haja mais uma estrada de volta? Nesse caso, não há mais nada a ser feito. Mas se houver algo a ser feito, então uma coisa é certa: aqueles que criaram o problema não serão os mesmos que apresentarão uma solução. Criptografar nossos e-mails vai ajudar, mas não muito. Recalibrar a nossa compreensão do que significa o amor, o que significa felicidade - e, sim, o que significa países - poder. Recalibrar nossas prioridades pode.

Uma antiga floresta, uma cadeia de montanhas ou o vale de um rio são certamente mais importantes e, certamente, mais amáveis do que qualquer país jamais será. Eu poderia chorar por um vale de rio, e eu tenho feito isso. Mas por um país? Ah, cara, sei lá.

Esta é a parte final do Things That Can And Cannot Be Said, uma série de John Cusack e de Arundhati Roy. Uma versão mais longa deste artigo aparece na revista Outlook, na Índia. Arundhati Roy é autora do premiado romance The God Of Small Things. Seu mais recente trabalho de não-ficção é Capitalism: A Ghost Story.

25 de novembro de 2015

Hitler não era inevitável

O aniversário dos Julgamentos de Nuremberg é motivo para refletir sobre as forças que falharam em impedir a ascensão do nazismo.

Marcel Bois

Jacobin

A sede do KPD entre 1926 e 1933. Carl Weinrother, 1932.

Tradução / 20 de novembro marca o aniversário dos Julgamentos de Nuremberg, quando os Aliados levaram oficiais nazistas de alto escalão oficialmente à justiça. No momento em que os Julgamentos de Nuremberg começaram em 1945, Adolf Hitler, Joseph Goebbels e Heinrich Himmler já haviam morrido há muito tempo. Em seus lugares, estavam alguns dos nazistas mais importantes que sobreviveram à guerra: políticos, generais e empresários.

Em apenas doze anos, o regime que eles representavam iniciou a Segunda Guerra Mundial — um conflito de seis anos de proporções inacreditavelmente destrutivas. O regime facilitou a tortura e o assassinato de milhares de oponentes políticos, homossexuais, pessoas com deficiência e o genocídio em escala industrial de mais de seis milhões de judeus europeus. Apenas alguns meses após o fim da guerra, algumas de suas figuras mais hediondas, como Hermann Göring, Rudolf Hess, Alfred Rosenberg e Albert Speer, seriam julgadas nos salões do Palácio da Justiça de Nuremberg.

O primeiro dos treze diferentes Julgamentos de Nuremberg durou 218 dias. Um total de 240 testemunhas foram convocadas a depor e 300.000 depoimentos juramentados foram coletados. A ata do julgamento abrangeu mais de 16.000 páginas. Em sua conclusão, doze réus foram condenados à morte, enquanto muitos outros receberam longas sentenças de prisão. O julgamento representou o primeiro passo na resolução das hostilidades entre a Alemanha e os Aliados e abriu caminho para a reintegração alemã na ordem do pós-guerra.

Para além dos procedimentos oficiais, importantes questões históricas permanecem sem solução e suscitam discussões importantes sobre a natureza humana, o papel da esquerda e a capacidade de movimentos progressistas superarem o racismo e outras opressões para lutarem juntos. A questão principal, claro, é como algo tão terrível pode ter acontecido, para começo de conversa. Como foi possível o crime mais horrível da história humana acontecer justo na Alemanha, a “terra dos poetas e pensadores”?

Alguns historiadores explicam o sucesso dos nazistas baseando-o em um antissemitismo específico, supostamente enraizado na cultura alemã. Segundo essa narrativa, os alemães, já antissemitas, só estavam esperando que um Hitler os levasse a dar o próximo passo. Outros historiadores adotam uma abordagem mais sutil, argumentando que os nazistas subornaram a população, por meio de uma série de incentivos materiais, para que apoiasse seus projetos antissemitas.

O renomado historiador Götz Aly, por exemplo, descreve o regime nazista como uma “ditadura acomodatícia”. Ele argumenta que, embora “o antissemitismo fosse uma condição prévia necessária para o ataque nazista aos judeus europeus, esse aspecto não era suficiente. Primeiro, os interesses materiais de milhões de indivíduos tiveram que ser combinados com a ideologia antissemita, antes que o grande crime que hoje conhecemos como Holocausto pudesse assumir seu impulso genocida”.

Certamente, muitos alemães (incluindo os da classe trabalhadora) apoiaram o regime nazista em determinado momento, e muitos outros foram incentivados pelas políticas econômicas nazistas a tolerar o regime. No entanto, essa leitura histórica simplifica drasticamente o complexo conjunto de condições e forças sociais na República de Weimar e ignora que nem todos os alemães receberam benefícios materiais sob o domínio nazista, tampouco eram todos entusiasmados adeptos dos nazistas. Na realidade, setores significativos da população se opuseram consistentemente ao fascismo.

A ascensão de Hitler ao poder não era, de forma alguma, inevitável; e sim o resultado de condições históricas específicas, bem como das ações (e inações) de várias forças sociais. Enquanto muitas histórias convencionais pintam o nazismo como uma espécie de projeto coletivo alemão, o que a ascensão de Hitler realmente ilustra são as reais consequências que os erros da estratégia socialista pode causar em uma sociedade destruída pela depressão econômica e pela polarização política.

O nazismo foi apenas um dos resultados possíveis da crise da República de Weimar, mas seu eventual sucesso não o torna retroativamente inevitável. Além disso, retratar o fascismo dessa forma obscurece um período histórico muito informativo, tanto para a esquerda quanto para o público em geral.

O impacto da crise de 1929
Poucos anos antes de Hitler tomar o poder, em 1933, seu Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP) ainda era, em grande medida, irrelevante. Foi somente após a queda da bolsa de valores em 1929 que o total de votos saltou de oitocentos mil em 1928 para mais de seis milhões em 1930, e 37% dos votos em 1932, tornando-o o maior partido do parlamento.

O pano de fundo desse rápido crescimento foi, sem dúvida, a crise econômica em curso, que corroía as próprias fundações do capitalismo global. A enorme queda nos investimentos causados pelo crash de 1929 levou a um declínio de 29% na produção industrial global em 1932. A indústria alemã foi particularmente afetada, pois havia sido financiada por enormes empréstimos estrangeiros (principalmente estadunidenses), que entraram em colapso assim que os credores retiraram o crédito.

Na medida que muitas empresas, grandes e pequenas, faliram em todo o país, parcelas consideráveis da classe média foram jogadas na pobreza. O campesinato também sofreu com a queda dos preços de alimentos e os trabalhadores enfrentaram cortes salariais de, em média, 30%. Em 1933, o número de desempregados havia ultrapassado os 1,3 milhões de 1929, alcançando aproximadamente 6 milhões. Apenas um terço dos trabalhadores trabalhava em turno integral.

Depois que o último governo democraticamente eleito da República de Weimar deixou o cargo em março de 1930, o presidente Hindenburg nomeou um gabinete presidencial sem apoio parlamentar que utilizava, muitas vezes, decretos de emergência para governar. O chanceler de Hindenburg, Heinrich Brüning, e seu sucessor, Franz von Papen, lançaram uma política de austeridade massiva, cortando drasticamente os benefícios de desemprego, gastos sociais e pensões, ao mesmo tempo em que aumentavam os impostos sobre alimentos e bens de consumo. Como resultado, a fome generalizada tornou-se uma característica comum da vida urbana.

A política de austeridade do Estado servia aos interesses da classe de empregadores alemã. Apenas algumas semanas após o colapso de Wall Street, a Liga da Indústria Alemã exigiu que o Estado de bem-estar social fosse “adaptado aos limites da sustentabilidade econômica”, criticando os “abusos injustificados e imorais” dos benefícios da seguridade social.

Os empregadores alemães acreditavam que a crise econômica havia sido causada por um Estado de bem-estar social inchado, salários altos e poucas horas de trabalho. Sendo assim, responderam cancelando contratos, diminuindo salários e abolindo o teto de oito horas de trabalho diárias. O Estado alemão apoiou essas medidas em 1932, abolindo a negociação coletiva e o direito à greve.

A austeridade havia sido projetada para aliviar as empresas alemãs dos altos custos trabalhistas, reduzindo assim os preços de seus produtos no mercado mundial e impulsionando a economia nacional. Mas como todas as economias industriais estavam adotando estratégias de exportação semelhantes, a prometida recuperação nunca aconteceu e a pobreza não parou de aumentar.

Polarização
Acrise foi mais devastadora para os desempregados e a classe média, que se tornaram os dois grupos sociais nos quais os nazistas encontraram mais apoio.

Para os artesãos, donos de pequenos negócios, funcionários públicos e proprietários de lojas, a crise os sujeitou à pressão pelos dois lados. O falecido sociólogo alemão Arno Klönne os descreveu da seguinte forma: “sentiam-se ameaçados pela crescente concentração do capital industrial e financeiro, por um lado, e pelas demandas da classe trabalhadora industrial organizada, por outro lado”. A demagogia do socialismo nacional, direcionada contra o capital financeiro e o movimento trabalhista, provou-se particularmente atraente aos membros da classe média.

A situação dos desempregados era claramente pior do que a das classes médias. À medida que o sistema de seguridade social entrava em colapso, o desemprego na Alemanha de Weimar se tornava cada vez mais uma luta amarga por sobrevivência, enquanto a disparada do desemprego impossibilitava qualquer esperança de encontrar um emprego no futuro próximo. Neste contexto, a SA e outros grupos terroristas sob o comando dos nazistas rapidamente atraíram legiões de alemães desempregados, que encontraram um novo senso de pertencimento, camaradagem e poder no nazismo. O racismo e o antissemitismo embutidos na ideologia nazista deram a muitos membros o sentimento de orgulho e superioridade sobre os judeus, estrangeiros e homossexuais a quem eram supostamente superiores.

Outro importante aspecto no sucesso do NSDAP foi a imagem que eles projetaram de si mesmos como uma alternativa radical à república existente. De acordo com Klönne, “a juventude e os desempregados de longa data” em particular estavam “mobilizados pelo desespero e impaciência; eles não podiam ser abordados com algum tipo de ‘perspectiva de longo prazo’, eles queriam emprego e pão, aqui e agora”. O Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães prometeu “medidas imediatas para remediar essa situação desesperadora”.

A partir da manipulação dessa imagem e atraindo os grupos sociais mais vulneráveis, o partido de Hitler conseguiu se tornar um verdadeiro movimento de massa em poucos anos — a SA sozinha tinha quatrocentos mil membros em 1932.

O crescimento da direita radical, todavia, é só a metade da história. Em vez de encarar os últimos anos da República de Weimar como uma guinada para a direita em todo o país, eles devem ser entendidos como um processo de polarização política que beneficiou tanto a direita quanto a esquerda.

Assim, o Partido Comunista Alemão (KPD) teve um aumento de votos de 1,3 milhão na sua primeira eleição após a crise do mercado de ações e seus membros mais que dobraram, atingindo um quarto de milhão entre 1928 e 1932. Os Comunistas exerceram uma presença visível nas ruas, organizando manifestações e participando de confrontos físicos com os nazistas.

A força total do movimento trabalhista alemão, o maior e mais poderoso do mundo na época, é evidenciada pelo fato de que, mesmo nas últimas eleições livres em novembro de 1932, apenas alguns meses antes da ascensão de Hitler, o KPD e o SPD combinados ainda terem obtido mais votos do que os nazistas. Dada sua força numérica e política antifascista, um confronto entre os nazistas e os partidos dos trabalhadores parecia inevitável.

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Resultados das eleições parlamentares, 1928-1932

Em apelo aos membros do KPD nas páginas do jornal Militant em 1931, Leon Trotsky resumiu a situação política alemã da seguinte forma:

Se você colocar uma bola no topo de uma pirâmide, mesmo o menor impacto pode fazê-la rolar para esquerda ou para direita. Essa é a situação que se aproxima, a cada hora, na Alemanha hoje. Existem forças que gostariam que a bola rolasse para a direita e esmagasse a classe trabalhadora. Existem forças que gostariam que a bola permanecesse no topo. Isso é uma utopia. A bola não pode se manter no topo da pirâmide. Os comunistas querem que a bola role para esquerda e esmague o capitalismo.

A derrota final do trabalhismo
Os empregadores alemães também entendiam que a polarização não podia durar para sempre, mas estavam preocupados com a possibilidade de o movimento trabalhista assumir o poder. Os nazistas entenderam como capitalizar esse medo, prometendo reforçar os interesses corporativos por todos os meios necessários. Em um evento nazista organizado por industriais proeminentes, o líder da SS Rudolf Hess exibiu fotos de manifestações revolucionárias de um lado e divisões uniformizadas da SA e SS do outro:

Aqui, cavalheiros, vocês têm as forças de destruição, as quais são perigosas ameaças a suas casas de contabilidade, suas fábricas, todas as suas posses. No outro lado, as forças da ordem estão se formando, com uma vontade fanática de erradicar o espírito de turbulência [...] Todos que têm, devem contribuir, para que não percam tudo o que têm!

O ex-oficial nazista Albert Krebs descreveu a cena em suas memórias: “Nem todos os capitalistas estavam particularmente entusiasmados com os nazistas, mas o ceticismo deles era relativo, tendo terminado assim que ficou claro que Hitler era a única pessoa capaz de destruir o movimento trabalhista”. Aterrorizado com a perspectiva de mais ganhos para o movimento trabalhista, o apoio do capital a Hitler cresceu rapidamente.

Trotsky ilustrou essa dinâmica de forma vívida: “A grande burguesia gosta do fascismo tão pouco quanto um homem com dor de dente gosta de arrancá-lo” — ou seja, a solução era desagradável, mas era necessária. Hitler manteve sua promessa ao capital. Após ser declarado Chanceler em janeiro de 1933, ele proscreveu tanto os partidos dos trabalhadores quanto os sindicatos dentro de poucos meses. Milhares de sociais-democratas, comunistas e sindicalistas foram presos e assassinados.

O apoio do capital foi certamente decisivo para a ascensão de Hitler, mas a vitória nazista ainda não era inevitável. Uma série de terríveis erros estratégicos por parte da esquerda alemã desempenhou um papel importante na sua queda.

A social democracia
OPartido Social Democrata Alemão (SPD) entendeu o tipo de ameaça que o NSDAP representava, e ainda assim não conseguiu travar o tipo de luta necessária para detê-lo. Em uma tentativa desesperada de frear os nazistas na tomada de poder dentro da legalidade e salvar a democracia de Weimar, o SPD seguiu a estratégia de apoiar o “ mal menor” — isto é, o governo autoritário de direita que já estava no poder — como um bastião contra Hitler (que certamente seria ainda mais radical e autoritário).

Isso envolveu o apoio à candidatura do arquiconservador Hindenburg nas eleições presidenciais de 1932 e a tolerância aos gabinetes presidenciais autoritários de Brüning e von Papen, bem como os aumentos de impostos e cortes de gastos que promulgaram. A estratégia contrariava o programa político do partido, sem mencionar os interesses materiais de seus apoiadores.

O ponto fraco desta estratégia ficou particularmente óbvio em 20 de julho de 1932, quando o Chanceler von Papen dissolveu o governo liderado pelo SPD na Prússia, o maior estado da República. O SPD já tinha organizado milícias de trabalhadores precisamente para tal situação, a assim chamada Frente de Ferro, um ano antes. Mas, quando encarou um confronto real, a liderança do partido abandonou a resistência armada, insistindo em calma e contenção.

A confederação sindical alemã (ADGB) seguiu um caminho semelhante. Muitos sindicalistas também eram membros do SPD e apoiavam a estratégia do mal menor, tolerando o governo de Hindenburg na esperança de deter os nazistas por meios constitucionais. Consequentemente, também se abstiveram de convocar uma greve geral na Prússia em 1932.

Joseph Goebbels, o Ministro da Propaganda nazista, estava, porém, bem ciente das implicações de 20 de julho. Como escreveu em seu diário alguns dias depois: “os vermelhos foram derrotados. As organizações deles não realizaram qualquer resistência. Os vermelhos perderam a oportunidade que tiveram. Não haverá outra”.

No final das contas, Goebbels estava certo. Como resultado do desastre da Prússia, meio milhão de eleitores abandonaram o SPD nas eleições duas semanas depois. A desastrosa ausência de resposta de julho de 1932 foi repetida seis meses depois, quando os nazistas tomaram o poder e sistematicamente evisceraram o movimento operário.

O KPD
Os comunistas foram a única organização da classe trabalhadora que organizou uma resistência extraparlamentar aos nazistas enquanto fazia oposição ao plano de austeridade do governo; mas eles também falharam. O fracasso deles se deveu principalmente à incapacidade de realizar uma análise clara do fascismo e compreender a ameaça que ele representava.

O Comitê Central usou excessivamente a palavra “fascismo” a ponto de esvaziar seu sentido. Na visão dele, o Estado alemão tinha se tornado fascista em 1930, quando o gabinete presidencial de Hindenburg assumiu. De fato, a liderança do KPD considerava todos os outros partidos no parlamento variantes do fascismo e dizia para seus membros que “lutar contra o fascismo significa lutar contra o SPD da mesma forma que se luta contra Hitler e os partidos de Brüning”.

O KPD adotou posição semelhante à de Moscou quando se baseou na teoria do “fascismo social”. Essa teoria estabelecia, como sustentara Stalin, que o fascismo e a social-democracia não eram opostos, pois funcionavam na prática como “irmãos gêmeos”. No contexto de profunda crise capitalista, era a social-democracia — ao impedir que os trabalhadores lutassem contra o capitalismo — que representava o “principal inimigo”.

Seguindo essa linha, a liderança rejeitou qualquer cooperação com o SPD, mesmo no momento de lutar contra os nazistas: “os fascistas sociais sabem que não haverá colaboração entre nós. Em relação ao Partido do Panzerkreuzer, à Polícia Socialista e àqueles que pavimentam o caminho para o fascismo, lutar até a morte é, para nós, a única saída”.

Vários comunistas endossaram esse tipo de frase de efeito radical à medida que o KPD se tornava cada vez mais um partido dos desempregados. As organizações trabalhistas comunistas tinham praticamente deixado de existir. No outono de 1932, apenas 11% dos membros do KPD eram trabalhadores assalariados.

Desse modo, a maioria dos comunistas não via mais os sociais-democratas como colegas de trabalho, mas apenas como apoiadores da estratégia do mal menor e de acontecimentos como o “Maio Sangrento”, de primeiro de maio de 1929, quando a polícia, sob o comando do social-democrata Karl Friedrich Zörgiebel, suprimira violentamente uma manifestação liderada pelo KPD.

Para acentuar o distanciamento, a liderança do SPD recusou qualquer colaboração com os comunistas. Nesse momento, o SPD era consumido pelo fervor anticomunista, normalmente igualando comunistas e nazistas. Otto Wels, o presidente do partido, declarou, na convenção partidária de Leipzig em 1931, que “o bolchevismo e o fascismo são irmãos. Ambos têm fundamento na violência e na ditadura, independentemente do quão socialistas ou radicais eles possam parecer”.

Ao invés de oferecer à maioria da população uma alternativa política, a postura do KPD de direcionar a maior parte de sua ira contra o SPD jogou os sociais-democratas nos braços da direita, pelo menos por um curto período. O exemplo mais notório disso ocorreu em 1931, quando o KPD apoiou um referendo popular contra o governo do SPD prussiano, formado pelos nazistas e outras forças nacionalistas.

A Frente Unida
Essas políticas desastrosas foram severamente criticadas por vários comunistas dissidentes. Particularmente importantes foram Leon Trotsky e August Thalheimer. Thalheimer tinha sido o fundador do Partido Comunista de Oposição (KPO), que havia rompido com o KPD em 1929. Trotsky, um dos mais conhecidos líderes da Revolução Russa e então um proeminente dissidente comunista, liderava seus seguidores do exílio na ilha turca de Büyükada. Ambos prestavam bastante atenção aos acontecimentos na Alemanha.

O partido de Thalheimer defendia que a ascensão do fascismo somente poderia ser impedida por meio de “uma ofensiva geral planejada e abrangente” da classe trabalhadora. A ferramenta organizacional necessária para essa ofensiva seria a frente única. Trotsky concordava, afirmando que ambos os partidos eram igualmente ameaçados pelo nazismo e, dessa maneira, deviam trabalhar juntos.

A necessidade objetiva da frente única significava que a teoria do fascismo social devia ser abandonada. Enquanto o KPD se recusasse a agir dessa forma, fracassaria em estabelecer vínculos com os apoiadores do SPD: “esse tipo de posição – uma política de esquerda vazia e estridente – bloqueia antecipadamente o acesso do Partido Comunista aos trabalhadores sociais-democratas”.

O clamor por uma frente única não podia ser direcionado exclusivamente aos filiados; devia necessariamente viabilizar também negociações entre as lideranças partidárias. Uma “frente única vinda exclusivamente de baixo” não seria bem-sucedida, pois a maioria dos filiados desejava lutar contra o fascismo juntamente com seus líderes. Os Comunistas não podiam esperar que se aproximar somente dos trabalhadores sociais-democratas que estivessem dispostos a romper com seus respectivos líderes.

A importância de organizar a ação unificada mais ampla possível dentro da classe trabalhadora superava outras preocupações. Isso não significava, porém, que os comunistas deviam moderar ou suavizar suas demandas políticas.

Pelo contrário, era no contexto de uma ação unificada da classe trabalhadora que os comunistas teriam mais chances de demonstrar as suas credenciais antifascistas: “nós devemos ajudar a ação dos trabalhadores sociais-democratas – nessa nova e extraordinária situação – para testar o valor das suas organizações e dos seus líderes nesse momento em que a questão é de vida ou morte para a classe trabalhadora”.

Para garantir isso, a frente única precisava corresponder a uma ação política, não a uma colaboração parlamentar, e somente poderia ser construída em torno de um ponto central: nesse caso, a luta contra o fascismo. Era de extrema importância que os comunistas mantivessem a sua independência política e organizacional dentro da frente. O slogan de Trotsky – “marchem separados, mas protestem unidos! Estejam de acordo apenas em como protestar, contra quem protestar e quando protestar! […] Sob uma condição: não fiquem de mãos amarradas” – resumia bem a abordagem.

Os apelos de Trotsky e Thalheimer por uma frente única foram bem-recebidos por trabalhadores e intelectuais, à medida que o desejo por unidade perante a crescente ameaça nazista se espalhava compreensivelmente. Esse desejo podia ser visto na “Chamada Urgente por Unidade” emitida por trinta e três intelectuais públicos reconhecidos, incluindo Albert Einstein, na reta final para as eleições de 1932, convocando o KPD e o SPD a “finalmente tomarem a iniciativa de formar uma frente trabalhista unida que necessariamente transcendesse o âmbito parlamentar”.

Nas pequenas cidades de Bruchsal e Oranienburg, onde os apoiadores alemães de Trotsky tinham alguma influência política, foi possível formar comitês antifascistas que incluíram tanto sociais-democratas como comunistas. Em vários outros lugares em que nenhum trotskista estava presente, ativistas locais comunistas e sociais democratas simplesmente ignoraram os seus líderes e passaram a trabalhar juntos, como foi demonstrado por uma pesquisa de arquivos recente.

Joachim Petzhold, por exemplo, depois de analisar relatórios internos do Ministério do Interior referentes ao verão de 1932, concluiu que “muitos comunistas queriam se unir aos sociais-democratas contra o fascismo”. Ainda sobre esse tema, ele também destacou a “discrepância existente entre liderança partidária e filiados”.

Essa discrepância pode ser vista em um relatório policial de junho de 1932, no qual está escrito que, “durante um confronto sangrento com os nacional-socialistas […], a frente única foi na prática formada, a despeito dos antagonismos entre os dois partidos marxistas, e os comunistas são normalmente aqueles que se comportam de forma mais perceptiva e engenhosa”.

Outra passagem desse mesmo relatório destaca que “a frente única tem se formado na prática por todo o Reich. Os representantes trabalhistas do SPD colaboram com os colegas vermelhos; membros do Reichsbanner (uma milícia liderada pelos trabalhadores do SPD) atuam como delegados dos seus camaradas em reuniões comunistas; membros da Frente de Ferro em Duisburg discutem táticas da frente única no escritório do KPD; procissões fúnebres e enterros coletivos são comuns em todos os lugares, assim como manifestações compostas por vários partidos em resposta às marchas nacional-socialistas; sociais-democratas aparecem em numerosas conferências antifascistas organizadas pelo KPD; e funcionários de organizações sindicais declaram que a mão fraterna estendida pelo KPD não pode ser ignorada”.

Movimentos em direção à unidade da classe trabalhadora também ocorreram no sudeste da Alemanha. Em julho de 1932, por exemplo, Reinbold, o líder local do SPD, ofereceu uma trégua aos comunistas: “deixar de lado o que nos divide é uma demanda apropriada em virtude da grave natureza desse momento”. As lideranças locais do KPD nas cidades de Ebingen e Tübingen estenderam ofertas similares ao SPD e aos sindicatos nesse mesmo instante.

Em dezembro de 1931, casos isolados de listas eleitorais conjuntas do SPD e KPD foram observadas em Württermberg. O exemplo mais proeminente foi a união prática que se deu na pequena cidade de Unterreichenbach, onde o KPD foi dissolvido e se uniu ao SPD local para fundar um partido unificado dos trabalhadores.

Unidos pela derrota
Apesar de inspirar dinâmicas locais, o KPD já estava completamente dominado pelo stalinismo. Todas as correntes de oposição tinham sido expulsas há tempos, o que significava que seguidores fiéis da Comintern controlavam o partido e ditavam a linha de atuação, até mesmo contra a vontade dos seus membros, se necessário. A posição de Moscou era insistir na teoria do fascismo social até o final.

Quando o Presidente Hindenburg nomeou Hitler chanceler em 30 de janeiro, milhões de trabalhadores alemães estavam preparados para a luta. Protestos romperam pelo país, enquanto representantes dos trabalhadores fabris se encontravam em Berlim para coordenar uma resposta ao pedido de ação conjunta do SPD.

Infelizmente, os líderes sindicais pediam comedimento novamente. O vice-presidente do ADGB afirmou: “nós queremos que a paralização geral seja o último recurso”. O líder Theodor Leipart acrescentou: “queremos enfatizar que não somos oposição a esse governo. Entretanto, isso não pode e não irá nos impedir de também defender os interesses da classe trabalhadora perante esse governo. ‘Organização sim, manifestação não’ é o nosso lema”.

Apenas o KPD convocou uma greve geral, clamando para que todas as organizações da classe trabalhadora formassem uma frente única “contra a ditadura fascista de Hitler-Hugenberg-Papen”. Infelizmente, essas coalizões somente ocorreram em algumas cidades menores, como Lübeck. No geral, o KPD foi incapaz de exercer influência substancial sobre o movimento operário organizado; os anos de isolamento tinham colocado o partido em uma posição de completa irrelevância política.

Depois de janeiro, já era tarde demais; Hitler e os nazistas tinham derrotado o movimento operário mais forte do mundo. O KPD, o SPD e as organizações sindicais foram sumariamente colocados na ilegalidade e dizimados. Seus membros se encontraram novamente, tudo indica que pela última vez, quando estiveram lado a lado nos primeiros campos de concentração erguidos pelo novo regime.

Embora os julgamentos de Nuremberg tenham realmente levado os mais notórios criminosos nazistas à justiça, eles também reduziram o horror do fascismo às ações de alguns indivíduos particularmente cruéis, enquanto, simultaneamente, integraram esse horror a uma narrativa de culpa coletiva nacional. Nessa narrativa, ninguém e todos são culpados. “Ninguém”, no sentido de que a culpa é atribuída a oficiais do alto escalão e seus lacaios; “todos”, porque o fascismo requer o suporte das massas para se sustentar, tornando, dessa forma, todos que viveram sob o regime potenciais colaboradores.Ao invés de nos submetermos a esse dilema analítico, devemos recuperar uma visão da história que reconheça a natureza conflituosa das mudanças sociais. O fascismo nunca é inevitável; é antes o resultado de um confronto entre forças sociais radicalmente opostas. Em todos os lugares em que houver fascismo, é provável que existam socialistas e outras pessoas de esquerda lutando contra ele. Isso era verdade na Alemanha de 1933, quando a esquerda perdeu e a barbaridade nazista venceu, e continua a ser verdade na Europa de crise econômica renovada e polarização política dos dias de hoje.

Sobre o autor
Marcel Bois é historiador e co-editor de Margarete Schütte-Lihotzky. Architektur. Politik. Geschlecht. Neue Perspektiven auf Leben und Werk.

21 de novembro de 2015

Números vão às ruas contra tortura de colunista

Gabriel Galípolo
Luiz Gonzaga Belluzzo


Seria mau uso deste espaço e do tempo do leitor responder às objurgatórias do colunista deste jornal com adjetivos pejorativos ou sussurros e fuxicos desairosos a respeito de episódios de sua vida profissional.

O exercício realizado em sua coluna mais recente ["Dr. Bellezza e a inflação, 18/11, Alexandre Schwartsman], de retirar o efeito da inflação da relação dívida/PIB, revela que até esse ponto da chamada quarta aula o colunista estava atento. Intriga qual desvio em sua formação durante o ensino fundamental não lhe permitiu aprender que a multiplicação do numerador e do denominador por um mesmo valor mantém a razão constante, inclusive da relação juros/PIB.

Em vez de reproduzir com os juros o processo realizado para a dívida, o colunista decidiu descarregar o "efeito da inflação sobre a dívida" em um único componente do numerador (juros), além de compará-la com um denominador não deflacionado (PIB nominal).

Ao reproduzir no resultado primário (outro componente do numerador) de 2014 a fórmula aplicada aos juros pelo colunista, a inflação de 6,14% deve ser descontada da dívida de R$ 3,252 trilhões (dados de 2014).

O "efeito da inflação sobre a dívida" estimado é de R$ 188 bilhões. Este valor somado ao deficit primário de R$ 20,5 bilhões resultaria em superavit de R$ 167 bilhões. Magicamente o deficit de 0,37% do PIB se converte em superavit de 3,24%. O procedimento é equivocado para o tratamento de ambos (resultado primário e juros).

A reconhecida deterioração da relação dívida/PIB, de 53% no fim de 2013 para 66% em setembro de 2015, coincidente com a majoração de 96,55% na taxa básica de juros, considera dívida e PIB com os efeitos da inflação.

É curioso também que o colunista tenha nos furtado a explicação de como convivem suas afirmações de julho de 2015: "a menos que as taxas de juros sejam cortadas severamente, não há simplesmente jeito nenhum de entregar esse resultado" (uma relação da dívida/PIB estável), e de novembro do mesmo ano: "o salto da relação dívida-PIB não resulta da taxa de juros". Nesse momento, nos sentimos inferiorizados como debatedores, pela desvantagem que nos causa a necessidade de observância da lógica e da coerência.

É uma impropriedade arvorar a desafortunada tentativa de prolongar o ciclo de consumo, cujos riscos são alertados desde 2010, à condição de nova matriz macroeconômica. Por outro lado, não pode ser menosprezada a colaboração dos fanáticos da "velha matriz macroeconômica" para as dificuldades atuais –a persistente combinação entre juros altos e apreciação cambial.

Cabe ainda retificar algumas informações. Os autores desse texto são palmeirenses, mas apenas um ocupou o cargo de presidente da gloriosa Academia. Como é sabido, o rebaixamento do nosso querido clube não ocorreu sob sua gestão (mais uma ignorância factual). Entre as "malfeitorias" palestrinas perpetradas estão a cogestão com a Parmalat e a "fracassada" Allianz Arena, com estimativa de receitas em 2015 que supera R$ 70 milhões.

Correm notícias que números racionais e irracionais, relativos e absolutos, cardinais e ordinais, separados há muito pela álgebra, pretendem se reunir na avenida Paulista ainda neste fim de semana, em manifestações contra a sistemática tortura que vêm sofrendo nas mãos de colunistas. Os truculentos tentam força-los a confissões vexaminosas.

Sobre os autores
GABRIEL MURICCA GALÍPOLO, professor do Departamento de Economia da PUC-SP, é sócio da Galípolo Consultoria.

LUIZ GONZAGA BELLUZZO é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo.

19 de novembro de 2015

O tipo errado de secularismo

O ideal secular francês de laicidade não é uma ideia nobre usurpada - é profundamente falho em suas raízes.

Ian Birchall


Albert Bettanier, "La tache noire" (1887)

Tradução / Imediatamente depois dos assassinatos na redação de Charlie Hebdo, todos ouvimos falar muito sobre "valores republicanos". De fato, alguns franceses parecem ter ouvido excessivas vezes; recente pesquisa de opinião mostrava que 65% do povo francês acha que expressões como "valores republicanos" foram "usadas demais e perderam a força e o significado."

Um daqueles valores republicanos é a laicidade – palavra francesa que tem tantas conotações e interpretações que já é efetivamente intraduzível; secularismo serve como aproximação razoável. Hoje, a laicidade serve como justificativa para uma variedade de coisas – desde proibir que mães que acompanham os filhos em atividades escolares usem véu, até ordenar que crianças muçulmanas e judias comam porco nos lanches escolares (ou passam fome).

Mas laicidade não é simplesmente uma ideia que foi apropriada pela Direita para finalidades políticas ou culturais; é também valor afirmado pela Esquerda e, até, pela extrema esquerda.

Acima de tudo, a palavra laicidade não se aplica exclusivamente a um "valor" que por todos os lados estariam metendo cabeça adentro das pessoas; é conceito concretamente, materialmente incorporado no sistema educacional francês. Na França hoje cerca de ¼ da população (24,7%) estão envolvidas no sistema educacional, seja como empregados seja como estudantes, o que torna centrais, nas estruturas sociais e econômicas da nação francesa, os ideais e as práticas associadas à laicidade.

O laicismo tem longa e tortuosa história, mas o ponto crucial de virada foi, sem dúvida, a aprovação das leis Ferry de 1881 e 1882, que estabeleceram o princípio pelo qual a educação primária na França seria gratuita, obrigatória e secular.

Expansões similares da educação primária pública estavam acontecendo em outros pontos da Europa. Mudanças provocadas pela industrialização fizeram aumentar a necessidade de que houvesse na França força de trabalho alfabetizada e instruída, particularmente depois da vitória decisiva da Prússia na guerra de 1870, que muitos à época atribuíram, pelo menos em parte, à superioridade dos prussianos no campo da educação.

Mas houve outros fatores. Os políticos que então controlavam a III República haviam afiado os dentes como membros da oposição sob o Segundo Império. A Igreja Católica tivera papel significativo no estabelecimento do e no apoio ao governo de Napoleão III. Uma guarnição francesa protegia o Vaticano, e só quando foi retirada para a Guerra Franco-Prússia, o Vaticano perdeu o status de estado independente e tornou-se parte da Itália.

Por tudo isso os políticos republicanos tendiam a ser anticlericais e a desconfiar da Igreja Católica – o que se via também, como modo de pensar, amplamente disseminado em toda a população francesa.

Havia razões bem claras para a desconfiança. O clero dividia suas lealdades entre o estado francês e o papado, e o papado tinha política externa própria, que nem sempre coincidia com a do estado francês. Havia também o temor de que professores católicos favorecessem Roma, não Paris. Por exemplo, durante a guerra franco-austríaca em 1859, um pároco do interior disse comprovadamente aos seus paroquianos que rezassem pelos austríacos porque eram católicos.

Consequentemente, Ferry e seus apoiadores convenceram-se de que a importante tarefa de educar a nova geração não poderia ser deixada a aliados potencialmente pouco confiáveis na Igreja, e que agentes e empregados conectados diretamente ao Estado tinham de assumir as atividades didáticas nas escolas primárias.

A questão da defesa nacional também foi chave. A França sofrera derrota catastrófica na guerra franco-prussiana, e perdera os territórios de Alsácia e Lorena para o recém estabelecido Império Germânico. Havia o sentimento forte, em alguns grupos, de que a França devia trabalhar para recuperar os territórios perdidos.

O próprio Ferry não era a favor de guerra contra a Alemanha, e tentou melhorar as relações com o país vizinho. Mas sua capacidade para manobrar nesse campo era limitada pela opinião pública francesa e pela possibilidade real de outra guerra com a Alemanha. A opção preferida de Ferry era expandir o império colonial da França – missão bem alinhada com sua crença racista segundo a qual "raças superiores... têm o dever de civilizar raças inferiores." De fato, foi durante o mandato de Ferry que a França ocupou e anexou a Indochina.

Essas aspirações levantaram a questão central do exército. A França ainda era substancialmente país de camponeses – em 1900, 45% da população trabalhadora francesa eram constituídos de fazendeiros e camponeses. Em 1848 e 1871, foram camponeses-soldados que restauraram "a ordem", reprimindo levantes de trabalhadores em Paris, e nas décadas seguintes o exército seria usado repetidas vezes contra grevistas.

Mas havia um problema com os camponeses: seu senso de identidade nacional era visivelmente muito fraco, e os camponeses muito mais se identificavam com a própria vila ou província, que com a nação francesa. Da Bretanha à Provence, muitos camponeses falavam línguas ou patois [falares regionais] diferentes do francês; números oficiais de 1863 mostram que ¼ da população não falava francês. Em algumas áreas havia relatos de que os camponeses não sabiam que eram franceses.

Mas havia um problema com o campesinato. Seu senso de identidade nacional era decididamente fraco, e os camponeses eram muito mais propensos a se identificar com a sua aldeia ou a sua província que a nação francesa. Da Bretanha à Provence, muitos camponeses falavam línguas ou patois outros que não o francês; dados oficiais de 1863 mostram que até um quarto da população não falava francês. Em algumas áreas, houve relatos de que os camponeses não sabia que eles eram franceses.

Os exercícios militares nas novas escolas adquiriram importância considerável. Como um historiador descreveu:

"Foi o tempo dos 'batalhões escolares'. Invenção republicana de Paul Bert, lançada em 1882. Significou valer-se da chegada das crianças às escolas primárias, para inculcá-las com noções de 'cidadania patriótica' mediante exercícios militares. As crianças praticavam marchas com armas de brinquedo e baionetas de madeira, mas também treinavam com munição viva, fora da escola, em colunas militares de rifles."

Na introdução de um colóquio em 1985 sobre as leis Ferry, François Furet descreve o estabelecimento da laicidade na educação francesa, como "o melhor símbolo da grande única vitória da esquerda desde a Revolução Francesa." Porém, quando as leis Ferry e a laicidade foram estabelecidas, a posição da Esquerda foi bem menos entusiástica.

Para uma ala do Partido Socialista, liderada pelo carismático Jean Jaurès, as leis Ferry e a separação entre igreja e estado com certeza eram vistas como importante passo à frente. Na juventude, Jaurès e Ferry haviam sido amigos e Jaurès era simpático à ideia da laicidade como parte de sua acomodação mais geral à política republicana. Em 1904 Jaurès defendeu a participação dos socialistas num governo republicano, dizendo que aquele governo salvara a República, e só fez uma rápida alusão ao fato de que o governo republicano também mandara soldados para atirarem contra trabalhadores em greve.

Para a esquerda marxista as coisas foram um pouco diferentes. No verão de 1882, logo depois de as leis Ferry sobre laicidade terem sido aprovadas, o próprio Karl Marx esteve em Paris por quase três meses, no caminho de volta para casa, depois de uma estada na Argélia. Sua correspondência desse tempo não faz qualquer referência ao evento – o que é de estranhar, considerando que Furet vira a laicidade como a maior vitória da esquerda.

Paul Lafargue – genro de Marx e o mais destacado pensador e escritor marxista francês durante três décadas depois de instalar-se em Paris em 1882 – jamais fez qualquer referência às leis Ferry em sua copiosa correspondência com Engels. A omissão talvez se explique pela opinião desairosa que Marx e Engels tinham de Ferry; Marx escarneceu de seu "mau governo" no período antes da Comuna de Paris, e Engels chamou-o de "ladrão de primeira água".

Karl Kautsky porém – chamado "papa do marxismo" depois da morte de Engels – tinha perspectiva um pouco diferente. Embora em geral fosse crítico da III República e das ilusões que muitos do movimento socialista francês cultivavam sobre ela, Kautsky observou sem meias palavras que "na área da educação, a III República fez grandes coisas".

Mesmo assim era cético quanto a separação de igreja e estado, argumentando que "se houve agora uma divisão entre Igreja e Estado, só se pode atribuir à provocação da Igreja. Mesmo assim, deve-se duvidar de que a separação seja permanente."

Posteriomente, Kautsky comentou:

"hoje os políticos liberais burgueses têm todo o interesse na luta contra a Igreja, mas de modo algum em derrotar a Igreja. Só podem contar com a aliança do proletariado enquanto durar essa luta. Se terminar, o aliado deles será transformado em inimigo no mesmo dia em que a Igreja cair. Mesmo no momento de seu mais forte poder revolucionário, a burguesia não dura muito sem a Igreja."

Em outras palavras, ele viu laicismo como uma concessão para a esquerda em vez de uma estratégia ideológica alternativa.

Lafargue tinha compreensão mais aguda das questões. Era ateu e materialista, e opunha-se fortemente à influência da Igreja; seu primeiro ato depois de eleito ao Parlamento foi apresentar projeto de lei, que não foi aprovado, que determinaria a separação entre igreja e estado.

Mas Lafargue tampouco acreditava muito nos que davam grande importância ao anticlericalismo. No programa de 1883 do Parti Ouvrier [Partido Operário] redigido por Lafargue e Jules Guesde, há uma referência desdenhosa aos livre-pensadores franceses que querem "o fim dos subsídios do estado para as igrejas e a separação entre Igreja e Estado." Destacam que nos EUA essa divisão existe (de tal modo que as religiões são "indústria privada, como loja de doces ou açougue de vender porco em retalho"), mas que isso "não impede que a lepra religiosa devore a grande república norte-americana mais que qualquer outro poder sobre a terra."

Em 1886 Lafargue publicou uma sátira intitulada La Réligion du capital (A Religião do Capital). Imaginou uma conferência em Londres com representantes econômicos e políticos do capitalismo europeu – Clemenceau, Rothschild, Gladstone, Herbert Spencer, von Moltke, etc. Dentre os participantes estavam Ferry e Paul Bert, o qual, como ministro da Educação, fora um dos principais aliados de Ferry no processo de estabelecer a laicidade. A preocupação deles era garantir a sobrevivência do capitalismo; por isso, de algum modo, precisavam da religião.

Na sátira, Bert declarava que, por mais que fosse, ele mesmo, não crente, era a favor da religião para a classe trabalhadora. "Os trabalhadores têm de acreditar que a miséria é a moeda com a qual compram o paraíso. Sou homem de muita religião... para outras pessoas."

O problema era que o Cristianismo já não era crível. Numa passagem de zombaria digna de Voltaire, Bert dizia que já não era possível levar as pessoas a crerem que "um pombo deitou com uma virgem e que, dessa união, condenada pela moralidade e pela fisiologia, nasceu um cordeiro." Os delegados concordaram que era necessária uma nova religião, que se baseasse na santidade do capital e um catecismo que impusesse aos trabalhadores o sacro dever de trabalhar.

Aqui Lafargue parece fazer o comentário satírico do papel do laicismo – doutrina que poderia cumprir o papel que os ensinamentos obsoletos do Cristianismo já não conseguiam cumprir.

Houve quem dissesse que a laicidade continuava as tradições da Comuna de Paris. É verdade que a Comuna separara religião e educação. Mas, como argumentou Maurice Dommanget, os communards não usavam muito os termos laicidade, considerando-se eles mesmos materialistas, não neutros, portanto, na questão da religião.

E, mais importante, como Kristin Ross mostrou em seu excelente recente estudo, a Comuna não se via ela mesma como um estado, mas, sim, como entidade que buscava a autonomia local com contexto internacional. Com certeza, a Comuna não via a educação como preparação para o serviço militar. A Comuna representou tradição internacionalista muito diferente da desenvolvida pelos partidários da laicidade.

Algumas das críticas mais agudas da laicidade vieram das correntes anarquistas e sindicalistas. A posição dos anarquistas pode ser resumida na fórmula "nem igreja nem estado". Como disse Sébastien Faure, a escola cristã foi "organizada pela Igreja e para ela; e escola laica foi organizada pelo estado e para ele." Contrapôs a ideia de uma "escola do futuro... organizada para a criança." André Lorulot pôs as coisas em termos ainda mais crus: disse que os professores do estado seriam "policiais intelectuais a serviço da classe capitalista."

Houve várias tentativas, dos anarquistas, para criar escolas libertárias que seriam independentes simultaneamente da igreja e do estado. Uma dessas tentativas contou com apoio financeiro de Émile Zola e outros intelectuais, mas acabou por falta de recursos.

Como Marx e Engels os anarquistas também tinham Ferry em baixa conta, e com certeza jamais o viram como herói da Esquerda. O jornal de Émile Pouget, Le Père Peinard, combinava opiniões radicais e linguagem direta, popular, muitas vezes vulgar.

A opinião de Pouget sobre Ferry era, para dizer o mínimo, agressivamente hostil: "Se há porco que me deixa revoltado, é Ferry. Que animal sujo e bruto! É o maior vigarista da França... Queria ver alguém torcer-lhe o pescoço; pode-se matar esse sujeito como menos remorso do que se esmaga um percevejo".

Pouget tinha visão interessante sobre os argumentos então correntes sobre se padres deviam ou não ser autorizados a trabalhar como professores. Não recomendava que todos os padres fossem proibidos de lecionar, mas, para comprovar o compromisso deles com o celibato, recomendava que padres-professores fossem castrados.

Uma série de outras publicações anarquistas argumentavam contra a laicidade.

O panfleto L'École: Antichambre de caserne et de sacristie (A Escola: Antessala do Quartel e da Sacristia) – sem autor declarado, mas que parece ter sido escrito por Émile Janvion, um dos fundadores do sindicato Confederação Geral do Trabalho (CGT) da França, e suposto iniciador da primeira "escola libertarista" na França – citava Bakunin e Stirner, que teriam apoiado a ideia de que a laicidade não passa de dogma alternativo ao dogma da igreja.

Observava também que o político republicano Léon Gambetta dizia que "o inimigo é o clericalismo", e respondia que "religiões (sejam de estado ou de igreja) são o inimigo." E concluía: "Nossos anticlericais têm espírito de padre de paróquia. Nossos ateus são gente muito pia."

Janvion chamava especialmente a atenção para o modo como escolas seculares encorajavam os sentimentos de nacionalismo. A criança seria "inoculada com mais imbecil ódio cego contra pessoas que vivam do outro lado de tal e tal riachinho, aprenderiam a vangloriar-se da própria raça, em detrimento de todas as outras."

Ele notou a prática de professores de escolas seculares, de escrever determinadas frases na lousa, para que os alunos repitam em coro várias vezes ao longo do dia escolar. Exemplos típicos: "Bom francês tem de saber morrer pela bandeira"; "você só existe para sua terra-mãe, você vive só para ela"; e "um bom francesinho deve preparar-se para tornar-se bom soldado."

Janvion também destacava um volume de "educação moral e cívica" que explicava como "o serviço militar é o aprendizado para a guerra. É necessário formar um exército sólido, capaz de nos defender contra criminosos internos e inimigos de fora." A expressão "defender contra criminosos internos" refere-se claramente ao papel do exército, antes de 1914, na repressão a greves e grevistas.

O livreto de Antonin Franchet, Le Bon Dieu Laïque (1903) [O Bom Deus Laico] analisa livros escolares usados em escolas seculares. Um deles, muito popular, de Charles Dupuy, ex-ministro da Educação, perguntava aos alunos: "Como devemos demonstrar nosso amor por nossa terra nativa? – Obedecendo às leis, mesmo que sejam inconvenientes para nós e defendendo seu território e sua independência contra o estrangeiro, mesmo que ao preço do nosso próprio sangue."

Os livros escolares também diziam aos alunos o que pensar da França: "Amo a França como amo meu pai e minha mãe. Para provar o meu amor, devo ser criança bem comportada e trabalhadora; assim, quando crescer, serei um bom cidadão e um bom soldado."

E ideais internacionalistas foram desprezados::

"Talvez você ouça gente egoísta e ociosa à sua volta dizer que não é importante ser cidadão de um país, que se deve ser cidadão do mundo, que se chama 'cosmopolita'; que a terra nativa é qualquer local onde você se sinta bem; que 'pátria' é só uma palavra, uma abstração, que mentes positivas e práticas não se devem deixar enganar."

Mesmo os livros escolares devotados a ensinar moralidade, nada ensinavam disso:

"Sei que se pode amar a pátria, sem por isso detestar outros pobres e desejar ou preparar a ruína deles. Mas há casos, para os soldados, quando é necessário saber odiar, odiar o impiedoso invejoso inimigo que, depois de empregar mal a própria força, de ter roubado de nós os nossos irmãos na Alsace-Lorraine, ainda está à espreita, esperando uma oportunidade para assestar o golpe final. 
Enquanto permanecer vivo o ódio contra o conquistador de nossa pátria, o derrotado não perdoará nem esquecerá. 
Odeiem portanto a injustiça passada, a injustiça que ainda os ameaça. A força para vingar uma e varrer os efeitos da outra é o ódio! Franceses, o ódio é um dever"!

Em livro escolar de Émile Lavisse, adequadamente intitulado Tu seras soldat (Serás soldado), o autor conclama seus jovens leitores a considerar o trabalho de espião, para o próprio futuro. Embora não ofereça estilo de vida de um James Bond, o autor diz inequivocamente a crianças de escola que os fins justificam os meios; e que mentira, dissimulação a clandestinidade são meios perfeitamente legítimos:

"O espião que serve seu país em tempos de paz é homem esperto, valente, bravo, que vai a um país estrangeiro para estudar as suas defesas e preparativos de guerra, para informar sobre eles o seu país natal. 
Para alcançar esse fim, todos os meios são legítimos. O espião esconde a própria nacionalidade e adota nome falso; aprende a falar a língua do outro país e, para ocultar a própria tarefa, trabalha nas mais variadas profissões."

Nada disso implica que os críticos anarquistas contra a laicidade na educação sejam imunes a críticas. Pouget e Janvion, especificamente, eram antissemitas. Mesmo assim, tudo que escreveram ajuda a contextualizar o que sejam laicidade e a esclarecer que o conceito não é sempre tão progressista, acima de qualquer suspeita ou discussão, como se ouve dizer atualmente, com frequência.

Apesar de algumas vozes de oposição, a laicidade alcançou amplamente o objetivo de solidificar uma identidade nacional baseada na força militar. Como o historiador Eugen Weber escreve, "Em agosto de 1914 não era surpresa ouvir um jovem camponês do Var e amigos partindo para a guerra 'feliz (como um deles escreveu aos pais) por ir e defender nosso país, a França'."

Houve uma pequena interrupção em 1912, quando o sindicato dos professores primários votaram e aprovaram uma contribuição chamada o sou du soldat [vintém do soldado], para um fundo antimilitarista. Houve então certo grau de pânico – o ex-ministro da Guerra Adolphe Messimy declarou, sem dúvida sinceramente, que, por mais que fosse, ele mesmo, apoiador da laicidade na educação, aquela ação dos professores era inaceitável. Por um momento, os agentes do estado pareciam voltar-se contra o próprio estado. Mas apenas 5% dos professores eram sindicalizados; no fim, o show da oposição deu em nada.

As tradições de crítica da laicidade na educação prosseguiram depois da I Guerra Mundial. O jornal Clarté, próximo, mas não completamente controlado pelo Partido Comunista, em matéria sobre desenvolvimentos educacionais na Rússia pós-revolucionária, dizia que a Rússia soviética poderia oferecer alternativa à igreja e ao estado no campo da educação. Uma conferência sobre educação realizada em Moscou em 1919, por exemplo, descartou as teses sobre neutralidade acadêmica e sobre laicidade como um "mug's game" ["jogo de enganar otários"], concebido para atender aos interesses da burguesia.

E o Partido Comunista Francês inicial tomou posição muito diferente, sobre laicidade, se comparada à posição da Esquerda hoje. Hadjali Abelkader – casado com cidadã francesa e por isso, diferente da maioria dos Norte Africanos, portador de cidadania francesa plena – foi membro fundador do Partido Comunista Francês e colaborador regular do jornal Le Paria (jornal comunista para imigrantes e trabalhadores coloniais), e chegou perto de ser eleito ao Parlamento francês em 1924. Muçulmano durante toda a vida, Abelkader dizia que os comunistas não deviam adotar posição de polêmica em relação ao Islã.

Hoje, com as ideias de laicidade sendo usadas a serviço da Islamofobia, volta a ser excepcionalmente importante derrubá-las do alto status de que hoje usufruem. Para tanto, é preciso compreender que laicidade não são alguma espécie de nobre ideal que teria sido mal interpretado e distorcido; que são ideias e práticas que sempre foram gravemente viciosas, desde o começo.

Adaptado de um paper apresentado no Materialismo Histórico de 2015.