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18 de julho de 2025

A estrada de Gaza

Não me culpei por ter ido embora. Houve apenas uma silenciosa incapacidade de compreender por que sobreviver é tão amargo.

Doha Kahlout, traduzido por Yasmine Seale

The New York Review

Hazem Harb/Tabari Artspace
Hazem Harb: Borders are only in our minds #2, 2023

Eu estava em Paris há mais de uma semana quando Gaza ressurgiu, como uma cicatriz que o corpo passou a aceitar. No trem para Argenteuil, sentei-me de frente para o lado errado — o que a maioria das pessoas evita por causa da tontura que causa — enquanto meu telefone se iluminava com notificações, trazendo notícias da tristeza crescente em Gaza ou mensagens de entes queridos que acalmavam meu coração ansioso.

Observei os rostos ao meu redor, um hábito que carrego desde a infância. Traços tranquilos, murmúrios suaves, o silêncio da exaustão após um longo dia. Virei-me para a janela, observando o sol se esconder atrás das nuvens, e notei como a estrada seguia em marcha ré, como os prédios pareciam fugir contra o vento.

Então, uma cena da minha última noite em Gaza me veio à mente. Voltando para casa pela cidade naquela noite de abril, meu primo Shahd e eu pegamos um ônibus do cruzamento de Saraya até o extremo oposto de Al-Jalaa. Com transporte escasso, não hesitamos: sentei-me em um assento virado para trás. E lá se desenrolou — a cidade em ruínas — como uma cena de filme. Minha mente ficou atordoada com todas as contradições que enfrentamos ali, nossas vidas contidas nessa imagem que se desfazia.

Agora tudo reapareceu num piscar de olhos: as ruas marcadas pela guerra, as casas soterradas, os muros destruídos. Como eu havia me apegado a cada detalhe dos danos, depois de tanto me esforçar para repará-los em minha mente? A saudade me invadiu, junto com as lágrimas que eu havia retido. E lá estava eu, apesar de todas as minhas tentativas de fuga: diante da cidade que havia deixado para trás.

*

A princípio, nos convencemos de que a chance de eu ir embora era algum tipo de brincadeira. Agora a brincadeira tinha acabado. Dei meu último passo em direção ao ônibus que me levaria para o outro lado do mundo. Meus olhos percorreram a cidade, tentando captar uma única imagem — mais um momento em seu abraço. O medo me levou até minha mãe. Procurei em suas mãos alguma ternura na despedida, mesmo em sua crueldade. Ela me envolveu em prece, um abrigo tranquilo. Com meu rosto em suas palmas, senti algo que ninguém jamais havia descrito antes.

Em seguida, passei pelos braços do meu pai e dos meus irmãos, memorizando seus rostos, deixando pedaços do meu em seus ombros. Esperei no ônibus por mais de uma hora. Pela janela, ainda os vi: mãe, pai, três irmãos e Shahd, esperando em silêncio pesado que meu rosto desaparecesse, talvez pela última vez.

Olhei para o céu. A manhã brilhava nas bordas da noite que se esvaía. Eu esperava que meu coração infantil aprendesse a endurecer, a suportar a dor da partida. Quando o ônibus começou a se mover, guardei no bolso a imagem de seis mãos acenando — de seis rostos sorrindo ou sufocados pelas lágrimas. A distância crescente entre nós encerrou a despedida, como uma frase inacabada. Virei-me para trás várias vezes até não poder mais vê-los.

Por ter conhecido bem Deir al-Balah naquele último ano, também me despedi dela longamente enquanto passávamos em nosso caminho para o sul, sorrindo para as ruas por onde meus entes queridos haviam passado. Derramei um rio de orações sobre eles — por proteção, por paz — e segui em frente, meu corpo sobrecarregado por uma pergunta brutal: E agora?

*

De repente, o ônibus diminuiu a velocidade, como se contido pelo peso do medo dentro de nós — todos nós que estávamos sendo forçados a fugir de uma cidade sitiada. Ficou parado por mais de quinze minutos. Ninguém se moveu. O ar crepitava de ansiedade. Os telefones foram desligados. Até os sussurros cessaram. Estávamos no primeiro ponto: Khan Younis. Atrás de nós, a cidade; à nossa frente, ruínas. As casas haviam desaparecido, deixando para trás apenas seus restos. O telefone do motorista vibrou em sua coxa. Seguimos em frente.

Em Rafah, vimos o fantasma do que outrora fora um refúgio para mais de um milhão de habitantes de Gaza durante sete meses de guerra. Não havia mais nada que indicasse que uma vida havia sido vivida ali. Prédios, histórias, feridas haviam se transformado em areia.

Passamos por ruas que talvez nos tenham conhecido, embora não as conhecêssemos mais. Outra parada. Ninguém perguntou por quê. Ninguém se surpreendeu. Um gemido se formou em nossos peitos. A espera se arrastou. Crianças quebraram o silêncio, rebelando-se contra o medo dos adultos com a honestidade que só a inocência permite — como o menino que fazia todo mundo rir perguntando: "Quando embarcamos no avião?". Uma pergunta razoável em qualquer outra geografia.

Na travessia de Kerem Shalom, aguardamos a permissão para abrir o portão. Olhei para trás, na esperança de um último vislumbre da cidade. Mas não era a cidade da qual eu me lembrava.

Ficamos na fila sob um sol implacável, cujo calor correspondia à fúria em nosso sangue. Ao nosso redor, havia armazéns vazios que poderiam estar transbordando de colheitas e produtos agrícolas se o cerco não tivesse se intensificado semanas antes. Nossas malas tinham sido despojadas de tudo, exceto nossos celulares, carregadores e os documentos que precisávamos para partir. Você não leva nada com você — seu lar está em seu coração agora, seu país onde quer que seus passos o levem.

Depois de passarmos pelo processo de triagem, um funcionário acenou com a cabeça: vá. Parei, demorei um pouco e então caminhei para a frente. Quando conhecemos a delegação consular, eu sabia: Gaza havia soltado minha mão e um novo capítulo da vida havia começado.

*

O rosto de Gaza desapareceu e, em seu lugar, surgiu um sonho que jamais ousamos acreditar que veríamos. Nos livros da infância e nas lições da juventude, aprendemos seus nomes, lemos seus poemas, ouvimos canções que elogiavam sua beleza, mas nunca lhe faziam justiça. Pelas janelas do ônibus, passamos por terras que nos foram negadas a visão. A mente vacilou diante de uma terra tão encantada: vastas planícies coroadas pela costa do Mar Morto, montanhas e rochas esculpidas com precisão, e pequenas casas — cidades — amontoadas no horizonte. Dei meus olhos e meu coração livremente à vista, tentando segurá-la com firmeza.

Então, como um beliscão que traz dor, um jipe apareceu. Outro na frente. Outro atrás. Como se para acorrentar cada viajante de olhos arregalados. Agora a vista me esgotava; os veículos do exército nos lembravam que esta paisagem também está presa. Setenta e sete anos de roubo, pedaço por pedaço. Um fluxo interminável de sangue, lágrimas, saudade. Uma tristeza que começou com nossas vidas e não terminará até que a ocupação termine.

Segui cada placa — dois nomes em cada uma, mas meus olhos só reconheceram o que eu já sabia. O ônibus avançava rápido demais pela rodovia para que eu pudesse absorver tudo, mas, através das placas, vi as estradas para Haifa, para Jaffa, para Jerusalém. Tentei estender a vista além do horizonte, ávido por uma visão mais ampla.

Não sei quantas horas viajamos. Meus olhos não se desviaram da janela, meu pescoço ficou rígido de tanto olhar. Uma dor que eu acolhia. Lembro-me disso agora toda vez que alguém me pergunta como foi a viagem, e eu digo: "Nosso país é um paraíso."

Na Ponte Rei Hussein, na fronteira com a Jordânia, esperamos mais de três horas. Nesse tempo, rebobinei a história desde o início, oito dias antes, quando o consulado francês me ligou para dizer que eu era uma das mais de cem pessoas de Gaza — professores, artistas, estudantes, cientistas — que eles conseguiriam evacuar. Considerei o peso da viagem e nossa inexplicável resiliência. Eu me perguntava: por que continuar perseguindo a vida quando a morte arma armadilhas por toda parte?

Mas eu não buscava uma resposta. Os moradores de Gaza sabem quem somos. Mantemos nosso direito de viver diante daqueles que desejam nossa partida. Amassamos futuros a partir da massa do impossível. Mesmo quando negados, zombamos da privação. E embora semeemos com as mãos ensanguentadas, ainda colhemos frutos. Não me culpei por partir. Minha consciência não me julgou. Houve apenas uma silenciosa incapacidade de compreender por que sobreviver é tão amargo.

*

Somente quando finalmente recebi a permissão para o ônibus voltar a circular e o motorista gritou "Bem-vindo à Jordânia", acreditei plenamente que minha nova vida havia começado. Que eu estava agora fora da terra para a qual um dia retornarei. Enquanto dirigíamos pelas ruas, me vi inspecionando suas casas por hábito: algum muro havia desabado? Suas janelas estavam intactas? Quantas delas haviam tremido sob os mísseis? Quando me dei conta da resposta, um vazio se instalou dentro de mim. Perguntei à jovem ao meu lado, que apenas respondeu: "Nós nunca realmente seguimos em frente".

Naquela noite, não senti falta dos drones zumbindo acima da minha cabeça. Nenhuma explosão me tirou do sono. De manhã, caminhei pelas ruas de Amã, curioso sobre como é a vida à luz do dia. Não fiquei com raiva. Não questionei. Simplesmente vivi um dia comum, compartilhado com meu amigo que está na Jordânia há dois anos.

Quando a noite calma voltou, seguimos para o aeroporto. Uma longa espera, nada surpreendente. Um voo atrasado, sem explicação. Outra espera. Não senti muita coisa. Meu corpo se movia sob ordens. Meus ouvidos captavam conversas sem sentido — não em busca de informações, apenas para passar o tempo.
Embarcamos no avião. Ele subiu acima das nuvens. Outros observavam, deslumbrados com a visão desconhecida. Mas o vazio havia tomado meu coração. Levantei minha câmera — não por espanto, mas para registrar um momento que minha mente não tinha forças para sentir.

O voo foi longo. Lembrei-me dos pedidos de familiares e amigos: rezem por nós. Fiz o que eles pediram e rezei — vazio de admiração, mas cheio de fé. O tempo passou sem resistência, sem pressa. Quando o avião pousou em Paris e meu corpo seguiu o fluxo de passageiros pelo corredor, olhei para o céu, na esperança apenas de me sentir seguro. Ao meu redor, rostos brilhavam com a expectativa do reencontro, do momento em que as histórias encontram seu fim. Fui recebido por Malika e Ratiba, duas mulheres marroquinas que se ofereceram para nos receber. Quando Malika me abraçou, todas as emoções que eu havia abandonado retornaram com força total. Minha mente se inflamou com um fogo que eu não conseguia nomear. E pela primeira vez chorei como alguém completamente sozinho.

*

Diante dos meus olhos sonolentos, a França surgiu em toda a sua grandiosidade. Não prestei muita atenção à estrada, mais sintonizada com os esforços de Malika, em árabe suave, para acalmar a ansiedade que me consumia a cada rua por onde passávamos.

Chegamos a Argenteuil, um subúrbio tranquilo com uma grande comunidade árabe, na casa de Najat — uma tunisiana que transformou meus primeiros dias de apreensão em calma. Ela enfrentou meu medo com uma mão como a da minha mãe. Abriu sua casa e seu coração para uma garota de Gaza que, por um ano e meio, não sabia como o mundo girava.

Ela ouviu nossas histórias e seu rosto empalideceu. Contou as suas para domar a estranheza em mim, para fazer do exílio um lugar acolhedor. Deixei Gaza sabendo que aprenderia novos significados para cada palavra. Mas Najat, nome que significa resgate, era tanto substantivo quanto verbo.

Caminhei pelas ruas iluminadas por árvores e flores, andei de trem pela primeira vez, li as placas, tentei aprender francês com os sons que Najat fazia. E nesses primeiros encontros — com pessoas, com lugares — Gaza surgiu dentro de mim. Na rua, no parque, na igreja, no supermercado, no restaurante. Diante de edifícios grandiosos e humildes. No trem, no ônibus, no silêncio ou no barulho, na luz ou na sombra — ela retornou a mim. Uma presença orgulhosa e desafiadora mesmo quando sangra. Seus filhos a conhecem e a defendem mesmo quando sua voz queima nossas gargantas e suas memórias escurecem nosso sono. Ela respira em nós — seu povo, seu ar, seu mar antigo — enquanto enfrentamos a imensidão de tudo o que é novo. E nos deixa com o amuleto de uma vida roubada de debaixo de seus dedos.

Doha Kahlout
Doha Kahlout é uma poeta e professora de Gaza. É autora de uma coletânea de poesias, Ashbah (“Similaridades”), e colaboradora de diversas publicações e antologias. Membro do programa PAUSE, reside atualmente no Reid Hall, em Paris, como parte da Iniciativa de Artistas Deslocados, co-patrocinada pelo Columbia Global Center e pelo Instituto de Ideias e Imaginação. (Julho de 2025)

Yasmine Seale
Yasmine Seale é poetisa, crítica e tradutora. Atualmente, é professora visitante na Columbia. (Abril de 2025)

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