30 de março de 1997

Globalitarismo e neobobismo

Lições contemporâneas

Maria da Conceição Tavares

Folha de S.Paulo

Globalitarismo é um neologismo introduzido por Ignacio Ramonet, que pode ser lido do ponto de vista político como a síntese entre a globalização e o totalitarismo (ver a respeito o importante artigo de Tarso Genro, Folha, 25/3/97).

Outra leitura possível, do ponto de vista da cultura e da ideologia, seria a fusão entre global e utilitarismo, uma velha doutrina dos liberais clássicos (o liberismo), agora retraduzida com roupas novas pelo ``neoliberalismo''.

Esta última expressão incomoda profundamente o sociólogo e social-democrata tardio FHC, que acaba de inventar um novo neologismo -o "neobobismo" - para quem ousa o taxar de neoliberal.

Sua Excia. adota um procedimento de grande eficácia mercadológica e muito caro à "ordem" globalitária: a desmoralização da dissidência. Assim vem xingando a esquerda de burra, fracassomaníaca, e agora de boba. Com o que muito tememos que logo a proclame "incapaz", do ponto de vista da cidadania política, e a inclua num novo estatuto indígena.

Nada como um novíssimo neoliberal "reformista" para ganhar de um velho liberal conservador como Roberto Campos. Este, pelo menos limita-se hoje a chamar de dinossauros as empresas estatais rentáveis, com o que pode sempre invocar a modernidade para justificar os bons negócios que o nosso "príncipe dos sociólogos" patrocina em suas viagens globalitárias. Na última delas, feita em Johannesburgo em outubro passado, fechou-se o negócio da Vale. As "operações" de privatização da grande estatal estão se revelando uma novela de luxo, infelizmente ofuscada pelo novelão do lixo dos precatórios.

Os nossos "novos estadistas" vão pelo mundo vendendo a preço de banana as grandes estatais de porte internacional. Digo a preço de banana e não dólares, porque além de vermos poucos dólares, o "neobobismo" de direita -exponenciado pelo agressivo condutor da política cambial- considera o mercado de bananas idêntico ao de dólares. Pelo andar da carruagem muito temo que as dignas autoridades estejam conduzindo o país a uma situação de "Banana Republic".

Ora, dirão os partidários do realismo cínico, mas o mundo mudou e os chefes de estado americanos e europeus também são caixeiros-viajantes -outra característica do capitalismo globalitário. Sem dúvida, mas quando nos visitam, vêm tentar vender os produtos da indústria deles ou comprar barato as nossas empresas rentáveis e não ao contrário.

Embora alguns corram o risco de se desmoralizar -como o ex-presidente Bush tentando vender carros velhos ao Japão e vomitando no jantar do primeiro-ministro- não é conhecido nenhum caso de presidente ou primeiro-ministro civilizado que tenha atacado, dentro e fora do país, os seus concidadãos, o Congresso e o Judiciário, nem tripudiado sobre a oposição política ao seu governo.

Sua Exa., o presidente-candidato, do alto de sua vaidade e arrogância, está correndo o risco de perder a memória, não do que escreveu no passado -já que está levando a sua "Teoria da Dependência" às últimas consequências- mas do seu passado democrático. Neste acreditaram não apenas os milhões que nele votaram, mas também milhões dos que votaram em seu opositor.

FHC está convertendo os seus adversários políticos em inimigos, tratando-os como lixo, e o seu triunfo político em visão delirante de onipotência. Recomenda-se a releitura de alguns velhos e bons historiadores e quem sabe "O Príncipe", de Machiavel, cujos ordenamentos sobre o fazer o mal todo de uma vez e o bem devagarinho o nosso príncipe está visivelmente invertendo. Perder a memória e a compostura nunca é bom, sobretudo para um chefe de Estado que deveria tentar manter as aparências de "politicamente correto", depois de ter passado o rolo compressor sobre o Congresso para garantir suas pretensões à reeleição.

É indiscutível que a designação neoliberal aplica-se como uma luva às políticas sociais "focalizadas" em contraposição às políticas universais de origem social-democrata. Esse tipo de "política compensatória" é sempre complementado pelas reformas executadas de acordo com o decálogo do Consenso de Washington. Já a política econômica concreta do governo não merece sequer o nome de neoliberal, visto como maneja grosseiramente as tarifas de importação, o crédito público e as isenções fiscais a favor de empresas e bancos apadrinhados. Os exemplos recentes da indústria automobilística, da moratória dos grandes agricultores, do escândalo do financiamento aos grandes bancos que acaba de culminar com o Bamerindus são casos de "neofisiologismo" em estado puro.

A política de "bandas" cambiais, andando de banda, ou os financiamentos do tipo "bicicleta" só podem enganar e tranquilizar os desavisados convertidos ao "neobobismo" de direita. A propósito, convém lembrar que o "príncipe" do câmbio só tem se mantido no poder graças à complacência do primeiro mandatário e à conivência do mercado. A política cambial tem custado ao país um endividamento crescente em dólares, pela emissão de títulos públicos, mas a mágica está para terminar. Até um neoliberal pós-moderno como César Maia se dá conta disso, em recente artigo no "Jornal do Brasil", antecipando a sua mudança de postura como candidato a governador.

Assim, o presidente não precisa mais preocupar-se, porque não é à sua pessoa, nem ao seu governo, que se aplica a designação de neoliberal; é apenas à doutrina que os seus economistas e os seus escribas pretendem ainda impingir à opinião pública desinformada.

Dez entre dez economistas (informados) sabem que a política cambial é um fracasso e que o risco cambial nos espreita. Dez entre dez políticos sabem que a maioria situacionista ultrajante terminará por sofrer um congestionamento por falta de postos ministeriáveis ou de verbas.

Finalmente não demorará muito para que a maioria da opinião pública, apesar da manipulação, se aperceba da verdadeira natureza deste governo, que até para inaugurar uma experiência "focalizada" de assistencialismo necessita utilizar o escárnio e o menosprezo para desmoralizar os que se lhe opõem.

O presidente FHC não corre o risco de se tornar um déspota esclarecido, como vários comentaristas sublinharam, em seguida à entrevista do filósofo Gianotti, que, do alto da sua sapiência "uspiana", vem tentando defender e dar conselhos ao príncipe. Corre, sim, o risco de tornar-se simplesmente um déspota, haja vista a recente medida provisória de nº 1.570, na qual busca-se usurpar as prerrogativas constitucionais do Judiciário.

Junte-se a todos os atropelos às instituições democráticas o abuso da falsa função pedagógica do presidente. A "pedagogia pela pedrada" exercida sistematicamente sobre a oposição e a propaganda manipuladora sobre os oprimidos estão produzindo costumes públicos e políticos dos quais não há experiência no pós-guerra, mesmo sob o jugo dos governos militares. O assassinato de caráter perpetrado em massa pelo atual chefe de Estado tem reflexos muito graves sobre a intelectualidade, a mídia e as práticas sociais e culturais do país. Os seus efeitos vão além do malfadado episódio Collor, convertendo rapidamente as aspirações de nos tornarmos uma nação democrática num simulacro globalitário, delirante e deprimente de manipulação de massa. Em outros tempos essas práticas eram simplesmente denominadas fascismo. Hoje, que os tempos mudaram e a polícia política não voltou a bater às nossas portas, podemos talvez traduzir o nosso globalitarismo periférico pela expressão que Samuelson usou em 1980: fascismo de mercado!

Maria da Conceição Tavares, 66, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e deputada federal (PT-RJ).

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