14 de agosto de 1999

Bravo, Malan

Artigos do atual ministro da Fazenda mostram sua trajetória desde 1978

Leda Paulani


Vinte Anos de Política Econômica
João Paulo de Almeida Magalhães e outros (org.)
Contraponto (0/xx/21/259-4957)
286 págs., R$

Para esta coletânea, editada a fim de comemorar as duas décadas de existência do Ierj (Instituto dos Economistas do Rio de Janeiro), os organizadores convidaram os nove economistas que presidiram a instituição ao longo de seus 20 anos de vida. O primeiro foi justamente Pedro Malan, sucedido por Maria da Conceição Tavares. Dadas as posições absolutamente polares que eles defendem hoje e sua inegável expressão na vida política do país, estaria mais que justificado escrever uma resenha enfatizando apenas seus artigos.
Porém, quanto a Tavares, o livro contém tão somente a transcrição de uma rápida entrevista concedida ao boletim do Ierj, em julho de 78. Já da autoria de Malan o livro traz três textos: um de 1980, outro de 1989 e um último de maio de 1998. Como o espaço é exíguo, decidi comentar apenas os 20 anos de Malan.
Julgo que há aí menos arbítrio do que parece. Não bastando ser ele quem é e o país estar na situação em que está, Malan ainda fez questão de frisar na introdução que redigiu para seus artigos: "Quero apenas registrar que não me arrependo de nada do que escrevi". Daria para recusar um convite desses? Portanto que me perdoem os demais autores e que atentem os leitores para outros instigantes textos do livro. Mas vamos a Malan.
O Malan de 1978 é um crítico feroz da ortodoxia econômica. Para ele, "a chamada ciência econômica é um veículo para racionalizar certos tipos de interesses ligados à ideologia dominante", condição essa diante da qual os economistas teriam apenas "uma postura crítica rarefeita". Assim, "as embaçadas lentes dos economistas ortodoxos" teriam feito deles futurólogos de péssima qualidade, que expressam sua visão do problema econômico em termos de uma dicotomia, para ele ilegítima e antidemocrática, entre os objetivos do controle inflacionário, do controle do balanço de pagamentos e do crescimento e os objetivos relacionados aos chamados "problemas sociais a serem eventualmente resolvidos a longo prazo", processo lento "para o qual se deveria pedir -ou impor- paciência".
Para Malan, o que permitia então no país o florescimento dessa "ilusão tecnocrática", que, "reduzindo tudo a uma questão de eficiência", apostava numa "única solução racional", inaceitavelmente atrelada ao "padrão de consumo de economias com renda "per capita" várias vezes superior à brasileira", era a inexistência de um processo político aberto, que "reconhecesse como óbvia a existência de respostas divergentes".
Há mais nesse texto de Malan que mereceria atenção, mas isso basta. Essa pequena síntese de suas idéias em 1978 parece suficiente para mostrar de maneira cabal como o próprio Malan se trairia. A política econômica da qual ele é hoje o condutor primeiro é absolutamente tecnocrática, bate incansavelmente na tecla do "não há outra saída" e não aceita respostas divergentes, já que desqualifica seus opositores sob a pecha de incompetentes, quando não de impatriotas (ou, na melhor das hipóteses, utópicos). Além disso, conseguiu a façanha de mais do que dobrar o nível de desemprego em quatro anos e tem operado, impositivamente, para gáudio das elites e de um modo inimaginável há 20 anos, o atrelamento do país ao padrão de consumo das economias avançadas.
O Malan de 89 não tem maior interesse, até porque o texto é bastante curto. O Malan de 98 talvez não fosse preciso reproduzir. Desfia impassivelmente a já conhecida cantilena das benesses do real, de suas promessas de retomada sustentada do crescimento e de melhoria das condições de vida da população. Algumas observações, porém, merecem destaque.

Defesa das reformas

A primeira delas dá razão ao Malan de 78. Lá, ele dissera que os economistas são péssimos futurólogos. Pois acertou em cheio! Comentando a política cambial do Plano Real (não nos esqueçamos de que o artigo foi escrito em maio de 98), ele afirma: "Temos uma política cambial flexível o suficiente. (...) Portanto não teremos surpresas no câmbio". Janeiro de 1999 que o diga!
A segunda observação diz respeito à questão da desigualdade. Como os ricos "nem são tantos assim, como pode parecer à primeira vista" (à primeira vista? em que país ele vive? certamente não no Brasil, onde o que mais se vê é miséria), as classes médias é que são as culpadas, já que, em detrimento dos mais pobres, são detentoras de privilégios inaceitáveis tanto na previdência quanto na educação (leia-se universidades públicas). Trata-se, como se vê, de uma forma inusitada de defender as reformas pelas quais se bate o atual governo.
Uma última observação diz respeito às razões pelas quais a inflação deve ser mantida sob controle, objetivo este que, segundo ele, "faz parte de um consenso básico em sociedades modernas". Além da razão econômica (eficiência), da razão política (é o que a opinião pública espera) e da razão social (prejudica os mais pobres), Malan arruma ainda uma razão ética: a inflação propicia enormes -e, presume-se, inaceitáveis do ponto de vista moral- transferências patrimoniais. Razão muito nobre, sem dúvida. Mas, tendo em vista o que aconteceu em nosso país recentemente, particularmente por conta do processo de privatização e do câmbio descabidamente sobrevalorizado, o Brasil lá precisa de inflação para operar tais transferências?
Malan é certamente um dos exemplos mais flagrantes da guinada liberal levada a cabo por boa parte da intelectualidade brasileira nos últimos anos. Talvez por isso diga que não se arrepende do que escreveu. Premonitoriamente, ele fecha seu artigo de 1978 transcrevendo as seguintes palavras de Weffort: "Seja o que for que o futuro nos reserva, o certo é que dentro de algum tempo já não haverá mais ninguém à vista a quem possamos responsabilizar; (...) só restará o peso de nossa própria fraqueza e de nossa própria incompetência política". Bravo, Malan!

Sobre a autora

Leda Maria Paulani é professora da Faculdade de Economia e Administração da USP.

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