29 de outubro de 2013

Reivindicando o companheiro Orwell

George Orwell se tornou um espelho no qual qualquer posição política pode olhar e se ver olhando de volta. Mas não se engane – Orwell pertence à Esquerda.

Scott Poole

Jacobin

Vernon Richards Estate / the Guardian

Tradução / Durante a primeira semana de revelações sobre o programa “Prism” da Agência de Segurança Nacional (NSA), George Orwell virou moda.

Ou, mais precisamente, ler (ou pelo menos possuir) 1984 de Orwell virou moda. As vendas do clássico dispararam acima de 7000% no Amazon poucos dias após a liberação dos primeiros relatos sobre a nova e sinistra forma de nossa cultura de vigilância.

A súbita popularidade de Orwell tem um custo para o legado do autor. Ler 1984 e A Revolução dos Bichos fornece apenas uma introdução simplista a um pensador complexo. Além disso, sua escrita e ação no meio de lutas mortíferas dentro da Esquerda tornaram seu legado difícil de entender sem uma análise detalhada de sua vida e obras.

Orwell se tornou um espelho em que todo tipo de posições políticas pode olhar e, sem falhar, se ver olhando de volta. Já passou do tempo de recuperar Orwell como um companheiro na luta por um mundo melhor.

Infelizmente, há mais do que alguns cultistas do Ron Paul, anarquistas de alcance abrangente e hacktivistas libertários que vêem 1984 como um tipo de volume de companhia para A Revolta de Atlas. Mesmo Glenn Beck freqüentemente cita partes selecionadas de Orwell. O falecido Christopher Hitchens deixou as águas ainda mais turvas, usando Orwell como um arquétipo para seu próprio abandono da Esquerda no fim da vida e subsequente apoio à “Guerra ao Terror” de George W. Bush.

A Revolução dos Bichos em si merece atenção especial, uma vez que se tornou um documento importante para os apologistas do capital e conhecido o bastante para que eles possam citá-lo sem lê-lo. Orwell enfrentou dificuldades para publicar o livro – menos por causa de seu conteúdo anti-stalinista, e mais porque as editoras acreditavam que sua mensagem glorificava as intenções e objetivos originais de Outubro de 1917. O poeta profundamente reacionário T.S. Eliot, por exemplo, desgostou intensamente do livro, porque acreditava que A Revolução dos Bichos sugeria que a resposta ao comunismo era “mais comunismo”.

Obscurecendo mais ainda as questões, o conhecimento do público geral do livro vem em grande parte de uma animação de 1954, que como Daniel J. Leab mostra em seu excelente Orwell Subverted, recebeu financiamento da CIA. Feito vários anos após a morte de Orwell, o filme representa uma revisão grave do romance, sugerindo não que a Revolução Russa tivesse dado errado, mas que simplesmente nunca deveria ter ocorrido. As representações positivas de Leon Trotsky (“Bola de Neve” no livro) são suprimidas ou suavizadas. “Velho Major”, o filósofo envelhecido que é uma mistura de Marx e Lenin no romance, é feito para parecer gordo, estúpido e ridículo no filme.

Nos últimos anos de sua vida, o próprio Orwell contribuiu para a confusão sobre sua visão política. Firmemente à Esquerda, ele se associou aos socialistas anticomunistas que se tornaram profundamente desencantados com o curso da política externa soviética. Trabalhando com a Partisan Review, Orwell tornou-se um firme defensor da Oposição de Esquerda anti-stalinista.

Nos últimos meses de sua vida, ele também tomou a fatídica decisão de redigir uma lista de 35 nomes de simpatizantes stalinistas e apologistas liberais burgueses dos “julgamentos” de Stalin. Deve-se notar que Orwell esperava que o governo britânico usasse isso principalmente para propaganda; este não era o tipo de “lista” tão familiar no Comitê de Atividades Antiamericanas que assombra os Estados Unidos. Ainda assim, foi uma decisão indefensável para um moribundo que tinha um arquivo robusto no MI5 detalhando suas atividades e associados “comunistas”.

A prolífica escrita de Orwell nos fornece uma melhor compreensão desses fatos isolados sobre sua biografia. De sua caneta (e do cano de sua arma na Guerra Civil Espanhola), o fascismo raramente teve um inimigo maior, e o socialismo poucos campeões maiores.

Tomemos, por exemplo, o seu Road to Wigan Pier, uma das declarações mais fortes já escritas para a posição socialista. A primeira metade do livro apresenta um retrato profundamente comovente das condições de emprego e da experiência crua da vida, entre os mineiros de carvão no norte da Inglaterra. Ele recria o mundo “daqueles pobres burros de carga subterrâneos, enegrecido até os olhos, com suas gargantas cheias de poeira de carvão, empurrando suas pás para a frente com músculos de aço dos braços e barriga.”

A segunda metade do livro constitui uma defesa vibrante da posição de extrema esquerda. Depois de dar uma das mais completas e elegantes análises de atitudes de classe já escritas em inglês, Orwell diz essencialmente que nenhuma pessoa sã pode deixar de ver o socialismo como a única resposta real a esses problemas; apenas aqueles com a “motivação corrupta” de “se apegar ao sistema social atual” poderiam ficar em oposição a isso.

E, no entanto, Orwell sendo Orwell, boa parte da segunda parte não poupa nenhum soco na sua crítica ao marxismo como expresso na política. Ele é impiedoso em sua crítica de “esnobes bolcheviques”, que são susceptíveis de se casar com ricos e acabar conservadores quando tiverem trinta e cinco anos. Não tem paciência para intelectuais comunistas que falam para a classe trabalhadora apenas na linguagem abstrusa da teoria. Poderíamos passar, diz ele, “com um pouco menos de conversa sobre ‘capitalista’ e ‘proletário’ e um pouco mais sobre os ‘ladrões’ e os ‘roubados’”.

Em geral, Orwell via o socialismo em sua época como falhando em sua tarefa mais básica: ajudar a promover a consciência de classe. Que diferença faz, ele se pergunta em A Caminho de Wigan, quando um burguês se junta ao Partido Comunista Britânico? Não muita, conclui, como por vezes demais o cheiro de diletantismo poderia ser detectado.

O que é necessário, ele acreditava, é um compromisso inabalável com a luta de classes e não o tipo de progressismo vago que muitas vezes prejudica a construção de um movimento de massas do povo. Este ódio às panelinhas esquerdistas e ao jargão de clubes às vezes levou Orwell a uma retórica facilmente levantada hoje por charlatões conservadores. Os vegetarianos o deixavam irritado. O ethos masculino que ele compartilhava com os colegas socialistas Jack London e Ernest Hemingway o cegou às conexões entre a disponibilidade de controle de natalidade e justiça econômica. Seu tom estentóreo sobre tais assuntos surgiu de sua insistência na centralidade da luta de classes. No fim, a luta de classes significava exatamente isso: uma guerra entre os ladrões e os roubados, e não uma subcultura de escolhas políticas peculiares. Os socialistas, ele sugere, são muitas vezes a pior propaganda do socialismo.

Orwell também se prova presciente em sua discussão sobre redefinir categorias marxistas para o novo mundo que assistiu nascer. Se preocupava com o fato de que muita propaganda socialista representava o “trabalhador mítico” como o pedreiro ou mineiro corpulento em seu macacão. Ele sabia que “o trabalhador”, saído direto do Realismo Soviético, seria cada vez mais substituído por um novo tipo de proletariado trabalhando sob uma nova fase do capitalismo.

“E o exército desgraçado de balconistas e lojistas?”, ele pergunta. Sua ideia pressagia nossa consciência atual das possibilidades de construir um movimento que inclua trabalhadores de cubículo e empregados de call center, os “colaboradores” de Walmarts e trabalhadores de redes de fast food. Orwell sabia que se usarmos a linguagem de explorador e explorado, a Esquerda pode defender seus argumentos. Aqueles que enfrentam a natureza viciosa do capitalismo através das longas horas de trabalho de cada dia conhecem a exploração em primeira mão. Eles não são diletantes e, Orwell nos lembra, a revolução pertence a eles.

A luta para criar uma esquerda relevante dependerá da capacidade de falar uma linguagem de luta de classes sem cair no obscurantismo teórico comum aos marxistas na sociedade ocidental de hoje. A trincheira de Orwell em Road to Wigan Pier estaria ainda mais firme se tivesse visto o destino do marxismo nas últimas décadas. Nos Estados Unidos, o “marxista” aparece mais freqüentemente como um elemento nas subculturas acadêmicas da moda do que na ideologia de um movimento de massas.

O primeiro passo para recuperar Orwell é ler Orwell. Road to Wigan Pier e Homage to Catalonia são lugares óbvios para começar. Este último, tratando das suas experiências na guerra civil espanhola lutando com trotskistas, coloca em contexto sua posição veementemente anti-stalinista.

Também vale a pena lembrar que, antes de mais nada, Orwell era um ensaísta inveterado, um dos mais prolíficos resenhadores de livros, filmes, peças de teatro e ideias que o século XX produziu. Ensaios como “Socialistas Podem Ser Felizes?” E até peças aparentemente não relacionadas sobre Charles Dickens, Tolstoi e sobre beber chá estão cheios de análises de classe e críticas ao capitalismo industrial que ele conheceu bem.

O nome de Orwell e 1984 continuam a ter uma ressonância tão poderosa que não é de se surpreender que tantos busquem sua sanção. E, como acontece com todos os pensadores complexos, é possível encontrar o que soa como citações de apoio em sua escrita e experiência de vida para uma série de ideologias.

Usos mercenários de pedaços do trabalho de Orwell se destinam a apropriá-lo para fins reacionários, e não para os objetivos pelos quais ele passou sua vida lutando. Glenn Beck, embora um sem-vergonha, deveria ficar envergonhado. Christopher Hitchens fez um desserviço tentando reivindicá-lo como seu santo padroeiro. George Orwell pertence ao povo.

Sobre o autor

Scott Poole é o autor de "Monsters in America" e do próximo "Vampira". Ele ensina história cultural no College of Charleston.

16 de outubro de 2013

Ameaça fascista na Grécia

O partido fascista Aurora Dourada tem empurrado o partido do Governo da Grécia mais para a direita - e abriu espaço para medidas de austeridade mais profundas.

Katy Fox-Hodess



Tradução / O cada vez mais ousado Aurora Dourada precipitou uma crise política em Atenas, cuja resolução está longe de ser certa. Aurora Dourada, o maior partido fascista na Europa e o terceiro maior partido na Grécia, tem crescido rapidamente durante a crise económica, tanto por usar os imigrantes, minorias étnicas e pessoas queer como bode expiatório, como por oferecer bens essenciais como comida para os cidadãos gregos empobrecidos pelo programa de austeridade do país.

Até este mês, tem operado com o consentimento implícito do governo de coligação liderado pelo Nova Democracia, de centro-direita, apesar das muitas provas de que militantes do partido têm usado violência para aterrorizar aqueles/as que vivem à margem da sociedade grega.

Mas o partido parece ter cruzado uma linha vermelha neste mês. Em meados de setembro, cerca de cinquenta "gorilas" da Aurora Dourada agrediram membros do Partido Comunista (KKE) que colavam cartazes políticos num subúrbio operário de Atenas. Na semana seguinte, Pavlos Fyssas, um cantor de hip-hop anti-fascista, foi assassinado por um membro assumido do Aurora Dourada no bairro operário de Keratsini.

O assassinato de Fyssas, um cidadão grego, que vem na esteira dos espancamentos de membros gregos do KKE, conseguiu o que os espancamentos e assassinatos de imigrantes por parte dos membros da Aurora Dourada não tinham no passado: a indignação pública generalizada e mobilizações de massa contra o partido. Os primeiros protestos foram organizados em menos de 24 horas, culminando numa marcha de 50.000 pessoas em direcção à sede do Aurora Dourada, na semana seguinte. Hoje em dia, o centro de Atenas está coberto de cartazes políticos e graffiti antifascistas.

Por altura do último fim-de-semana, o líder do partido, Nikolaos Michaloliakos, juntamente com outros deputados do Aurora Dourada e os militantes-chave do partido, tinham sido presos e acusados de pertencer a uma organização criminosa. Dependendo dos resultados dos julgamentos, o Aurora Dourada poderá vir finalmente a ser declarado um partido ilegal.

No entanto, se é verdade que a reviravolta no destino político do Aurora Dourada, após uma mobilização em massa impressionante, pode vir a alegrar a esquerda grega, o clima em Atenas na semana passada era de incerteza. A um nível mais imediato, os radicais receiam que a repressão do governo sobre o partido possa mais tarde ser usada como pretexto para reprimir os partidos de esquerda, uma preocupação fundada no facto de a retórica de centro-direita equiparar a violência da ultra-direita fascista com as mobilizações de esquerda.

E a ameaça do fascismo dificilmente é derrotada. Um cartoon político que circula on-line capturou o sentimento geral sobre a esquerda, mostrando o presidente do partido Nova Democracia, Antonis Samaras, arrancando do solo uma pequena planta com a forma do símbolo do Aurora Dourada, enquanto um enorme sistema de raízes em forma de suástica permanece enterrado.

A actual crise económica e política na Grécia tem suas raízes na crise económica mundial de 2008. Tal como a maioria da Europa mediterrânica - em particular Espanha, Portugal e Chipre - a economia da Grécia sofreu um grave choque com a crise global. Isto criou uma abertura para o capital global, e em particular capital europeu, pudesse renegociar condições mais favoráveis de acumulação no sul da Europa ao concordar em socorrer as economias do sul, em troca de um pacote de medidas de profunda e grave reestruturação económica. O abalo político e económico não têm servido tanto para reestruturar o capitalismo no continente, como têm revelado uma verdade que tinha estado coberta por um longo período de prosperidade baseada na dívida: apesar de duas décadas de integração europeia na zona euro, a Europa continua a estar dividida entre um norte rico e um sul subdesenvolvido. Como me disse um amigo grego, como é possível que a Suécia e a Grécia sejam parte de uma mesma união económica e política?

Os três organismos internacionais responsáveis ​​pela negociação do resgate, a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional, são conhecidos colectivamente na Grécia (e por todo o sul da Europa) como a "troika", uma frase que evoca intencionalmente memórias de ditadura. De facto, a troika atua em grande medida como uma ditadura, operando através do governo grego, que se tornou uma espécie de estado fantoche, alienando muita da soberania política e económica do país no memorando que determina as condições do resgate de 110 biliões de euros, e tentando gerir a caos social em que veio por arrasto.

Nos termos do memorando, a Grécia concordou em vender empresas públicas rentáveis ​​e cortar duramente nos gastos sociais para pagar sua dívida e equilibrar o orçamento (uma exigência a que os governos do norte da Europa, incluindo a Alemanha, não se impuseram). Um importante terminal de contentores no Porto de Pireus, por exemplo, foi vendido à companhia de navegação Cosco, detida pelo Estado chinês, sem os regulamentos sociais que têm acompanhado as privatizações de portos noutros países europeus. A sindicalização é agora quase impossível, e os trabalhadores são empregados numa base diária com os salários baixos, poucos benefícios e as condições de saúde e segurança que seriam de outra forma impensáveis no país.

Este processo é muitas vezes descrito pelo termo "austeridade", um termo ideologicamente mistificador destinado a encobrir a realidade grega de 30% de desemprego geral, desemprego de 60-70% por cento entre os jovens, e cortes salariais do sector público à volta de 35-50% - além ao aumento da mortalidade infantil, a insegurança alimentar, trabalho sexual, uso de drogas, as taxas de infecção de VIH / SIDA, crime, e outros sinais de desespero económico e miséria social. Aspectos adicionais da mistificação ideológica comummente empregues no Norte da Europa para justificar a acumulação por expropriação no Sul incluem uma série de preconceitos que retratam os gregos e europeus do sul em geral como preguiçosos, irresponsáveis ​​e incapazes de se auto-governarem.

A vaga inicial de protestos anti-austeritários contínuos, a partir de maio de 2010, seguiu-se à assinatura do primeiro memorando. Seguiu-se uma enorme manifestação de meio milhão de pessoas no centro de Atenas e uma série de manifestações e greves gerais. A segunda vaga começou em 2011, durante a onda mundial de protestos de ocupação que se estenderam desde a Praça Tahrir no Egipto até à Plaza del Sol em Madrid passando pela Oscar Grant Plaza, em Oakland. Manifestantes na Grécia seguiram o exemplo com ocupações massivas de praças públicas, incluindo a Praça Syntagma, no centro de Atenas. Esta vaga durou até 2012, mas, posteriormente, houve uma relativa acalmia no movimento até este verão, despoletando um período de reflexão por parte da esquerda grega sobre como avançar na luta. Mas desde a Primavera, com a frustração de uma tentativa de privatizar a estação de televisão pública grega, o movimento tem vindo a a despertar novamente, precipitado pelo assassinato de Fyssas e pelo crescimento do movimento anti-fascista.

Abundam teorias entre a esquerda grega sobre o tipo e a extensão da ligação entre o Aurora Dourada, a Nova Democracia e a polícia, mas o que é claro é que o partido tinha até este mês conseguido operar com quase total impunidade. As autoridades policiais estão a ser investigadas por supostas ligações com "gorilas" do Aurora Dourada, diz-se que oficiais se juntaram ao partido em números assustadoramente grandes. No entanto, a crítica mais incisiva ao Aurora Dourada, da parte da esquerda, diz respeito às razões por detrás da tolerância do governo ao partido. Falei com militantes de esquerda de uma ampla gama de organizações, na semana passada em Atenas e, embora tenham sido enfatizados diferentes aspetos da situação, há um forte consenso sobre a existência de uma linha única que atravessa a crise económica, a troika, o governo austeritário e os fascistas.

Eles observaram, por exemplo, que ataques contra imigrantes não têm sido apenas prerrogativa dos fascistas, mas têm também sido levados a cabo aberta e legalmente pelo governo da Nova Democracia através de uma ampla campanha de discriminação racial e encarceramento de imigrantes sem documentos, tudo ao serviço de um objetivo declarado de deportações em massa. Estes ataques não só são legalmente sancionados pelo governo grego, como são implicitamente sancionados pelos países do norte da UE, que permitem que o Estado grego ataque imigrantes sem papéis (95% dos quais, pensa-se, entram na Europa através da Grécia) sem levantar qualquer objeção.

Na mesma linha, o governo da Nova Democracia tem realizado políticas profundamente misóginas, homofóbicas e transfóbicas tendo como alvo profissionais do sexo e pessoas VIH / SIDA, incluindo a deportação de imigrantes seropositivos/as, de volta para países onde não poderão receber tratamento adequado, e publicação online de fotos de profissionais do sexo seropositivos/as.

O Aurora Dourada, que tem profundas raízes organizacionais em muitos bairros operários pobres nos arredores de Atenas, tem sido capaz de aproveitar o espaço aberto pelas políticas odiosas adoptadas pelo governo do Nova Democracia. As duas organizações políticas têm-se desenvolvido simbioticamente, com a Nova Democracia a representar a face legal da violência racista e da opressão e a Aurora Dourada representando a face oculta, criminal. Muitos argumentam que a Aurora Dourada tem sido tolerado porque tem sido eficaz na sua organização e na mobilização do país para a direita ao nível das bases, limitando-se a levar a lógica das políticas da Nova Democracia à sua extrema conclusão.

Um segundo argumento relativo à ligação entre o Aurora Dourada e o governo da Nova Democracia enfatiza como o aumento da violência fascista fornece uma espécie de distracção conveniente, protegendo o governo de ter de enfrentar as mobilizações contra suas contínuas e duras políticas de austeridade, que têm resultado em pobreza e miséria. Quando os imigrantes, pessoas queer e esquerdistas estão literalmente a ser espancados e esfaqueado nas ruas, focar-se na luta contra os fascistas torna-se uma questão de sobrevivência. Enquanto a troika tem evitado em grande medida a discussão do caos social gerado pelas suas duras exigências, o assassinato de Fyssas atraiu críticas públicas por funcionários fora da Grécia, que sentem que ter neo-nazis a assassinar esquerdistas impunemente nas ruas de Atenas poderá vir a minar a hegemonia ideológica dos estados do norte e o capital forjado durante a crise. Mesmo continuando a diminuir proteções sociais, a Europa neoliberal deve pelo menos manter um compromisso ostensivo às normas básicas de direitos humanos para legitimar novas medidas de austeridade.

As próximas semanas e meses serão críticos para a esquerda grega, que, apesar da sua energia renovada depois da mobilização contra o Aurora Dourada, permanece dividida por velhas diferenças sobre questões como a viabilidade de uma via parlamentar de socialismo e a compatibilidade do socialismo num país com uma economia de mercado integrado na Europa. Dentro da esquerda parlamentar, a questão mais imediata diz respeito a quando convocar eleições, com alguns argumentando que as eleições antes do final do ano permitirão à esquerda capitalizar da indignação pública dirigida ao Aurora Dourada, enquanto outros argumentam que é necessário mais tempo para granjear mais apoio. Enquanto os esquerdistas de todo o espetro estão unidos na luta contra o fascismo, a questão da estratégia socialista continua a ser vexante.

Em particular, os esquerdistas fora da coligação de esquerda radical Syriza (bem como alguns dos seus próprios membros) têm questionado se será possível reverter a austeridade sob um governo Syriza sem sair da zona euro, dada a dependência económica e política do Estado grego face à troika. Esta questão tornou-se um ponto central de discórdia dentro da esquerda, atraindo críticas de alguns setores da liderança do Syriza. Ao mesmo tempo, os líderes do Syriza têm enfatizado a necessidade de se construir uma base de apoio mais ampla, para além da extrema-esquerda, apelando aos setores da classe média que permanecem ligados ao projecto europeu, a fim de disputar efectivamente o governo de centro-direita nas próximas eleições.

Questões de estratégia socialista à parte, a nível prático há uma necessidade urgente de mobilizar esforços para organizar meios de apoio e mobilização dos trabalhadores urbanos e dos desempregados de modo a neutralizar o sucesso do Aurora Dourada, que criou raízes profundas em alguns dos distritos de Atenas através de, entre outras coisas, programas de distribuição de alimentos "só para gregos". Num país onde a segurança alimentar se tornou uma preocupação real, é fácil entender porque é que essa tática tem sido bem-sucedida. Ao mesmo tempo, mais trabalho precisa de ser feito para tornar explícitas as relações entre a ascensão do fascismo e o programa de austeridade, para que as mobilizações anti-fascistas possam ser aprofundadas e ampliadas, gerando um movimento anti-capitalista revitalizado.

Socialismo ou barbárie é a ordem do dia.

Sobre o autor


14 de outubro de 2013

Uma geração de intelectuais moldada pela crise de 2008 resgata Marx da lata de lixo da história

Para aqueles muito jovens para se lembrar da Guerra Fria, mas velhos o suficiente para serem pegos pela Grande Recessão, o marxismo tem um novo apelo.

Michelle Goldberg

Tablet

(Fotoilustração Revista Tablet; foto original Jens Schott Knudsen/Flickr)

Tradução / Oito anos atrás, Jay McInerney, adepto de um tipo de literatura "glossy chic" dos anos 1980, identificou Benjamin Kunkel, escritor norte-americano, como a voz da nova geração. Escrevendo na primeira página da New York Times Book Review, ele saudou o primeiro romance de Kunkel, "Indecisão", por fazer "todo aquele negócio da crise pós-adolescência, de começo de vida, ser engraçado de novo". Ele não estava sozinho; muitos críticos ficaram impressionados com a evocação de Kunkel da passividade e vazio existencial de um jovem privilegiado. Eles tinham menos certeza do que pensar sobre a conversão do narrador a uma política radical na América do Sul. "Imagino que as sequências sirvam para explicar o socialismo para as pessoas de vinte e poucos anos, pós-irônicas, ambivalentes, esperançosas e generosas em 2005", escreveu Michael Agger na Slate.

No próximo mês de março, Kunkel vai lançar o seu segundo livro, “Utopia or Bust” (Utopia ou Fracasso). Apesar de não ser continuação de “Indecisão”, a obra vai de fato tentar explicar, ou ao menos explorar, o que representa o socialismo hoje, através de uma série de ensaios de pensadores de esquerda contemporâneos, como o crítico literário Fredric Jameson e o geógrafo David Harvey. Depois do sucesso de “Indecisão” – que conquistou um lugar nas listas de Best-sellers, foi traduzido para diversas línguas e tornou-se atraente para Hollywood – Kunkel não se aproveitou do seu estrelato da mesma forma que, digamos, Jay McInerney. Pelo contrário. Depois de cair numa depressão profunda, ele seguiu o exemplo do seu próprio personagem, mudando-se para Buenos Aires, submergindo profundamente na teoria anti-capitalista. Em um rascunho da introdução do seu novo livro, ele escreve “para deceção de amigos que prefeririam ler a minha ficção – bem como do meu agente literário, que preferiria vender – parece que eu virei um intelectual marxista público”.

De um modo estranho, no entanto, Kunkel não fugiu inteiramente do negócio. O seu novo livro surge num momento em que há um interesse renovado em Marx entre jovens autores, ativistas e estudiosos, que têm começado a identificar o capitalismo, frente à crise financeira, como um problema, e não mais como algo inevitável.

Seria simplista demais dizer que o marxismo voltou, porque ele de facto nunca foi embora. Nos Estados Unidos depois da queda do Muro de Berlim, entretanto, estava restrita ao departamento de inglês da universidade, tornando-se objeto de crítica ácida. Entretanto veio a crise económica, o movimento Occupy Wall Street, e o desastre ainda em curso da austeridade na Europa. Na época do Occupy, principalmente, muita gente de todo tipo de esquerda, trabalhando em publicações grandes ou literárias, meio que se encontraram, começaram a conversar, e descobriram quem estava interessado em política de classe”, diz Sarah Leonard, a editora de 25 anos da Dissident o jornal social-democrata fundado quase 60 anos atrás por Irving Howe. “Nós essencialmente achamos uma política antiga que faz sentido hoje”, acrescenta ela.

Nos EUA, é claro, o marxismo mantém se como uma corrente intelectual, muito mais do que movimento de massas. É claro, os millenials [outra forma de se referir à chamada Geração Y] são notoriamente progressistas; uma pesquisa muito debatida de 2011 descobriu que 49% das pessoas com idade entre 18 e 29 anos têm uma visão positiva sobre o socialismo, enquanto apenas 46% têm visão positiva sobre capitalismo. É difícil dizer o que isso significa exatamente – não se pode dizer que os jovens estão fazendo com que “O Capital”, uma das principais obras de Marx, entre rapidamente na lista dos mais vendidos ou estejam construindo células comunistas. Ainda assim, faz décadas que tantos pensadores jovens não se envolviam tanto em imaginar uma ordem social que não seja governada pelos imperativos do mercado.

Os motivos para isso são bastante óbvios. “Agora está tudo desmoronando”, diz Doug Henwood, editor da revista de esquerda Left Business Observer e mentor de diversos novos pensadores marxistas. “Nem mesmo o mais ardoroso defensor pode dizer que as coisas estão indo bem. As premissas básicas da vida dos americanos, sobre mobilidade social e todo esse tipo de coisa, parece tudo uma grande piada de mau gosto agora”, afirmou ele.

Enquanto isso, o fim da Guerra Fria libertou as pessoas – especialmente os que são novos demais para lembrar – para que elas pudessem revisitar as ideias marxistas sem o medo de elas justificarem a existência de regimes repressivos. A União Soviética sempre pairou sobre a vida intelectual dos EUA no século 20, especialmente aqueles setores dominados pelos formados da Universidade Judaica Municipal, como Howe e o seu contraponto intelectual Irving Kristol. Havia aqueles que condenavam, mas se apegavam aos ideais socialistas – posição emblemática da revista Dissent –, e havia aqueles, como Kristol, que viam tais valores como sendo intrinsecamente ligados a um regime tirânico, e se tornavam neoconservadores. Agora que o comunismo é uma força marginal no mundo, essas discussões parecem muito distantes. “Imagino que não tenhamos na nossa cabeça 1989”, diz Leonard. “A nossa crise é de uma natureza diferente. É uma crise capitalista, e temos um arsenal de ferramentas de análise muito útil”.

***

Para servir ao novo pensamento de esquerda, a editora norte-americana radical Verso – que também vai co-publicar o novo livro de Kunkel – começou recentemente a fazer uma série chamada Pocket Communism (Comunismo de Bolso). Pequena e elegante, a coleção foi criada tendo em mente a capacidade de atenção da Geração Y. Entre os livros estão “A hipótese comunista” de Alain Badiou e “A atualidade do comunismo”, de Bruno Bosteel. Eles são vendidos fora das lojas tradicionais – em galerias de arte, por exemplo. Mesmo quando esses neocomunistas não são marxistas ortodoxos – Badiou é meio maoísta – Marx ainda tem um peso muito grande em suas obras. “As pessoas não têm mais medo de voltar aos textos e usar palavras que eram tabu”, diz Sebastian Budgen, editor sénior da Verso. “Há um efeito emancipador em não mais se precisar se justificar para usar Marx.”

Em nenhum lugar isso é mais verdade que na Jacobin, a revista norte-americana socialista fundada por Bhaskar Sunkara, de 24 anos, que vai publicar “Utopia or Bust” com a Verso. Um empreendedor marxista, Sunkara ainda não se tinha formado quando usou o dinheiro do seu empréstimo estudantil para publicar o primeiro número da Jacobin, em 2011. Hoje ele tem cerca de cinco mil assinantes, um número pequeno em perspetiva, mas impressionante para um jornal de esquerda, comparável ao alcance da Dissent. Os seus leitores são desproporcionalmente jovens, de acordo com Sunkara, e em geral novatos no que diz respeito a publicações de esquerda. “Acho que boa parte dos leitores não escolhe a Jacobin ao invés da Dissent ou da Monthly Review”, afirma. “Eles são mais para liberais desiludidos ou jovens que não são politizados”.

De sua parte, a Dissent, editada por Michael Kazin, foi revigorada por pessoal novo, como Leonard. Até recentemente era conhecida pelo seu conflito com a irresponsabilidade de outros radicais. Em 2002, por exemplo, seu antigo co-editor, Michael Walzer, criticou as respostas dos progressistas ao 11 de setembro, em um artigo intitulado “Pode haver uma esquerda decente?”. Lamentando a tendência de intelectuais de esquerda de “viver nos EUA como estrangeiros internos, recusando-se a se identificar com os seus cidadãos, considerando qualquer traço de patriotismo como politicamente incorreto”, ele parecia reviver uma velha briga entre a esquerda anticomunista e a contracultura na década de 1960.

These days, though, with the magazine’s four full-time staffers all in their twenties, it feels far livelier and more contemporary—at times, it’s even cheeky. Consider, for example, “Cockblocked by Redistribution,” a piece in the fall issue by Katie J.M. Baker, about the failure of a well-known pickup artist to score in Denmark. As Baker explains, Daryush Valizadeh, known as Roosh, is the author of a series of priapic travel guides with names like Bang Ukraine and Bang Brazil. (In the latter, he instructs his acolytes that “poor favela chicks are very easy, but quality is a serious problem.”) In Scandinavia, however, poor Roosh found that things were not very easy at all, prompting him to produce an angry denunciation of that country’s women titled Don’t Bang Denmark. Danish women, Roosh lamented, exhibit a maddening lack of desperation, “because the government will take care of her and her cats, whether she is successful at dating or not.”

Baker—until recently a staff writer at the women’s website Jezebel, part of the Gawker network—analyzed Roosh’s predicament in light of Nancy Holmstrom’s 1984 essay “A Marxist Theory of Women’s Nature,” discussing the way material conditions create the vulnerabilities that pickup artists exploit. When the sort of smart, au courant young women who work at Jezebel start casually dropping references to Marxist philosophers, something has shifted in the intellectual environment.

Meanwhile n+1, the journal Kunkel cofounded in 2004, has morphed from a hipster downtown cultural-literary publication feted by The New York Times Magazine to a far more explicitly political one. In the most recent issue, there’s a long essay by Dayna Tortorici arguing for the renewed relevance of the 1970s feminist “Wages for Housework” campaign: “Young people in the West who have spent their formative years in the workforce as freelancers, part-timers, adjuncts, unwaged workers, and interns are beginning to feel … that they’re not compensated for the work that they do. … Under these circumstances, the longstanding critique of the exploitation of mothers, wives, grandmothers is felt with new force, among a much younger and much wider population of women and men, with children and without.”

Naturally, some of those who lived through the first iteration of these arguments—and the subsequent cultural disillusionment with left-wing radicalism—will find all this irritating, if not infuriating. There are, after all, good reasons that Marxist political economy fell out of fashion. And it’s true some of the leftmost communist revivalists are disturbingly blithe about the past; at times one senses a self-satisfied avant-garde delight in making outrageous pronouncements. In The Communist Horizon, part of Verso’s Pocket Communism series, the newly fashionable academic Jodi Dean, a professor of Political Science at Hobart and William Smith Colleges, airily dismisses the “circumscribed imaginary” in which “communism as Stalinism is linked to authoritarianism, prison camps, and the inadmissibility of criticism,” as if such links are a neoliberal fabrication.

In general, though, the young critics who are engaging with Marx are not so glib. Dissent excoriated The Communist Horizon, and before it was even published, Jacobin took on Dean’s talk of the same name. Sunkara addressed Dean’s contemptuous description of liberals: "[S]he suggests we single out those who 'think any evocation of communism should come with qualifications, apologies, condemnations of past excess.'... [W]hat she presents as a good way to identify liberals, is actually a good test of sanity. Here's a general rule: make no argument in New York that you wouldn’t make in Warsaw."

These are not, then, apologists for authoritarianism. Rather, they insist that the terrible regimes of the 20th century do not obviate Marx’s essential insights, and that, with the U.S.S.R. gone, it should be possible to apply those insights without a lot of anti-Stalinist throat-clearing.

After all, if the Soviet example casts a pall on Marxism, it’s hardly an advertisement for unbridled capitalism, either. n+1 cofounder Keith Gessen left the Soviet Union as a child, and it was returning there in 1995 at age 20 that pushed him leftward. “I very much went over there as a kind of young liberal who believed that Russia was transitioning, with a lot of problems, to a liberal capitalist state and that was the right way for it to go,” he says. “What I saw there was that property relations were actually based on violence, that the so-called energies of the Russian people that were being liberated after communism were energies to cheat one another and lie to one another and kill one another.”

Back then, one could at least look to the United States to see capitalism triumphant. That, clearly, is no longer the case. After the financial crisis, “you didn’t need to be Karl Marx to see that people were getting kicked out of their homes,” says Gessen. And privileged young people—particularly the kind of who are inclined to read and write essays about political theory—haven’t just been spectators to immiseration. Graduating with student debt loads that make them feel like indentured servants, they’ve had a far harder time than their predecessors finding decent jobs in academia, publishing, or even that old standby law and are thus denied the bourgeois emollients that have helped past generations of college radicals reconcile themselves to the status quo.

If there were a Republican president, they might see hope in electing a Democrat. But Barack Obama already won, and it didn’t help. “If you win something and you are disappointed with the results, in a way that’s more politicizing than just losing and losing and losing over again,” says Sunkara.

So, they’re hungry for a theory that offers a thoroughgoing critique of the system, not just a way to ameliorate its excesses. “[F]or at least a generation now, not only the broad public but many radical themselves have felt uncertain that the left possessed a basic analysis of contemporary capitalism, let alone a program for its replacement,” Kunkel writes in the introduction to Utopia or Bust. Reaching back into the canon, he and others have found, at least, the former.

As for the latter? In the absence of a clear programmatic goal, never mind a party or organization, the new Marxism has a certain weightlessness. No one seems to have even a wisp of an answer to the perennial question: What is to be done? That very openness, though, gives new energy to the work of young thinkers and writers who feel themselves on yet another hinge of history. For intellectuals, this has always been a consolation of crisis: It frees one from the sort of existential lassitude Kunkel described in Indecision, making ideas feel urgent and important.

Kunkel himself is trying to formulate a vision of what might come next in a book he plans to publish after Utopia or Bust. “It’s meant to be a sketch—not a blueprint—of a post-capitalist future,” he told me by Skype from his apartment in Buenos Aires. “What it tries to do is to describe capitalism as something that, as it grew, added one feature after another. And therefore it’s easier to imagine disassembling. If we can picture how it was put together, it’s easier for us to imagine how it might be taken apart.”

This is a significantly more ambitious goal than that of writing another well-received novel. It might seem grandiose, but it also suggests a cultural optimism that’s otherwise in short supply these days. “It was easy to feel in the nineties that everyone knew what was going to happen,” says Kunkel. “Many people thought it already has happened, and now we just wait for McDonalds franchises and liberalized capital markets to spread across the globe.” Now, looking at the Marxist resurgence among young people, he says, “It’s very exciting to me. In a strange way, it also makes me want to live a long time, knock on wood, because I’d like to see what’s going to happen.”

Michelle Goldberg é uma escritora colaboradora sênior do The Nation. Ela é autora, mais recentemente, de The Goddess Pose: The Audacious Life of Indra Devi, the Woman Who Helped Bring Yoga to the West. Seu feed do Twitter é @michelleinbklyn.

10 de outubro de 2013

Além das greves na indústria de Fast Food

Por que a esquerda não deve desqualificar greves contra baixos salários.

Trish Kahle

Créditos: Steve Rhodes/Flickr.

Há pouco tempo, num dia frio e chuvoso de março, enquanto juntava carros de compras no parque de estacionamento da Whole Foods de Chicago, onde trabalho, um dos meus patrões, parado ao pé da porta, afirmou sem qualquer cerimónia: “Este tempo é mesmo chato”. Eu balancei a cabeça, laconicamente. “Mas o que é que se pode fazer?”, continuou rindo, “Uma greve?”.

Fazia sentido que ele considerasse absurda a ideia de entrarmos em greve – as greves nunca atingiram um nível de registo tão baixo, sendo praticamente inexistentes em estabelecimentos comerciais como o meu; e quase nenhum dos meus colegas alguma vez pertenceu a um sindicato. Porém, um mês depois, entramos em greve. Dez trabalhadores da Whole Foods abandonaram o seu posto de trabalho em protesto contra uma política de atendimento draconiana e contra salários de pobreza, juntando-se a 200 trabalhadores da restauração e do comércio de Chicago e a milhares em todo o país.

Sujeitos a baixos salários, os trabalhadores da restauração e do comércio assumiram, durante este Verão, um protagonismo no seio do movimento sindical norte-americano. A Campanha pelos 15 (FF15 – Fight For15) tornou-se pública em novembro do ano passado, tendo eclodido ao longo da primavera deste ano, quando trabalhadores abandonaram os seus empregos em Nova Iorque e depois em Chicago, St. Louis, Milwaukee, Detroit e Seatle. Sete cidades organizaram uma segunda semana de greves de um dia em finais do mês de julho. Então, a 29 de agosto, cerca de 62 cidades e milhares de trabalhadores uniram-se em torno de duas principais reivindicações: salário mínimo de 15 dólares à hora e o direito à organização sindical sem quaisquer represálias.

Somos parte de uma geração de trabalhadores à descoberta das nossas armas mais poderosas: o sindicato e a greve. Em plena era da austeridade, levantámo-nos. Fizemo-lo com o apoio de um sindicato que, no passado, foi alvo de muitos ataques (certeiros) à esquerda pela sua colaboração próxima com o capital. Apesar da sua história recente ter ficado marcada pela fuga ao confronto, a União Internacional dos Empregados dos Serviços (SEIU) ajudou a impulsionar uma eventual onda de militância entre os trabalhadores precários do século XXI – uma onda que, caso continue a expandir-se, poderá ultrapassar as expectativas de qualquer um.

***

Muitos de nós nunca pensaram ficar presos a um trabalho mal pago. Ao longo da minha vida, disseram-me que, se fosse para a faculdade e obtivesse uma licenciatura, viria a ter um melhor nível de vida do que até agora havia tido. Fui para a faculdade com uma bolsa, tendo pago os meus custos de vida através de trabalho em quintas do nordeste californiano. Acabei a licenciatura exatamente no período de começo da recessão, sem quaisquer perspetivas de um salário minimamente decente ou de contactos de empresas.

Após a procura de trabalho na região, consegui um emprego enquanto técnico de veterinária. Apesar de, aparentemente, constituir um trabalho “qualificado”, recebi apenas 8,5 dólares à hora e 25 dólares por semana. Fui despedido menos de seis meses depois. Durante mais de um ano, o único emprego que encontrei foi um temporário, como paisagista, com um salário de 10 dólares à hora, sem horas garantidas, sem equipamento de segurança e com habituais roubos no salário.

Candidatei-me a toda a empresa de comércio e de restauração na região, bem como aos correios e à UPS, onde nem me chamaram para trabalho temporário nas férias. Estava desesperado – e não era o único a estar. Com a inauguração da sua nova loja em Greensboro (Carolina do Norte), a Whole Foods anunciou 100 vagas de empregos disponíveis. Mais de 3000 pessoas submeteram candidaturas – um número constantemente evocado pela administração ao longo da formação. A mensagem era clara: devíamo-nos considerar sortudos por ter emprego.

Os dois anos após a conclusão da licenciatura foram um autêntico murro no estômago. Tornou-se cada vez mais evidente a impossibilidade de vir a arranjar um bom emprego. Não houve gestor responsável pelo recrutamento que não dissesse que era sobrequalificado, uma vez que era licenciado, ou subqualificado, uma vez que tinha apenas uma graduação. Quando acabei a licenciatura, considerei tornar-me carteiro. Ao invés, regressei à universidade e ingressei no doutoramento. Claro que os empregos na academia estão a desaparecer, à semelhança dos empregos na função pública. Mas, ao menos, escrever uma dissertação dar-me-ia algum tempo.

No entanto, mesmo após a inscrição num programa de graduação de uma das mais prestigiadas universidades, fui obrigado a safar-me. Hoje, no meu segundo ano, trabalho na Whole Foods, em mais dois empregos enquanto assistente de investigação e faço uns biscates como trabalhador de mudanças do departamento de ciências sociais. Por mais horas que trabalhe, emprego estável e salários minimamente decentes parecem estar fora do meu alcance.

Per si, a minha situação poderá ser descrita enquanto uma infortuna causalidade. Mas a minha história é comum entre a juventude norte-americana. Alguns designam a minha geração de «mileurista»[1], mas considero que «abandonada» seria um termo mais exato: a mais bem qualificada geração da história global, uma geração sobrecarregada com uma devastadora dívida educativa, com pouco ou nenhum acesso a um salário e emprego dignos e com poucas perspetivas de algo melhor no futuro.

E, como é óbvio, não se trata apenas de pessoas com vintes ou trinta e tais sem filhos, empregados em trabalhos como o meu. Muitos dos meus colegas têm filhos ou pessoas sob sua dependência. Se sobreviver com salários baixos já é extremamente difícil para pessoas sem filhos, é praticamente impossível para os meus colegas que são pais, em particular mães solteiras – muitas das quais confrontadas com cortes em programas sociais, como os das senhas de alimentação, Medicaid [2], segurança social e na educação.

Alguns dos meus camaradas sindicais trabalham na restauração e no comércio desde que sou vivo. Um trabalhador da McDonald´s, membro do sindicato, trabalha na empresa há 27 anos. Após uma geração a trabalhar, ele recebe menos do que 9 dólares à hora. Ele nunca se poderá reformar.

***

Salários de pobreza, assédio sexual comum, racismo no local de trabalho e o total desconhecimento de direitos ou ausência de segurança no trabalho fizeram com que valesse a pena correr o risco da organização sindical. Condições de trabalho atrozes e poucas perspetivas de saída da indústria ajudam a explicar a razão pela qual o FF15 cresceu tão rapidamente. Há, no entanto, uma terceira causa importante: o regresso da luta à imaginação popular.

O período de dezembro de 2010 a novembro de 2011 foi repleto de focos de resistência por parte dos «abandonados»: pelo mundo fora ocorreram protestos estudantis contra o aumento de propinas no Reino Unido, revoluções na Tunísia e no Egito; por cá, a reação contra o governador Scott Walker no Wisconsin e o movimento Occupy pouco tempo depois. Milhares de pessoas, na maioria jovens, erguiam-se contra a desigualdade, com sinais de um alastramento gradual da radicalização entre a população norte-americana, em particular nas suas camadas jovens. Contudo, a indignação contra a desigualdade económico-social ainda não havia tido expressão nos locais de trabalho.

Em setembro de 2012, o sindicato dos professores de Chicago deu um exemplo relevante. Os trabalhadores de Chicago pela FF15, que seis meses mais tarde abandonariam às centenas os seus postos de trabalho, estavam atentos aos professores. Vimo-los reivindicar não só melhores salários mas igualmente melhores condições de trabalho. Vimo-los confrontar o perverso racismo de Chicago, incorporado no sistema de apartheid educativo. E vimo-los fazer tudo isso por si mesmos: pela organização nos seus locais de trabalho, pelo debate democrático em torno dos ditames do seu contrato e das táticas grevistas. Vimos o poder de solidariedade nos pais que recusavam mandar os seus filhos atravessar os piquetes de greve dos professores. À medida que o centro da cidade, no primeiro dia de greve, era invadido por professores, vimos que o faziam em nome de todos os trabalhadores. Meses mais tarde, quando o Sindicato dos Professores de Chicago (CTU) foi mencionado numa das nossas reuniões organizativas, os trabalhadores presentes levantaram-se em aplausos.

Após a greve do CTU, as pessoas estavam prontas a organizar-se. Mas, principalmente no período inicial da campanha, não nos podíamos organizar sozinhos. Para grande parte de nós, a ideia de optar pela ação coletiva era aterrorizadora. Não tínhamos uma grande tradição de militância sindical no nosso local de trabalho ou entre as nossas famílias na qual nos basear.

E, como é óbvio, existia a real possibilidade de sermos todos despedidos, à semelhança de milhares de trabalhadores norte-americanos que todos os anos ensaiam a organização de sindicatos. Os sindicatos e seus observadores tinham consciência da potencialidade da nossa indústria em termos de novos participantes. Mas, mesmo perante o declínio da sindicalização nas últimas décadas – correspondendo atualmente ao nível mais baixo dos últimos 100 anos – as organizações sindicais revelaram-se incapazes de organizar iniciativas de sindicalização direcionadas à restauração e ao comércio a uma escala nacional.

O SEIU indicou o caminho. Em Chicago, a FF15 foi apoiada pelas secções locais da SEIU e por outros grupos comunitários defensores dos direitos dos trabalhadores. Ao invés de se focar numa única loja ou numa cadeia particular, a FF15 adotou uma posição mais metropolitana, organizando todos os trabalhadores da restauração e do comércio num só sindicato. Caso a campanha tivesse sido desenvolvida loja por loja, ter-se-ia permitido aos patrões isolarem-nos.

A organização metropolitana produziu resultados tangíveis. Depois da greve de dia 24 de abril, os organizadores da campanha em Chicago perguntaram aos trabalhadores se estariam interessados em entrar num autocarro e passar 5 horas em viagem até St. Louis ou Milwaukee, com o objetivo de prestar solidariedade aos trabalhadores, com greve marcada para a semana seguinte. As mãos ergueram-se. Algumas pessoas lamentaram ter turnos marcados para aquele dia. Na frente da sala, um trabalhador afroamericano de meia-idade, empregado na McDonald´s, levantou-se e afirmou: “Vamos entrar de novo em greve. Assim, podemos todos ir”.

Na reunião seguinte, uma mulher levantou-se e relatou como o seu patrão a havia sujeitado a insultos xenófobos, ameaçando despedi-la por ter faltado ao trabalho durante a sua hospitalização. Um dos organizadores perguntou se havia algum interessado em participar num comité que a acompanhasse ao trabalho, de modo a garantir que o seu patrão não a despedisse. “Apenas necessitamos de um par de pessoas”, acrescentou. Porém, quase quinze mãos surgiram no ar. Toda a gente queria juntar-se à sua camarada sindical.

Na minha loja, quando enfrentei uma ação disciplinar por ter violado a política de atendimento contra o qual nos estávamos a organizar, exigi representação sindical na reunião disciplinar, encontrando-se os meus colegas preparados a agir caso me tentassem despedir. A administração recuou e a reunião nunca chegou a ter lugar. Quando o trabalhador da Whole Foods de uma outra loja foi suspenso após ter feito greve (devido a um incidente que ocorreu duas semanas antes da greve sem qualquer ação disciplinar à altura), começamos a organizar-nos em defesa do seu emprego, tendo ela sido reintegrada e o seu salário restituído.

***

O ligeiro sabor das vitórias conseguidas através da luta transformou o modo como as pessoas se encaram a si próprias e ao seu poder no trabalho. Isto alterou as nossas relações com os colegas e fortaleceu a crença de que muito mais é possível. No entanto, alguns ativistas sindicais e de esquerda demonstram preocupações crescentes com o potencial dos movimentos e as limitações da sua estratégia – em particular, talvez, em relação à história da SEIU, feita da assinatura de contratos capitulares, de acordos com o patronato que diminuem os empregos disponíveis e, mais recentemente, nos conflitos em torno da questão da saúde na Califórnia. Outros estão preocupados com o facto dos trabalhadores não deterem o controlo da situação. Outros ainda expressam alguma apreensão relativamente ao facto de a FF15 constituir mais uma campanha de relações públicas do que uma verdadeira dinâmica organizativa.

O comprometimento e envolvimento da SEIU nesta campanha revelaram-se indispensáveis em termos dos recursos organizacionais oferecidos, da proteção legal e dos serviços aos quais não teríamos acesso de outra forma, e da relação direta com o movimento sindical mais lato e com os grupos comunitários. Por mais que o SEIU tenha cometido erros no passado – bem reais e que devem ser considerados – ele merece algum crédito por ter conduzido campanhas ousadas. Isto, enquanto muitos outros sindicatos estão em retirada ou a fingir de mortos perante leis de trabalho e outro tipo de legislação e campanha antissindicais.

A direção do SEIU está a apelar ao contínuo e escalado recurso a greves, ocupações e ação direta enquanto meios de resolução dos problemas dos trabalhadores. Eles encorajam os trabalhadores a organizarem-se nos locais de trabalhos. Eles confrontam as questões do racismo e do assédio sexual. Tal representa, sem sombra de dúvidas, algo de positivo, capaz de ajudar na revitalização e transformação do movimento dos trabalhadores.

Existe, certamente, um aspeto do movimento mais diretamente voltado para as relações públicas. No entanto, a secundarização de uma campanha com base neste momento é demasiado cínica. A agressiva campanha mediática desenvolvida pelo sindicato levou a luta a locais onde os organizadores nunca haviam estado, inclusivamente ao Sul e a áreas rurais. Ela tornou a nossa luta, e muitas outras lutas em todo o país, bem conhecidas entre o público mais mainstream. A «campanha de relações públicas» não funciona de forma isolada, mas ligada a um projeto real de construção do movimento.

Estaremos perante uma campanha gerida pelos próprios trabalhadores, os quais a conceberam e a conduziram por si sós? Ainda não. Mas é graças à participação neste movimento que, pela primeira vez na vida, os trabalhadores estão a tornar-se dirigentes sindicais.

No contexto de uma crise económica que dura há cinco anos, o SEIU abriu um espaço. Este poderá ter potencialidades bem para lá do imaginado pelos organizadores e pelos próprios trabalhadores. A campanha pode ir para lá da contenção ou do modelo com que o sindicato a iniciou. A FF15 é um movimento social sindical ainda em embrião, contendo em si o potencial de clarificar as questões sobre luta de classes levantadas pelo Occupy. Poderá voltar a ligar as lutas nos locais de trabalho às conduzidas nas comunidades. Poderá impulsionar um maior poder dos trabalhadores nas empresas, mas igualmente revindicar uma maior proteção de sindicatos e trabalhadores por parte das instituições de governo.

Os mais radicais estão numa posição que lhes permite construir este movimento através da recriação daquela que é tradição do sindicalismo revolucionário. Podemos, e já o fizemos, desempenhar um papel importante na formação desta campanha a partir da base – em Chicago, por exemplo, ajudámos a iniciar uma convenção de mulheres e concebemos e realizámos cursos de trabalhadores em torno da organização e da defesa face à retaliação dos patrões.

A Esquerda necessita de ir para lá da mera conceptualização de sindicatos como o SEIU como monólitos incapazes de mudança. Mudá-los é difícil, mas não impossível. A raiva contra as traições e a burocracia de um sindicalismo mais empresarial não nos deve levar a encarar os sindicatos como organizações completamente e inevitavelmente divorciadas dos seus membros. Ao invés, deverá tornar evidente a necessidade de organizar os novos trabalhadores e reconstruir os sindicatos desde baixo.

***

Não obstante a atenção que ganhou, este movimento ainda se encontra na sua infância. Deve ser construído com base em fortes redes sociais no trabalho e nas comunidades. Quanto mais revolucionários envolvidos no projeto, mais forte ele será. Este verão entrámos em greve por medidas bastante concretas; mas também em defesa de dignidade, respeito e poder. O nosso movimento tem de se constituir de forma concreta, exigindo o tangível e preparando o terreno para uma nova geração de militantes sindicais. Porque a militância funciona. Os meus patrões não me assustam mais caso resolva entrar em greve de novo. Após a greve consegui um aumento – e mais de uma dúzia de colegas a perguntarem-me como aderir ao sindicato.

Sobre o autor

Trish Kahle é um estudante de graduação em história na Universidade de Chicago e membro do Comitê Organizador dos Trabalhadores de Chicago.

9 de outubro de 2013

Um marxista na corte de Keynes

Maurice Dobb era um dos alunos favoritos de John Maynard Keynes. Ele também era um marxista comprometido.

Tim Shenk


Ilustração de Kotryna Zukauskaite

Nenhum economista - talvez nenhum humano - jamais foi melhor em escárnio do que John Maynard Keynes. Ele era um debatedor magistral quando queria ser. Mas, como o próprio descendente da elite britânica que era, Keynes preferia rir de seus inimigos. Em 1925, simpatizantes da União Soviética foram brindados com uma exibição de classe mundial desse desdém. Keynes acabara de voltar de sua primeira viagem à URSS e estava pronto para se tornar polêmico.

"Como posso aceitar uma doutrina", perguntou ele, “que estabelece como sua bíblia, acima e além da crítica, um livro de economia obsoleto que sei ser não apenas cientificamente errôneo, mas sem interesse ou aplicação ao mundo moderno? Como adotar um credo que, preferindo a lama ao peixe, exalta o proletariado grosseiro acima da burguesia e da intelectualidade que, com quaisquer falhas, são a qualidade de vida e seguramente carregam as sementes de todo progresso humano? Mesmo que precisemos de uma religião, como podemos encontrá-la no lixo turvo das livrarias vermelhas?” “É difícil”, concluiu ele, “para um filho educado, decente e inteligente da Europa Ocidental encontrar seus ideais aqui, a menos que primeiro tenha sofrido algum processo de conversão estranho e horrível que mudou todos os seus valores”.

Keynes nunca levou o marxismo a sério e, na maioria das vezes, nunca o faria. Mas, apesar da retórica, ele podia tratar os marxistas individuais com respeito. Em 1925, havia um marxista, em particular, que ele tinha em mente quando colocou seus pensamentos sobre a URSS – uma pessoa para quem ele estava piscando quando estremeceu com as conversões horríveis, uma pessoa que teria visto o golpe como o último movimento em um argumento de longa duração.

Maurice Dobb era um dos alunos favoritos de Keynes. Ele também era marxista e, depois de 1922, membro do Partido Comunista da Grã-Bretanha (CPGB). Hoje, fora de alguns pequenos círculos de acadêmicos radicais, Dobb está quase totalmente esquecido. Mas em sua vida, até seus críticos reconheceram que ele era um dos principais economistas marxistas do mundo. De seu posto avançado em Cambridge, onde orientou alunos que vão de Eric Hobsbawm a Amartya Sen, Dobb falou com igual confiança sobre a história do capitalismo, a prática do socialismo e o futuro do comunismo. Por toda parte, ele exibiu uma criatividade e destreza intelectual que provaram que o marxismo era uma tradição vital e viva. Como projeto paralelo, ele fundou essencialmente a tradição da rigorosa história marxista no mundo de língua inglesa com Studies in the Development of Capitalism, um relato abrangente que traçou a carreira do capitalismo inglês desde a Idade Média até 1946, data de publicação do livro. Se alguém poderia ter forjado uma união entre Keynes e Marx, por todos os direitos deveria ter sido Dobb. E houve momentos — especialmente na década de 1930, quando a esquerda britânica se viu envolvida em uma guerra civil que opunha os defensores de Marx e Keynes uns contra os outros — que pareciam exigir que ele presidisse a uma síntese.

No entanto, Dobb assistiu em grande parte à margem enquanto outros lutavam nessa batalha. Ele não chegou a uma posição estabelecida em Keynes até depois da Segunda Guerra Mundial, e mesmo assim relutava em dar a conhecer seus pontos de vista. Dobb não era do tipo que ficava calado. Ao longo de uma carreira que durou mais de meio século, ele escreveu doze livros acadêmicos, mais que o dobro de panfletos destinados ao público em geral e centenas de artigos para publicações que vão do Economic Journal ao Daily Worker. Em praticamente todos os outros assuntos, era quase impossível impedi-lo de se expressar. O que havia de tão especial em Keynes?

Parece uma pergunta simples. Mas respondê-la requer mais do que desvendar o mistério do relacionamento complicado que uniu esses dois homens. Uma explicação completa abre uma história muito mais ampla, embora em grande parte desconhecida - uma história cujas ramificações ainda vivemos hoje.

*

Cambridge em 1919 era um lar improvável para um aspirante a revolucionário, mas não totalmente inóspito. Depois de passar a infância saltando pelas camadas mais baixas da classe alta da Grã-Bretanha, Dobb chegou à universidade radicalizado pela Primeira Guerra Mundial, paralisado pela onda revolucionária que varre a Europa e ansioso para fazer sua parte para salvar o mundo. Ele se juntou à Sociedade Socialista Universitária e ajudou a formar uma camarilha quase comunista apelidada de Spillikins. Seu quarto era o ponto de encontro favorito dos radicais do campus, que sabiam que a educação burguesa de seu anfitrião garantia um fluxo constante de chá e éclairs para seus convidados. (Ele até ensinou um camarada a amarrar uma gravata borboleta.) No entanto, Dobb estava longe de ser o socialista de torre de marfim que essa imagem sugere. Ele também foi um ativista dedicado que ajudou a coordenar comícios para sindicalistas em greve e trabalhadores organizados na região economicamente deprimida fora de Birmingham, conhecida como Black Country.

Mesmo quando adolescente, Dobb estava comprometido em unir ativismo político com engajamento intelectual. Embora relativamente poucos dos textos canônicos do marxismo ainda estivessem disponíveis em inglês, ele devorava tudo o que podia. Ele decidiu cedo que queria ser economista. Os filósofos haviam interpretado o mundo, mas Dobb acreditava que no século XX seriam os economistas que o mudariam. Cambridge era, na época, indiscutivelmente o principal centro mundial para o estudo de economia, e Dobb rapidamente se destacou como um dos alunos mais talentosos de seu ano. A atmosfera enclausurada da universidade acabou sendo um presente para Dobb: para aqueles dentro de seus muros, as lutas revolucionárias trovejando pela Europa eram apenas estrondos distantes, e o marxismo de um estudante poderia ser ridicularizado como outra deliciosa excentricidade de Cambridge.

Em 1920, Keynes tirou Dobb da obscuridade da graduação e pediu-lhe para se juntar ao Political Economy Club, uma sociedade reservada apenas para convidados, reservada aos melhores aspirantes a economistas de Cambridge (conforme julgado por Keynes). Reuniões eram realizadas semanalmente nos quartos de Keynes em meio a pinturas que ele havia adquirido de um de seus amantes de jovens seminus colhendo uvas e dançando. Uma pessoa – às vezes um aluno, às vezes um estranho – lia um jornal, depois o resto do grupo comentava. Quando chegou a vez de Dobb se apresentar, ele fez uma defesa fervorosa da economia de Marx. Keynes o destruiu na discussão subsequente, mas admirou a audácia do jovem. Alguns anos depois, depois que Dobb terminou seu doutorado na London School of Economics, Keynes ajudou a garantir-lhe um cargo em Cambridge. Quando Keynes viajou para Moscou, Dobb foi como seu companheiro. Décadas depois, Dobb se lembraria com carinho que mesmo a cautela com o socialismo e a ignorância da URSS não poderiam impedir Keynes de dar sermões aos funcionários soviéticos sobre política monetária.

Mas Dobb nunca se sentiu inteiramente confortável em Cambridge. Em uma carta a um colega do CPGB, ele resmungou sobre os dias passados “ensinando exploradores de embriões como explorar os trabalhadores da maneira mais humana e atualizada”. Keynes havia declarado “o fim do laissez-faire” em 1926, mas Dobb reclamou que sempre que colocava a questão da classe, Keynes “simplesmente o entendia mal, ou então diria que ele está introduzindo considerações 'sentimentais' que não lhe diziam respeito e que não lhe pareciam importantes.” O que Keynes considerava "sentimental", Dobb considerava essencial para qualquer compreensão da teoria econômica — ou do mundo, aliás.

Em breve, nem mesmo Keynes poderia ignorar o conflito de classes. Na década de 1920, Keynes insistiu que todas as principais questões da economia haviam sido respondidas, a maioria delas por seu professor Alfred Marshall. A Grande Depressão acabou com tudo isso, lançando Keynes no que ele chamou de “luta para escapar” de suas crenças anteriores. O resultado dessa luta apareceu em 1936: A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, o tratado mais significativo em economia desde A Riqueza das Nações.

Grande parte de A Teoria Geral foi discutida pela primeira vez em discussões com uma pequena coleção de jovens economistas de Cambridge. Dobb não estava entre eles. Ele ainda fazia parte do círculo íntimo alguns anos antes, quando compôs uma resenha curta, mas ponderada, do predecessor de A Teoria Geral, o Treatise on Money, de dois volumes, de Keynes, que Dobb julgou um “marco”. Mas à medida que a década de 1930 avançava, ele se afastou do círculo íntimo de Keynes, afastando-se dos debates que giravam em torno da Teoria Geral. Em parte, sua exclusão voluntária foi uma questão de política acadêmica. O repúdio vocal de Keynes a Marshall havia dividido o departamento de economia de Cambridge. A disputa foi amarga, muitas vezes pessoal, e alguns dos aliados mais próximos de Dobb estavam do lado oposto.

A essa altura, Dobb estava gastando menos tempo em seu trabalho acadêmico. Em 1932, os superiores do CPGB iniciaram uma campanha destinada a punir Dobb por violações percebidas da linha do partido. Foi uma decisão estranha, pois de quase todas as perspectivas Dobb parecia um comunista modelo. Ele passou incontáveis ​​horas trabalhando para organizações do partido, cultivando jovens comunistas como professor em escolas de verão, servindo como “presidente da faculdade de economia” do instituto educacional do partido e até ajudando a iniciar uma empresa cinematográfica do CPGB. Qualquer que fosse o fórum, ele ofereceu defesas firmes da União Soviética em geral e de Stalin em particular. Mas, às vezes, esses fóruns incluíam jornais voltados para o que os linha-dura consideravam públicos burgueses – um pecado que, quando combinado com seu trabalho acadêmico diário, foi suficiente para colocar uma parte considerável da hierarquia do CPGB contra ele. Artigos na imprensa do partido condenando seu trabalho proliferaram sob a manchete “As distorções do marxismo de Maurice Dobb”. Esses castigos públicos foram acompanhados de uma acusação profundamente pessoal de seus camaradas no capítulo de Cambridge do CPGB. Um Dobb abalado se defendeu na frente de seus acusadores em Cambridge, mas quando a reunião terminou, ele correu para o banheiro para vomitar.

Outra pessoa poderia ter deixado o partido depois de receber tal tratamento. Muitos, de fato, saíram exatamente por esse motivo. Mas Dobb, não. Ele ainda acreditava que apenas os comunistas uniam “o tipo de organização, combinando discussão com disciplina e uma tradição de teoria política com pensamento realista diante de situações de mudança, que oferecia... a possibilidade prática de tirar a sociedade do caos contemporâneo”. Dobb preenchia sua agenda com trabalho partidário que lhe deixava pouco tempo para refletir sobre o que o CPGB havia feito com ele. Ele dava palestras constantemente, trovejando contra a “escravidão permanente, que parece a resposta do Capital a qualquer tentativa séria de melhorar a posição e o status da massa da população nesta era monopolista”. Este era o ativismo que todos no CPGB podiam aprovar.

Olhando para trás em 1965, Dobb diria que na década de 1930 ele se dedicou principalmente à “atividade política (principalmente em bases locais e regionais) e à escrita polêmica” em vez de erudição. Ele atribuiu a mudança ao seu reconhecimento dos perigos representados pelo fascismo, o que era parcialmente verdade. Esse relato, no entanto, apagou a experiência que catalisou sua reviravolta – uma experiência que, mesmo décadas depois, Dobb resistiu a discutir. Depois de sua dolorosa lembrança da importância de demonstrar seu compromisso com a causa, e com tantos outros deveres tirando sua atenção, foi fácil deixar o domínio da Teoria Geral cair de lado.

*

Dobb também tinha um poderoso argumento intelectual para manter distância de Keynes. Nos primeiros dias da depressão, antes do ataque do CPGB, Dobb previu que os economistas logo seriam forçados a escolher entre dois caminhos. Eles poderiam aderir às convenções atuais da disciplina, produzindo estudos estreitos preocupados com o comportamento dos preços nos mercados. Ou poderiam recuperar uma tradição perdida e retornar ao estudo das forças sociais mais profundas que haviam ocupado seus maiores predecessores: Smith, Ricardo e até Marx. Essa era a tradição da economia política, o estudo de “problemas macroscópicos da sociedade” em vez de “fenômenos microscópicos” de troca. Aos olhos de Dobb, o peito de Keynes palpitando sobre uma grande fuga da ortodoxia era uma mistura de melodrama e marketing. O trabalho verdadeiramente inovador estava à frente - e ele poderia ser o único a fazê-lo.

Political Economy and Capitalism foi a tentativa de Dobb de cumprir essa promessa. Desde o momento de sua publicação em 1937, ficou óbvio que o livro era uma das mais brilhantes contribuições à teoria econômica marxista desde O Capital, e sem dúvida a maior de um autor britânico. Abrangia uma gama intimidadoramente vasta de assuntos: teoria do valor, os legados da economia política clássica, as origens das crises econômicas, o caráter do imperialismo e as leis que regem uma economia socialista, para citar alguns. A análise do imperialismo, especialmente, mostra Dobb no seu melhor, amarrando a história afiada à economia rigorosa e usando a síntese resultante para abordar um problema de enorme relevância para o seu momento - ou seja, o fascismo.

No entanto, Dobb concluiu quase imediatamente que, quaisquer que fossem seus sucessos parciais, o livro como um todo havia fracassado. Ele o revisou substancialmente para uma edição de 1940, mas nem isso o satisfez. Em 1949, ele brincou sobre reescrever o livro, chamando-o de uma obra que “há vários anos detesto demais para ousar abrir”, mas abandonou o projeto para economizar energia para novo material. Refletindo na década de 1960, ele reclamou que foi “escrito com muita pressa e não baseado suficientemente profundamente no pensamento teórico” de modo que “para os economistas acadêmicos parecia muito polêmico e negativo e distante da discussão contemporânea; para muitos marxistas, parecia fazer muitas concessões à linguagem marshalliana e ter uma forma acadêmica demais”.

Eram críticas razoáveis, embora duras. Mas a imprecisão de suas referências à “discussão contemporânea” esconde um arrependimento mais específico: quando Dobb escreveu o livro, ele ainda não havia lidado com The General Theory. Mais tarde, Dobb disse a um amigo que o trabalho de Keynes “raramente era compreensível, exceto para especialistas que haviam acompanhado uma discussão específica”, acrescentando que “por algum tempo não consegui entender o que ele queria dizer; e deveria ser meu trabalho ensinar isso". Uma coleção de notas de 1938 mostra Dobb lutando com o assunto. Ele parece ter considerado o keynesianismo principalmente como uma teoria de expectativas, cuja relutância em confrontar realidades “objetivas” de produção, distribuição e exploração levaria a – e aqui ele soava como o reitor de Cambridge – “um monte de bobagens” e a “qualquer tipo de propaganda econômica”. Political Economy and Capitalism dedicou apenas parte de um único capítulo a uma avaliação indireta do keynesianismo, apenas uma fração das muitas páginas que Dobb deu à explicação de um assunto que ele acreditava ter uma relevância muito maior para o futuro da economia: a teoria do valor-trabalho, aquele guardião da objetividade e defensor contra o alarde econômico (and, presumably, tomfoolery, horseplay, shenanigans, hijinks, and monkeyshines).

Dobb também tinha preocupações mais práticas. Ele via os gastos anticíclicos como um truque que deixaria sem solução os problemas estruturais por trás do ciclo de expansão e retração do capitalismo. No mínimo, aumentar os gastos do estado tornaria uma nação mais propensa à crise ao direcionar o dinheiro para fins menos produtivos do que os empreendedores descobririam sem a intervenção do governo. Esta foi uma tese curiosa para um expoente do planejamento, e para os leitores contemporâneos a semelhança familiar com argumentos avançados pelos conservadores de hoje é desconcertante. No entanto, a tese de Dobb tinha uma linhagem entre os marxistas que remontava pelo menos a Engels, que observou que um estado ativo “pode causar grandes danos ao desenvolvimento econômico e resultar no desperdício de grandes massas de energia e material”. Em última análise, a objeção central de Dobb a Keynes era a mesma de sempre: ele era um reformador em tempos que exigiam revolução. Convenientemente, essa posição isentou Dobb de descobrir os detalhes dessas reformas.

*

O emaranhado de complicações pessoais, políticas e intelectuais que tornavam tão difícil para Dobb falar sobre A Teoria Geral retorceu ao longo de sua carreira. Em 1960, quase quinze anos após a morte de Keynes, Dobb concordou em dar uma palestra sobre Keynes em uma escola de verão do CPGB. Mas ele logo teve dúvidas e largou o dever com Brian Pollitt, um de seus alunos (e filho do antigo chefe do CPGB). Quando Pollitt reclamou que ele era muito jovem — tinha acabado de terminar o primeiro ano de graduação —, Dobb lhe disse: "É por isso que você pode fazer isso e eu não". Na discussão que se seguiu à palestra de Pollitt, Dobb não disse uma palavra.

Claro, ele nem sempre podia ser tão quieto. Keynes era ainda mais proeminente na morte do que na vida, e teria sido impossível para Dobb fugir completamente do assunto. Felizmente, o tempo e mais reflexão deram a ele uma melhor vantagem sobre a Teoria Geral. Na década de 1950, a ênfase nas expectativas havia desaparecido, substituída pelo reconhecimento da importância da atenção de Keynes para o que Dobb chamou de “o sistema econômico como um todo” e, especialmente, a vulnerabilidade desse sistema à crise. Isso não era o que Dobb havia imaginado em 1930, quando pediu um renascimento da economia política, mas reconheceu que oferecia uma “lufada de ar fresco” em um ambiente sufocante.

No entanto, esse não foi o único propósito para o qual o trabalho de Keynes foi feito. Aqui, Dobb vinculou sua interpretação a uma filosofia mais ampla da história. “Comumente acontece”, afirmou ele, “que escolas de pensamento e movimentos em uma sociedade de classes cumprem um papel objetivo que é diferente (às vezes contrário) de seu design subjetivo”. Keynes havia declarado que, em uma crise, os objetivos reais da política fiscal eram quase irrelevantes: cavar valas, reabastecer valas e explodir valas poderiam ser estímulos eficazes, desde que o dinheiro fosse gasto. Mas Dobb alertou que os estados capitalistas se mostraram muito mais dispostos a destinar recursos a imensos reforços militares do que a pitorescos projetos de obras públicas, uma tendência que foi especialmente pronunciada nos Estados Unidos. A ingenuidade de Keynes licenciou a construção de estados de guerra sob o disfarce de uma gestão macroeconômica desinteressada. “Uma vez que a teoria econômica possa empregar o deus ex machina de um estado imparcial e sem classes, acionado por propósitos sociais e resolvendo os conflitos da sociedade econômica real”, comentou Dobb acidamente, “todos os tipos de milagres atraentes podem ser demonstrados”.

Para piorar as coisas, no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, uma estranha alquimia política transformou o keynesianismo – "sempre uma doutrina do 'salvar-o-capitalismo-salvar' ou 'fazer o capitalismo funcionar'" - na essência do socialismo democrático. De alguma forma, grande parte da esquerda havia assinado uma plataforma que exigia a escalada perpétua dos gastos militares e garantia o entrincheiramento da hegemonia global americana. O pleno emprego tornou-se o horizonte da esquerda, estrangulando os programas mais ambiciosos que floresceram na Depressão. As contradições estruturais dentro do capitalismo não foram abordadas, o planejamento econômico robusto foi retirado da mesa e o retorno à crise foi garantido. Citando Stalin com aprovação, Dobb insistiu que “para abolir as crises, o capitalismo deve ser abolido”. A suposta nova variedade de socialismo democrático traficada sob o nome de Keynes era, de acordo com essa visão, outro exemplo de fantasia burguesa utópica que enganou seus adeptos para que se submetessem ao status quo vulnerável – um projeto político justificado por um keynesianismo ostensivamente apolítico, devidamente mal compreendido.

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Os economistas se imaginaram conselheiros do soberano durante séculos, daí o “político” na economia política. Até Marx se encaixa nessa tradição – o que mais é O Capital senão um guia do modo de produção capitalista para a futura classe dominante; O Príncipe para o proletariado? Em meados do século XX, no entanto, os economistas ganharam uma influência sobre a formulação de políticas que seus predecessores nem poderiam ter concebido. Este foi o alvorecer da era do wunk, e em meio a exércitos crescentes de especialistas – demógrafos, agrônomos, matemáticos, antropólogos, teóricos de relações internacionais e muitos outros contribuíram com sua parte – os economistas tinham um valor especial. Somente eles poderiam afirmar ter dominado um assunto que se tornou uma obsessão em todo o mundo: o crescimento econômico.

Os líderes políticos há muito buscam alcançar a prosperidade, mas a identificação da prosperidade com uma economia em constante crescimento foi uma invenção recente. Antes do século XX, os economistas simplesmente não tinham as ferramentas — como a contabilidade da renda nacional ou a modelagem matemática sofisticada — que lhes permitisse afirmar que haviam tornado a economia governável como um todo. Tudo isso mudou na década de 1950. Os grandes choques ideológicos da primeira metade do século haviam entorpecido, e o debate político girava cada vez mais em torno do que o historiador Adam Tooze chamou de “as cansativas disputas da riqueza descontente”. A renda nacional em constante crescimento passou a parecer a base da legitimidade de um regime, e os economistas emergiram como os gerentes tecnocráticos ideais da economia. Sem dúvida, o estilo mais antigo de planejamento econômico — nacionalização, controle de preços, racionamento e outras medidas que Dobb considerava a verdadeira essência da governança econômica — perdurou. Mas o caráter do debate econômico, assim como o caráter da economia, havia mudado. Um novo tipo de planejamento nasceu e foi batizado de “keynesianismo”.

Enquanto isso, uma geração crescente de economistas em grande parte americanos estava refazendo sua disciplina. O texto confuso da Teoria Geral foi convertido em um modelo simples que logo se tornou um elemento básico dos livros introdutórios de economia. A ênfase de Keynes na instabilidade do capitalismo foi perdida entre garantias tranquilizadoras de que o crescimento estava praticamente garantido e que mesmo gastos anticíclicos agressivos seriam necessários apenas em emergências, como máscaras de oxigênio em aviões. Os debates econômicos entre a direita e a esquerda chegaram ao centro, na visão de Dobb, “apenas sobre se meio milhão ou um milhão e meio de desempregados serão suficientes para restaurar o equilíbrio do modo de produção capitalista”.

Os associados mais próximos de Keynes em Cambridge distanciaram-se furiosamente do keynesianismo americanizado. As ironias devem ter parecido cruéis. Seu trabalho foi substituído por rivais que se apresentavam como herdeiros de Keynes, conquistaram o gênero de livros didáticos introdutórios outrora dominado por Marshall e fizeram tudo aparentemente sem se preocupar com os uivos que emanam dos legítimos sucessores desses mestres. O próprio termo “Revolução Keynesiana” foi popularizado não por um deles, mas por Lawrence Klein, natural de Omaha e produto do programa de doutorado do MIT. Joan Robinson, ex-protegida de Keynes e uma das vozes mais proeminentes de Cambridge após sua morte, rotulou o novo estilo de “keynesianismo bastardo” e se perguntou em voz alta: “Por que os americanos esqueceram tudo o que lhes ensinamos?” A resposta deveria ser óbvia: os americanos não se importavam, não quando havia artigos para publicar, fileiras crescentes de alunos para ensinar e governos desesperados para aconselhar.

*

Para Dobb, tudo parecia uma perda de tempo. Ele reclamou com amigos de fora de Cambridge que o departamento estava atolado em uma guerra acadêmica de atrito entre os herdeiros autonomeados do legado de Keynes e uma série de céticos. Em suas palavras, o conflito “tornou-se completamente estupidificante (se é que alguma vez foi outra coisa em essência)”, repleto de batalhas que eram “obsoletas de assistir e cheirando cada vez mais a questões mortas”. Isso era verdade não apenas para Cambridge, mas para a “economia burguesa” como um todo, que havia entrado em “um período de esterilidade intelectual”. As inovações técnicas que seus colegas achavam tão atraentes lhe pareciam distrações dos fatos históricos mundiais do declínio do capitalismo e da ascensão do socialismo. Dobb continuou a depositar suas esperanças, como fizera por décadas, na promessa da União Soviética — a potência econômica que ele previu em 1953 logo proporcionaria a seus cidadãos um padrão de vida melhor do que o usufruído nos Estados Unidos; o farol para os socialistas em todo o mundo que apresentavam uma imagem da civilização vindoura; a promessa que lhe dera esperança de um mundo melhor desde a adolescência.

Dobb morreu em 1976, antes que essa visão soviética tivesse desmoronado completamente. Mas sofreu golpes suficientes nos anos restantes de sua vida para induzi-lo a reavaliar seus entusiasmos anteriores. Ele nunca deixou o CPGB – uma esquerda fraturada, ele pensou, era uma esquerda impotente, e ele não perdeu a fé na capacidade do partido de se reformar – mas a vergonha do que ele agora considerava uma adesão lunática à linha partidária o estimulou a repudiar seu stalinismo anterior. Em sua última década, dedicou grande parte de sua energia à construção do que chamou de “economia política do socialismo” para uma era pós-stalinista.

Com tanto trabalho a fazer, era natural que Dobb deixasse Keynes ficar em segundo plano. Exceto por comentários ocasionais, Keynes não voltou à tona até o último livro de Dobb, uma vigorosa pesquisa do pensamento econômico intitulada Theories of Value and Distribution since Adam Smith. Lá, como havia feito na década de 1950, Dobb admitiu que The General Theory havia despojado os economistas de algumas de suas ilusões mais perniciosas, mas ainda insistia que Keynes havia deixado muito mais do edifício da economia dominante intacto do que sua retórica incendiária deixava transparecer. Visto da perspectiva de Dobb, era uma conclusão bastante razoável. Afinal, ele estava certo ao dizer que Keynes não nutria aspirações para a derrubada do capitalismo. No entanto, a análise de Dobb, até onde foi, foi insuficiente - poderosa, mas fácil demais.

Embora Dobb se considerasse um herdeiro de uma nobre tradição de economia política, ele era um economista político que não levava a política a sério. Tática, sim - a melhor forma de travar a luta contra o capital era uma questão de fascínio sem fim para ele. Mas ele nunca foi além do materialismo que, apesar dos protestos em contrário, moldou seu pensamento sobre a política. Ele falhou em compreender uma verdade para a qual os eventos em sua própria vida forneceram evidências abundantes: a maneira como as pessoas entendem seu mundo molda o que elas podem fazer com ele. Sua previsão de 1930 de que os economistas redescobririam “os problemas macroscópicos da sociedade” ou recuariam para a irrelevância mantendo uma obsessão com “fenômenos microscópicos” não foi cumprida. Em vez disso, a disciplina seguiu um terceiro caminho ao redefinir o macroscópico. Colocar a política como um debate sobre a gestão da economia permitiu aos economistas abordar assuntos “macro” sem depender do vocabulário – de capitalistas, trabalhadores e o conflito entre eles – que se sedimentou em torno de discussões sobre o que as gerações anteriores chamaram de “a questão social .”

Foi uma transformação extraordinária, e economistas foram indispensáveis para sua realização, inclusive um dos próprios mentores de Dobb. Mas o próprio Dobb estava muito ocupado com a revolução iminente para se preocupar com os detalhes de um presente que ele presumiu que logo entraria para a história. Enquanto seus olhos estavam fixos no futuro, sua crítica perdeu força em seu tempo, e ele ficou lutando com as sombras de seus oponentes. Os ataques contra o status quo têm seu lugar, mas as acusações mais eficazes são geralmente as mais precisas - quanto mais afiada a lâmina, mais profunda a ferida. Muitas vezes, Dobb esqueceu esta lição. Aqueles de nós que ainda acreditam na promessa de emancipação universal não podem cometer o mesmo erro.

Colaborador

Tim Shenk é estudante de pós-graduação em história na Universidade de Columbia e autor de Maurice Dobb: Political Economist, publicado pela Palgrave Macmillan.

5 de outubro de 2013

Políticas públicas muitas vezes traem os propósitos da Constituição de 1998

Lena Lavinas

Folha de S.Paulo

Foi na primavera, 25 anos atrás. Promulgada a nova Constituição, lê-se no seu artigo 6º que "são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados".

Prover, proteger, amparar, prevenir contra riscos e incertezas: o essencial nos foi enfim reconhecido, extensivo a todos sem senões, mulheres e homens, rurais e urbanos, negros, pardos, indígenas ou brancos.

A uniformidade e a equivalência nos benefícios e nos serviços, a universalidade da cobertura e do atendimento e a irredutibilidade nas garantias constitucionais conformaram a identidade de condições que nos faltava para juntos forjarmos uma sociedade igualitária, mais homogênea, mais justa e também, em consequência, mais eficiente.

Assegurados valores e princípios, o desafio dos últimos 25 anos consiste em dispor de mecanismos regulatórios e normas que garantam, de forma reiterada e permanente, cumulativa, essa identidade de condições entre todos os cidadãos. Tecer laços sociais fortes, reciprocidades, que nos recordem, a cada experiência compartilhada, que nos relacionar como iguais é o que há de nos construir como nação.

Afinal, nosso nacionalismo arraigado e reconhecido internacionalmente como vantagem haveria de contribuir para superar essa profunda desigualdade que nos aparta, munidos que estamos de preceitos constitucionais de equidade e justiça social.

Mas ela pouco se move, essa desigualdade. Houve um ligeiro recuo, promissor, é verdade, mas acanhado, resultado, sobretudo, do crescimento com emprego e da centralidade que a Carta Magna conferiu ao salário mínimo ao vinculá-lo a direitos e benefícios. E à norma que foi criada para indexá-lo promovendo redistribuição. Essa, uma boa norma.

Por que tantos tropeços, tantas frustrações nessa trajetória se a direção a seguir nos conforta?

Há quem julgue equivocadamente que tais tropeços se devem à falta de recursos para garantir aquilo que constitui o compromisso político público de construir uma sociedade de iguais.

Pressuposto falso. A engenharia do desenho do orçamento da seguridade social, por exemplo, foi uma belíssima inovação institucional, que gera receita para honrar benefícios previdenciários, assistenciais e prover saúde pública e universal. Toda a população brasileira contribui, e os mais pobres, com maior esforço.

Com crescimento e formalidade, o orçamento da seguridade é não apenas superavitário, mas engorda o orçamento fiscal com dezenas de bilhões anualmente. Só em 2012, foram desviados R$ 58 bilhões que poderiam universalizar a provisão da atenção básica, que hoje atende --e mal-- a só 50% da população.

Porém, em lugar de expandir a atenção básica, crescentemente nas mãos do mercado privado de saúde, que funciona na restrição da oferta de serviços, impondo o subconsumo e, portanto, perda de bem-estar, ouve-se de gestores públicos ser necessário "focalizar para universalizar"!

Definem-se "doenças da pobreza", como prioritárias no atendimento aos pobres, comprometendo o grande diferencial que tem o Brasil "vis-à-vis" outros países em desenvolvimento: um sistema único e universal de saúde, que não carece de recursos para funcionar satisfatoriamente, senão de uma gestão pública consequente e respeitosa de uma institucionalidade definida constitucionalmente. O setor público entroniza a regra do mercado e faz da renda o mecanismo de acesso à proteção em caso de contingência.

Da mesma maneira, a regulação à pobreza se faz na contramão do que reza a Constituição. Condicionalidades são exigidas dos reconhecidamente pobres, para que lhe seja garantido o que de direito. E se faz deles não iguais, tornando ilegítimo o direito derivado da necessidade.

A institucionalidade forte da nossa Constituição é permanentemente ameaçada por regras inadequadas e perniciosas que muitas vezes formatam a política pública e desfiguram seus propósitos.

A estrutura da governança econômica --expressão emprestada a Samuel Bowles-- explica distorções na rota da equidade. O problema não reside no traçado dos nossos sonhos, mas na forma como se faz a gestão da política pública, que atropela e invalida valores universais que elegemos como nossos.

O mercado se expande, cresce o consumo. Isso é bom? Certamente, mas insuficiente, pois a equidade padece. Ela não se mede pela incorporação ao mercado. É tempo --ainda e sempre-- de primaveras que façam florescer nossos ideais de igualdade, palpáveis, factíveis e constitucionalmente amparados.

Sobre a autora


Lena Lavinas é professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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