30 de abril de 2022

Defendendo a democracia

Scott Hamilton

O Globo


O Brasil sabe bem, pela experiência amarga com a ditadura militar, que, quando a democracia morre, é difícil ressuscitá-la. O exemplo global do poder e prestígio democráticos brasileiros tem mais valor hoje como contraponto ao crescente avanço da autocracia pelo mundo do que em qualquer momento na História do país. Mas, em meio a ameaças verossímeis às instituições e valores democráticos no Brasil, os Estados Unidos permanecem passivos diante do público. Seria trágico se compensassem sua errônea e abertamente cômoda identificação anterior com o presidente Jair Bolsonaro escondendo-se agora de modo complacente nas sombras.

Como cônsul-geral no Rio entre 2018 e 2021, testemunhei as formas como Bolsonaro e seus apoiadores tentaram sabotar a integridade do processo democrático brasileiro e suas, em geral, espetaculares instituições democráticas independentes — imprensa, ONGs, TSE, STF e o próprio sistema de votação. A intenção é clara e perigosa: minar a fé do público e preparar o palco para o esforço de recusar-se a aceitar seu resultado. Não tenha dúvida, Bolsonaro se enxerga como um enviado de Deus para salvar o Brasil do “comunismo”. É uma visão messiânica impermeável à razão. A presença de Carlos Bolsonaro, seu líder de campanha nas redes sociais, na delegação que em março encontrou Vladimir Putin, presidente de um país que é um sofisticado manipulador digital de eleições, deveria nos deixar com a pulga atrás da orelha.

O sistema de votação eletrônico brasileiro é de primeira linha — rápido e confiável, com um histórico irretocável e nenhuma brecha para autoridades politicamente motivadas atrasarem a contagem enquanto votos para um candidato que perde são misteriosamente “descobertos”. É por isso, claro, que Bolsonaro o repudia. É por que lutou pelo voto em papel, mais fácil de desafiar como contagem partidária, como vimos para nossa infelicidade nos Estados Unidos. É por que contesta a integridade do TSE, de modo a oferecer outra forma de desacreditar a legitimidade dos resultados. É por que pinta a imprensa como parcial, para poder minimizar todas as reportagens que ela possa fazer sobre seus esforços para roubar a eleição. É por que desdenha as ONGs como se estivessem a serviço da esquerda ou de interesses internacionais, para poder sugerir que não são confiáveis. É por que combate o STF, já que os ministros podem vir a decidir sobre sua recusa em deixar a Presidência. E é por que cultiva tanto a Polícia Militar, porque precisa estar pronto a enviá-la às ruas contra manifestações pró-democracia, mesmo contra o desejo da cadeia de comando vinculada aos governadores estaduais.

Em primeiro lugar, os Estados Unidos deveriam deixar claro de modo cristalino ao presidente Bolsonaro que uma tentativa de interferir na integridade do processo eleitoral brasileiro será objeto de repúdio absoluto e de sanções punitivas a todos os envolvidos, impostas simultaneamente por um amplo grupo de países. Segundo, a administração Biden deveria ser mais agressiva ao apoiar as instituições democráticas independentes do Brasil. Finalmente, por ora, a comunidade diplomática afim deveria adotar atividades públicas similares que deixassem claro seu próprio compromisso com as instituições e valores democráticos.

Com a pressão das crises na Ucrânia e no resto do mundo, seria fácil para os formuladores políticos globais perder de vista a importância vital de um Brasil vibrante, pacífico e democrático, um ativo estratégico poderoso para democratas de todas as partes. Nenhum país se aproxima tanto dos Estados Unidos em tamanho, diversidade, pluralismo, valores e impacto democrático. A hora para os Estados Unidos se manifestarem é agora, não quando uma crise estiver em curso ou depois dela.

Sobre o autor

Diplomata aposentado do Departamento de Estado dos Estados Unidos, foi cônsul-geral no Rio entre 2018 e 2021

Emprego, direitos, democracia e vida

Momento histórico impõe construir frente ampla

VÁRIOS AUTORES (nomes ao final do texto)

Folha de S.Paulo


O tempo presente exige a unidade da nação, das suas instituições e organizações, para defender e fortalecer a nossa democracia e seus instrumentos, impedindo todas as ameaças golpistas.

Neste 1º de Maio, Dia do Trabalhador e da Trabalhadora, celebramos nossas lutas e apresentamos as propostas para o futuro. Em 1886, nos Estados Unidos, trabalhadores reivindicaram a redução da jornada de trabalho sem redução dos salários. Repressão, assassinato, pena de morte e prisão foram respostas autoritárias que exigiram novas etapas de lutas e novas bandeiras, como a liberdade e o direito de organização.

Quase um século e meio depois, a data celebra e remete a inúmeras conquistas, como direitos trabalhistas, jornada e condições de trabalho, salário, proteção laboral e previdenciária. A organização sindical lutou para ter sistemas de relações de trabalho que tratem dos conflitos e das mudanças no mundo do trabalho por meio de negociação e, quando necessário, exercer o seu direito de greve.

A luta do movimento sindical buscou a garantia da liberdade, a promoção do Estado democrático de Direito e impedir recorrentes ímpetos autoritários nefastos com o propósito de cercear a liberdade e restringir os mais variados direitos.

No Brasil, o período recente vem marcado por retrocessos, com retirada de direitos e proteções, promoção de empregos precários e vulneráveis, informalidade crescente e sem proteção previdenciária, ataques aos sindicatos e desvalorização da negociação coletiva.

Uma economia deprimida e rastejante entrega nossas riquezas naturais, destrói o meio ambiente, privatiza o patrimônio público para enriquecer o interesse privado, desindustrializa nosso sistema produtivo, enfraquece o Estado e as políticas sociais. O governo ataca as instituições, ameaça com golpes, negligencia a vida e a ciência.

As ameaças são reais em nosso país. A fome, a pobreza e a miséria massacram a vida de milhões; o desemprego gera desespero e tira a esperança de uma vida melhor; a carestia arrocha os salários; a violência e o negacionismo no enfrentamento da pandemia de Covid-19 mataram centenas de milhares de brasileiros.

Neste 1º de Maio, convocamos os trabalhadores e as trabalhadoras a lutar pela superação das ameaças ao emprego, aos direitos, à democracia e à vida. Convidamos a sociedade a participar ativamente das mobilizações e manifestações para enfrentar os ataques e as ameaças e afirmar nossas propostas que estão na Pauta da Classe Trabalhadora, lançada recentemente na Conclat (Conferência da Classe Trabalhadora). A sociedade precisa estar atenta e não esquecer que, em regimes autoritários, os direitos são suprimidos, a liberdade cerceada e as desigualdades acirradas. Nossa unidade deve ser inquebrantável na defesa da democracia e da vida.

Nossa prioridade é ampliar a unidade e capacidade de fazer crescer a nossa força política para superar os ataques e ameaças. A participação de todos nessa luta é fundamental.

Neste Dia do Trabalhador e da Trabalhadora, queremos manifestar nosso direito de escolha sobre os rumos do país, fato que se materializa no processo eleitoral —e que precisa ser livre e transparente—, no qual o debate público e o voto devem consolidar a escolha do projeto de país que iremos construir daqui para a frente, seus governantes e legisladores.

Os tempos atuais exigem a unidade da nação, das suas instituições e organizações, para defender e fortalecer nossa democracia e seus instrumentos, impedindo todas as ameaças golpistas. O momento histórico impõe construir e fortalecer uma frente ampla pela democracia e pela vida. Essa luta é nossa prioridade, e para a qual iremos somar forças.

Sérgio Nobre
Presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT)

Miguel Torres
Presidente da Força Sindical

Ricardo Patah
Presidente da União Geral dos Trabalhadores (UGT)

Adilson Araújo
Presidente da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil

Oswaldo Augusto de Barros
Presidente da Nova Central Sindical de Trabalhadores

Nilza Pereira de Almeida
Secretária-geral da Intersindical - Central da Classe Trabalhadora

José Gozze
Presidente da Pública Central do Servidor

29 de abril de 2022

Iniciativa de Segurança Global é solução chinesa para preservar a paz

Xi Jinping compartilha resposta para como países podem alcançar uma segurança comum

Jin Hongjun
Encarregado de Negócios da Embaixada da China no Brasil

A comunidade internacional vê-se diante de múltiplos desafios: enquanto ondas de contágio da Covid-19 ainda assolam o mundo, agrava-se a crise na Ucrânia e surgem diversas ameaças tradicionais e não tradicionais à segurança.

Neste momento crucial, o presidente Xi Jinping propôs, durante a recente conferência anual do Fórum Boao para a Ásia 2022, a Iniciativa de Segurança Global, apresentando uma solução chinesa a questões como "de que tipo de segurança o mundo precisa e de que maneira os países podem alcançar uma segurança comum".

Xi Jinping discursa em abertura do Fórum Boao para Ásia - Ding Haitao - 21.abr.22/Xinhua

O cerne dessa Iniciativa diz respeito a compromissos em seis frentes: envidar esforços para manter a paz e a segurança mundiais com uma visão de segurança comum, abrangente, cooperativa e sustentável; respeitar a soberania e a integridade territorial de todos os países, assim como as escolhas soberanas de caminhos de desenvolvimento e sistemas sociais; observar os propósitos e princípios da Carta da ONU; levar a sério as preocupações legítimas de segurança de todos os países, defender o princípio da indivisibilidade da segurança, construir uma arquitetura de segurança equilibrada, eficaz e sustentável; resolver as diferenças e disputas entre os países por meios pacíficos e através de diálogo e consulta, e apoiar todos os esforços conducentes à solução pacífica de crises; preservar a segurança nos domínios tradicionais e não tradicionais e trabalhar juntos em resposta a disputas regionais e desafios globais como terrorismo, mudança climática, segurança cibernética e biossegurança.

A história da humanidade tem provado repetidas vezes que a paz é a premissa para o desenvolvimento e a segurança é a base da prosperidade. Num contexto de plena globalização, a segurança dos países está intrinsecamente interligada e o desenvolvimento global depende de cada um. As ameaças à segurança internacional são tão complexas que nenhum país está imune a elas nem seria capaz de lidar com todas por conta própria.

Uma estrutura de segurança equitativa, justa e compartilhada só será construída com solidariedade e parceria. Assim, serão eliminadas as causas fundamentais da guerra, para que todos possam desfrutar de paz e tranquilidade.

Mais um bem público internacional disponibilizado pela China, a Iniciativa de Segurança Global, assentada numa política externa independente voltada para a paz, é a imagem vívida da visão de comunidade global de futuro compartilhado no campo da segurança, refletindo o anseio comum da comunidade internacional por paz, cooperação e desenvolvimento nas novas circunstâncias.

Países de relevância internacional e representantes das economias emergentes, China e Brasil também são defensores da independência, da soberania e do desenvolvimento pacífico. Numa conjuntura internacional repleta de incerteza e instabilidade, é ainda mais importante que nossos dois países se fortaleçam juntos e intensifiquem sua comunicação.

A China está disposta a se engajar com o Brasil e outros países na implementação dessa Iniciativa de Segurança Global através da plataforma da ONU e de outros canais bilaterais e multilaterais. Vamos nos inspirar uns aos outros e trabalhar juntos para defender o multilateralismo, preservar a paz do mundo e viabilizar o bem-estar para todos os povos.

Ideia de mais investimento público volta à moda

Pandemia e guerra deixaram claro que, no século 21, também é preciso ter resiliência econômica

Nelson Barbosa

Folha de S.Paulo

Rodovia dos Tamoios, que teve novo trecho inaugurado recentemente - Bruno Santos - 14.abr.2022/Folhapress

O planejamento econômico voltou à moda. Não o planejamento centralizador que acredita no Estado onipotente para ditar os rumos do desenvolvimento econômico, mas sim a ideia de que o governo tem um papel importante na coordenação e incentivo à transformação produtiva em economias de mercado.

No Brasil estamos vendo isso na prática, com várias lideranças empresariais reconhecendo que precisamos de mais investimento público, bem como de política nacional que garanta o abastecimento de insumos básicos, que hoje vão muito além da "doutrina de segurança nacional" do século 20, que buscava a quase autossuficiência em energia, combustível, siderurgia e alimentos.

O choque da Covid e a invasão da Ucrânia deixaram claro que, no século 21, também é preciso ter resiliência econômica a choques na oferta de informação digital (de semicondutores a softwares e redes), produtos farmacêuticos (vacinas), fertilizantes e outros insumos básicos.

Resiliência econômica não implica necessariamente autossuficiência produtiva, pois o comércio internacional pode ser uma fonte de progresso tecnológico e aumento de bem-estar social.

Depois da segunda guerra mundial, os poucos países que conseguiram fazer um salto de desenvolvimento econômico, quase todos eles no leste asiático, o fizeram com integração comercial estratégica, criando vantagens comparativas via investimento pesado em educação, infraestrutura e tecnologia.

Agora, resiliência a choques internacionais e diversificação produtiva voltaram ao topo da agenda de política econômica dos EUA, Europa e Japão, com propostas explícitas de estímulo ao conteúdo local, disfarçadas de "desenvolvimento tecnológico" e "desenvolvimento verde", para não criar problemas na OMC.

No Brasil, o discurso do governo Bolsonaro continua preso ao Neoliberalismo gagá de Chicago nos anos 1970, mas sua prática já se rendeu ao fisiologismo extrativista do Centrão e ao corporativismo de algumas categorias do serviço público.

Pressões setoriais sempre existiram e sempre existirão. Para combatê-las é preciso ter política econômica de verdade, um projeto de país que organize e ordene as diversas demandas sobre o orçamento público.

Precisamos de programas de investimento público em infraestrutura e inovação, incentivos à diversificação produtiva e apoio à criação e desenvolvimento de empresas nacionais com capacidade de competir no mercado externo.

Proteção infinita para extrair renda de clientes domésticos não funciona, seja na área de insumos básicos, seja na área de comércio varejista com medo de compras internacionais via internet, mas estou saindo do ponto.

Voltando, na infraestrutura, o conceito relevante para um novo programa de investimento não é só transporte, energia, saneamento e telecomunicações. Infraestrutura também inclui saúde, educação e segurança pública, atividades que, além de reduzir custos econômicos, geram muitos empregos e aumentam o bem-estar da população.

Na centro esquerda já há várias propostas sobre o assunto, cada uma com seu rótulo preferido: plano de metas, programa de reconstrução, plano nacional de desenvolvimento, economia do "projetamento", economia das missões e outros adjetivos.

Meu lado Policarpo Quaresma prefere o rótulo de JK: "metas", mas isso é o menos importante. Seja qual for o nome preferido pelos colegas, o importante é eleger um novo governo que resgate o papel do Estado como indutor do desenvolvimento para todos, em parceria com o mercado.

Sobre o autor

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

28 de abril de 2022

Guerra e indignação

Tom estridente, chantagem moral: Sobre a batalha de opiniões entre ex-pacifistas, um público chocado e um chanceler ponderado após o ataque à Ucrânia.

Jürgen Habermas


Foto: Janine Schmitz/Imago/Photothek

Tradução / 77 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial e 33 anos após o fim de uma paz preservada com o equilíbrio do terror, embora apenas ameaçado, voltaram às nossas portas as imagens chocantes de uma guerra arbitrariamente desencadeada pela Rússia.

Como nunca antes, a presença midiática desta guerra domina a nossa vida cotidiana. Um presidente ucraniano que conhece bem o poder das imagens é capaz de criar mensagens poderosas, enquanto as cenas cotidianas de destruição nua e crua e sofrimento atroz encontram um eco autorreforçador nas redes sociais digitais ocidentais.

 As notícias da midiatização e da publicização calculada de um evento bélico imprevisível podem impressionar mais a nós, idosos, do que aos jovens, acostumados ao novo sistema midiático.

Encenação hábil ou não, são fatos que põem à dura prova os nossos nervos e cujo efeito chocante é reforçado pela consciência da proximidade territorial desta guerra. Assim, entre os espectadores ocidentais, cresce a inquietação diante de cada morte, o choque diante de cada assassinato, a indignação diante de cada crime de guerra e até mesmo o desejo de fazer algo a respeito.

O pano de fundo racional em que essas emoções fervilham em todo o país é o evidente posicionamento contra Putin e um governo russo que lançou uma guerra maciça de agressão em violação ao direito internacional e que está buscando um modo sistematicamente bárbaro de travar a guerra em violação ao direito internacional humanitário.

Apesar dessa postura unânime, está emergindo uma abordagem diferenciada entre os governos da aliança dos Estados ocidentais; e na Alemanha irrompeu uma acalorada batalha de opiniões. alimentada pela mídia, sobre a natureza e a extensão da ajuda militar a uma Ucrânia duramente atingida.

As demandas da Ucrânia, inocentemente agredida, transformam inexoravelmente os erros de avaliação política e os caminhos equivocados dos governos federais anteriores em uma chantagem moral. São demandas tão compreensíveis e naturais quanto as emoções, a compaixão e a necessidade de ajudar que elas desencadeiam em todos nós.

Limiar de risco

Mesmo assim, fico irritado com a autoconfiança com que os acusadores moralmente indignados na Alemanha se levantam contra um governo federal reflexivo e cauteloso. Em uma entrevista ao Der Spiegel, o chanceler resumiu a sua política em uma frase: “Estamos enfrentando o sofrimento que a Rússia está infligindo à Ucrânia com todos os meios à nossa disposição, tentando evitar uma escalada incontrolável que desencadeie um sofrimento incomensurável em todo o continente, talvez até no mundo inteiro”.

Tendo o Ocidente decidido não intervir nesse conflito como beligerante, existe um limiar de risco que exclui um compromisso ilimitado de armar a Ucrânia. Ela foi mais uma vez trazida à tona pelo apoio do governo alemão aos aliados na reunião de Ramstein, assim como pela renovada ameaça de Lavrov de usar armas nucleares. Quem ignora esse limiar e continua empurrando o chanceler alemão cada vez mais nessa direção, com um teor agressivo e confiante, ignora ou entende mal o dilema em que o Ocidente se encontra, já que ele amarrou as próprias mãos sozinho com a decisão, também esta moralmente fundamentada, de não fazer parte dessa guerra.

O dilema que obriga o Ocidente a sopesar arriscadamente as alternativas no espaço entre dois males é claro: uma derrota da Ucrânia ou a escalada de um conflito que pode acabar em uma terceira guerra mundial. Por um lado, aprendemos a lição da Guerra Fria de que uma guerra contra uma potência nuclear não pode ser "vencida" em nenhum sentido razoável, pelo menos não pela força militar dentro dos claros termos de um conflito quente. O potencial de ameaça nuclear significa que a parte ameaçada, possuidora ou não de armas nucleares, não pode pôr fim à insuportável destruição causada pelo uso da força militar com uma vitória, mas no máximo com um compromisso que salve a face de ambas as partes. Nenhuma deve sofrer uma derrota que a faça sair do campo de batalha como uma "perdedora". As negociações pelo cessar-fogo que estão ocorrendo concomitantemente com os combates são uma expressão dessa consciência: elas permitem por enquanto considerar o inimigo como um possível parceiro de negociação.

O potencial de ameaça russo depende, com todas as evidências, do fato de o Ocidente acreditar que Putin é capaz de empregar armas de destruição em massa. Na realidade, durante as últimas semanas, a CIA já alertou para o perigo real de que as chamadas armas nucleares “pequenas” (que aparentemente só foram desenvolvidas para tornar novamente possíveis as guerras entre potências nucleares) possam ser usadas. Isso dá ao lado russo uma vantagem assimétrica sobre a Otan, que, devido à escala apocalíptica de uma potencial guerra mundial – com a participação de quatro potências nucleares – não quer fazer parte desse conflito.

Ora, é Putin quem decide quando o Ocidente cruza o limiar definido pelo direito internacional – além do qual ele considera, mesmo que formalmente, o apoio militar do Ocidente à Ucrânia como uma participação na guerra. Diante do risco de uma conflagração mundial, que deve ser evitada a todo o custo, a indeterminação dessa decisão não deixa espaço para arriscados jogos de pôquer.

Mesmo que o Ocidente fosse cínico o suficiente para considerar o risco implícito na “advertência” de que tal arma nuclear “pequena” possa ser empregada – isto é, aceitar tal desdobramento em um cenário pior – quem poderia garantir que tal escalada possa ser parada? O que resta é uma margem de argumentação que deve ser atentamente sopesada à luz dos necessários conhecimentos especializados e de todas as informações exigidas, nem sempre disponíveis ao público, para pode tomar decisões fundamentadas.

Ao impor drásticas sanções desde o início, o Ocidente não deixou dúvidas sobre a sua participação de fato nesse conflito. Agora, ele deve avaliar atentamente se, em cada nível adicional de apoio militar, ele não está cruzando a fronteira indeterminada da entrada formal na guerra – indeterminada porque depende do poder de definição do próprio Putin.

Política do medo

Por outro lado, como bem sabe a Rússia, devido a essa assimetria, o Ocidente não pode se dar ao luxo de ser chantageado à vontade. Se ele simplesmente tivesse que abandonar a Ucrânia à sua sorte, isso não seria apenas um escândalo do ponto de vista político e moral, mas também seria contra o seu próprio interesse. Isso porque ele deve estar pronto para jogar de novo na mesma roleta russa na Geórgia ou na Moldávia – e quem poderia ser o próximo?

Certamente, a assimetria que leva o Ocidente a um beco sem saída de longo prazo persiste apenas enquanto ele continua evitando – com boas razões – o risco de uma guerra nuclear mundial. Consequentemente, o argumento de que Putin não deveria ser encurralado porque, então, ele seria capaz de tudo é contrastado pelo fato de que apenas essa “política do medo” dá ao adversário uma carta branca para empurrar passo a passo rumo a uma escalada do conflito, como ressaltou Ralf Fücks recentemente neste jornal (Süddeutsche Zeitung).

Esse argumento, naturalmente, também apenas confirma a natureza de uma situação essencialmente imprevisível. Enquanto estivermos determinados, com boas razões, a evitar fazer parte dessa guerra para proteger a Ucrânia, o tipo e a extensão do apoio militar também devem ser qualificados à luz de tais considerações. Quem se opõe a perseguir uma “política do medo” de modo racionalmente justificável já se encontra no âmbito daquela argumentação sobre a qual o chanceler Olaf Scholz insiste corretamente, a saber, de uma ponderação politicamente responsável e de uma avaliação exaustiva dos fatos.

Trata-se de prestar atenção àquilo que consideramos como a interpretação compartilhável de Putin de um limite legalmente definido que impomos a nós mesmos. Os acalorados opositores da linha do governo são incoerentes quando negam as implicações de uma decisão fundamental que não questionam. A decisão de não participar não significa que o Ocidente deve deixar – up to the point of immediate involvement – a Ucrânia entre ao seu destino na luta contra um adversário superior.

O fornecimento de armas pode obviamente ter um impacto positivo no curso da guerra, que a Ucrânia está determinada a perseguir mesmo às custas de graves sacrifícios. Mas não é, talvez, uma piedosa ilusão apostar em uma vitória ucraniana contra a guerra assassina da Rússia sem pegar em armas pessoalmente? A retórica belicista não se adapta ao palco do qual provém ruidosamente. Pois ela não minimiza a imprevisibilidade de um adversário que poderia apostar tudo em uma única carta.

O dilema do Ocidente é que ele só pode indicar para Putin – que também poderia estar pronto para uma escalada nuclear – o princípio da integridade das fronteiras estatais na Europa e fornecer um apoio militar autolimitado à Ucrânia. Uma ajuda que fica deste lado da linha vermelha de um envolvimento direto na guerra, conforme definido pelo direito internacional.

A fria ponderação de uma ajuda militar autolimitada é ainda mais complicada pela avaliação dos motivos que levaram o lado russo a uma decisão evidentemente mal calculada. A atenção na pessoa de Putin levou a especulações desenfreadas, que as nossas mídias principais estão espalhando hoje como nos melhores dias da sovietologia especulativa.

A imagem hoje predominante do Putin resolutamente revisionista deve ser pelo menos confrontada com uma avaliação racional dos seus interesses. Embora Putin acredite que a dissolução da União Soviética foi um erro enorme, a imagem do visionário excêntrico que – com a bênção da Igreja Ortodoxa Russa e sob a influência do ideólogo autoritário Alexander Dugin – vê a gradual restauração do Grande Império Russo como o trabalho da própria vida política dificilmente pode refletir toda a verdade sobre o seu caráter.

Mas, com base em tais projeções, difundiu-se a hipótese de que as intenções agressivas de Putin se estendem para além da Ucrânia, para a Geórgia e a Moldávia, depois para os membros da Otan dos Estados bálticos, para finalmente avançar dentro dos Bálcãs.

É possível “vencer” esta guerra contra uma potência nuclear?
 
O quadro da personalidade de um fervoroso nostálgico da história se contrapõe a um curriculum vitae de ascensão social e à carreira de um racional calculador treinado pela KGB. Um homem ambicioso de poder a quem a virada a oeste da Ucrânia e o movimento de resistência na Bielorrússia fortaleceram a inquietação em relação aos protestos políticos nos círculos progressivamente mais liberais da própria sociedade russa.

Nessa perspectiva, as repetidas agressões russas seriam mais bem entendidas como a resposta frustrada à recusa do Ocidente em negociar a agenda geopolítica de Putin – especialmente o reconhecimento internacional das suas conquistas em violação ao direito internacional e a neutralização de uma “zona-tampão” que deveria incluir Ucrânia.

O espectro dessas e de outras especulações semelhantes só aprofunda a incerteza de um dilema que “requer extrema cautela e moderação”, como concluiu a instrutiva análise de Peter Graf Kielmansegg no Frankfurter Allgemeine Zeitung, do dia 19 de abril de 2022.

Como se explica então o acalorado debate interno sobre a política de solidariedade com a Ucrânia repetidamente confirmada pelo chanceler Scholz em acordo com os parceiros da União Europeia e da Otan? Para desvendar as questões, deixarei de lado a disputa sobre a política de distensão com um Putin imprevisível. Esta foi bem-sucedida até o fim da União Soviética e também além, mas hoje se revelou como um erro cheio de consequências.

Da mesma forma, não vou abordar os erros dos governos alemães ao se tornarem dependentes das importações de petróleo russo barato, mesmo que sob a pressão da economia. A memória curta das controvérsias de hoje será um dia julgada pelos historiadores.

Ilusões pacifistas

A situação é diferente no debate que, sob o nome significativo de “nova crise da identidade alemã”, já enfrenta as consequências da “virada epocal”, inicialmente referida de forma sóbria à Ostpolitik alemã e ao orçamento da defesa. O que se vislumbra é o anúncio de uma mudança histórica na mentalidade pós-bélica dos alemães, conquistada com esforço e repetidamente denunciada pela direita. Trata-se do fim de uma forma de fazer política na Alemanha, baseada, em primeiro lugar, no diálogo e na manutenção da paz.

Essa leitura se fixa no exemplo daqueles jovens que foram educados para serem sensíveis às questões normativas, que não escondem as suas emoções e são os mais insistentes em pedir um compromisso mais forte. Eles dão a impressão de que a realidade completamente nova da guerra os arrancou das suas ilusões pacifistas. Isso também lembra a ministra das Relações Exteriores [Annalena Baerbock] – transformada em um ícone – que, desde o início da guerra, deu expressão autêntica ao choque sentido por muitos com gestos críveis e uma retórica do desconforto.

Não é que ela não represente também a compaixão e o impulso a ajudar tão difundidos na nossa população; mas ela também deu uma forma convincente à identificação espontânea com o impulso veementemente moralizador de uma liderança ucraniana determinada a vencer.

Desse modo, tocamos o cerne do conflito entre aqueles que se apressaram com ênfase a assumir a perspectiva de uma nação que luta pela sua liberdade, os seus direitos e a sua vida, e aqueles que aprenderam uma lição diferente com as experiências da guerra fria e – justamente como os manifestantes nas nossas ruas – desenvolveram uma mentalidade diferente. Alguns só podem imaginar uma guerra sob a alternativa da vitória ou da derrota; outros sabem que as guerras contra uma potência nuclear não podem ser “vencidas” no sentido tradicional da palavra.

Em linhas gerais, as mentalidades mais nacionais e mais pós-nacionais das populações são o pano de fundo das diferentes atitudes em relação à guerra em geral. Essa diferença fica clara quando se compara a admirável resistência heroica e a evidente vontade de sacrifício da população ucraniana com aquilo que se esperaria – generalizemos – das “nossas” populações da Europa ocidental em uma situação semelhante.

A nossa admiração se mistura com um certo espanto pela certeza da vitória e a coragem intacta na luta dos soldados e dos recrutas de todas as idades, determinados a defender a sua pátria de um inimigo militarmente muito superior.

Mentalidade pós-heroica

Por outro lado, no Ocidente contamos com exércitos profissionais, que pagamos para que não tenhamos que pegar em armas em caso de necessidade e para sermos defendidos por soldados profissionais.

Essa mentalidade pós-heroica pôde se desenvolver na Europa ocidental – se ainda posso generalizar – durante a segunda metade do século XX sob o guarda-chuva nuclear dos Estados Unidos. Diante da possível devastação de uma guerra nuclear, espalhou-se entre as elites políticas e a esmagadora maioria da população a ideia de que os conflitos internacionais só podem ser resolvidos fundamentalmente por meio da diplomacia e das sanções – e que, no caso da deflagração de um conflito militar, a guerra deve ser resolvida o mais rápido possível.

Considerando o risco difícil de se calcular de um desdobramento de armas de destruição em massa, de fato, ela não pode mais ser levada a termo no sentido clássico com uma vitória ou uma derrota. Como disse Alexander Kluge: “Com a guerra, só se pode aprender a fazer a paz”. Esse ponto de vista não se traduz necessariamente em um pacifismo de princípios, ou seja, a paz a qualquer preço.

A orientação para pôr fim à destruição, ao sofrimento humano e à descivilização o mais rápido possível não equivale ao pedido de sacrificar uma existência politicamente livre sobre o altar da mera sobrevivência. O ceticismo em relação à violência militar encontra um limite prima facie quando se considera o preço de uma vida sufocada pelo autoritarismo – uma existência em que até mesmo a consciência da contradição entre normalidade forçada e vida autodeterminada desapareceria.

Eu explico a conversão dos nossos ex-pacifistas, acolhidos pelos intérpretes de direita da virada epocal, como o produto da confusão dessas duas mentalidades contemporâneas, mas historicamente não simultâneas. Esse grupo distinto compartilha a confiança dos ucranianos na vitória, mas está principalmente indignado com as violações do direito internacional. Depois de Bucha, o slogan “Putin em Haia!” se espalhou tão rápido quanto o vento. Isso geralmente sinaliza a autoevidência dos padrões normativos que nos acostumamos a aplicar às relações internacionais, ou seja, a real extensão da mudança das expectativas correspondentes e da sensibilidade humanitária entre a população.

Na minha idade, não escondo uma certa surpresa: quão profundamente deve ter sido lavrado o terreno das autoevidências culturais em que vivem hoje os nossos filhos e netos, se até mesmo a imprensa conservadora pede a intervenção dos promotores de um Tribunal Penal Internacional que, no entanto, não é reconhecido nem pela Rússia, nem pela China, nem mesmo pelos Estados Unidos?

Infelizmente, tais realidades também traem os fundamentos ainda vazios de uma identificação apaixonada com acusações morais cada vez mais estridentes com a moderação alemã. Não que o criminoso de guerra Putin não mereça ser levado perante tal tribunal; mas ele ainda ocupa um posto com poder de veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas e pode continuar ameaçando os seus adversários com armas nucleares.

Um fim da guerra, ou pelo menos um cessar-fogo, ainda deve ser negociado com ele. Não vejo nenhuma justificativa convincente para o pedido de uma política que – apesar dos sofrimentos excruciantes e cada vez mais insuportáveis das vítimas – ponha de fato em risco a decisão, além disso fundamentada, de não participar desta guerra.

A conversão dos ex-pacifistas leva a erros e a mal-entendidos

Os aliados não deveriam culpar uns aos outros pelas mentalidades políticas diferentes que são explicadas com desdobramentos históricos diferentes. Eles deveriam aceitá-las como um fato e levá-las sabiamente em consideração na sua cooperação. Mas, enquanto essas diferenças de perspectiva permanecerem em segundo plano, elas causam apenas uma confusão emocional, como no caso da reação dos parlamentares aos apelos morais do presidente ucraniano no seu discurso em vídeo no Bundestag.

Trata-se de uma confusão entre reações de aprovação imediata, simples compreensão da perspectiva do outro e oportuno autorrespeito. Negligenciar as diferenças historicamente fundadas na percepção e na interpretação das guerras não leva apenas a erros significativos no trato com o outro, como no caso da abrupta retirada do convite dirigido ao presidente alemão. Pior ainda, leva a uma recíproca incompreensão sobre o que o outro efetivamente pensa e quer. 

Essa consciência também coloca a conversão dos ex-pacifistas sob uma luz mais sóbria. Porque tanto a indignação quanto o horror e a compaixão, que formam o pano de fundo motivacional no curto-circuito das suas demandas, não podem ser explicados com uma rejeição das orientações normativas que os chamados realistas sempre ridicularizaram.

Em vez disso, eles derivam de uma leitura prescritiva demais daqueles princípios. Eles não se converteram em realistas, mas literalmente se lançaram ao realismo. É claro que não pode haver julgamentos morais sem sentimentos morais, mas o julgamento generalizante, por sua vez, corrige a gama limitada das emoções estimuladas pela proximidade. 

Afinal, não é por acaso que os autores da “virada epocal” são aqueles expoentes da esquerda e dos liberais que – diante de uma constelação de grandes potências drasticamente modificada e à sombra das incertezas transatlânticas – querem agir seriamente em resposta a uma consciência esperada há muito tempo, isto é, que uma União Europeia não disposta a ver o seu estilo de vida social e político desestabilizado a partir de fora ou minado a partir de dentro só se tornará politicamente capaz de agir se conseguir também se manter de pé sozinha militarmente.

A reeleição de Macron oferece uma última prorrogação. Mas devemos antes encontrar uma saída construtiva para o nosso dilema. Essa esperança se reflete na cautelosa formulação do objetivo de que a Ucrânia não pode perder esta guerra.

Duque, um governante de papel

O governo de Iván Duque na Colômbia está chegando ao fim, mas o sistema corrupto que o levou à presidência pretende se reciclar mais uma vez. Nas eleições de maio, colombianos e colombianas têm a oportunidade de acabar com o uribismo e mudar o rumo de seu país.

Esteban Morales Estrada

Jacobin

A chegada de Iván Duque à Casa de Nariño não foi patrocinada por nenhum mérito próprio ou por sua carreira política, mas pela vontade exclusiva de Álvaro Uribe Vélez.

A cena é tragicômica: o inepto presidente colombiano olha de um lado para o outro, abre o sorriso, pega um pequeno martelo e, cheio de ansiedade e satisfação, bate nele alegremente para fechar o dia na Bolsa de Nova York. Todos riem e comemoram sua façanha épica. Sua figura projeta a imagem de um menino que goza dos privilégios do poder; ele se distrai com atuações inconsequentes na tentativa de provar a si mesmo e ao mundo que é um homem importante. Ele está ansioso para receber o reconhecimento que sabe que não tem em seu próprio país e brinca de ser um líder mundial de primeira ordem.

A essa altura, os colombianos já têm dificuldade em continuar sendo surpreendidos pelas idiotices das quais Iván Duque é o protagonista. No entanto, seu episódio mais recente em Nova York atingiu extremos de infantilidade e ridículo que, embora pareçam realmente implausíveis, infelizmente foram reais. A cena é uma amostra, ao mesmo tempo, das maneiras usuais como o infame presidente de nosso país se comporta: sua distância dos problemas urgentes da nação é tal que sua atitude calma e autoconfiante é ofensiva. Duque caminha placidamente por seus amados Estados Unidos como se não houvesse nada para atender na Colômbia...

Em seu país, no entanto, a violência rural e urbana é comum, a paz está apenas na metade do caminho e não passa uma semana sem que um novo caso de corrupção governamental exploda. Mas o que realmente mantém Duque acordado nos dias de hoje é garantir sua posição na burocracia internacional para quando seu mandato perverso terminar. Ele sabe que na Colômbia não tem lugar. É por isso que ele corre para qualquer show internacional para o qual seja convidado, a fim de ganhar popularidade e sair para continuar sua vida confortável como funcionário que vive em nome de organizações multilaterais e instituições financeiras quando terminar seu mandato presidencial.

E é que Duque chegou à presidência da Colômbia de pára-quedas. Sua chegada à Casa de Nariño não foi patrocinada por nenhum mérito próprio ou por sua carreira política, mas pela vontade exclusiva de Álvaro Uribe, que há duas décadas dirige a política colombiana a seu gosto e prazer e vê em Duque um personagem fraco e manipulável que lhe permitiu continuar controlando os fios do poder enquanto outro ocupava a cadeira presidencial. Ao contrário de um político que termina anos de carreira pública servindo como chefe do Executivo do país, Duque foi um presidente medíocre, sem experiência ou histórico, escolhido a dedo por seu padrinho político. Agora, quando seus dias como chefe da presidência da Colômbia estão contados, ele procura desesperadamente um lugar que lhe permita continuar vivendo às custas do trabalho de outras pessoas.

Duque parece habitar uma realidade paralela. Diante da menor questão que possa implicar em conflito com seus interesses, eles optam por fazer ouvidos moucos. Ele simplesmente omite qualquer coisa que não se encaixe em sua visão simples do mundo. No plano internacional, ele hipocritamente se mostra um defensor do meio ambiente e dos migrantes, buscando aplausos que o aproximem de sua almejada posição em Washington. Enquanto isso, em seu próprio país, líderes sociais são assassinados semanalmente, os protestos sociais são perseguidos e duramente reprimidos, e o poder se concentra em um pequeno círculo de pessoas que se movem com absoluta impunidade.

O presidente participa da política eleitoral favorecendo descaradamente seu candidato e se recusando a ouvir críticas de diversos setores afetados pelo desemprego, inflação, insegurança e precariedade. A Colômbia é o segundo país mais desigual da região, superado apenas pelo Brasil. Mas isso não é algo com que o presidente pareça se importar, optando por se debruçar sobre a guerra na Ucrânia em todas as oportunidades, em vez de dar a menor opinião sobre o caos social que reina em vários departamentos do país que - em teoria - governa.

A Colômbia precisa de mudanças urgentes, sérias e estruturais. E a resposta do Uribismo, por incrível que pareça, é a mesma que há quatro anos levou Duque à presidência: Federico "Fico" Gutiérrez, o candidato que concorrerá com Gustavo Petro nas eleições presidenciais de 29 de maio, é não mais que outro fantoche. Com um discurso vago e sem graça, e sem conhecimento suficiente das complexidades que o país enfrenta, a única coisa que se pode esperar de sua eventual presidência é o agravamento dos problemas que nos sufocam diariamente.

O país está pegando fogo e a solução de Uribe, Duque e "Fico" Gutiérrez é jogar gasolina nele. Mas o povo colombiano tem uma oportunidade: está em suas mãos acabar com essas políticas, romper com a continuidade e começar a construção de um país mais justo. Para isso, deve ignorar a campanha mentirosa que, por medo e preconceito, tenta instalar contra Gustavo Petro e Francia Márquez, os únicos candidatos com propostas reais, o que pode representar uma mudança de rumo diante da crise em que estamos submersos pela obra e graça do Uribismo e suas políticas neoliberais.

Espero que os últimos quatro anos que vivemos sob o governo desse vendedor de fumaça tenham sido suficientes para abrir nossos olhos e nos mostrar que para mudar as coisas não podemos continuar fazendo o mesmo. Que para nos livrarmos dos fantasmas de ontem temos que nos livrar dos monstros de hoje.

Sobre o autor

Mestre em História e professor de escola secundária estadual na Colômbia.

27 de abril de 2022

A morte do neoliberalismo foi muito exagerada

Apesar das previsões de seu fim, o bloco de poder neoliberal de think tanks e grupos de lobby ainda está profundamente enraizado e avançando em novos territórios, da assistência médica à exploração espacial. O neoliberalismo não terminará até que a esquerda possa desafiar esse poder.

Philip Mirowski

Jacobin

O senador da Flórida Marco Rubio fala em uma Heritage Foundation ainda em 29 de março de 2022. (Drew Angerer / Getty Images)

É enervante perceber que vivemos em uma era em que todos parecem aliviados que a pandemia do COVID-19 acabou quando, na verdade, tudo o que realmente acabou são as medidas de saúde pública concertadas para controlar sua propagação e propagação. “Desejar torna assim” dificilmente é uma política sólida sobre a qual construir movimentos políticos, mas isso ameaça ser a postura padrão em relação à maioria das crises atuais que enfrentamos, seja aquecimento global, perda de biodiversidade, trumpismo, desigualdade econômica, pandemia, ou mesmo a guerra na Ucrânia.

Um exemplo dessa “fascinação pela terminação” que parece evidente na esquerda é a convicção generalizada de que, de alguma forma, a era do neoliberalismo também já passou, ou pelo menos está em vias de se extinguir. Não se pode deixar de suspeitar que esse anseio particular por um terminal é uma consequência de sentimentos de desamparo combinados com o refrão cansativo de que o neoliberalismo não pode ser definido satisfatoriamente. Para esclarecer o debate, primeiro precisamos discutir as diferentes formras pelas quais as pessoas de esquerda usaram o termo "neoliberal".

Definindo o neoliberalismo

Em primeiro lugar, uma ampla gama de pessoas usa “neoliberal” para designar um subconjunto da história nacional ou global. Isso pode ser simplesmente uma abreviação conveniente ou pode apontar para algo mais – a tentativa de um historiador de periodizar épocas, como na “era do empreendimento” ou na “era do New Deal”.

Nesse sentido, raramente é levado a sério como algo além de um dispositivo retórico conveniente, ou uma série de títulos para um programa de estudos. Não podemos dizer se tal noção tem um começo ou um fim, pois não possui quididade digna de contestação. Infinitas tentativas de esticar ou truncar o Iluminismo ou a era do New Deal apenas demonstram quão pouco está em jogo político em tais periodizações históricas.

Um uso um pouco mais conseqüente tende a igualar “neoliberalismo” a um pacote específico de políticas ou práticas políticas. Um exemplo é o termo “Consenso de Washington”, cunhado pelo economista John Williamson em 1989 para resumir em forma de ponto a orientação compartilhada dos economistas do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial naquela época. No entanto, o próprio Williamson mais tarde insistiu que sua lista não era equivalente ao que ele mesmo denominou de neoliberalismo, sustentando que qualquer fusão deste último com políticas de promoção de mercado “prejudicou a marca”.

A objeção de Williamson teve algum mérito limitado, dado que muitos de seus pontos principais eram simples extrapolações da economia neoclássica da época, e a teoria neoclássica do século XX divergiu profundamente de grande parte da estrutura neoliberal. As pessoas de fora podem ser perdoadas por ignorar esse fato, uma vez que foi totalmente deturpado por Milton Friedman e pelas popularizações de outras figuras da Escola de Chicago.

O ponto mais profundo é que, embora o neoliberalismo tenha sido antes de tudo um projeto político, é comprovadamente não redutível a qualquer conjunto canônico de políticas estatais. Famosos teóricos neoliberais individuais podem ter estabelecido alguns marcadores específicos, mas o movimento como um todo provou ser muito flexível em tirar vantagem de conjunturas históricas particulares para dobrar e revisar muitos alvos políticos supostamente estimados. De fato, suas ambições de realizar o que eles conceberam como uma sociedade de mercado ideal mudaram ao longo do tempo, à medida que uma escola passou a dominar o coletivo de pensamento neoliberal, sendo substituída por outra e depois outra, dos ordoliberais alemães para a Escola de Chicago e a discípulos de Murray Rothbard.

A principal ressalva em relação à noção de que podemos reduzir o neoliberalismo a um pacote de políticas é que é virtualmente impossível discernir uma inspiração neoliberal simples e única apenas a partir da observação externa de uma política específica. As pessoas de esquerda frequentemente citam o acoplamento frouxo de doutrinas a resultados práticos em apoio ao argumento de que ideias e ideologias realmente não importam para a política; apenas as condições materiais contam. No entanto, os próprios neoliberais não têm nada além de desprezo por tais noções; muitas vezes se alistaram explicitamente em uma guerra de idéias.

De Foucault à sociedade federalista

Há um terceiro uso do termo “neoliberal” que está enraizado na formatação cultural de uma construção peculiar da experiência individual subjetiva, frequentemente encontrada em estudos culturais, histórias da educação e humanidades em geral. Essa definição deriva das palestras de Michel Foucault - em particular, sua descrição do neoliberalismo como uma injunção para se tornar um empreendedor de si mesmo.

Existe agora uma extensa literatura discutindo sobre a extensão da simpatia de Foucault por neoliberais como Gary Becker. No entanto, ele popularizou o modelo do eu neoliberal como um produto a ser vendido, um anúncio ambulante, um amontoado de ativos a serem investidos, administrados e desenvolvidos, mas igualmente um inventário de passivos a serem podados, terceirizados, protegidos e minimizado.

Essa visão inspirou alguns trabalhos impressionantes sobre o papel das mídias sociais como tutores e exemplares das identidades pessoais neoliberais, bem como a transformação das instituições educacionais em câmaras de eco neoliberais. Claramente, essa definição promove uma linha do tempo do neoliberalismo que tem origens razoavelmente identificáveis, pelo menos quando se trata da disseminação de uma moralidade pessoal e uma modalidade de apresentação subserviente aos ditames do mercado. No entanto, se se pode dizer que tem um ponto final distinto é muito mais discutível.

A quarta e última definição de neoliberalismo consiste na manifestação mais tangível de um conjunto de pensadores e ativistas, associados à Mont Pelerin Society (MPS) a partir de 1947. Nos Estados Unidos, uma constelação de think tanks (Cato Institute, Manhattan Institute, Heritage Foundation, Competitive Enterprise Institute), unidades acadêmicas (Hoover Institution, Mercatus), redes paralelas (Council for National Policy, Americans for Prosperity, American Legislative Exchange Council) [ALEC], Sociedade Federalista) e fontes de financiamento (os Kochs, os Bradleys, o Volker Fund, Liberty Fund, Rockbridge) tomaram forma. Houve estruturas comparáveis ​​em outras nações.

O entrosamento entre teóricos, ativistas e financiadores neoliberais desde um estágio inicial fornece a motivação para considerá-lo como um movimento coerente que pode ser rastreado por meio de registros institucionais, particularidades biográficas e a história das formações políticas. Aqueles que precisam de um exemplo concreto de como são essas análises podem consultar o Koch Network Database no DeSmog. Esta última definição de neoliberalismo é a mais compacta das quatro, com o maior grau de conteúdo empírico.

A sombra da Monte Pelerin

Esta manifestação do neoliberalismo deve ser considerada efetivamente encerrada? O MPS ainda existe e, de fato, está programado para ter outra assembléia geral em Oslo em outubro. No entanto, há razões para suspeitar que seus dias de salada já passaram há muito tempo. A sociedade recentemente teve que afrouxar suas regras de adesão a fim de atrair sangue novo, e suas pretensões de servir como plataforma para o pensamento político de vanguarda da direita perderam seu brilho, pois, em vez disso, passou a se assemelhar a uma reunião para os muito ricos para enfeitar sua boa fé política.

O coletivo de pensamento neoliberal teria que admitir que John Taylor não é Milton Friedman, Deirdre McCloskey não é George Stigler e Tyler Cowen não é Friedrich Hayek. A presidência do MPS está atualmente vaga. À primeira vista, isso não parece um movimento vibrante e poderoso para quem está de fora.

Talvez uma diminuição da imaginação por parte do MPS e seu meio seja consequência de uma série de vitórias passadas. Quinn Slobodian, por exemplo, sugeriu recentemente que a definição do MPS não é mais relevante para aqueles que buscam entender a política moderna, então talvez o neoliberalismo esteja morto, afinal.

Eu gostaria de argumentar que esta lição é prematura, assim como é prematuro declarar que a pandemia acabou. O MPS contemporâneo pode exibir sinais vitais que são menos do que robustos, mas isso ignora a infraestrutura circundante muito mais vigorosa de think tanks, propriedades de mídia, institutos ativistas, consultores de astroturf, associações comerciais e unidades acadêmicas que também estão sob o guarda-chuva do quarto definição. Essa manifestação material do coletivo de pensamento está tão arraigada em vários países que vem deslizando de um triunfo a outro, mesmo durante a pandemia.

Restringindo nossa amostra aos Estados Unidos, há o óbvio golpe da Sociedade Federalista conquistando a maioria da Suprema Corte. ALEC liderou a tomada política de legislaturas estaduais e restrições aos direitos de voto. As criptomoedas proliferaram, impulsionadas por sonhos de dinheiro apátrida e promovidas pelo Center for American Progress, enquanto a Food and Drug Administration e os Centros de Controle e Prevenção de Doenças foram efetivamente neutralizados como árbitros da saúde pública, com o Instituto Americano de Pesquisa Econômica liderando o ataque, e a própria medicina está sendo reprojetada de acordo com as visões do Manhattan Institute.

O Medicare está a caminho de ser privatizado por meio de uma série de políticas secretas (assim como o “Medicare for All”). A exploração espacial é amplamente comercializada como brinquedo de bilionários , um desenvolvimento celebrado pelo Cato Institute entre outros. Assistimos à promoção da “ciência aberta” como eufemismo para o desmantelamento da investigação científica académica. Planos de geoengenharia como uma solução alternativa para o aquecimento global estão avançando zelosamente no American Enterprise Institute e abaixo do radar em Harvard , enquanto as guerras recentes servem como desculpa para bloquear a descarbonização da infraestrutura energética.

Você não precisa procurar muito para encontrar as organizações neoliberais por trás desses triunfos, embora sites como DeSmog e Think Tank Networks Research facilitem um pouco o trabalho. As iniciativas neoliberais moldaram tanto a paisagem contemporânea que devemos perguntar por que aqueles da esquerda que insistem no fim do neoliberalismo ignoram a maior parte dessa influência. Essa falha de percepção pode ser atribuída, pelo menos em parte, a uma confusão de neoliberalismo com libertarianismo.

Só porque os neoliberais têm o hábito de depreciar retoricamente o Estado não significa que eles rejeitem usá-lo como meio para seus fins. Suas constantes zombarias do grande Leviatã, do Estado babá e das classes especializadas que deveriam ocupá-los servem principalmente como um preâmbulo para seus próprios planos de dobrar o governo a seus próprios projetos e desejos.

Isso aconteceu com tanta frequência na história dos movimentos políticos que é surpreendente que alguém ainda esteja disposto a levar a sério os libertários e sua dicotomia exclusiva entre estado e mercado. A reorganização dos subsídios estatais, desde intervenções do banco central até resgates chineses, são apenas variações de um tema, não um repúdio ao neoliberalismo.

As raízes neoliberais do populismo de direita

Uma razão mais provável para muitos na esquerda esperarem o fim iminente do neoliberalismo é a ascensão contemporânea de tendências autoritárias, iliberais, nacionalistas, antiglobalistas e antidemocráticas na direita. Como os comentaristas muitas vezes descreveram esse fenômeno como “ populismo ”, será difícil evitar completamente esse significante confuso.

Muitos neoliberais têm lutado com o fenômeno que chamam de populismo nos últimos anos: os sites de think tanks como Cato e Heritage têm artigos angustiantes sobre os populistas, e o MPS se sentiu impelido a dedicar uma reunião de 2017 em Estocolmo para “As ameaças populistas aos uma Sociedade Livre”. Muitos na esquerda, tendo aprendido recentemente a identificar uma ala da coorte neoliberal como “globalistas”, também estão inclinados a considerar os movimentos populistas como repúdio à ascendência neoliberal anterior.

No entanto, há uma forma alternativa de olhar para essa situação, que vê o populismo de direita contemporâneo como um desdobramento do próprio coletivo de pensamento neoliberal. Os historiadores agora entendem que muitos dos primeiros participantes do MPS eram eles próprios amplamente antidemocráticos em orientação, e que a ala nacionalista nunca foi totalmente suprimida. O problema persistente para os neoliberais era como conciliar suas tendências autoritárias com uma imagem pública como oponentes do totalitarismo e porta-estandartes cosmopolitas do liberalismo.

Não havia uma maneira mágica de escapar desse dilema, nem uma receita única para todas as nações, o que explica o fato de que não houve uma simples correspondência direta entre ideologia e política. Pode-se argumentar dentro desse amplo espectro – os ordoliberais tinham uma proposta, a Escola de Chicago outra e a Escola de Genebra uma terceira.

No entanto, havia um grupo insatisfeito com qualquer uma dessas soluções, muitos dos quais foram atraídos para a órbita em torno de Murray Rothbard, que se tornou, na frase de Quinn Slobodian, “os bastardos de Hayek”. Essa tendência tornou-se cada vez mais descontente com as ortodoxias do MPS: em 2006, ele se dividiu em uma “ Sociedade de Propriedade e Liberdade ”.

Pode-se descrever a virada xenófoba, racista e ignorante da política recente como uma fúria destilada da degradação econômica e das frustrações pandêmicas. Mas isso desviaria a atenção das maneiras pelas quais a facção neoliberal dissidente e seus companheiros de viagem mais ortodoxos anteciparam esse descontentamento turbulento e o colocaram em seu próprio uso.

Slobodian reconhece que havia um grupo revanchista de neoliberais, insatisfeitos com a construção da União Europeia e da Organização Mundial do Comércio, que muitas vezes se opunha à escola descrita em sua obra Globalistas . O manifesto de 1992 de Murray Rothbard, Right – Wing Populism , defendeu explicitamente “America First” e denunciou a ação afirmativa. Havia distintos protagonistas neoliberais por trás do Brexit no Reino Unido, e tais figuras também ocuparam a liderança inicial da Alternativ für Deutschland da Alemanha .

É claro que o próprio Donald Trump nunca incorporou uma postura ideológica consistente. No entanto, sua equipe administrativa foi fortemente recrutada no mundo do think tank organizado por Koch. Suas ações na Agência de Proteção Ambiental, no Departamento do Interior, na Food and Drug Administration, no Departamento de Estado e em outros lugares estavam de acordo com as prescrições da política neoliberal. Seria um erro considerar as tendências antiglobalização da direita como uma rejeição óbvia das restrições neoliberais anteriores, ou ter a impressão de que um nacionalismo ressurgente de alguma forma viola o credo.

Recuperando a confiança

O que pode ser necessário para dizermos que o neoliberalismo, na quarta definição do termo, está realmente chegando ao fim? Uma era de “ pós-neoliberalismo ” não será anunciada por um pouco de gastos deficitários extras, algumas investidas antitruste contra a Big Tech ou alguma repressão dissimulada aos paraísos fiscais. Só se tornará uma proposta séria quando os oponentes do neoliberalismo na esquerda passarem a apreciar o que é indispensável ao credo neoliberal e o que é dispensável.

Para os neoliberais, o eixo teórico chave é sua visão do mercado e suas capacidades, enquanto o primeiro mandamento de seu credo é a oposição ao socialismo. Todas as facções e tendências do coletivo de pensamento neoliberal compartilham esses princípios. Embora muitas vezes tratem o mercado como o melhor canivete suíço, sua inovação específica foi reformular “o Mercado” como o maior processador de informações conhecido pela humanidade, O Que Deve Ser Obedecido.

Nesse catecismo, como nenhum planejador jamais poderia saber o suficiente para vencer o mercado, o socialismo era necessariamente impossível. A convicção populista de que os especialistas não conhecem a verdade, enquanto alguns minutos no YouTube lhes permitem acesso pessoal à sabedoria oculta dos tempos, é um corolário dessa visão de mundo.

Por mais que os de esquerda abriguem seu próprio conjunto de crenças, eles se encontram persistentemente frustrados e manobrados por seus oponentes porque ainda confiam nas concepções neoliberais do mercado em suas iniciativas políticas. Referências a falhas ou falhas de mercado apenas revelam quão ineptos são seus instintos políticos. O princípio central do socialismo é epistemológico : a proposição de que algumas pessoas, com esforço e dedicação, podem conhecer a situação atual e mudá-la para melhor. Richard Seymour chamou isso de “impulso prometeico”.

A razão pela qual isso é possível é que o mercado nunca foi, contra Foucault, um árbitro monolítico e independente de um “regime de verdade”, mas sim um conjunto de diversas engenhocas interpessoais, construídas por meio de uma série de intervenções que produzem certos resultados calculáveis. Não há como dar crédito a aglomerações de mercados com “saber” alguma coisa. Nessa mudança de gestalt, os mercados não produzem liberdade, mas sim controle social. O neoliberalismo não terminará até que os movimentos políticos de esquerda recuperem a confiança em seu domínio consciente sobre a esfera econômica.

Voltando à analogia da pandemia, os neoliberais alegarão que acabou, desligando o monitoramento estatal dos dados de infecção e morbidade, inundando a zona com ruído e desinformação e deixando o mercado determinar os resultados da saúde. Os socialistas declarariam que a pandemia acabou quando as intervenções de saúde pública geraram dados unificados, padronizados e transnacionais de morbidade e mortalidade que retornam aos níveis de linha de base acordados por um período de tempo designado. Esta última situação jamais seria confundida com a primeira.

Sobre o autor

Philip Mirowski é autor de Science-Mart, The Knowledge We Have Lost in Information e Never Let a Serious Crisis Go to Waste.

26 de abril de 2022

Bilionários como Elon Musk não sabem nada sobre democracia

Elon Musk, o homem mais rico do mundo, comprou o Twitter. Musk diz que está tentando proteger a democracia e promover a liberdade de expressão - mas o que um megabilionário com um histórico de silenciar críticos e retaliar trabalhadores sabe sobre democracia?

Paris Marx

Jacobin
Elon Musk, fundador da SpaceX e CEO da Tesla Inc., comprou a rede social Twitter. (Liesa Johannssen-Koppitz / Bloomberg via Getty Images)

Tradução / Em 44 de abril, Elon Musk divulgou sua participação de 9,2% no Twitter. Essa notícia desencadeou uma reviravolta de quase um mês por que Musk queria mais espaço no conselho da empresa. Antes de reverter o curso e, em vez disso, ele anunciou planos para uma aquisição completa em 14 de abril.

Inicialmente, havia ceticismo em relação ao plano de aquisição de Musk. Em sua carta de oferta, ele disse que era um bom negócio e sua oferta final – se o conselho não aceitasse, ele consideraria vender sua participação e ir embora. O financiamento não havia sido garantido, o que levou os investidores a questionar se ele estava falando sério. Mas nos dias que se seguiram, Musk juntou uma mistura de empréstimos e patrimônio pessoal para mostrar que poderia financiar o negócio e, em 25 de abril, o conselho aceitou sua oferta de US$ 44 bilhões.

Como resultado, o Twitter mais uma vez se tornará uma empresa privada e, independentemente da posição que Musk se dê, ele terá imenso poder para direcionar o futuro de uma plataforma que é central no discurso público em muitos países ao redor do mundo. Mas quais mudanças ele realmente faz e se os usuários realmente abandonarão o Twitter de Musk ainda não se sabe.

Liberdade de expressão para quem?

No período que antecedeu a compra da plataforma de rede social, Musk se posicionou como defensor da liberdade de expressão. Qualquer pessoa com uma boa noção da realidade pode ver que isso não é verdade, já que Musk tem um histórico de silenciar seus críticos e retaliar seus funcionários, mas isso não significa que não terá um impacto material em como ele direciona os moderadores de conteúdo do Twitter para abordar seu trabalho.

Em um comunicado após a finalização do acordo, Musk escreveu que “a liberdade de expressão é a base de uma democracia em funcionamento, e o Twitter é a praça da cidade digital onde são debatidos assuntos vitais para o futuro da humanidade”. Há algum grau de verdade nisso, embora a ideia de que o Twitter incentiva o diálogo racional que beneficia a sociedade com shitposting seja um pouco exagerada.

A compreensão de Musk do conceito de liberdade de expressão vem dos comentaristas de direita com os quais ele se associa cada vez mais e que acusam as plataformas de rede social de silenciar vozes conservadoras. Eles fundaram uma série de redes sociais alternativas como Parler e Gab nos últimos anos que afirmam respeitar a “liberdade de expressão”, mas são principalmente sobre permitir que as pessoas digam as coisas mais vis, mentirosas e cruéis que quiserem.

Para ser justo, Musk fez declarações que sugerem que ele não abandonará completamente todas as regras. Em uma entrevista ao TED, ele disse que erraria por não derrubar postagens e prefere tempos limitados a banimentos, mas ainda haveria um papel para moderadores humanos e ele respeitaria as leis de vários países. Ele também disse que “derrotaria os bots de spam ou morreria tentando!” Mais amplamente, ele falou sobre estender o acesso à verificação, abrir os algoritmos da empresa e mexer em vários outros recursos.

É provável que ele descubra que remodelar uma grande plataforma de rede social não é tão fácil quanto simplesmente dizer às pessoas abaixo dele o que ele quer que elas façam. Também haverá consequências não intencionais para qualquer coisa que ele tente, principalmente na moderação de conteúdo, o que pode provocar raiva entre os funcionários do Twitter. Musk tem um histórico de se considerar um especialista em coisas sobre as quais realmente sabe pouco e tem o hábito de demitir pessoas que lhe dizem coisas que ele não quer ouvir.

Tudo isso significa que é difícil saber exatamente como será o futuro do Twitter. Há uma versão particularmente terrível que lembra a repugnância do Parler ou Gab; há outro em que as mudanças são pequenas e o interesse do bilionário acaba se movendo para outros assuntos. Mas há também a questão natural do que a aquisição nos alerta sobre o controle de capital sobre o espaço digital: como responder e se é possível se separar para uma alternativa melhor.

Existe uma alternativa?

Em resposta à aquisição, houve um conjunto de usuários do Twitter que alegaram que deixariam a plataforma, ou pelo menos procuraram imaginar como as coisas poderiam ser melhores do que são hoje. Aqueles que estão saindo gravitaram em direção ao Mastodon, uma alternativa descentralizada que começou em 2016 e recebe atenção renovada toda vez que pessoas de esquerda ficam bravas com o Twitter, mas que nunca vingou realmente. É improvável que isso mude mesmo com Musk assumindo o comando.

Ao considerar alternativas, as sugestões muitas vezes equivalem a um retorno a algum momento do passado da Web que foi percebido como melhor: os primeiros dias da Web, o momento em que muitas pessoas usavam o Tumblr ou o tempo imediatamente anterior ao domínio das plataformas atuais quando os blogs eram populares. Embora o renascimento da blogosfera possa parecer atraente, as propostas de voltar o relógio para um período idealizado na história da Internet não consideram como as lógicas estruturais da Web mudaram.

Desde esses momentos, a Internet passou por um novo processo de consolidação e comercialização, que permite aos capitalistas exercer mais poder e extrair maiores retornos do que fazemos online. A centralização também tornou a Web mais fácil de usar e forneceu alguns benefícios para os usuários. Para reverter o curso, ou sair de uma trilha que está nos enviando para as distopias de uma Web3 baseada em criptografia ou metaverso, esses incentivos precisariam ser fundamentalmente alterados – algo que exigiria uma resposta política que visasse as forças capitalistas que impulsionam esses desenvolvimentos.

Dentro de certos círculos de tecnologia, há um desejo de acreditar que resolver problemas estruturais simplesmente requer a solução tecnológica certa, embora tenhamos décadas de evidências de que o capitalismo pode cooptar até as inovações mais bem-intencionadas para servir a seus fins. Mas propostas sérias para uma infraestrutura de plataforma alternativa precisam enfrentar os fatores sociais, políticos e econômicos que nos trouxeram até este momento, e isso precisará ser abordado para possibilitar uma alternativa mais justa e democrática.

O que vem depois do Twitter?

Ao assumir o Twitter, Musk demonstrou que sua riqueza significa que ele não precisa nem se preocupar em pensar seriamente sobre as implicações de suas propostas. Em vez disso, seus planos para uma plataforma com milhões de usuários são impulsionados por sua experiência individual. Ele vê bots de spam em suas menções, então percebe que eles são um problema. Mas ele não encontra o assédio que a direita (ou o próprio Musk) pode desencadear nas pessoas, então isso não está em sua lista de prioridades. Esta não é claramente uma maneira prática, sustentável ou justa de governar a infraestrutura de massa que as plataformas de mídia social se tornaram.

É improvável que haja um êxodo em massa do Twitter por causa de Musk pela simples razão de que esse tipo de drama é exatamente o que os usuários mais dedicados do Twitter vivem. Mas é possível que sua compra seja um marco importante na história da empresa – que sinaliza o início de seu declínio e a necessidade não apenas de construir alternativas, mas de criar condições mais amplas para que prosperem – como foi no inicio da internet.

Sobre o autor

Paris Marx é escritor socialista e urbanista. Edita o Radical Urbanist e já escreveu para a NBC News, CBC News e Toronto Star

24 de abril de 2022

O povo chileno avança firme

Não passa um dia sem que haja uma grande novidade no processo constitucional no Chile. Aqui trazemos um resumo dos avanços mais importantes dos últimos meses.

Javier Pineda Olcay


Foto Felipe Figueroa/SOPA Images/LightRocket via Getty Images.

Este texto faz parte da série "Convenção Constitucional 2022", uma colaboração entre Jacobin América Latina e a Fundação Rosa Luxemburgo.

Tradução / Depois de nove meses de funcionamento, a Convenção Constitucional avança a passo firme na redação da nova Constituição. Até o presente momento de elaboração desse texto a versão preliminar da nova Carta Magna conta com mais de 200 artigos, aprovados todos por um quórum superior a dois terços do Pleno da Convenção.

Estes artigos são fruto do trabalho de sete Comissões Temáticas: a Comissão de Sistema Político, Governo, Poder Legislativo e Sistema Eleitoral; a Comissão sobre Princípios Constitucionais, Democracia, Nacionalidade e Cidadania; a Comissão de Forma de Estado, Ordenamento, Autonomia, Descentralização, Equidade e Justiça Territorial; a de Direitos Fundamentais; a de Meio Ambiente, Direitos da Natureza, Bens Naturais Comuns e Modelo Econômico; a Comissão de Sistema de Justiça, Órgãos Autônomos de Controle e Reforma Constitucional; e a de Sistemas de Conhecimentos, Cultura, Ciência, Tecnologia, Artes e Patrimônios.

Os artigos aprovados nessa versão preliminar da Nova Constituição, já foram aprovados pelo Pleno da Convenção Constitucional, nos permite identificar uma “coluna vertebral” que se expressa em distintos artigos em todo o texto. O artigo 1 da Nova Constituição aprovado pelo Pleno da Convenção é uma síntese disso:

Artigo 1. Estado. Chile é um Estado social democrático de direito. É plurinacional, intercultural e ecológico.

Se constitui como uma república solidária, sua democracia é paritária e reconhece como valores intrínsecos e irrenunciáveis a dignidade, a liberdade, a igualdade substantiva dos seres humanos e sua relação indissolúvel com a natureza.

A proteção e garantia dos direitos humanos individuais e coletivos são fundamento do Estado e orientam toda sua atividade. É dever do Estado gerar as condições necessárias e prover os bens e serviços para assegurar o igual gozo dos direitos e a integração das pessoas na vida política, econômica, social e cultural para seu pleno desenvolvimento.

Desmantelar o neoliberalismo e garantir direitos sociais

A caracterização do Chile como um Estado Social é a pedra angular para desarticular o sistema neoliberal constitucionalizado na Constituição de 1980, a qual ocultava o princípio de subsidiariedade, que se expressou em uma subordinação do Estado ao mercado, reduzindo o seu papel em subsidiar a atividade privada inclusive na provisão de direitos sociais como educação, saúde e previdência social, os quais foram mercantilizados.

Consagrar o Estado Social é um passo para deixar atrás as políticas neoliberais, fazendo avançar o Estado em duas importantes dimensões: seu papel em garantir os direitos sociais por meio das instituições públicas e um papel ativo na economia.

Sobre os direitos sociais, as propostas da Comissão de Direitos Fundamentais (ainda não foram aprovados) consideram como dever o Estado não só garantir esses direitos como também criar institucionalidade pública. Por exemplo, para o direito ao cuidado se dispões a criação de um Sistema Integral de Cuidados; no direito a habitação, o Estado deve desenvolver o desenho da construção das mesmas, somando a administração de um Banco de Solo Público; no direito a saúde se consagra um Sistema Nacional de Saúde de caráter universal, público e integrado; ao mesmo tempo que no direito a educação se fala na construção de um Sistema de Educação Pública. Estes são alguns passos importantes para o fortalecer o público e desmercantilizar os direitos.

Sobre o papel ativo do Estado na economia, a Comissão de Meio Ambiente e Modelo Econômico aprovou normas para mudar os princípios que reconhece a iniciativa pública do Estado na atividade econômica, podendo adotar diversas formas de propriedade, gestão e organização para o desenvolvimento da atividade empresarial, e podendo também, reservar-se a provisão exclusiva de bens ou serviços quando assim exigir o interesse geral; a recuperação dos bens comuns naturais explorados hoje por empresas privadas, como acontece com as águas, as substâncias minerais; e uma reorientação da política fiscal, fundando um sistema tributário baseado nos princípios da igualdade, progressividade e solidariedade.

Por uma democracia participativa

Outra profunda crítica ao Estado atual é a existência de uma democracia restringida ou de baixa intensidade, tutelado pelas Forças Armadas que desde a reforma constitucional de 2005 se restringi por estruturas autoritárias até a atualidade, como é o caso do Tribunal Constitucional, e os quóruns contra majoritários no Congresso, além da falta de mecanismos de democracia direta e participativa.

Na nova Constituição a democracia se caracteriza como uma democracia inclusiva e paritária que exerce de forma direta, participativa, comunitária e representativa. Além disso, foi acompanhada pelas consagradas instituições de democracia direta, como os plebiscitos regionais e comunais. Ainda falta votar a segunda proposta constitucional sobre mecanismos como as iniciativas populares de lei, referendos revogatórios de autoridades públicas e derrogatórias de lei, entre outros institutos, essas devem ser aprovadas pelo pleno nos próximos dias.

Referente a democracia representativa, a Comissão de Sistema Político decidiu manter o regime presidencialista, mas diminui a intervenção do Poder Executivo na elaboração de leis, sendo a mudança substancial a retirada de atribuições na matéria de iniciativas exclusivas de lei para a Presidência da República.

Por outro lado, o Poder Legislativo experimenta importantes mudanças. De um regime bicameral simétrico, onde o Senado e a Câmara de Deputadas e Deputados concentravam as mesmas atribuições para o processo de formação de lei – o Senado também tinha importantes atribuições para a nomeação de autoridades da República -, agora se altera para um regime bicameral assimétrico.

Este novo regime concentra o impulso político na Câmara de Deputadas e Deputados, cuja composição será paritária e com assentos reservados, assemelhando se muito mais ao que hoje é a Convenção Constitucional que é a atual Câmara de Deputadas e Deputados. Enquanto a suas atribuições (ainda pendente de aprovação no pleno), concentra a iniciativa em matéria legislativa, contudo o Senado tem o seu fim, dando passo a uma “Câmara das Regiões”, de composição paritária e plurinacional, a qual concorre com a formação de leis de acordos regionais nas matérias que até o momento estão relacionadas a Lei de Orçamento, Sistema Eleitoral e divisão administrativa e territorial do Estado. Essa alteração tem sido muito criticada pelas elites políticas, que assistem o fim de uma era oligárquica, que governou o país nos últimos 200 anos.

Outra importante expressão deste novo Estado Democrático é a descentralização política, administrativa e financeira refletida na construção de um Estado Regional e no aumento do poder local para os Municípios Autônomos. A territorialização das decisões políticas também é parte de um Estado Democrático, abandonando o Estado unitário e centralizado, cuja existência não remonta à Constituição de 1980, dado que é uma característica histórica da tradição política e constitucional no nosso país.

Além disso, a democratização das instituições não só reduz aquelas consideradas “mais políticas”, como também se democratiza as instituições ligadas ao Sistemas de Justiça, acabando com uma estrutura hierarquizada e ampliando a direção administrativa de nomeação, para uma instituição mais democrática, como é o Conselho de Justiça. Além do mais, em alguns órgãos autônomos se está abandonando unipessoalidade das direções, que ainda dependem de grande parte do Poder Executivo (como acontece com o Ministério Público, a Defensoria Penal Pública e a na institucionalidade sobre Direitos Humanos), para estruturas de conselhos superiores colegiados onde possa existir intervenção da sociedade civil e do Congresso nas nomeações.

Finalmente, como um dos avanços mais importantes do processo e destacado mundialmente, aparece a consagração da democracia paritária, instalando como um mínimo a participação das mulheres não somente nos cargos de eleição popular, como em toda a institucionalidade estatal.

Começando a reparar 500 anos de espoliação

A plurinacionalidade tem disso um dos principais projetos políticos nesta Convenção Constitucional e se está expressando na Convenção Constitucional como o reconhecimento da existência de povos e nações preexistentes que habitam o país e, sobretudo, no reconhecimento a sua livre determinação, ao qual implica o direito ao pleno exercício de seus direitos coletivos e individuais.

Expressão deste princípio geral é o reconhecimento constitucional ao direito a sua autonomia e autogoverno, a sua própria cultura, a identidade e cosmovisão, ao patrimônio e a língua; ao reconhecimento das suas terras, territórios, a proteção do território marítimo, da natureza em sua dimensão material e imaterial e ao especial vinculo que mantém com estes, a cooperação e integração; ao reconhecimento das suas instituições, jurisdições e autoridades próprias ou tradicionais e a participar plenamente, se assim desejarem, na vida política, econômica, social e cultural do Estado.

Se expressa também o reconhecimento aos Sistemas Jurídicos Indígenas, questão que existe em outros países do mundo, mas que é inédita para o Chile. No nível territorial, a Comissão de Forma de Estado propôs o reconhecimento aos territórios indígenas autônomos como fórmula para o exercício da livre determinação, todavia essa proposta ainda não foi aprovada pelo pleno da Convenção. Na mesma situação se encontra a consagração do direito a terra e o território e a gestão dos bens comuns naturais em seus territórios, que será votado nos próximos dias pelo pleno.

A interculturalidade como princípio fundamental da Nova Constituição consiste no reconhecimento, valorização e promoção do diálogo horizontal e transversal entre as diversas cosmovisões dos povos e nações que convivem no país com dignidade e respeito recíproco. O Estado deverá garantir os mecanismos institucionais que permitam esse diálogo superando as assimetrias existentes no acesso, distribuição e exercício do poder em todos os âmbitos da vida em sociedade.

Em outras comissões isso foi expresso na forma em que se trabalhavam direitos tais como o direito a educação e a saúde intercultural, a moradia como pertencimento a cultura, como também ao reconhecimento a seus sistemas de conhecimento.

Finalmente, a plurinacionalidade se reconhece pelo sistema político através de assentos reservados, tanto nas eleições locais, regionais e nacionais; como também na integração de pessoas pertencentes aos povos indígenas em toda a institucionalidade, incluindo Conselho Nacional de Justiça, por exemplo.

Relação indissolúvel entre a natureza e as pessoas

A Convenção Constitucional iniciou seu trabalho reconhecimento que o realizava em um contexto de crise climática e ecológica, uma definição fundamental para encarar os desafios do século vinte um. A primeira norma constitucional aprovada nesta linha foi o dever do Estado de adotar ações de prevenção, adaptação e mitigação dos riscos, vulnerabilidade e efeitos provocados pelas crises climática e ecológica.

Outro importante avanço é o reconhecimento dos direitos da natureza a qual tem o direito a que se respeite e proteja a sua existência, a regeneração, a manutenção e a restauração de suas funções e equilíbrios dinâmicos, que compreendem os ciclos naturais, os ecossistemas e a biodiversidade. O anterior também se expressa em uma série de normas que reconhecem como limites ao exercício de determinadas atividades econômicas e inclusive o exercício de direitos ou liberdades a proteção do meio ambiente e a natureza.

A Natureza como sujeita de direitos também afeta o regime de propriedade sobre ela, na medida em que deixa de ser um “recurso natural” e se passa ao reconhecimento da existência de bens comuns naturais que são passíveis de apropriação e que só se podem usar, mantendo a harmonia dos ecossistemas. Os principais avanços nesta matéria se dão na regulação sobre as águas, a qual passa a ser um bem comum e não passível de apropriação, reconhecendo seu caráter essencial para a vida e priorizando seus usos.

Também, realizou se propostas normativas pela Comissão de Meio Ambiente para consagrar um estatuto constitucional a cada um dos bens comuns naturais existentes, como as águas, as minas, os bosques e o solo, a atmosfera, entre outros.

Finalmente, se apresenta uma normativa relacionada aos direitos humanos ambientais reconhecendo como ponto de partida o Tratado de Escazú, consagrando a justiça ambiental, entendida como um direito ao acesso a informação pública sobre matéria ambiental, o acesso a tribunais para defender os direitos da Natureza e direitos humanos, e o direito a participação popular na tomada de decisões sobre os projetos que causem impacto nos ecossistemas. Enquanto o papel de custódia, existe uma proposta para ter um órgão autônomo encarregada da Defesa dos direitos da Natureza e outro encarregada do sistema de avaliação ambiental denominado até o momento de Conselho Autônomo do Meio Ambiente.

Perspectiva feminista

Ainda quando não é parte da definição do Estado por suas próprias características próprias, sim é possível afirmar que a Nova Constituição tem uma perspectiva feminista avançada a nível mundial e que é expressão da potência feminista no país, cujo núcleo são as organizações feministas que tem sido chaves também no desenvolvimento desta Convenção Constitucional

Esta perspectiva na Comissão sobre Princípios Constitucionais se há expressado na norma sobre igualdade substantiva, a qual afirma que a nova Constituição assegura especialmente a igualdade substantiva de gênero, obrigando a garantir a igualdade de trato e condições para as mulheres, meninas e diversidades e dissidências sexogenéricas ante todos os órgãos estatais e espaços de organização da sociedade civil.

Na Comissão sobre Sistema Político esta perspectiva está traduzida nas normas sobre democracia paritária, estabelecendo como mínimo democrático a participação de mulheres em todas as instâncias institucionais do Estado como uma base e como um limite.

Na Comissão sobre Sistemas de Justiça já foi aprovado um artigo sobre a perspectiva de gênero como princípio do Sistema Nacional de Justiça, que se expressa na paridade da institucionalidade de justiça, como também na aplicação do enfoque de gênero por parte de todos os tribunais. Se complementa com a prática da interseccionalidade que aplicará a todo os Sistema Nacional de Justiça.

Além disso, a Nova Constituição se transformará na primeira mundialmente em reconhecer como parte dos direitos sexuais e reprodutivos a interrupção voluntaria da gestação, essa norma foi fruto da iniciativa popular de norma constitucional “Será Lei”. Tal como afirmavam as feministas, o que o Congresso negou, alcançaram com dois terços na Convenção Constitucional. Esta norma de direitos sexuais reprodutivos se complementa por uma norma sobre educação sexual integral e, também, pelo direito a identidade. Estas normas mencionadas são a expressão dessa perspectiva que estará presente em toda a Convenção Constitucional.

Avança os povos e os setores populares

Mesmo que ainda não exista um documento com plano detalhado do que será a Nova Constituição, estas definições são parte das plataformas de luta que historicamente levantaram os povos e as organizações populares de nosso país. Este processo constituinte custa a sair, mas com certeza é um processo que caminha.

A significância do ataque sistemático por parte das elites econômicas e políticas, expressadas na sua máquina midiática, que não pararam nem um dia para desprestigiar o trabalho da Convenção Constitucional. Os primeiros meses os slogans dos poderosos foi que as e os que compunham a convenção eram “frouxos” e “não trabalhavam”. Ao mesmo tempo que uma vez apresentada as propostas normativas e aprovados os primeiros artigos do projeto da Nova Constituição as expressões usadas por eles eram de “extremistas” “rancorosos” “ignorantes”, etc.

O certo é que esta Convenção Constitucional está cristalizando uma correlação de forças no campo político e social, que é expressão da Revolta Popular de 2019. Não se trata de um projeto extremista, nem (re) fundacional, se não de uma mudança institucional que permite a abertura política para que o neoliberalismo esgotado vá ficando para trás.

Apesar da força popular e social demonstrada na Revolta, ainda não há mudanças institucionais que ampliem a democracia, nem abandone o Estado subserviente. A aprovação da Nova Constituição será somente o ponto de partida para avançar para um sistema político, econômico, social e cultural que se possa se dizer Solidário, Democrático, Ecológico, Feminista, Plurinacional e Intercultural.

O Plesbicito, fechado para o dia 4 de setembro de 2022 – o mesmo dia, mas 52 anos depois da vitória de Salvador Allende – os povos terão que decidir nas urnas se esta Nova Constituição se aprova ou se rechaça. Para além das especulações sobre o resultado do plebiscito, vale recordar as palavras de Allende, que traz umas das poucas certezas de que se pode ter em tempos de convulsões sociais: “os processos sociais não se detêm”.

Sobre o autor

Javier Pineda Olcay é advogado e assessor da Convenção Constitucional Chilena.

23 de abril de 2022

Queremos fins de semana mais longos - mas não dias de trabalho mais longos

Os legisladores romenos pediram um fim de semana de três dias - mas com a semana de trabalho de 40 horas existente agora encavalada em quatro turnos. A situação mostra como a reorganização da semana de trabalho pode prejudicar os interesses dos trabalhadores se eles não tiverem voz no processo.

Radu Stochita

Jacobin


Guarda-chuvas coloridos sombreiam uma rua em Timişoara, Romênia.

Tradução / Um fim de semana de três dias soa como uma bênção – um pedaço da semana para fazer o que realmente queremos. Com o aumento do trabalho remoto e as novas tecnologias que permitem mudanças nos padrões de trabalho, não é de admirar que os pedidos de uma semana de trabalho de quatro dias tenham ganhado força em todo o mundo.

No entanto, há uma grande variação na intenção – e resultado – de tais projetos. Enquanto partidos de esquerda em países da Grã-Bretanha ao Chile pediram uma redução geral do tempo de trabalho, a Bélgica introduziu uma semana de trabalho voluntária de quatro dias, mas sem alteração no total de horas. Experimentos na Islândia, bem como pesquisas piloto na empresa de serviços financeiros neozelandesa Perpetual Guardian provaram que a redução da semana de trabalho é benéfica para os trabalhadores, ao mesmo tempo em que destaca seus méritos no aumento da produtividade.

Mas a ideia de que se trata de uma medida favorável aos negócios esbarra nos limites da proposta. Em março, parlamentares romenos de partidos de centro-direita e de direita apresentaram um projeto de lei para mudar a semana de trabalho para quatro dias e a jornada de trabalho padrão para dez horas. Os patrocinadores da legislação proposta disseram:

Depois que o funcionário passar pelo período de adaptação, ele perceberá que tem um final de semana prolongado à sua disposição, no qual descansará muito melhor, considerando os três dias de folga. Ao mesmo tempo, ao nível macroeconómico, haveria um aumento do consumo e, implicitamente, das vendas e lucros nos serviços e turismo, devido ao fim-de-semana prolongado.

Então é melhor para todos? Não exatamente.

Turnos de dez horas

A lei romena propõe três dias de folga, o que dará aos trabalhadores mais tempo de descanso com suas famílias e mais tempo para consumir.

No entanto, a promessa de que esse horário será mais tranquilo é contrariada pelo testemunho de funcionários de restaurantes nos Estados Unidos que tentaram jornadas de dez horas e acharam o horário “muito cansativo”. Apesar das alegações de empresas como WeWork e Hourly, pesquisas mostram que pessoas que trabalham dez horas ou mais por dia têm maior risco de desenvolver problemas de saúde ocupacional.

Na Romênia, os exemplos pilotos da Perpetual Guardian e um da Microsoft Japão são frequentemente incluídos em artigos que defendem a nova jornada de trabalho mais longa. O que fica de fora é que essas empresas diminuíram o número de dias de trabalho e, ao mesmo tempo, reduziram o tempo total de trabalho, o que de fato deixou os funcionários com mais tempo livre em suas mãos.

Sem uma redução clara no total de horas de trabalho, alterar a estrutura da semana de trabalho para quatro dias em vez de cinco pode causar mais danos ao funcionário. Jonathan Malesic, autor de The End of Burnout: Why Work Drains Us and How to Build Better Lives, disse à Healthline que “trabalhar essas duas horas extras durante o dia é realmente difícil. Sua produtividade após a oitava hora de trabalho provavelmente diminui, mas o estresse não.” A experiência na Islândia foi bem sucedida precisamente porque não dependia de horas extras de trabalho em cada dia de trabalho.

Também crucial é a questão de quem decide. Embora os sindicatos fizessem parte do projeto de implementação da semana de trabalho de quatro dias na Islândia, na Romênia, eles não foram consultados para a proposta legislativa elaborada pela direita. Bogdan Hossu, presidente do sindicato Cartel ALFA do país, disse a Jacobin que a iniciativa romena é desrespeitosa com as pessoas que lutaram e até sacrificaram suas vidas nas batalhas históricas pela jornada de oito horas. Enquanto alguns apontam para Henry Ford impondo a jornada de trabalho de oito horas como parte de sua aplicação da administração científica, a luta por horas mais curtas remonta ao século XIX, quando a classe trabalhadora pagou o preço em sangue por essa demanda.

Mesmo fora desse importante patrimônio histórico, Hossu diz que “mudar a jornada normal de trabalho para dez horas mudará a forma como as horas extras são concedidas e também a quantidade de trabalho que as pessoas realizam a cada dia”. Em um país como a Romênia – onde a maioria dos salários não corresponde ao custo de vida e onde 35% dos funcionários trabalham mais de quarenta horas por semana – a chance de ganhar renda adicional vem de horas extras. As horas extras não são pagas em todos os casos, mas quando os trabalhadores optam por fazê-lo voluntariamente, podem ficar mais duas horas e ser remunerados conforme os acordos.

Ao alterar a jornada normal de trabalho para dez horas sem exigir que as duas horas adicionais sejam pagas como horas extras, podemos chegar a uma situação em que os mais vulneráveis terão que trabalhar mais de dez horas por dia ou mesmo trabalhar no quinto dia para poder viver. Os trabalhadores, assim, acabam com mais estresse e mais horas de trabalho em geral.

Lições francesas

Um caso indicativo das limitações das restrições legislativas ao tempo de trabalho vem da França, que iniciou o processo de redução da semana de trabalho para trinta e cinco horas em média em 1998. A mudança permitiu arranjos de trabalho flexíveis, com empresas como a de malas Samsonite escolhendo trabalhar semanas mais curtas no inverno e mais longas no verão, quando a demanda por seus produtos é maior.

A obrigatoriedade de uma semana de trabalho média de trinta e cinco horas permitia mais flexibilidade, mas não reduzia totalmente o total de horas que as pessoas realmente trabalhavam. Os trabalhadores franceses trabalharam, em média, cerca de trinta e seis horas por semana no ano passado, embora a crise financeira tenha derrubado a média geral por meio de um aumento nos empregos de meio período. Na realidade, a semana de trabalho para funcionários em tempo integral é de cerca de trinta e nove horas por semana, com tudo acima do limite de trinta e cinco horas sendo contado como horas extras.

Source: Eurostat

Além dos benefícios mencionados, pesquisas sobre a disparidade previdenciária entre homens e mulheres sugerem que a redução da jornada de trabalho pode ser benéfica para aqueles que deixam a força de trabalho remunerada para cuidar de familiares (predominantemente mulheres). Na Roménia, a diferença de pensões é de cerca de 25%. Isso decorre principalmente do fato de as mulheres deixarem a força de trabalho precocemente ou nunca terem sido formalmente empregadas, uma vez que a disparidade salarial entre homens e mulheres no país está entre as mais baixas da Europa (2,5%). O risco de pobreza para as mulheres que solicitam aposentadorias é muito maior do que para os homens (28,5% contra 16,4%), mostrando como pode ser prejudicial estar fora da força de trabalho remunerada a longo prazo.

Enquanto algumas vozes clamam por uma renda básica universal, a Romênia está muito atrasada nas demandas por garantias básicas de bem-estar, com a paralisação do sistema educacional e de saúde como resultado de décadas de políticas neoliberais. Antes de chegarmos a um ponto em que possamos garantir a todos uma renda estável, independentemente do status de emprego, encurtar a semana de trabalho pode ajudar a diminuir a pressão sobre os ombros das mulheres.

Mas há outros problemas com esta legislação. Só porque se espera que alguém trabalhe ostensivamente quatro dias por semana não significa que não terá que atender telefonemas, terminar tarefas adicionais no fim de semana ou aparecer no escritório se o chefe assim o exigir. O projeto de lei romeno baseia-se em discussões anteriores sobre a flexibilidade do trabalho que surgiram durante a pandemia, quando certos trabalhadores se viram em casa, tendo que cuidar de crianças e ajudá-las na escola.

Os romenos que tiveram a flexibilidade de trabalhar em casa gostaram: 70% daqueles que tiveram a chance de mudar o escritório para a sala de estar relataram sua satisfação. Mas, apesar dos pedidos de semanas de trabalho mais flexíveis, a realidade mais ampla é que estamos mudando para uma economia permanente que consolida e aprofunda “a invasão de chefes e forças de mercado em nossas vidas privadas”. Para alcançar um melhor equilíbrio entre vida profissional e pessoal, o corte da semana de trabalho deve ser acompanhado por leis de direito de desconexão, como as da Bélgica e Portugal, que proíbem os chefes de enviar mensagens aos trabalhadores durante seu tempo livre.

A pesquisa realizada na Nova Zelândia, na Microsoft Japão ou na Islândia levou o congressista da Califórnia, Mark Takano, que agora tem o apoio de vários grupos, incluindo o Economic Policy Institute e o Congressional Progressive Caucus, a sugerir a introdução da semana de trabalho de quatro dias e a redução tempo total de trabalho para trinta e duas horas. De acordo com o projeto de lei, cada hora adicional trabalhada acima da marca de trinta e duas horas deve ser compensada como horas extras, dada a pesquisa empírica que sugere que o mesmo número de tarefas pode ser realizado em menos tempo.

À medida que o movimento para diminuir a semana de trabalho se torna mais popular em todo o mundo, devemos perguntar se isso pode significar algo mais do que um rearranjo da carga existente de labuta e estresse. Acumular quarenta horas de trabalho em quatro dias tem pouco apelo para os trabalhadores que estarão mais propensos a acidentes e terão que fazer turnos dolorosamente longos que antes seriam compensados como horas extras. Uma solução clara seria diminuir a semana de trabalho para trinta e duas horas e estabelecer o máximo de horas extras em oito horas por semana. Com base em exemplos anteriores, isso tornaria os trabalhadores mais felizes, daria a eles mais tempo livre e permitiria que eles escapassem um pouco mais do controle de seu chefe.

Sobre o autor

Radu Stochita é ativista sindical do Cartel ALFA na Romênia.

O guia essencial da Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...