1 de outubro de 1975

A cidade e o campo na transição para o capitalismo

John Merrington

New Left Review

NLR I/93 • Sept/Oct 1975

Tradução / A importância da relação cidade-campo na transição para o capitalismo no Ocidente, e mais especificamente a relação de urbanismo com capitalismo e progresso, já foram claramente formuladas nas teorias mais antigas sobre as origens do capitalismo — as da Economia Política do século XVIII. Para os proponentes da nova e revolucionária história "conjetural" da "sociedade civil" — Smith, Steuart, Ferguson, Millar — as origens da divisão do trabalho e do mercado no "estágio comercial" da civilização deveriam ser procuradas na separação da cidade e campo. (A prova de primeira mão foi fornecida pela divisão de terras altas e baixas — highlands-lowlands — na Escócia). A separação da produção e consumo provocada pela troca urbano-rural foi a causa daquela "revolução" mediante a qual a auto-suficiência da economia rural foi minada pelos padrões de consumo urbano, destruindo a ordem estática da autoridade patriarcal baseada na posse da terra, na qual o "consumo não é um prêmio mas um preço de subordinação". 1 Essa revolução foi produzida sem a menor previsão ou intenção, meramente pela interação de interesses próprios — gratificação da "vaidade infantil" da parte da nobreza rural, perseguição do lucro pelos mercadores urbanos — em outras palavras, pela ação desimpedida do principio da troca (a "natural inclinação [humana] para o câmbio e a troca"), produzindo uma unidade superior a partir do choque de interesses diferentes no mercado. O papel progressista do mercado então entra em ação: destrói as cadeias no campo, gera independência para os produtores rurais de mercadorias e instaura "governo regular" em vez das cruentas rixas territoriais entre feudos. O mesmo princípio de divisão de trabalho entre produtores especializados para o mercado aumenta simultaneamente a produtividade em sua aplicação à manufatura. Além disso, em contraste com os fisiocratas na França, para os quais a renda era a única forma de mais-valia, o progresso da produtividade agrícola é uma vitória do capital urbano sobre o atraso rural: "As cidades, ao invés de constituírem o efeito, foram a causa e a ocasião da melhoria e refinamento do campo".2

A cidade é o princípio dinâmico do progresso, o campo é inerte e passivo, exigindo um estímulo externo, o "puxão do mercado" exercido pelas cidades como núcleos concentrados de transações de trocas e de riqueza em capital, que por sua vez constitui o poderoso fundamento para a ideologia da burguesia ascendente: a vitória do capitalismo é a vitória da civilização urbana e dos princípios da liberdade de mercado. 3

Todavia, é também evidente que a subordinação do campo ao "mercado" capitalista já alcançou neste caso um estágio avançado: a referência de Smith à dispensa dos séquitos pelos nobres, como "bocas desnecessárias" quando confrontado com as clearances na Alta Escócia, torna-o bem claro. Esse exemplo de destruição total de uma economia rural e de recomposição demográfica já indicava a natureza extremamente parcial do progresso urbano capitalista. Podemos colocar inicialmente esse problema se partirmos da observação de Roupnel: "A civilização Ocidental é, em termos estritos, rural: as cidades representam apenas um fenômeno posterior, e sua forma e fisionomia material conservam suas origens rústicas". 4

Se não esquecermos essa origens rurais, perceberemos que o industrialismo capitalista implicou não apenas uma transferência maciça de recursos humanos e materiais em favor das concentrações urbanas, mas também uma conquista em relação ao campo, que se torna "ruralizado", pois no passado não representava, em absoluto, um ambiente exclusivamente agrícola. Ao se tornar um centro de toda espécie de produção, um setor primário autônomo que incorpora o total da produção social, o campo se transforma em "agricultura", isto é, uma indústria separada de alimentos e matérias-primas, dividida, por sua vez, em vários tipos especializados de cultivo, distritos etc. Todas as cidades representam, é claro, algum tipo de diferenciação urbano-rural: a extração de alimentos e mão-de-obra do campo está implícita na própria definição de cidade. Mas em cada caso antecedente, a economia agrária estabeleceu os limites históricos do desenvolvimento da cidade, até que a urbanização rompeu essa dependência maltusiana. "A cidade apenas existe... em relação a uma forma de vida subordinada à sua própria... Tem de dominar um império, não importa quão pequeno, a fim de existir". 5

Em formações pré-capitalistas, a vitória das cidades era sempre precária, facilmente reversível; o crescimento das cidades foi interrompido, ou arrasado completamente, de acordo com seu domínio político do campo e sua capacidade para extrair o excedente agrícola e novos suprimentos de mão-de-obra, que constituíam sua seiva vital. Quais as condições para o crescimento urbano adquirir forças sociais e ímpeto próprio de modo a poder romper definitivamente com a dependência do campo? E onde/quando se situa essa "revolução urbana", como aspecto-chave da transição para o capitalismo?

A moderna teoria da urbanização oferece uma resposta. Porém, a tipologia das cidades "generativas" e "parasíticas" como funcionais ou não-funcionais para o "crescimento" (Hoselitz) supõe o desenvolvimento como o paradigma baseado no qual "medimos" a freqüente incapacidade urbana de corresponder aos critérios de valor derivados do capitalismo industrial. Essa teoria não consegue explicar essas disparidades como uma unidade diversificada inteligível capaz de proporcionar um fundamento para comparação global: em lugar disso, oferece uma proliferação de modelos descritivos, classificações de subespecies e multiplicação de fatores ad infinitum. A categoria pré-industrial, que abrange as cidades feudais, segundo Sjoberg, é também extensa demais: é incapaz de dar conta da forma específica de oposição cidade-campo que levou ao capitalismo no Ocidente. A classificação quantitativa e ecológica (tamanho e distribuição de redes urbanas, aplicada por J. C. Russell à Idade Média européia) também não fornece mais que índices de urbanização que não consegue explicar os inúmeros casos de involução, regressão e alteração qualitativa na hierarquia das relações de tamanho de que a história urbana é tão rica. 6

A corrente de explicação mais poderosa remonta a Weber e Pirenne, e sustenta o caráter particularmente "generativo" da cidade européia medieval baseado na sua organização comunal, corporativa, como núcleo capitalista com a capacidade de atuar como solvente das relações sociais feudais. Assim, "capitalismo e cidades eram basicamente a mesma coisa no ocidente" (Braudel); a autonomia corporativa das cidades européias e a relativa abertura de sua estrutura comunal permitiu-lhes que se "desenvolvessem como mundos autônomos de acordo com suas próprias inclinações" (Weber). Segundo os estudos de Pirenne sobre as cidades e o comércio medievais, estudos que exerceram tão grande influência, o fechamento das rotas comerciais mediterrâneas foi a chave para a substituição de uma economia agrária nos séculos VII a IX: "Pois uma economia de troca foi substituída por uma economia de consumo.

Cada domínio ... passou a constituir desde então um pequeno mundo em si mesmo ... uma economia doméstica fechada ... sem mercados. Não vendiam porque não podiam vender, porque faltavam mercados". Do mesmo modo, a reabertura do comércio a longa distância a partir do século XI — o contra-ataque da cristandade ao islamismo — fez renascerem as cidades e os mercados (Itália, Flandres), rompendo os "limites rígidos" do sistema dominial. "Como na antigüidade, o campo novamente se orientava para a cidade". Mas neste caso a divisão de trabalho entre a cidade e o campo transformou a este: ao "despertar seus desejos" a cidade multiplicou as necessidades do camponês, melhorou seu nível de vida e assim provocou o fim da servidão, que "coincidiu com a crescente importância do capital líquido". O comércio urbano atraiu a produção agrícola para a cidade, "modernizou-a e liberou-a". Apesar de que a concepção burguesa de liberdade era ainda a de uma ordem privilegiada, um monopólio corporativo, "mesmo assim estava reservada a essa classe média a missão de difundir a idéia de liberdade, e de se transformar, sem que o tivesse desejado conscientemente, no instrumento da gradual emancipação das classes rurais... Não teve o poder de interromper uma evolução da qual fora a causa e que não podia suprimir, a menos que desaparecesse ela própria". 7 Smith poderia talvez ter algumas dúvidas quanto à época, mas teria por certo concordado inteiramente com a essência.

Como todas as teorias evolutivas da "ascensão do capitalismo", esta suscita o problema do longo período da gestação capitalista nas cidades e da ascensão multissecular da "classe média" — evolução interrompida por espetaculares saídas falsas, retornos, retrocessos e traições da antiga ordem até que essa classe se tornasse a força dominante na sociedade. 8 Para Pirenne, essa irregular solução de continuidade resolveu-se mediante a constante necessidade de reabastecer ou reforçar o "estoque" capitalista a fim de manter seu flexível e agressivo espírito de risco e inovação. 9

Existe também uma objeção mais geral: interpretar retroativamente na história o papel progressista da burguesia urbana é considerar o mercado como a única força dinâmica, o princípio por detrás de todo movimento, toda mudança. O capitalismo (e seu núcleo urbano) é a única formação com capacidade de desenvolvimento, identificado com a própria historicidade. Daí a necessidade de descobrir uma fonte externa, contingente, ou um "agente motor" que possa responder por sua gênese: a abertura das rotas comerciais, primeiro no Mediterrâneo, depois no Atlântico, um evento contingente e externo vis-à-vis com as relações feudais no campo, que intrinsecamente não tem capacidade de desenvolvimento ulterior. O mercado mundial capitalista não é apenas o resultado ideológico da história: é também seu ponto de partida. O mercado e o princípio da troca são o "motor" autogerador por detrás de todo desenvolvimento, quer antigo, feudal ou capitalista: sua ausência denota estase. Karl Polanyi há muito tempo ressaltou a falácia da história econômica ortodoxa segundo a qual o mercado é o fim de toda atividade econômica e o mercado mundial é um "resultado natural da expansão dos mercados". 10

Mais recentemente, esta se tornou a questão central do debate entre os historiógrafos marxistas sobre a transição do feudalismo para o capitalismo, suscitado pelas críticas de Sweezy a Studies in the development of capitalism, de Dobb, publicado em Science and Society entre 1950 e 1953.11 Sweezy reiterou a tese clássica de Pirenne: o impulso externo dos mercados urbanos baseados no comércio a longa distância como o [pág. 220] motor e o solvente do modo feudal. Dobb já criticara a disjunção que esse modo de pensar pressupõe entre economias "naturais" e de "troca", como "duas ordens econômicas que não podem misturar-se", em seus Studies. Ele rejeitara esse modelo dualístico como uma abstração não-histórica do mercado, divorciado das condições de sua realização: em outras palavras, como uma extensão à história da suposição fundamental subjacente à economia neoclássica. 12 Ao mesmo tempo, não negou o papel das cidades e do comércio no declínio do feudalismo em oposição a contradições "internas": o papel da circulação de mercadorias na ampliação da produção rural especializada para o mercado e na aceleração da diferenciação socioeconômica dentro do campesinato e dentro das guildas urbanas e em oposição a elas foi reintegrado por Dobb como um "coeficiente subordinado" na crise e no declínio da economia senhorial. Nem ele negou inteiramente a natureza capitalista das cidades no modo feudal. 13 A tendência da pesquisa histórica desde então tem sido situar as cidades dentro do modo feudal, sustentando a compatibilidade das cidades com o feuda-lismo na Europa, a origem feudal das cidades, e, de fato, o papel essencial do capital mercantil dentro do modo feudal. 14 Essa posição corresponde à tendência de rejeitar o modelo dualístico da transição para o capitalismo — mercados urbanos capitalistas contra a "economia de subsistência" estática feudal no campo — e a tentativa de descobrir "leis" dinâmicas específicas que governam o desenvolvimento e a crise do modo feudal, análogas às inerentes à acumulação capitalista.

Isso, porém, traz um problema. Dada a especificidade da cidade medieval e do capital mercantil dentro do modo feudal, quais são os fatores determinantes da "revolução urbana" na Europa ocidental que permitiram que a dissolução desse modo levasse à ulterior conquista do campo pela cidade? Como as cidades podem ser "internas" e "externas" ao mesmo tempo? Qual é a forma específica da oposição cidade-campo tanto no interior do feudalismo no Ocidente, como contra ele? A descontinuidade radical implícita, se rejeitarmos — como devemos — a hipótese dualista, tanto em termos de história do mercado como do capitalismo e cidades, já fora teoricamente estabelecida por Marx. Em seu primeiro esboço da história da sociedade civil em German Ideology, a divisão do trabalho entre a cidade e o campo, entre o capital e a propriedade fundiária, é o agente central no desenvolvimento autônomo e materialista das contradições na sociedade civil no sentido de um mercado dividido em classes. Esse ponto de vista opõe-se ao de Hegel, para quem a polarização em cidades (esfera da organização corporativa, finita) e campo (a "sede da vida ética baseada na natureza e na família") é apenas um momento — a "fase da divisão" — na realização superior da universalidade no Estado.15

Numa passagem de O Capital (v.I, c.14), Marx se refere a esse esboço anterior, definindo a separação da cidade e do campo como "a base de toda divisão de trabalho que é bem desenvolvida e efetuada pela troca de mercadorias". Todavia, ele prossegue mostrando que essa separação, como fundamento de toda divisão social do trabalho, é comum às mais diversas formações — por exemplo, nas comunidades indianas onde atua com "a irresistível autoridade de uma força da natureza". Essa divisão social simplesmente estabelece a existência das cidades em si. Segue-se que não pode ser confundida (como em Smith) com a divisão de trabalho no mercado capitalista e portanto com a cidade capitalista, que implica a ruptura de todas as especializações baseadas na dependência recíproca e cristalizadas pela tradição, e na sua substituição pelo meio indireto dos movimentos de preços do mercado. Nem pode ser igualada à organização técnica de operações individualizadas na manufatura de peças, pois nesse caso "apenas o produto combinado é uma mercadoria", implicando "a autoridade direta do capitalista sobre homens que são apenas partes de um mecanismo que lhe pertence". Portanto, não pode haver evolução linear do "mercado" a partir da divisão social do trabalho. Não há evolução na cidade capitalista — e na oposição/subordinação cidade-campo que lhe corresponde — de antiga ou feudal para capitalista. A preponderância da cidade capitalista, como a da fábrica baseada no trabalho assalariado como sua raison d'être, é o produto de uma ruptura histórica — o "pecado original" do capital, sua "acumulação original". Nem tampouco a fábrica se originou da sociedade.

Quais, então, as descontinuidades ou "estágios" desta transição? Marx definiu a especificidade da cidade feudal no Ocidente desta maneira: "A história da antigüidade clássica é a história de cidades, mas de cidades baseadas na propriedade fundiária e na agricultura: a história asiática é uma espécie de unidade indiferenciada de cidade e campo (as cidades maiores devem ser consideradas aqui como acampamentos reais, como trabalhos de artifício erigidos sobre a construção econômica propriamente dita); a Idade Média (período germânico) começa com a terra como a sede da história, cujo desenvolvimento posterior avança em seguida em direção à posição entre cidade e campo; a era moderna é a urbanização do campo, e não a ruralização da cidade como na antigüidade". 16

Essa indicação sibilina (não o é mais) do caráter dinâmico da oposição entre a cidade e o campo, específica ao modo feudal, deveria ser suplementada com a análise feita por Marx do capital mercantil no volume III de O Capital. Marx rejeita a história evolutiva do capital baseada nas categorias da troca burguesa (a esfera do "comerciante livre vulgaris") pois essas categorias — a liberdade e a igualdade do mercado — são apenas a forma fenomenológica das relações sociais de produção, expressas através das lentes deformadoras das relações entre produtos do trabalho. A esfera de circulação, na qual o capital mercantil — a "primeira forma livre de capital" — surge e que é a base da acumulação urbana da Idade Média, transfere-se pela economia política burguesa "de sua pré-história para o presente", estabelecendo dessa maneira "o eterno direito do capital aos frutos do trabalho alheio... a partir das leis simples e 'justas' da troca equivalente". 17 O processo deveria ser "exatamente o oposto". 18

Embora o capital mercantil no modo feudal certamente tenha um efeito dissolvente, é "incapaz por si mesmo de promover ou explicar a transição de um modo de produção para outro". A mera existência da produção de mercadorias e do capital baseado na circulação não é suficiente para que o processo de dissolução resulte em produção capitalista. "Senão a antiga Roma, Bizâncio etc, teriam terminado sua história com trabalho livre e capital", enquanto "essa dissolução levou, com efeito, à supremacia do campo sobre a cidade". Aonde levará a ação corrosiva do capital mercantil, em outras palavras, "qual o novo modo de produção que substituirá o antigo, não depende do comércio, mas do caráter do antigo modo de produção". 19

De fato, o desenvolvimento autônomo do capital comercial, que se baseia em diferenciais de preço entre mercados e esferas de produção separados (comprar barato e vender caro) é "inversamente proporcional à não-sujeição da produção ao capital". Sua externalidade, vis-à-vis com a produção, é a própria condição de sua existência, pois interpõe-se como "intermediário" "entre extremos que não controla e premissas que não cria". O capital mercantil pode apenas redistribuir mais-valia mediante lucros inesperados: daí seu papel-chave na acumulação original de capital. Ele não pode, porém, ser uma fonte de acumulação permanente e auto￾reprodutora. Tem um papel preparatório decisivo, ao lado de suas formas "domésticas" de usura, especulação com a escassez etc, mas não pode desempenhar um papel determinante, endógeno, na transição.

Estas considerações permitem-nos definir com maior precisão a unidade/oposição de cidades e "capitalismo" urbano no modo feudal. O "capital" e os "mercados" nos quais se baseava o crescimento urbano feudal não eram absolutamente ancestrais lineares do mercado mundial capitalista. Está errado interpretar a "liberdade" das cidades medievais num sentido parcial, unilateral, fora do contexto feudal que determinava a "externalidade" dessa liberdade do capital mercantil e definia seus limites. A autonomia da cidade não era a de uma "ilha não-feudal" (Postan); sua liberdade e desenvolvimento como um enclave corporativo não seguia "suas próprias inclinações", como na formação historicista de Weber. Fundamentava-se no parcelamento generalizado da soberania, e se limitava por ele, baseando-se na coincidência das relações políticas e econômicas de subordinação/apropriação que definiam o modo feudal. Era a existência dessa autonomia urbana corporativa como um "senhor coletivo" dentro de uma estrutura celular baseada em soberania "em vários graus" que exatamente encorajava o desenvolvimento mais completo do capital mercantil na cidade medieval. Portanto o "capitalismo" urbano foi tanto interno como externo ao modo feudal — ou, mais precisamente, o primeiro foi a condição do segundo. Os termos "interno" versus "externo" do debate Dobb-Sweezy devem ser reinterpretados a essa luz. A "oposição" dessas cidades foi uma oposição de esferas econômico-corporativas de soberania, o que deve ser considerado como um elemento tão interno ao feudalismo como a ascensão e o declínio da economia senhorial — na verdade, é definido por essa co￾existência. Longe de ser fixo, muito menos exclusivamente "rural", o feudalismo foi o primeiro modo de produção na história a permitir, por sua própria ausência de soberania, um lugar estrutural autônomo para a produção urbana e para o capital mercantil.

Essa "externalidade interna" que permitiu o crescimento independente do capital urbano, a conquista das rotas comerciais etc, na Europa contrasta vivamente com a "cidade oriental", imobilizada numa continuidade de relações com a sorte do poder imperial, e na qual a fragmentação política estava ausente, exceto em períodos de anarquia interna. Na China "os ares da cidade" não libertavam ninguém: os muros da cidade não representavam os baluartes de sua autonomia jurídica em relação ao campo, como na Europa, mas a defesa externa militar-administrativa de uma autoridade superior coletora de impostos, representada na morfologia da cidade pela "cidade interior" fortificada e separada, reservada para o mundo oficial. A cidade não tinha autonomia social: sua estrutura social, baseada em clãs, linhagens, seitas religiosas, era uma extensão da estrutura rural. 20 É esclarecedor fazer um confronto entre essas cidades com o crescimento das comunidades comerciais independentes do Japão ao longo das cidades-castelo da nobreza durante o período descentralizado Ashikaga (1339-1573), e com o crescimento espetacular do porto comercial livre de Sakai para mais de 50 mil habitantes — a "Veneza do Japão", segundo os missionários jesuítas. 21

O crescimento urbano feudal se correlacionava estreitamente com o desenvolvimento da economia senhorial. Longe de ser um sistema estático de "produção para uso", a última, baseada na apropriação direta do trabalho excedente e da renda dos agricultores, em condições tais que os meios de produção estavam nas mãos dos produtores diretos e a "relação política do amo e do dependente é [portanto] parte essencial da relação econômica da apropriação", 22 era o agente real, subjacente, do modo feudal e de sua crise a partir do século XIV. A resistência dos camponeses ao trabalho excedente no domínio, a luta para devotar o trabalho à propriedade familiar e para guardar o máximo possível do produto desse trabalho, a expansão contínua da propriedade semi-livre e a pugna pela emancipação rural (as comunas rurais da Itália e da França) foram apenas esforços "secundários", movimentos de "protesto" sem repercussão sobre as relações sociais, menos ainda imitações das iniciativas urbanas. As transformações da renda feudal que esses esforços suscitaram — de renda-trabalho para renda-espécie e renda-dinheiro — embora não alterassem por si nus mas a natureza básica da renda feudal como apropriação direta de trabalho excedente, não pago, pelo terratenente, ainda assim, ao fixar esse trabalho excedente, estimulou o crescimento da produção independente de mercadorias e a diferenciação dentro do campesinato em si. O próprio Marx observou as possibilidades dinâmicas inerentes ao modo feudal, não apenas no sentido territorial￾extensivo, como em termos dessa luta pela partilha do produto excedente. Isso foi o que determinou os limites da economia dominial senhorial, e portanto os resultados alternativos da crise do século XIV (vitória da apropriação pelo terratenente do trabalho obrigatório, na "segunda servidão" na Europa oriental; vitória da produção de mercadorias pelos camponeses, com a emergência de uma classe de proprietários camponeses — yeomen ou laboureurs — no Ocidente). 23 As revoltas camponesas, que atingiram um estágio de crescimento com a intensificação da prestação de serviços no contexto da escassez de mão-de-obra no século XIV, foram "tão inseparáveis do regime senhorial como as greves do capitalismo em larga escala" (Bloch). O persistente mito histórico do campesinato passivo (apesar da óbvia evidência contemporânea em contrário) deve ser confrontado com esse papel decisivo na deflagração da crise da economia dominial, na sobrevivência do campesinato na maior parte da Europa e — acima de tudo — na sua vitória na França em 1789.24

Esse mito é comparável ao da burguesia urbana revolucionária. Contudo, como ressaltou Hilton, comparado a essa luta rural fundamental pela geração do produto excedente, a das comunas urbanas simplesmente se relacionava com "a partilha do excedente depois que este fora tomado dos produtores básicos". 25 De maneira semelhante, o trabalho pioneiro de Porchnev sobre as revoltas camponesas na França, no contexto da crise do século XVII, que alinharam a burguesia urbana com a nobreza na defesa de uma ordem social baseada na extração de renda, mostrou que essas revoltas foram o "agente" da refeudalização da burguesia no contexto do novo "feudalismo estatal" do absolutismo. 26

Esta ausência de vocação revolucionária por parte das cidades, as constantes "traições" à velha ordem pela burguesia (como credora da velha ordem), de que Engels viu um processo análogo na Alemanha em 1525 e em 1848, devem ser consideradas em termos de seus interesses objetivamente convergentes em face da exploração do campo, à medida que a renda continuava a ser, sob suas várias modalidades, o principal modo de apropriação do excedente, e o capital continuava externo ao processo produtivo.

Nesse contexto, a posição da cidade como um "senhor coletivo" era — e permaneceu sendo, quando apoiada pelo estado absolutista — a de um monopólio corporativo. "As cidades tornaram-se unidades econômicas e sociais distintas apenas quando e porque certos lugares foram separados e defendidos por leis e privilégios que fizeram deles centros de mercado e "de produção, e negaram tais direitos, ou alguns deles, ao campo que as cercava". O comércio reservava-se "estritamente aos que ingressavam na comunidade comercial de [uma determinada] cidade". 27 A tendência liberal de Pirenne em favor do livre comércio levou-o a considerar esse caráter monopolista restritivo das cidades medievais como um obstáculo à livre circulação representada pelo elemento "dinâmico" do comércio a longa distância. Ao contrário, o exclusivismo das cidades deve ser considerado exatamente como uma condição prévia para o desenvolvimento do capital mercantil nesse estágio. Não devemos perder de vista esse caráter feudal do "capitalismo" primitivo; a circulação baseada na livre troca de equivalentes pertence ao pleno desenvolvimento do mercado capitalista. Mesmo no século XVIII, o mercado permanecia limitado na maior parte da Europa a uma gama restrita de produtos, os salários freqüentemente eram pagos em espécie, e a comercialização dos produtos agrícolas era ainda apenas parcial. O consumo próprio, as vendas por troca e os pagamentos em espécie usualmente reduziam o âmbito de transações monetárias e, portanto, o domínio do mercado. Em 1751 Galiani calculou que em Nápoles 50% das transações ocorriam fora do mercado: "os camponeses, que constituem três quartas partes de nossa população, não pagam em dinheiro nem a décima parte de seu consumo".28

O mercado era um prêmio reservado para poucos, e sua "conquista" representava a aplicação forçada de um monopólio de produção e comércio contra o campo, bem como contra o avanço de cidades rivais. Enquanto o mercado dependeu das disparidades de preço entre esferas distintas de produção nas quais os produtores não estavam separados dos meios de produção e subsistência, o comércio apenas existia nos interstícios do sistema, monopolizando o suprimento de uma limitada linha de mercadorias, sendo dependente da indulgência política: era mais "uma estrutura de tributos que uma estrutura de comércio". 29

O comércio não fugia absolutamente a essa estrutura monopolística: dependia do êxito da cidade em conseguir uma posição privilegiada como intermediária por meio de políticas de abastecimento, transações de concentração e distribuição em seu mercado, realizações de vendas e exclusão de estrangeiros ao acesso direto mediante "leis de reunião" (hostings laws) etc. No Mediterrâneo, a economia urbana baseava-se no monopólio de suprimento de mercadorias importantes, defendidas por embargos, alianças, guerra e pirataria contra cidades rivais: guerra, diplomacia e comércio eram sinônimos. (A sorte de Pisa, que primeiro perdeu para Gênova — em 1284 esta construiu um molhe na desembocadura do Amo e obstruiu o porto com lodo — e mais tarde para Florença, é eloqüente.) O comércio significava também a exclusão do campo do monopólio urbano da troca, bem como do monopólio da guilda de produção artesanal: o entrave à produção de baixa qualidade, fora das especificações da cidade (ban) era especialmente rigorosa nos centros têxteis flamengos a partir do século XIII, havendo expedições punitivas para destruir teares e tinas nas aldeias vizinhas, numa tentativa de criar um vácuo industrial e uma reserva particular para matérias-primas e a venda de produtos urbanos. Na Escócia, os burgos reais cercavam-se de suas regalias, no interior das quais "apenas burgueses podiam desempenhar qualquer atividade de comércio varejista, mesmo de produtos nativos", monopólio que só foi rompido, e assim mesmo parcialmente, no final do século XVII.

No caso de Flandres, o fracasso dos centros têxteis em criar uma forma de "cidade-estado" tem sido atribuído à "preocupação exclusiva do burguês com sua cidade e seus interesses urbanos", sua "tendência a isolar-se do campo", impedindo o estabelecimento de uma unidade econômica viável de cidade e campo. 30 Como diz Polanyi, a cidade tanto "envolvia o mercado como impedia sua maior expansão". O crescimento da cidade dependia de suas especificações, que eram a salvaguarda de seu monopólio contra o campo, e que lhe permitia "explorar economicamente o campo através de seus preços monopolistas, sistema de tributação, organização em guildas, fraudulência comercial direta e usura". 31 O crescimento dos subúrbios desvalidos (ban-lieu) destinava-se a abrigar os trabalhadores e artesãos mais pobres fora dos muros e, assim, comumente fora dos privilégios da cidade.

Esse monopólio e as condições jurídicas que o possibilitavam faziam da cidade, como organismo corporativo e coletivo, uma anomalia em face da articulação vertical do poder feudal no campo, mas a cidade, ainda assim, dependia desse "contexto feudal" para a defesa de seus privilégios. Na Inglaterra, onde, de qualquer modo, esses monopólios eram limitados, as cidades cresciam através de "uma sociedade dominada por senhores laicos e eclesiásticos que recolhiam uma parte dos lucros e apunham seu próprio selo a muitas das cidades, antes de afrouxar o arrocho — se é que afrouxavam!" Mesmo então, autonomia e privilégios econômicos eram decisivos para o progresso, como se evidencia pelo destino de cidades que não conseguiram obter direitos essenciais como, por exemplo, ao próprio trigo ou a pisoarias — Warwick, St. Albans, Wells, Bury St. Edmunds etc, — cujo crescimento foi interrompido. 32

Na Itália, onde a cidade-estado fazia da cidade um seigneur de pleno direito, o mapa se cobria de "vastas senhorias feudais, em cujos interstícios as comunas lutavam para manter uma independência fugidia". A vassalagem continuava na maior parte da Itália rural e as cidades dependiam — tanto do ponto de vista militar como do suprimento — de certos feudos locais. Daí a supremacia de dinastias de condottieri sobre a própria cidade: as senhorias da Romagna, os Estensi sobre Ferrara, os Visconti sobre Milão etc, que constituíam antes a regra do que a exceção. 33 De modo similar, os privilégios comerciais das cidades hanseáticas no auge do seu poder dependiam da proteção feudal da Ordem dos Cavaleiros Teutônicos. 34

Nada revela melhor os limites dessa economia municipal do que seu declínio e involução no contexto do crescente mercado mundial e o estabelecimento da soberania estatal territorial a partir do século XVI. Isso coincidiu com a explosão especulativa do capital mercantil baseado no comércio colonial e no credito fiscal: o declínio das cidades corporativas mediterrâneas, que se seguiu à sua sujeição pelas novas monarquias (derrota dos communeros, captura de Florença, domínio da Itália pelos Hapsburg), não foi um evento contingente (devido às "descobertas no Atlântico", em algumas das quais o capital italiano teve grande participação; o Atlântico, como Braudel mostrou, era inicialmente uma extensão comercial do Mediterrâneo). Deveu-se, antes, às limitações objetivas do próprio capital mercantil e, em decorrência, à sua incapacidade de desenvolver uma base produtiva ampliada e adequada para a acumulação de capital. Essa incapacidade, exceto no Noroeste da Europa, para avançar além da guilda, do exclusivismo municipal, e portanto da produção de bens de alta qualidade para um mercado cada vez menor, foi definida por Cipolla como o principal fator do declínio da economia urbana na Itália. As mesmas "limitações" que permitiram a mais completa autonomia do capital mercantil no modo feudal agora se tornavam empecilhos para o subseqüente desenvolvimento do capitalismo: "a situação se invertia... As cidades, que anteriormente haviam lutado pelo estabelecimento de um novo e progressista sistema econômico, agora se tornavam núcleos de interesses em luta contra o novo tipo de desenvolvimento".35

Tudo isso se fez acompanhar de uma involução interna no sentido de formas de riqueza rentiere, da fuga do capital urbano para a terra, de obrigações governamentais e taxação das glebas (taxfarming) (Casa di San Giorgio, em Gênova, os monti, em Florença) que transformaram a elite urbana numa aristocracia de investidores ou de proprietários de terras que depois se fundiram com a própria nobreza absenteísta. Essa "refeudalização" da cidade pela transformação do capital mercantil em renda não deve ser considerada uma "defecção" ou "traição" por parte da burguesia em decorrência de uma ânsia de posição social (que implica uma oposição de Interesses de classes que possam ser "traídos"); e nem deve ser encarada, como no recente estudo de Peter Burke sobre as elites em Veneza e Amsterdã, como "mudanças de estilo de vida" de um ponto de vista de empresários ou investidores preocupados com um consumo duvidoso, o que seria apenas aceitar o veredito contemporâneo de rebaixamento moral, um abandono subjetivista e elitista de explicação histórica. 36

Ao contrário, deve ser considerada — como no caso da decadência da Espanha — como produto da natureza especulativa e precária dessa explosão do capital mercantil, comprovada por sua inversão durante a crise do século XVII, que favoreceu o influxo de riqueza urbana, sob formas usurárias de renda e taxação rural (taxfarming): o resultado desse "feudalismo de investidores" — a fusão do capital mercantil e da propriedade fundiária — foi a fiscalização da renda numa base nacional (Porchnev) no estado absolutista, que aprofundou a defasagem entre a cidade e o campo baseada num nexo de dívida-crédito absenteísta. Assim como a transição para renda-dinheiro é apenas uma mudança na forma da renda — o restante permanecendo igual — assim também o influxo do capital urbano na terra e na compra de títulos, receitas provenientes do cultivo de senhorias etc, não conduz necessariamente à agricultura capitalista de parceria — o "caminho direto" inglês para a agricultura capitalista, segundo Marx. A comercialização urbana de produtos agrícolas também pode levar a um reforço da relação externa dos investidores de predominância urbana, meramente cristalizando obrigações feudais, receitas senhoriais e dízimos eclesiásticos numa base comercial, que seus coletores não tinham interesse em destruir. De fato, a comercialização de produtos agrícolas em geral se fazia acompanhar de reação dos senhores. As exações tornavam-se mais pesadas, do que resultou a onda de revoltas [pág. 233] camponesas contra a exploração fiscal e os terratenentes absenteístas, a qual atingiu seu clímax nos meados do século XVII. O estado absolutista foi a primeira e mais importante máquina de extração de renda, na qual as cidades tinham tanto interesse quanto a nobreza. 37

O capital urbano agiu sobre a sociedade rural principalmente por meio do capital usurário, explorando a escassez de crédito no campo agravada pela transição para rendas em dinheiro e pelas exigências fiscais, especulando com os preços das safras e a carestia, hipotecando obrigações e serviços feudais. A usura se alimenta do velho modo, sem alterá-lo. Ele depende, como o capital mercantil, de um mercado e da pequena produção de mercadorias, de natureza pré-capitalista, agravados pela apropriação fiscal. O fiscal agrário (taxfarmer) e o usurário andam em geral de mãos dadas (Duby). O predomínio do capital investidor (baseado na renda "constituída" e de proprietário, isto é, formas de renda usurárias) é bem exemplificado por aquele tipo "intermediário" de arrendamento — mezzadría ou parceria — generalizado na Itália e no Sul da França: o capital urbano compartilha do produto com o camponês cultivador, como retorno do respectivo investimento. Esta forma "transitória", que associa o capital mercantil com a agricultura camponesa (Marx, O Capital, v.III, cap. 47), não era claramente "transitória" num sentido historicamente dinâmico: o desenvolvimento dessa renda usurária ocorreu dentro da estrutura feudal da sociedade rural, e não contra elas. A despeito do desenvolvimento precoce da agricultura capitalista na bacia irrigada do Pó, o investimento de capital urbano na agricultura italiana tendeu para a refeudalização das relações agrárias. 38 Essa transição urbana para a riqueza investidora deve pouco a um declínio da "concepção empresarial": na conjuntura dada, o investimento em títulos e receitas senhorais dava [pág. 234] rendimentos mais seguros. O investimento genovês em trigo, azeite, seda e outras safras comerciais da Itália meridional rendia lucros de mais de 30%. A migração da aristocracia veneziana para a terra firma não se deveu apenas ao deleite pela arquitetura paladiana, mas se fez acompanhar de um sistema intensificado de agricultura senhorial baseado no cultivo comercial de milho e cânhamo e na criação de gado. 39 O paradoxo desse feudalismo "capitalista" ou melhor dito "investidor" deve-se ao fato de que na maior parte da Europa a comercialização da agricultura antes agravou que abrandou os encargos feudais sobre o campesinato.

Na Europa oriental houve um declínio análogo nas cidades "livres" privilegiadas, baseadas na produção das guildas: ali, onde a autonomia das cidades estava mais cerceada pela economia senhorial, e enfraquecida pela sua atuação como intermediárias no intercâmbio de mercadorias com o ocidente, o crescimento do mercado mundial levou à subordinação do burguês urbano, numa economia de exportação senhorial baseada no trabalho de corvéia. A presumida antítese do feudalismo e comércio, derivada do modelo dualístico da cidade e do campo como modos de produção separados, e a implícita correlação espacial-ecológica das cidades e do "declínio" feudal (Sweezy: "Próximo aos centros de comércio o efeito sobre a economia feudal é fortemente desintegrador; mais longe, o efeito tende a ser justamente o oposto"), não podem dar conta das variadas formas desse feudalismo de agricultura comercial — e não apenas no Oriente — a partir da Idade Média. Na Europa central (Boêmia, Saxônia, Áustria), onde o mercado interno se desenvolveu vantajosamente até a Guerra dos Trinta Anos, uma posição "mediana" emergiu; a reação à escassez de mão-de-obra nas propriedades senhoriais assumiu ou a forma de altos salários ou a da intensificação de serviços de robot, enquanto as cidades livres eram vencidas pela concorrência representada pela produção mais barata nos "agrupamentos senhoriais" que proliferavam nas propriedades feudais sem as [pág. 235] restrições das guildas. As cidades livres, com suas vastas propriedades, tendiam a "seguir a mesma... política econômica dos magnatas aristocráticos". 40

Na França, onde o predomínio da riqueza urbana investidora se reforçou pela confirmação da posição privilegiada das cidades no ancien regime, a relação "externa" da cidade com o campo se ampliou: o investigador tornou-se "mais e mais distanciado da fonte de sua renda... mais e mais estranho aos campos, esses 'desertos' desprezados desde os tempos de Molière: ele pertence à cidade, mesmo à capital, quer provincial, nacional ou real... Os interesses e a resistência do investidor e do pagador de renda colocam-nos muito claramente em posições opostas". 41 Assim se explica a resistência episódica e limitada das cidades à centralização real — a participação urbana na Ligue ou nas Frondes — e o fato de que a concentração urbana na riqueza fundiária se acentuou enormemente com o absolutismo real. O espanto de Arthur Young pelo contraste entre o campo bretão e a opulência do porto de Nantes — "nenhuma transição suave do bem-estar para o conforto... da mendicância para a fartura em uma etapa" — testemunha a fraqueza básica das condições que governavam a acumulação original na França.

A crise do século XVII, esboçada primeiramente no artigo de Hobsbawm de 1954, revelou as falhas desse comércio mundial baseado no capital mercantil especulador e nas relações feudais de produção na cidade e no campo. "Os surtos econômicos multiplicam as atividades: as crises os selecionam" (Vilar). A inversão do surto arrastou as economias feudal e urbana mercantil, que o tinham promovido, para um papel secundário, subordinado (Espanha, Itália, mais tarde a Holanda), devido à sua fraca base doméstica produtiva. Apenas na Inglaterra essa especulação baseada no comércio colo- [pág. 236] nial foi capaz de proporcionar o ponto de partida de uma acumulação produtiva inteiramente autônoma e um crescimento do mercado doméstico. De outro modo, o predomínio de capital mercantil — quer no comércio ou na produção — permaneceu como uma mediação redistributiva entre produtor e consumidor, dependente das disparidades entre preço de custo e preço de venda, na medida em que a própria produção se organizara externamente ao capital, e não existia o mercado mundial integrado (e seus preços médios ou a longo prazo): em condições nas quais a economia mundial (para citar Braudel) era "vasta mas fraca". 42

Ao contrário, a "acumulação original de capital engendrou sua própria destruição" (Vilar). O advento de um mercado mundial pela nivelação das disparidades de preço de custo — o estabelecimento de preços mundiais — coincidiu com a prosperidade e a maior exploração da economia doméstica. Essa reação produtiva do século XVIII à pressão inflacionária (a da produção fabril capitalista) revolucionou a vigente divisão do trabalho e hierarquia das cidades, subordinando os lucros comerciais inesperados à disciplina do preço de mercado e reduzindo-os a uma simples renda do setor de distribuição. 43

O desequilíbrio demográfico decorrente dessa frágil base produtiva e a instabilidade assim deflagrada compensavam-se pelo crescimento das grandes cidades capitais: a antiga hiper- [pág. 237] trofia de Nápoles ou Constantinopla tornaram-se no século XVII a norma na Europa. Esse crescimento desproporcional das metrópoles alimentou-se da proletarização e da população excedente do campo, do atrativo do salário em todas as estações, da concentração do capital do investidor e das receitas governamentais, com a conseqüente multiplicação de serviços. A alta proporção, nesse crescimento, de ocupações marginais, servos, mulheres não casadas ou viúvas, prostitutas, mendigos sem raízes e crianças abandonadas, fala por si mesma. Moralistas contemporâneos investiram contra essa concentração de renda eminentemente não-produtiva e seu cortejo — o desmesurado submundo proletário sem trabalho. Defoe, os Fielding e Cobbett denunciaram o desperdício ostentatório de riqueza em Londres, sua "ociosidade", "perversidade" e corrupção do caráter nacional. Mercier temia a canaille sans nom à qual atribuía os males da revolução em Paris, convencido de que apenas os elementos mais daninhos da população rural vinham para a capital. Para Rousseau era inconcebível que "ninguém tivesse percebido que a França seria muito mais poderosa se Paris fosse liquidada". Os governos legislavam em vão para confinar os pobres, impedir a mobilidade e controlar seu crescimento, visto como um perigo para a ordem social. Mas, como diz Braudel: "Seria mesmo sensato suprimir a válvula de segurança indispensável à fervura do grande reino?"44 Segundo Sombart, essa concentração de riqueza de consumo, capacidade usual dessas capitais para viverem acima dos seus recursos, aceleraram o crescimento do capitalismo. Wrigley sustentou que, no caso de Londres, a "grande metrópole" (com 11 % da população nacional, em 1750, contra 2,5% em Paris), o consumo da capital exerceu uma influência benéfica, geradora, sobre a formação do mercado nacional. Seria, porém, temerário dizer o mesmo de todos os casos: a diferença entre Londres, sede de um capitalismo agrário altamente desenvolvido e entreposto do comércio mundial, e, por exemplo, Nápoles ou S. Petersburgo, era imensa. O suprimento de Londres pelo interior era tão garantido quanto o mercado mundial que ela dominava: a inquietação do consumidor não se devia ao preço do pão (como em Paris), mas a um padrão de consumo mais variado, e a salários. Enquanto em Nápoles, onde o medo das massas populares tornava as autoridades "não apenas liberais mas pródigas", os artigos de primeira necessidade eram subsidiados pelo monopólio real, com prejuízo. A relação entre cereais e azeite baratos e a popularidade dos re lazzaroni Bourbon era um indicativo político desse precário problema de suprimento, que drenava recursos de uma vasta área. A instabilidade demográfica dessas cidades, mantida por um fluxo permanente de imigrantes rurais que compensava a alta mortalidade e as epidemias, testemunhava esse desequilíbrio básico.

A formação do mercado interno centrado na metrópole é bem demonstrada por Steuart: "Todo supérfluo se transforma em dinheiro... sem uma boca extra ou inútil", enquanto longe da cidade "há uma abundância de coisas supérfluas que não podem ser transformadas em dinheiro". Acrescenta ele: "É bom ter uma propriedade bem distante, quando se quer viver nela; é melhor ter uma perto da cidade grande, quando não se quer" (Inquiry, v.I, 55). Mas esse impulso capitalista "gerador" do mercado urbano depende de outra circunstância que Steuart chama de "a separação entre a mãe terra e seus filhos laboriosos", que deve "naturalmente" ocorrer na proporção do desenvolvimento da indústria e do comércio (cap. 10). O pleno desenvolvimento de um mercado capitalista exige, como Dobb acertadamente sustentou, a expropriação dos produtores imediatos dos meios de produção e subsistência, isto é, a terra, ela própria "liberada", pela separação da agricultura como empresa, dos laços da posse fundiária. A organização da agricultura como uma indústria produtora de valores de troca faz parte da mesma divisão de trabalho que gera a fábrica baseada no trabalho livre assalariado. Essa criação das condições de um mercado industrial-agrário baseado na troca de equivalentes mostra "até que ponto se faz necessário um desenvolvimento extremamente diferente na divisão de trabalho e de relações produtivas para que o milho possa ser produzido como um valor de troca puro e simples, que entra inteiramente na circulação; e que processos econômicos especiais são exigidos para que se produza um arrendatário inglês, ao invés de um camponês francês". 45

Nada ilustra melhor as limitações do conceito de "economia urbana" (Karl Bücher), e do dualismo econômico de cidade e campo que ele pressupõe, que o fato de que o capital primeiro assume o controle do processo produtivo fora da cidade: "no campo, em aldeias que não têm guildas" (Marx). Isso se aplica não apenas à indústria fabril, que suscitou uma hierarquia urbana inteiramente nova fora dos limites do controle municipal das cidades corporativas estabelecidas (como no caso de Manchester ou Birmingham, que se encontravam sob jurisdição senhorial e não ofereciam empecilho à liberdade de exploração do mercado de trabalho). Também se aplica às indústrias domésticas rurais ou sistemas putting-out a partir da Idade Média, que escaparam ao controle das guildas e solaparam os monopólios urbanos. Como dizem Clark e Slack: "O desincentivo (para a indústria) dos controles urbanos existentes foi um fator mais importante do que os incentivos positivos da economia rural... O crescimento parece ter sido fomentado pela ausência de controles comunitários rigorosos". 46

Essa migração rural da indústria corresponde à primeira forma histórica de controle capitalista da produção, a da manufatura, que expandiu enormemente a produtividade social do trabalho graças à multiplicação de funções particularizadas, subordinando ao capitalista urbano regiões inteiras do campo e ramos da produção. A sujeição do trabalho ao capital, contudo, permanecia externa e formal. A produção ape- [pág. 240] nas se modifica pela subdivisão de tarefas; o processo de trabalho em si é derivado simplesmente dos modos de produção anteriores. Com o advento da produção mecanizada o sistema se altera qualitativamente; o capital toma conta da substância real do processo de trabalho, reformando e diversificando dinamicamente todos os ramos da produção pela transformação organizacional-técnica do processo produtivo. A remoção de todos os empecilhos à mobilidade da mão-de-obra e a separação da agricultura de um após outro processo secundário (dadas as correspondentes revoluções no transporte) abrem o caminho para uma urbanização permanente e acelerada baseada "na concentração do poder de motivação da sociedade nas grandes cidades" (Marx) e na subordinação da agricultura, agora um mero setor da indústria. A predominância da cidade não é mais imposta externamente. Reproduz-se agora como parte do processo de acumulação, transformando e redistribuindo especialmente a produção rural "a partir do interior" A divisão territorial da mão-de-obra se redefine, acentuando enormemente as desigualdades regionais: longe de superar o atraso rural (visto como um legado do passado, como em Smith), a urbanização capitalista simplesmente o reproduz, subordinando o campo numa base mais intensiva. A criação do "exército de reserva" de mão-de￾obra barata e o êxodo rural dificilmente podem ser considerados "progresso", do ponto de vista agrário.

A tendência da reprodução capitalista aumentada é revolucionar todas as divisões fixas de trabalho (em contraste com a manufatura); recompõe a força de trabalho mediante a constante "variação do trabalho, fluidez de função e mobilidade universal", solapando a relação vigente entre o trabalhador e sua tarefa — o valor de uso de seu trabalho, tendendo no sentido da subordinação do trabalho indiferenciado universal ao serviço da mão-de-obra inativa acumulada (capital constante), trazendo o campo para dentro da fábrica e a fábrica para o campo, numa procura incessante de novos trabalhadores. Nessa nivelação e mobilidade do mercado de trabalho, a "cidade-fábrica" já prefigura a co-urbanização tentacular, a "megalópole" do século XX, a absoluta negação da "cidade" para os críticos e planejadores humanistas. A capacidade do capital plenamente socializado para apropriar utopias anteriores baseadas no ideal do ambiente equilibrado, para transformá-las numa "questão técnica a serviço dos poderes estabelecidos neoconservadores", é demonstrada pelo ideal da "cidade jardim" (ridicularizado pelos fabianos como fantástico em 1898) e pela sua realidade na desurbanização planejada da metrópole, que dissolve a cidade na "região urbana", segundo o planejamento urbano e rural do século XX. ("A cidade e o campo", escreveu Howard, "devem se unir, e dessa união brotará uma nova vida, uma nova esperança, uma nova civilização"). A mobilidade do capital social amadurecido pressupõe essa capacidade para reconstituir a divisão cidade-campo numa base sempre renovada: enquanto a oposição cidade-campo se torna a dos preços agrícolas versus industriais, uma determinação cada vez mais política ao invés de baseada no preço de mercado (subsídios, quotas, preços fixos), pois a necessidade de controlar o custo da reprodução da mão-de-obra — o preço do reformismo nos nossos dias — essa determinação vai contra o interesse dos produtores agrícolas. 47

Podemos, então, discernir as duas principais soluções de continuidade nessa história, que não podem ser explicadas por uma concepção unilinear de "urbanização" como um processo correlato ao crescimento econômico, nem pela ação autônoma de uma "economia urbana" que agisse externamente sobre o campo. A primeira coincide com a extensão do mercado no estado territorial, que reduziu as economias mercantis urbanas do modo feudal a uma limitada esfera de operações, minando a produção das guildas pelo crescimento das manufaturas e das indústrias rurais. A acumulação original assume em geral a forma de uma capitalização de relações feudais, a atividade mercantil permanece externa à produção e a acumulação nacional é vista em termos de "soma-zero" como um agregado de capacidade produtora de rendimentos para propósitos militares-fiscais (como nos cálculos de Petty, [pág. 242] King e Vauban). O crescimento de cidades capitais e centros urbanos em geral permanece instável, na ausência da agricultura capitalista: o predomínio da cidade é o do investigador, dependente de condições externas políticas e militares. Sua dependência de um frágil sistema de fornecimento e da imigração rural, mesmo para manter sua população num nível constante, torna evidente este ponto. A segunda brecha, que ocorre com as cidades fábricas, a expansão da reprodução do proletariado e da agricultura capitalista, assinala a partida para um crescimento urbano autônomo: supera os limites corporativistas ao desenvolvimento urbano, pelo apossamento do processo produtivo total e a subordinação do mesmo aos ditames da lei do valor. Isso, por sua vez, reduz as antigas cidades corporativas de atividade mercantil controlada pelas guildas a centros distribuidores secundários e lugares de passeio da pequena nobreza. É evidente que essas redefinições qualitativas não resultaram de "cidades" como protagonistas da história: foi o modo dominante de produção que determinou as condições globais segundo as quais as cidades prosperaram ou não. As cidades, a despeito de seu papel de marca-passo cultural, tanto refletiam as condições da acumulação rural como contribuíam para a mesma. De modo semelhante, o despotismo das aglomerações metropolitanas modernas baseado no trabalho assalariado "somente será abolido pela abolição do próprio modo capitalista de produção" (Engels). É preciso esclarecer também que a transição para um mercado capitalista de base urbana não surgiu sem crise e resistência maciça.

A expansão desse mercado foi caracterizada por um "tipo de crise" (que Labrousse foi o primeiro a analisar) engendrada pelo fracasso no setor de subsistência — crise que provocou as mais violentas polarizações da cidade e do campo na história moderna. Na Inglaterra, a reação local à crescente intrusão do mercado metropolitano e de exportação assumiu a forma característica de motins de alimentos, um movimento popular de preços em defesa de mercados locais regulamentados apoiados pela noção moral de uma economia de abastecimento "justa". A proteção medieval do interesse do consumo urbano — amparada pela legislação destinada a fixar preços, assegurar a [pág. 243] venda livre no mercado e eliminar os intermediários, o atravessador e o açambarcador — foi reavivada nos séculos XVII e XVIII como um movimento de resistência contra os agentes do trigo que atuavam no mercado de Londres. 48

Na França, com seu delicado mosaico de mercados locais controlados, servidos por meios de comunicação deficientes e agravados por barreiras fiscais ("os produtos de exportação chegavam pela corrente fluvial; as importações tinham de ser empurradas contra ela" [Cobb]), a resistência ao livre comércio e a luta por uma economia de provisão regulamentada tiveram um grande avanço. A precariedade das áreas locais de suprimento e a dependência num único produto de subsistência subjacente à vacilante economia do ancien regime eram facilmente vulneráveis ao colapso em caso de escassez, e foram totalmente desmanteladas pela regulamentação do livre comércio de cereais — como Turgot descobriu, para sua pouca sorte, em 1775 a revolucionária "crise da subsistência", combinada com a derrocada de todos esses controles econômicos como vestígios de uma velha ordem, rapidamente levou — no contexto da inflação e guerra — ao que foi descrito por Cobb como uma guerra de subsistência entre a cidade e o campo. A aliança dos camponeses com a burguesia contra o inimigo comum em 1789 — o regime senhorial — cedeu lugar ao terrorismo econômico urbano do Ano u — controles de preços, confisco e banditismo coletivo do Exército Revolucionário, combinados com as investidas urbanas de descristianização e de recrutamento militar. Essa crise, durante a qual as regiões fornecedores próximas lutaram entre si, cidades contra o campo, cidades contra cidades, e todas as cidades contra o imperialismo econômico de Paris, revelou a extensão da dependência do consumidor tanto na cidade quanto no campo. A supremacia das cidades refletiu-se cruamente no deslocamento de massas de consumidores rurais que migraram para as cidades à procura de suprimentos. Com o desmantelamento dos controles de preços após a derrota do movimento contra-revolucionárias e federalistas no Oeste e no Sul. Como na Rússia depois de 1917 (guerra comunista), esse colapso e o ódio e a polarização que ele gerou permaneceram por longo tempo na memória popular; ele condicionou o anti-republicanismo do campesinato francês até a Terceira República. 49

A abolição da antítese entre cidade e campo é um objetivo clássico do socialismo revolucionário desde o Manifesto Comunista. Face ao atraso das relações sociais rurais e das instituições rurais na maior parte da Europa e ao peso político persistente dos "interesses dos proprietários de terra" como armadura do Estado, o problema da aliança de classes de "levar a luta de classe para o campo" (Lenine) teve, como objetivo, uma relevância imediata, urgente. Contra a crença popular e romântica na separação do mundo social rural do industrialismo, os social-democratas exaltavam o desenvolvimento capitalista do campo e a eliminação da pequena propriedade, vistos como premissas para a conjugação das forças das classes rural e urbana sob a liderança do proletariado urbano. Em outras palavras, a perspectiva imediata era a do desenvolvimento capitalista fortalecido a fim de superar o desmoronamento de uma estrutura rural retrógrada. Quais os slogans concretos com que a social-democracia poderia liderar a "revolução rural" contra as reivindicações rivais das organizações camponesas? A tendência contra o parcelamento da terra e as incertezas táticas que surgiram são bem ilustradas pelas vacilações da social-democracia alemã na questão da terra, em face do capitalismo totalmente integrado das propriedades junker. Além disso, a tendência a considerar o atraso rural como uma obsoleta sobrevivência pré-capitalista, externa e contrária ao desenvolvimento capitalista, não deixou perceber os numerosos casos em que esse atraso era funcional ao processo geral de acumulação.

A existência de um "problema agrário" distinto era considerada a herança do fracasso histórico da burguesia no cumprimento de sua vocação revolucionário-democrática no campo, tarefa que agora recaía sobre o proletariado como ponta de lança do progresso urbano. Além de todas as diferenças táticas e oscilações, a base de muitos "convites ao poder" comunistas a partir da década de 1930 encontrava-se nessa crença de que a classe trabalhadora tinha a missão e a capacidade de resolver ou "consertar" os limites e insuficiências do desenvolvimento capitalista. Os regimes fascistas comprovaram a bancarrota histórica da burguesia, comprometida por uma aliança de monopólio e interesses financeiros com a "casta burocrático-agrária", e portanto incapaz de garantir qualquer futuro desenvolvimento ou progresso.

A concepção do fascismo como uma aliança do capital financeiro com os elementos investidores mais atrasados da sociedade (Dimitrov) permitiu que as aberturas correspondentes (frontismo, novas democracias) se aliassem ao capitalismo progressista; tal como um dualismo semelhante, transferido para os países do Terceiro Mundo, encontrou as burguesias "nacionais" prontas a assumir o papel progressista contra resíduos feudais rurais. A hipótese de Sweezy da dinâmica do desenvolvimento capitalista corresponde a uma projeção evolucionista dentro do marxismo da necessidade de conclusão unilateral do "estágio" capitalista, o que exige a extensão infinita do capitalismo como veículo de progresso contra todos os obstáculos pré-capitalistas, e, finalmente, com a conclusão "racional", dessa evolução entregue ao socialismo.

Na realidade, a defasagem entre o capital industrial produtivo e a "aristocracia financeira" baseada no investimento já foi desfeita por Marx — e pelo movimento histórico real do capital — em 1857. A descoberta por Marx do mecanismo do amadurecimento da crise capitalista, como produto da contradição entre dinheiro como mercadoria e dinheiro como capital, coincidiu com a crise mundial de 1857. Essa crise foi provocada não por alguma falha no setor de subsistência, mas pela contradição entre "banco e fábrica", entre dinheiro e capital como uma unidade contraditória em escala internacional. Na França, a solução "utópica" st. simoniana para a separação de capital da propriedade fundiária, que previa a vitória do industriei sobre o rentier, teve de esperar o colapso e a ameaça da classe trabalhadora em 1848, que uniu terra e capital no "partido da ordem". Isso levou o "socialismo bonapartista" (Marx), o "governo da liquidez, do proudhonismo monetário e do Credit Mobilier", a recompor a renda do investimento no solo e as poupanças do desenvolvimento industrial, assim como o "crédito estatal" de Lasalle teve de esperar Bismarck. Marx, em decorrência, teve de refazer sua crítica anterior dos esquemas utópicos de crédito nos Grundrisse; ele abandonou seu anterior modelo manchesteriano do "parasitismo" do capital financeiro em troca de uma análise do dinheiro e do crédito como uma articulação imanente da socialização do capital, e como motor de suas crises.50

Para concluir: a tendência dualística a separar o progresso urbano e o atraso rural, visto como um resíduo do passado, deve ser popular no Ano iii, o produtor rural teve sua vingança. Se o campo, de acordo com o credo dos sansculotte, deveria "sentir todo o peso de um Terror criado na cidade e dirigido por citadinos", o campo resistiu mediante greves de produção e as rebeliões contraposta ao fato de que a "urbanização" e "ruralização" são faces opostas do mesmo processo de divisão capitalista de trabalho. Todavia, a concepção da cidade como agente histórico por detrás de todas as mudanças tem, naturalmente, raízes culturais e duradouras, que foram analisadas por Raymond Williams em seu levantamento do contraste cidade￾campo na literatura inglesa, com suas variações ambíguas entre idealização da inocência rural, a Arcádia perdida e o desdém urbano pela "idiotice rural". 51 Williams disse palavras fortes sobre os "socialistas metropolitanos" que engoliram o mito da passividade rural e a tendência urbana para o progressismo capitalista. Essa salutar advertência às incursões evolucionistas da ideologia urbana no pensamento socialista aponta a necessidade de uma volta crítica a Marx.

Notas

1 Smith, Wealth of Nations, book III, c.3-4; St euart, An Inquiry in to the Principies of Political Economy, 1754, v.I, c.20.
2 Smith, I, p.392.
3 Chill, E., ed., Power Property and History. introd.: "Barnave as a philosophical historian", p.1 -74;
Forbes, O., "Scientific Whiggism: Adam Smith and John Mi llar", Cambridge Journal, v.7, 1953-54,
p.643-70.
4 Roupnel, G., Histoire de la Campagne Française, Paris, 1932, citado em Friedmann, G., ed., Villes et
Campagnes, Paris, 1954, p.3.
5 Braudel, F., Capitalism and Material Life 1400 - 1800, Londres, 1973, p.374.6 Sjoberg, G., The Pre-Industrial City, Glencoe, III., 1960; Russell J. C, Medieval Regions and their Cities, Newton Abbott, 1972.
6 Sjoberg, G., The Pre-Industrial City, Glencoe, III., 1960; Russell J. C, Medieval Regions and their Cities, Newton Abbott, 1972.
7 Pirenne, H., Medieval Cities, Nova York, 1956 (I a ed. 1925), p.31, 72, 153-8. Grifo meu. Weber,
Max, The City, Nova York, 1958, c.2, "The Occidental city".
8 Hilton. R. H., "Capitalismo — O que representa esta palavra?", p.146.
9 Pirenne, H. American Historical Review, v.XIX, n.3, abril de 1914, p.494 -5.
10 Polanyi, K., The Great Transfonnation, Boston, 1968 (lª ed. 1944), c ap. 4-5.
11 Ver neste volume. Outro debate relevante foi o seminário organizado pelo Centre d'Etudes et de
Recherches Marxistes em 1968, com material preparatório de C. Param e P. Vilar: Sur le féodalisme,
Paris, 1971; Hobsbawm, E. J., Introdução a Marx, Precapitalist economic formations, L ondres, 1964; e a
original síntese de Perry Anderson sobre as divergências na formação do estado absolutista, Lineages
of the Absolutist State, NLB, 1974.
12 Dobb, Studies, Londres, 1946, p.27-8, 34, 38-9.
13 Dobb, "Uma Réplica", p.75-6; ver também o excelente apanhado de Procacci, neste volume.
14 F. Polyansky em Voprosy Istorii, 1953, n.1; Hibbert, A. B., "The origins of the medieval town
patriciate", in: Past and Present, fevereiro de 1963; Cahen, C, "A propôs dela discussi on sur le
féodalité", in: Lapensée, n.68, julho- agosto de 1956; Duby, G., Guerriers et paysans, resenhado por
Rodney Hilton em NLR 83, janeiro -fevereiro de 1974. Por outro lado, para uma nova exposição da
posição de Pirenne, ver Van Werwecke, H., "The Rise of the Towns", in: Cambridge Econotnic History
of Europe, v.III, c.I, no qual se dá uma proeminência quase exclusiva às cidades do Noroeste da Europa "onde o fator puramente econômico foi mais integralmente atuante".
15 Marx & Engels, Gerrnan Ideology. Londres, 1965, p.64-77; Hegel, Philosophy of Right, T. Knox ed.,
Oxford, 1952, p. 152-5.16 Marx, Grundrisse, Penguin/NLR, 1973, p.479.
17 Ibidem, p.247-8, 504.
18 Marx, Contribution to the Critique of Political Economy, Londres, 1971, p.213-4.
19 Marx, Capital, Moscou, 1962, v.iii, p.321 - 2, 326; Grundrisse, p.506.
20 Balazs, E., Qhinese civilization and bureaucracy, New Haven, cap. 6; Cartier, M., "Une tradition urbaine: les villes dans la Chine antique et médiévale", in: Annales, julho- agosto de 1970, "Histoire et urbanisation" p.835-7, 841; Weber, op. cit.; Braudel, op. cit; cap. 8.
21 Hall, J. W., "The Castle Town and Japan's Modem Urbanization", in: Hall & Jansen, ed., Studies in the Institutional History of Early Modern Japan, Princeton, N. J., 1968, cap. 10, p .171-9.
22 Marx, Capital, v.III, cap. 47, p.771; Lenin, Development of Capitalism in Rússia, Moscou, 1956, p. 190-2.
23 Marx, Capital, v.III, cap. 47, p.772-7.
24 Sobre a maioria destes tópicos, ver o trabalho importantíssimo de Rodney Hilton, Bond Men Made
Free, Londres, 1973.
25 Hilton, "Warriors and Peasants", NLR 83, p.81 -2.
26 Porchnev, B., Les Soulevements Populaires en France de 1625 à 1648, Paris, 1963.
27 Ver a excelente abordagem geral de A. B. Hibbert, "The Economic Policies of Towns", in:Cambridge Economic History of Europe, v.iii, cap. 4 citado, p. 197 -8.
28 Braudel, R, op. cit., p.355.
29 Hibbert, op. cit.; Lattimorc, O., "The frontier in History", in: Relazioni del X Congresso di
ScienzeStoriche, Firenze, 1955, p.124-5; Wallerstein, I., Themodern world system, Nova York, 1974, p.20-
1.
30 Hibbert, op. cit., Smout. T. C, A History of the Scottish People, Londres, 1972, p.147; Nicholas, D. M., "Town and Countryside: Social and Economic Tensions in 14th century Flanders", in: Comparative Studies in Society and History, v.X, 4 de julho, 1968, p.458 -85.
31 Marx, Capital, v.III, p.781.
32 Hilton, R. H., A Medieval Society, Londres, 1966, p.177.
33 Waley, D., The Italian City Republics, Londres, 1969, p.l 10-23; 221-30.
34 Malowist, M., "The Problem of the Inequality of Economic Development in Europe in the later
Middle Ages", ia: Economic History Review, 2nd. series, v.19, 1966, p.25 -6.
35 Cipolla, C, "The Economic Decline of Italy", in: Economic History Review, 2nd. series, v.V, 1952; Pizzorno, A., "Three Types of Urban Social Structure and the Development of Industrial Society", in: Germani, G., ed., Modernization, Urbanization and the Urban Crisis, Boston, 1973, p.125.
36 Braudel, R, The Mediterranean in the Age of Philip II, Londres, 1973, v.ii, p.728 -33; Burke, R, Venice
and Amsterdam, Londres, 1974, baseado no modelo explicitamente antimarxista de circulação de
elites, tomado de empréstimo a Pareto.
37 Villari, R., La rivolta antispagnola a Napoli: le Origine 1585 -1674, Bani, 1967, p.228 ss. Ver também
Porchnev & Anderson, op. cit., Goubert, P., The Ancien Regime, Londres, 1973, cap. 6.
38 Zangheni, R., Screni, E.. Agricoltura e sviluppo del capitalismo, Rome, Istituto Gramsci, 1970, p.682 -
730. Marx, Capital, v.m, cap. 36.
39 Villani, R, Feodalità, riforme e capitalismo agrário, Bari, 1968, p.l 16-25.
40 Poliscnsky, J. V, The Thirty Years War, Londres, 1971, p.38, 40, 44 -9; Klima, A., Macurek, J., "La
Question de la Transition du Féodalism e au Capitalisme en Europe Centrale", XI International
Congress of Historical Sci ences, in: Rapports, v.4, p.99-102.
41 Goulbert. R, op. cit., p. 136 -7.
42 Braudel, E, Chapters in Western Civilization, NY, 1961, v.I, p.260. Immanuel Wallerstein, embora
indique corretamente a interdependência dos regimes neo -feudais de culturas econômicas e o
processo de proletarização/expropriação dos países "centrais" na fase da acum ulação primitiva,
parece obrigado, em decorrência de sua fundamentação no modelo estático de centro -periferia de A.
G. Frank, a questionar a continuidade de "sistema de mercado" mundial integralmente capitalista a
partir do século XVI. Também rejeita a distinção marxista crucial entre capital mercantil e industrial
(a qual, precisamente, permite perceber a periodização, as contradições estruturais e a crise no
progresso da acumulação primitiva): considera esta distinção como uma "terminologia infeliz". Ver The Modem World System, cap. 2, e "The Rise and Decline of the Capitalist World System", in:
Comparative Studies in Society and History, v.16, 1974, p.387-415.
43 Vilar, R, La Catalogue dans l'Espagne Moderne, Paris, 1962, v.III, especialmente p.9 -12, 562-5; e Sur
le Féodalisme, cit., p.42-3; Marx, Capital, v.I, cap. 5.
44 Ver a excelente exposição de Braudel sobre esse crescimento metropolitano em Capitalism and
Material Life, cap. 8; The Mediterranean, v.I, p.344-52; Williams, Rayrnond, The Country and the City,
Londres, 1975, cap. 14; Cobb, Richard, The Police and the People, Oxford, 1970, p.266 -67.
45 Marx, Grundrisse, edição alemã, p.906, citado por Rosdolsky, R., Genesi e strutturadel 'Capitale' di
Marx, Bari, 1971, p.221.
46 Clark, R, & Slack, R, ed., Crisis and Order in English Towns 1500 - 1700, Londres, 1972, Introdução,
p.l 1, 33-4; Daunton, M. J., "Towns and Economic Growth in 18th century England", trabalho
apresentado à conferência Past and Present sobre Towns and Economic Growth" (Cidades e
crescimento econômico), julho de 1975.
47 Bookchin, M., The limits of the City, Nova York, 1974, cap. 4; Marx, Capital, I, cap. 15. Cf. a onda
de protestos de agricultores por toda a Europa em 1974.
48 Ver a colorida e sensível reconstrução desses movimentos feita por E. P. Thompson, em "The
Moral Economy of the English Crowd in the 18th century", in: Past and Present, 50, Fevereiro de
1971, p.76-136.
49 Cobb, Richard, Les Armées Revolutionnaires; e The Police and the People, Oxford, 1970, parte 3, que
contém uma análise brilhante do antagonismo cidade - campo e da política da carestia na Revolução
Francesa.
50 Ver a penetrante análise feita por Sérgio Bologna dessa transição para um capital inteiramente
socializado nos trabalhos de Marx da década de 1850: "Moneta e crisi; Marx corrispendente dela
'New York Daily Tribune'", in: Primo Maggio, n.1, 1973. Uma versão ampliada desse ensaio encontra -
se em Bologna, S., Carpignano, R, Negri, A., Crisi e organizzazione operaia, Milano, 1974.
51 Williams, Raymond, The Country and the City, p.50-1.

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