6 de agosto de 2023

Não podemos deixar o espaço sideral para os capitalistas

A política espacial já é um campo de luta de classes, e a mineração e a militarização nem começaram. É política espacial de esquerda ou barbárie.

Henry Snow


Um foguete SpaceX Falcon9 decola da plataforma de lançamento na quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015. (Red Huber / Orlando Sentinel / Tribune News Service via Getty Images)

Os oligarcas mais irritantes do mundo querem ser astronautas, de Jeff Bezos a Elon Musk e Richard Branson. Quando o lançamento do foguete da SpaceX em abril terminou em uma “desintegração rápida e não programada”, a alegria pelo fracasso foi inevitável. Afinal, esses homens estão tomando a riqueza arrancada de suas forças de trabalho exploradas e desviada do público por meio de subsídios estatais e lançando-a no espaço. Eles estão basicamente recrutando trabalhadores dos estoques, motoristas de entrega e beneficiários de programas financiados por impostos para o papel de Atlas, lutando eternamente para sustentar o céu. Qualquer um poderia ser perdoado por pensar, nessas circunstâncias, que a humanidade estaria melhor se permanecesse firme na Terra.

Mas é precisamente por tudo isso que a esquerda não pode ignorar o espaço. Entre a aversão aos seus defensores, a preocupação muito real com o seu impacto ambiental e uma priorização inteiramente razoável de qualquer uma das infinitas preocupações sociais e econômicas da Terra, a política espacial dificilmente tem sido o foco da esquerda. No entanto, isso é um equívoco, já que a exploração espacial tem uma importância crucial, ainda que subestimada, para o nosso presente e futuro.

A política espacial já é uma arena da luta de classes

É bem possível que a política espacial comece a impactar a classe trabalhadora da Terra já nas próximas duas décadas. Considere o seguinte: vastas quantidades de materiais essenciais estão disponíveis no espaço, e podemos ter certeza de que os capitalistas estão ansiosos por eles. A importação desses recursos em qualquer escala causará graves perturbações econômicas. Os minerais continuam sendo um pilar de muitas economias ao redor do mundo, e mudanças em seus preços teriam consequências econômicas para milhões, talvez bilhões, de pessoas.

Mas nem precisamos olhar tão longe no futuro para ver o efeito da política espacial sobre os trabalhadores da Terra. Os recursos que os cosmocapitalistas podem obter no espaço não são menos importantes do que os recursos que já estão tirando da Terra para isso. Não é o combustível de foguete, em primeiro lugar, mas a mais-valia roubada dos trabalhadores da Amazon que alimenta a Blue Origin de Jeff Bezos. A SpaceX deve sua prosperidade aos subsídios e negócios do governo dos EUA — em outras palavras, recursos que poderíamos estar investindo em outro lugar e lucros às custas do Estado. Tudo isso significa que a política espacial é uma arena da luta de classes hoje.

Além disso, os capitalistas estão atualmente carentes de oportunidades de investimento produtivo, com a atual conjuntura econômica caracterizada por um crescimento esclerosado da produtividade e uma economia de fachada, na qual investidores desesperados jogam baldes de dinheiro em golpistas glorificados. O espaço é uma promessa para capitalistas provavelmente desiludidos e sempre motivados pelo lucro crescente e retornos reais e materiais. Assim que os esforços espaciais privados atingirem o estágio em que lançamentos confiáveis ​​e de baixo custo estejam disponíveis — um estágio para o qual estão trabalhando desesperadamente —, podemos esperar investimentos sérios e desenvolvimentos rápidos. Isso significa que agir agora é importante.

"A política espacial é uma arena da luta de classes hoje."

A desatenção da esquerda perante a política espacial é compreensível, principalmente porque não estamos em posição de tomar o controle dos céus, mesmo nos Estados Unidos, quanto mais no exterior. Há razões reais pelas quais talvez não queiramos, mas, deixando isso de lado por enquanto, não existe um movimento nacional de massas trabalhadoras capaz de tomar o controle de uma área na qual generais e oligarcas estão focados. Mesmo que tal movimento pudesse deter os capitalistas espaciais aqui nos EUA, eles simplesmente ignorariam as fronteiras e transfeririam suas instalações para qualquer nação que lhes permitisse executar seus projetos.

O poder do capital e a pura atração magnética do espaço — um ambiente rico em recursos que, até onde sabemos, se estende infinitamente — significam que é virtualmente inevitável que as empresas espaciais privadas continuem a se expandir por enquanto. Mas, apesar de começarem com uma enorme desvantagem, os riscos são altos demais para que a esquerda nem mesmo tente se envolver. Devemos aceitar que o espaço continuará a crescer em importância como um campo de batalha entre os que têm e os que não têm, e que a esquerda tem um papel natural nessa batalha. Nossa estratégia começa com a visualização de como seria essa batalha, tanto para entender por que vale a pena lutar quanto para considerar como fazê-lo.

O capitalismo espacial será um pesadelo

Como é o capitalismo no espaço? Esse futuro é fácil de prever com base nos últimos séculos de capitalismo. As pessoas enviadas para a base lunar de Elon Musk estariam em uma posição semelhante à dos homens a bordo do navio britânico Sea-Venture, com destino à Virgínia em 1609. Quando uma tempestade os deixou naufragados nas Bermudas desabitadas, eles decidiram que preferiam viver lá à fome e à hierarquia da primeira colônia permanente da Grã-Bretanha na América. Somente por meio de uma campanha cruel de execuções e repressão eles foram forçados a retornar ao plano de colonização da Companhia da Virgínia.

Trabalhadores no espaço seriam ainda mais dependentes de linhas de suprimento em um ambiente naturalmente hostil do que a tripulação do Sea-Venture nas Bermudas. Musk poderia coagir os trabalhadores à submissão enviando a seus funcionários memes com décadas de uso em vez de comida, até que se encolhessem ou morressem de fome, o que acontecesse primeiro. Se isso parecer espetacular demais — com sorte, a fome forçada levaria a reações negativas e a uma resposta regulatória —, considere alternativas em menor escala, como expulsar os familiares dos trabalhadores de cidades-empresas extraterrestres, consignando-os a uma vida de solidão. O espaço expande tanto a compulsão silenciosa do poder econômico quanto a capacidade coercitiva da violência que definem a economia política capitalista na Terra.

O controle capitalista do espaço também nos ameaçará aqui na Terra. A instabilidade econômica e política já é fonte de lucro, mas isso é, pelo menos em certa medida, limitado pela proximidade básica das elites com o resto de nós. Deixando de lado os bunkers de pânico da Nova Zelândia, os Peter Thiels do mundo não conseguem escapar completamente da convivência com a classe trabalhadora. Eles podem enfraquecer nações e envenenar a água, mas preferem manter os governos obedientes e em funcionamento, pelo menos para mitigar os riscos, tornando os climas de investimento previsíveis.

Mas o espaço muda o jogo. A médio prazo, o espaço criará tanto uma saída de emergência quanto uma válvula de escape para o capital. Thiel e Bezos podem comandar seus impérios da segurança de suas bases lunares, enquanto as condições de mercado impulsionam trabalhadores desesperados a ocupá-los. Mais especulativamente, podemos imaginar populações subjugadas, prisioneiros e inimigos políticos deportados para masmorras marcianas ou asteroides solitários. Os capitalistas já agem assim — migrando para paraísos fiscais, lucrando com prisões — e é óbvio que aproveitarão as novas oportunidades que o espaço oferece para tal comportamento.

Para saltar brevemente para o que também pode parecer um reino estranho, mas é muito importante, devemos também considerar a militarização do espaço. As armas espaciais já são uma questão de interesse. Uma capacidade industrial extraterrestre mais sustentada expande isso para possibilidades quase inimagináveis, mesmo a curto prazo. Considere o bombardeio cinético, uma tecnologia proposta na qual objetos com alta massa, como barras de tungstênio, poderiam ser lançados em velocidades orbitais na Terra, o que resulta em incrível poder destrutivo. Em limites superiores viáveis, essas “barras de Deus” poderiam se aproximar dos níveis nucleares de destruição, sem os efeitos duradouros e com a possibilidade de aumentar ou diminuir: o bombardeio cinético pode destruir carros tão facilmente quanto cidades, o que tornaria a dissuasão muito mais frágil, se não impossível de manter. Imagine armas de drones virtualmente invencíveis, quase indetectáveis ​​e infinitamente poderosas.

Seja nas mãos de generais ou bilionários, esta seria uma arma de terrível poder. A expansão para a vastidão do espaço tornaria a restrição ao desenvolvimento dessas e de outras armas muito mais difícil. Na prática, é claro, isso não levará a um único vilão de James Bond mantendo o mundo sob controle. A realidade pode ser ainda pior: vários atores fazendo exatamente isso, sem os riscos dissuasivos das armas nucleares. A guerra no espaço põe a Terra em perigo.

Mesmo deixando de lado as armas em potencial e considerando apenas as capacidades existentes, o espaço possui muito mais materiais do que a Terra. Isso significa que uma nação ou corporação com capacidades espaciais significativas terá profundas vantagens materiais, após superar os precários estágios iniciais da exploração espacial. Além das considerações materiais, a expansão espacial também apresenta enormes riscos diplomáticos. Não é difícil imaginar como disputas por uma mina de asteroide ou base lunar podem levar a mortes não intencionais e a uma escalada crescente — guerras já começaram por muito menos. O espaço, em resumo, é um multiplicador de forças para todos os tipos de conflito humano, e o resultado será uma combinação de subjugação e caos.

Uma resposta de esquerda

Por mais sombrio que pareça, não estamos indefesos contra os capitalistas espaciais. Temos nossas próprias armas. Primeiro, muito do que descrevi viola atualmente tratados internacionais. Isso parece uma garantia frágil, visto que tratados são violados constantemente, mas nos dá tempo e oportunidades para alianças. Os capitalistas precisarão resolver as complicações jurídicas e políticas do espaço antes de poderem usá-lo como arma ou colonizá-lo. Atores que, de outra forma, poderiam ser hostis a muitos objetivos da esquerda na Terra têm interesses em comum aqui, e o cenário de pesadelo que descrevi deve ser igualmente aterrorizante para eles.

Dito isso, o pessimismo e o alarmismo podem se tornar entorpecentes, e o alarmismo é uma base fraca para construir um futuro, por mais alarmantes que sejam as alternativas. Em vez disso, além da atenção aos perigos do capitalismo no espaço, podemos nos organizar em torno de uma visão do espaço para as pessoas. Mesmo nossas breves incursões no espaço produziram uma incrível riqueza em termos de pesquisa, e novas experiências e explorações trazem a possibilidade de reinos incalculáveis ​​de conhecimento com os quais podemos melhorar a condição humana. Os vastos recursos do espaço, atualmente sem propriedade de ninguém, podem ser usados ​​para melhorar as condições na Terra. Por que destruir o solo cheio de vida quando podemos destruir asteroides sem vida? E por que os capitalistas, que só chegaram até aqui às custas dos trabalhadores e do Estado, deveriam lucrar com isso?

"O espaço oferece a possibilidade de desenvolvimento de recursos, fabricação e até mesmo habitação que não prejudiquem a Terra ou a vida nela."

O impacto do espaço na mineração exemplifica suas possibilidades materiais mais amplas, que poderiam ser a base de um programa popular para o desenvolvimento espacial. Os defensores do decrescimento apontam, com razão, a natureza finita dos recursos na Terra. O espaço oferece a possibilidade de desenvolvimento de recursos, manufatura e até mesmo habitação que — além dos altos custos necessários para desenvolver inicialmente uma presença no espaço, que vale a pena considerar e minimizar — não prejudicam a Terra ou a vida nela.

Nós, da esquerda, tendemos a sentir uma compreensível repulsa pela ganância capitalista e pela exploração extrativa que ela exige. Mas a produção e o consumo não são exclusividade dos capitalistas, e não precisamos moralizar os recursos espaciais. Podemos achar as minas feias e o desperdício imoral na Terra, mas o cinturão de asteroides não tem população explorada da qual possamos roubar direitos minerais, nem água para envenenar. No limite, o desenvolvimento espacial oferece o fim da escassez e, com ela, da coerção econômica da qual o capitalismo depende. Podemos construir uma nova economia política, desde que impeçamos a antiga de dominar este novo campo.

A concretização prática disso começa com o reconhecimento da necessidade de uma visão de esquerda do espaço. Quanto à aparência dessa visão, alguns contornos já parecem óbvios. A nacionalização dos ativos espaciais existentes será necessária, mas não suficiente — o Estado e o mercado são instituições sobrepostas. Olhando para o futuro, os pilares do capitalismo, a propriedade privada e os contratos individuais, não devem ser a base para a vida no espaço. Com base nas leis e normas existentes que rejeitam a propriedade no espaço, podemos construir estruturas de propriedade pública além da atmosfera (e, com sorte, importá-las de volta para a Terra). Em vez de vender o trabalho de alguém no mercado, o trabalho no espaço poderia, da mesma forma, ser centrado no benefício coletivo. Isso é prático e moral. No ambiente precário, mas infinito, do espaço, a cooperação, em vez da competição, pode ser favorecida competitivamente: comunidades socialistas podem ser capazes de sobreviver e prosperar de uma maneira que as colônias capitalistas não conseguirão.

Por mais repugnante que tenham sido alguns de seus proponentes mais notórios, o argumento de que a humanidade deveria se expandir para além da Terra é atraente por outro motivo: é um fato simples que a Terra eventualmente se tornará inabitável. “Longividentes” obcecados pelo futuro distante têm sido corretamente criticados por priorizarem inteligências artificiais cósmicas em detrimento de mentes reais e existentes, mas isso não significa que não devamos nos importar com o futuro distante. A comunidade humana é a única parte de nossa existência que transcende a morte, e não devemos aceitar o seu fim. Pelas mesmas razões pelas quais defendemos uma presença sustentável na Terra, deveríamos preferir sustentar a vida, humana e de outras formas, no universo de forma mais ampla.

E embora não seja um grito de guerra, as possibilidades de vida fora da Terra também exigem a atenção da esquerda para o espaço. Seja impactando microorganismos europeus ou civilizações galácticas, o capitalismo poderá ser tão prejudicial para a vida no espaço quanto é aqui. A “colonização espacial” recebeu críticas merecidas como paradigma. A alternativa, porém, não é a retirada (que a esquerda simplesmente não tem o poder de forçar de qualquer maneira), mas a solidariedade espacial: a criação de comunidades fora da Terra que se respeitem mutuamente e a qualquer outra vida que possamos encontrar, vendo o resto do universo não como um lugar a ser explorado, mas como um lar longe de casa, digno de respeito, assim como seus habitantes.

As visões espaciais capitalistas são como casas construídas na areia. Sua esperança é uma mentira, e sua promessa de abundância quer dizer, na verdade, mera extração colonialista. A esquerda pode oferecer esperança real por um mundo de justiça de classe e dignidade humana. Para ser claro, a busca por essa visão deve ser priorizada adequadamente: não podemos sacrificar a Terra ou seus habitantes por um futuro espacial. É exatamente por isso que devemos fazer o nosso melhor para assumir as rédeas do desenvolvimento espacial, em vez de deixar os confins do universo para os ricos.

Colaborador

Henry Snow é historiador trabalhista e professor assistente visitante no Colby College.

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