5 de novembro de 2023

Por que Israel quer apagar o contexto e a história da guerra em Gaza

A deshistoricização do que está acontecendo ajuda Israel a prosseguir políticas genocidas em Gaza.

Ilan Pappé


Palestinos carregam seus bens enquanto fogem de suas casas em Al-Jalil em 1948. Arquivo: Reuters

Em 24 de outubro, uma declaração do Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, provocou uma forte reação de Israel. Ao dirigir-se ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, o chefe da ONU afirmou que, embora condenasse com a maior veemência o massacre cometido pelo Hamas a 7 de outubro, desejava recordar ao mundo que este não ocorreu no vazio. Explicou que não se pode dissociar 56 anos de ocupação do nosso envolvimento com a tragédia que se desenrolou nesse dia.

O Governo israelita não tardou a condenar a declaração. Dirigentes israelitas exigiram a demissão de Guterres, alegando que ele tinha apoiado o Hamas e justificado o massacre que este tinha levado a cabo. Os meios de comunicação social israelitas também aproveitaram a onda, alegando, entre outras coisas, que o chefe da ONU “tinha demonstrado um grau impressionante de falência moral".

Esta reação sugere que um novo tipo de alegação de antissemitismo pode estar agora em cima da mesa. Até ao dia 7 de outubro, Israel tinha feito pressão para que a definição de antissemitismo fosse alargada de forma a incluir críticas ao Estado israelita e o questionar da base moral do sionismo. Agora, contextualizar e historicizar o que está a acontecer pode também desencadear uma acusação de antissemitismo.

A deshistoricização destes acontecimentos ajuda Israel e os governos do Ocidente a prosseguirem políticas que rejeitaram no passado devido a considerações éticas, tácticas ou estratégicas.

Assim, o ataque de 7 de outubro é utilizado por Israel como pretexto para prosseguir políticas genocidas na Faixa de Gaza. É também um pretexto para os Estados Unidos tentarem reafirmar a sua presença no Médio Oriente. E é um pretexto para alguns países europeus violarem e limitarem as liberdades democráticas em nome de uma nova “guerra contra o terrorismo”.

Mas há vários contextos históricos para o que está a acontecer agora em Israel-Palestina que não podem ser ignorados. O contexto histórico mais alargado remonta a meados do século XIX, quando o cristianismo evangélico no Ocidente transformou a ideia do “regresso dos judeus” num imperativo religioso milenar e defendeu a criação de um Estado judeu na Palestina como parte das etapas que conduziriam à ressurreição dos mortos, ao regresso do Messias e ao fim dos tempos.

A teologia tornou-se política no final do século XIX e nos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial por duas razões.

Em primeiro lugar, funcionou no interesse daqueles que, na Grã-Bretanha, desejavam desmantelar o Império Otomano e incorporar partes deste no Império Britânico. Em segundo lugar, teve eco entre os membros da aristocracia britânica, tanto judeus como cristãos, que ficaram encantados com a ideia do sionismo como panaceia para o problema do antissemitismo na Europa Central e Oriental, que tinha produzido uma onda indesejável de imigração judaica para a Grã-Bretanha.

Quando estes dois interesses se fundiram, levaram o governo britânico a emitir a famosa – ou infame – Declaração de Balfour em 1917.

Os pensadores e ativistas judeus que redefiniram o judaísmo como um nacionalismo esperavam que esta definição protegesse as comunidades judaicas do perigo existencial na Europa, alojando-se na Palestina como o espaço desejado para o “renascimento da nação judaica”.

Neste processo, o projeto sionista cultural e intelectual transformou-se num projeto de colonização – que visava judaizar a Palestina histórica, ignorando o facto de esta ser habitada por uma população autóctone.

Por sua vez, a sociedade palestiniana, bastante pastoril na altura e na sua fase inicial de modernização e de construção de uma identidade nacional, produziu o seu próprio movimento anticolonial. A sua primeira ação significativa contra o projeto de colonização sionista foi a Revolta de al-Buraq, em 1929, e não parou desde então.

Outro contexto histórico relevante para a atual crise é a limpeza étnica da Palestina em 1948, que incluiu a expulsão forçada de palestinianos para a Faixa de Gaza, de aldeias em cujas ruínas foram construídos alguns dos colonatos israelitas atacados em 7 de outubro. Estes palestinianos desenraizados faziam parte dos 750.000 palestinianos que perderam as suas casas e se tornaram refugiados.

Esta limpeza étnica foi registada pelo mundo mas não foi condenada. Consequentemente, Israel continuou a recorrer à limpeza étnica como parte do seu esforço para assegurar o controlo total da Palestina histórica com o menor número possível de palestinianos nativos. Isto incluiu a expulsão de 300.000 palestinianos durante e após a guerra de 1967, e a expulsão de mais de 600.000 da Cisjordânia, de Jerusalém e da Faixa de Gaza desde então.

Há também o contexto da ocupação israelita da Cisjordânia e de Gaza. Ao longo dos últimos 50 anos, as forças ocupantes infligiram uma punição coletiva persistente aos palestinianos nestes territórios, expondo-os a um assédio constante por parte dos colonos e das forças de segurança israelitas e encarcerando centenas de milhares deles.

A partir da eleição do atual governo fundamentalista messiânico israelita, em novembro de 2022, todas estas políticas duras atingiram níveis sem precedentes. O número de palestinianos mortos, feridos e detidos na Cisjordânia ocupada disparou. Para além disso, as políticas do governo israelita em relação aos locais sagrados cristãos e muçulmanos em Jerusalém tornaram-se ainda mais agressivas.

Por fim, há também o contexto histórico do cerco de 16 anos a Gaza, onde quase metade da população é composta por crianças. Em 2018, a ONU já alertava que a Faixa de Gaza se tornaria um lugar impróprio para humanos até 2020.

É importante recordar que o cerco foi imposto em resposta às eleições democráticas ganhas pelo Hamas após a retirada unilateral israelita do território. Mais importante ainda é recuar à década de 1990, quando a Faixa de Gaza foi cercada por arame farpado e desligada da Cisjordânia ocupada e de Jerusalém Oriental, na sequência dos Acordos de Oslo.

O isolamento de Gaza, a vedação à sua volta e o aumento da judaização da Cisjordânia foram uma indicação clara de que, aos olhos dos israelitas, Oslo significava uma ocupação por outros meios e não um caminho para uma paz genuína.

Israel controlava os pontos de entrada e saída do gueto de Gaza, monitorizando até o tipo de alimentos que entravam – por vezes limitando-os a um determinado número de calorias. O Hamas reagiu a este cerco debilitante lançando rockets sobre zonas civis em Israel.

O governo israelita alegou que estes ataques eram motivados pelo desejo ideológico do movimento de matar judeus – uma nova forma de Nazismo – sem ter em conta o contexto da Nakba e do cerco desumano e bárbaro imposto a dois milhões de pessoas e a opressão dos seus compatriotas noutras partes da Palestina histórica.

O Hamas, em muitos aspetos, foi o único grupo palestiniano que prometeu vingar ou responder a estas políticas. No entanto, a forma como decidiu responder pode provocar o seu próprio desaparecimento, pelo menos na Faixa de Gaza, e pode também fornecer um pretexto para uma maior opressão do povo palestiniano.

A selvajaria do seu ataque não pode ser justificada de forma alguma, mas isso não significa que não possa ser explicada e contextualizada. Por muito horrível que tenha sido, a má notícia é que não se trata de um acontecimento que possa virar o tabuleiro, apesar do enorme custo humano para ambas as partes. O que é que isto significa para o futuro?

Israel continuará a ser um Estado criado por um movimento colonialista, que continuará a influenciar o seu ADN político e a determinar a sua natureza ideológica. Isto significa que, apesar de se auto-apresentar como a única democracia do Médio Oriente, continuará a ser uma democracia apenas para os seus cidadãos judeus.

A luta interna em Israel entre aquilo a que se pode chamar o Estado da Judeia – o Estado dos colonos que deseja que Israel seja mais teocrática e racista – e o Estado de Israel – que deseja manter o status quo –, que preocupou Israel até 7 de outubro, vai voltar a eclodir. De facto, já há sinais do seu regresso.

Israel continuará a ser um Estado de apartheid – como declarado por várias organizações de direitos humanos – independentemente da evolução da situação em Gaza. Os palestinianos não desaparecerão e continuarão a sua luta pela libertação, com muitas sociedades civis ao seu lado e os seus governos a apoiarem Israel e a concederem-lhe uma imunidade excecional.

A saída continua a ser a mesma: uma mudança de regime em Israel que traga direitos iguais para todos, do rio ao mar, e permita o regresso dos refugiados palestinianos. Caso contrário, o ciclo de derramamento de sangue não terá fim.

Ilan Pappe é Diretor do Centro Europeu de Estudos da Palestina da Universidade de Exeter.

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