28 de fevereiro de 2023

Jeremy Corbyn: o Partido Trabalhista não pode abandonar os trabalhadores

Jeremy Corbyn escreve que precisamos que o Partido Trabalhista se levante contra os ataques do governo aos direitos de greve, protesto e voto, bem como defenda os valores da democracia dentro do próprio partido.

Jeremy Corbyn

Jacobin

Jeremy Corbyn se dirige a manifestantes durante um protesto pelo direito à greve fora de Downing Street em 16 de janeiro de 2023 em Londres, Inglaterra. (Leon Neal / Getty Images)

Tradução / No último primeiro de fevereiro, quinhentos mil trabalhadores entraram em greve no maior dia de ação coletiva no Reino Unido em mais de uma década. Professores, funcionários de universidades, maquinistas, motoristas de ônibus e funcionários públicos ficaram lado a lado para proteger uns aos outros dos baixos salários e para defender os serviços públicos dos quais todos dependemos.

A onda de solidariedade não parou por aqui. Na segunda-feira seguinte, assistiu-se à maior greve do Serviço Nacional de Saúde (NHS) da história. Eu me uni a trabalhadores da saúde no Hospital da University College em Euston Road – o piquete mais eufórico de que tenho lembrança. “Aplausos não pagam contas” era o que se ouvia por Holborn e Saint Pancras, numa mensagem aos parlamentares que aplaudiram de bom grado a dedicação dos trabalhadores da saúde durante a pandemia, mas agora se recusam a apoiar as demandas de aumento salarial que aquela dedicação fez merecer.

Enfermeiros e enfermeiras não estão em greve apenas por salários e condições decentes. Estão lutando pelo direito de fazer isso. Em janeiro, o governo aprovou sua lei antigreve na Câmara dos Comuns, demandando que certas indústrias atendam a certos limites mínimos de segurança. Se os Tories realmente se importassem com condições mínimas de segurança em nossos hospitais, eles apoiariam os trabalhadores em greve e suas demandas por um NHS plenamente financiado. Em vez disso, ao anular o direito fundamental à greve, eles estão impedindo que pessoas lutem pela segurança de todos nós.

Esta não é a única liberdade democrática sob ataque. Ao aprovar a Lei de Ordem Pública, o governo restringiu o direito de se protestar ao garantir à polícia maiores poderes para reprimir qualquer pessoa que “possivelmente” causaria perturbações graves. Em um movimento profundamente autoritário, os Tories deveriam se perguntar se os protestantes do passado, que garantiram os direitos que temos hoje (as sufragettes são um dos exemplos), sofreriam perseguição sob o seu atual domínio.

Até mesmo o direito ao voto está sob ameaça. A partir de maio, os eleitores terão que mostrar um documento com fotografia nas urnas. A identificação do eleitor, diz o governo, é uma medida necessária para combater a fraude. Recusando-se a resolver os problemas reais das pessoas, o governo decidiu, em vez disso, resolver um problema que não existe: a taxa de fraude eleitoral nas eleições gerais de 2019 foi de 0,000057%. Em um flagrante ato de supressão eleitoral, a identificação dos eleitores desfavorecerá aqueles com menores oportunidades de acesso à identificação requerida: eleitores de baixa-renda, jovens, pessoas com deficiências e aqueles que têm o inglês como segunda língua.

Ao partir para cima de nossos direitos de fazer greves, de protestar e votar, os Tories estão demonstrando um nível perigoso de desprezo pelos fundamentos da nossa democracia. Já faz quatro meses que o sucessor de Liz Truss prometeu um renascimento da política ‘de gente grande’ (grown-up politics). O assalto de Rishi Sunak aos nossos direitos civis e democráticos expõe tudo aquilo que você precisa saber sobre a definição que nosso pragmático-em-chefe tem deste termo. Ao mesmo tempo, o comportamento recente da liderança do Labour expõe tudo aquilo que você precisa saber sobre sua disposição a reconquistar estes direitos.

Num momento em que os Tories aceleram seu assalto à democracia, a liderança do Labour deveria estar fortalecendo sua defesa. No entanto, ele não será capaz de defender a democracia se nem sequer está preparado para respeitá-la em seu próprio movimento. Por todo o país, membros de esquerda do partido estão sendo impedidos de se candidatar, negando aos partidos locais a chance de votar em pessoas talentosas, populares e da classe trabalhadora em um processo eleitoral justo e democrático. Conforme o próprio Keir Starmer prometeu em 2020, “Membros locais do Partido devem escolher seus candidatos para todas as eleições”. Renegar estas promessas envia um sinal alarmante àqueles em cuja confiança você agora deve procurar conquistar.

Isso também demonstra uma falta de respeito por aqueles a quem devemos nosso próprio lugar no Parlamento. Os membros do partido trabalhista são aquelas pessoas que abrem mão de seu tempo para bater em portas debaixo de chuva. São aqueles que fazem campanha em defesa de mudanças locais nas suas comunidades. Os membros do partido trabalhista são aqueles que mantém o partido funcionando. A filiação ao Labour é a alma do partido – não é possível esmagar uma sem fazer o mesmo com a outra.

Apenas um partido democrático pode fornecer o espaço necessário para empoderar aqueles com as ideias criativas e as soluções transformadoras que este país tanto precisa. Hoje, a divisão entre ricos e pobres e a ameaça de colapso ecológico são maiores do que nunca. Nossa meta deveria ser unir as comunidades desfavorecidas em torno de uma alternativa mais esperançosa.

Isso significa dar às pessoas o espaço para defender a ideia de democracia não apenas em seu partido, mas também em suas economias e comunidades. Não enfrentaremos a crise do custo de vida enquanto empresas privadas que não prestam contas a ninguém continuarem controlando como consumimos os recursos que todos precisamos para sobreviver. É por isso que chegou a hora de colocar a energia, a água, as ferrovias e os correios sob domínio democrático, para que as comunidades possam usufruir destes bens públicos em comum. Democracia real quer dizer transferir riqueza, propriedade e poder econômico daqueles que os retém àqueles que precisam.

Por fim, democracia quer dizer proporcionar às pessoas o espaço para que possam lutar pela redistribuição sem medo de censura. É por isso que continuarei lutando pelos direitos dos membros locais em Islington North, assim como pelos direitos dos trabalhadores nos piquetes. Aqueles que obstruem o caminho das mudanças transformadoras querem retirar nossos direitos democráticos porque sabem que, quando nos unimos, podemos vencer. Seu maior medo é a democracia, porque a democracia é nossa maior força.

Colaboradores

Jeremy Corbyn é o membro do Parlamento do Partido Trabalhista de Islington North.

26 de fevereiro de 2023

O melhor filme político desde Z está concorrendo ao Oscar

Conversamos com o diretor Santiago Mitre sobre seu filme indicado ao Oscar Argentina, 1985, que retrata a luta para levar à justiça os líderes da assassina junta militar argentina.

Uma entrevista com
Santiago Mitre

Jacobin

Uma cena dentro do tribunal em Argentina, 1985. (Amazon Studios, 2022)

Entrevistado por
Ed Rampell

O muito elogiado Argentina,1985, baseado em fatos, do diretor Santiago Mitre dramatiza o retorno do país sul-americano à democracia depois de sofrer sete anos sob uma junta militar. O novo governo civil está determinado a responsabilizar os principais oficiais pela realização da bárbara “Guerra Suja” de tortura, liquidação e desaparecimento de cerca de trinta mil pessoas. O roteiro de Mitre, coescrito com os argentinos Mariano Llinás e Martín Mauregui, humaniza profundamente a luta para julgar os generais no maior caso de crimes de guerra desde os julgamentos de criminosos de guerra nazistas em Nuremberg.

Argentina, 1985 acumulou elogios merecidamente, ganhando o Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro; três prêmios, incluindo uma indicação ao Leão de Ouro de melhor filme, no Festival de Cinema de Veneza; e muitos outros prêmios e indicações, sendo o mais proeminente a indicação ao Oscar de Melhor Longa-Metragem Internacional.

A emocionante obra-prima de duas horas e vinte minutos de Mitre é indiscutivelmente o melhor filme político desde Z, de Costa-Gavras, que foi indicado de maneira única ao Oscar de Melhor Filme e Melhor Filme Estrangeiro, vencendo na última categoria. Este filme clássico sobre o assassinato do candidato da paz da Grécia e a derrubada do governo pelos coronéis gregos antes que eles pudessem ser julgados teve um grande impacto em Mitre.

O diretor revela esse fato, como ele construiu cinematograficamente sua recriação do processo judicial que abalou o mundo e muito mais nesta conversa franca. Mitre nasceu em 1980 em Buenos Aires e foi entrevistado este ano em Nova York pela Jacobin.

ED RAMPELL

Qual foi o papel de Henry Kissinger e da CIA no golpe de 1976 na Argentina e na “Guerra Suja”?

SANTIAGO MITRE

A CIA apoiou muitas das ditaduras militares que derrubaram governos democráticos e progressistas que estavam presentes na região, como no Chile, Brasil e Argentina.

ED RAMPELL

Quem são suas influências cinematográficas para este filme?

SANTIAGO MITRE

Eu estava pensando muito em All the President's Men, com Dustin Hoffman; esse é um filme que eu amo, porque trata de um assunto importante com grandes personagens e muita tensão. Houve outros filmes cuja influência não dá para rastrear diretamente, mas o mais importante para mim é The Conversation, de Francis Ford Coppola. Pela maneira como ele usou a paranóia e os movimentos da câmera, foi um ótimo filme.

Eu adorava Costa-Gavras e aqueles thrillers políticos dos anos 1970 – Z, e muitos outros.

Mas também assisti a muitos filmes clássicos de Hollywood. Eu estava pensando muito em Frank Capra e John Ford e na maneira como eles usaram o cinema como ferramenta para contar a história. Foi uma mistura de tudo. Também alguns filmes argentinos sobre o tema da ditadura foram importantes para mim como cineasta, como La Historia Oficial, de Luis Puenzo, de 1985.

ED RAMPELL

Há uma sequência em Z quando o juiz, interpretado por Jean-Louis Trintignant, acusa cada um dos coronéis gregos. Seu filme quase parece o que teria acontecido na Grécia se a junta militar não tivesse derrubado o governo e tivesse sido julgada.

SANTIAGO MITRE

Esse é um dos exemplos que os juízes e promotores usaram na Argentina para construir um caso – porque não havia muitos antecedentes na história de tribunais civis julgando ditadores militares. Então, eles precisavam construir tudo e tentar ser novos.

No meu caso, tive o julgamento real [na Argentina] que aconteceu e foi tão importante e influente para mim - ler os arquivos e assistir às gravações do julgamento, falar com todos. Mas também há uma tradição no cinema que também foi influente. Porque foi assim esse evento magnífico, além disso o cinema é o que traz essa história e esse evento de volta à vida, então pessoas em muitos lugares podem apreciá-lo e discutir os assuntos que o filme está propondo.

ED RAMPELL

Durante as sequências do julgamento na Argentina, em 1985, você cortou algumas cenas históricas reais dos julgamentos reais com seus atores? Você intercalou clipes de notícias?

SANTIAGO MITRE

Sim. Para mim foi como trabalhar nessa recriação do julgamento. Havia algo que eu queria, ter um estilo bem não ficcional; Eu usei muitos procedimentos. Como todas as palavras que são ditas pelas testemunhas são, literalmente, transcrições exatas do que as testemunhas disseram. Todas as coisas públicas que mostrei durante o julgamento são exatas do que aconteceu. Ao mesmo tempo, era importante para mim filmar no tribunal real. Tivemos sorte de termos permissão para filmar lá porque é um prédio histórico hoje em dia. Estar sentado ali, naquele lugar, com os [atores interpretando as] testemunhas vestidos exatamente como as testemunhas estavam vestidas naquele momento em 85, foi uma imagem muito intensa para mim. Eu assisti às gravações do julgamento original por meses e meses.

Porque você sabe, a gravação do julgamento original tinha uma característica, que era que as testemunhas eram mostradas apenas de costas. Só podíamos ver seus pescoços, com os juízes observando-os. Era uma forma de proteger suas identidades... e integridade. ... A maioria das pessoas que os sequestraram ou torturaram estava livre. ... Foi uma coisa grande e corajosa ir e ser testemunha naquele julgamento.

Para mim, quando decidi como fazer o filme, como fazer a recriação, ficou claro que precisava mostrar os rostos - os rostos que não pudemos ver por quarenta anos, para que pudéssemos imaginar a dor e a raiva, e como foi difícil para as testemunhas sentar lá e conversar com a sociedade na Argentina pela primeira vez. Mas ao mesmo tempo eu tinha essas gravações do julgamento na cabeça o tempo todo, então disse ao meu diretor de fotografia, Javier Juliá, que devíamos trazer também uma câmera U-matic, que era o mesmo [tipo de vídeo] câmera que foi utilizada para a transmissão do julgamento. Então, enquanto fazíamos nossas cenas, estávamos construindo cenas U-matic exatamente no mesmo ângulo em que as câmeras do teste original foram colocadas. Estávamos fazendo uma espécie de arquivo falso. Poderíamos fazer nossa tomada e depois cortar para uma câmera U-matic, e da câmera U-matic partimos para fragmentos do teste original. Então, durante o julgamento, estávamos fazendo isso o tempo todo, indo de nossa foto para uma foto U-matic para uma foto de arquivo.

Para mim foi muito importante, porque queria ser muito preciso na reconstrução do julgamento. Você pode ver que estamos indo de 85 para nossa reencenação deste julgamento, e isso ocorre de maneira muito fluida. Porque falar desse julgamento não é falar só desse julgamento. Eu queria falar sobre esse momento do mundo e da sociedade na Argentina também. Foi uma forma de recuar e avançar no tempo, à maneira que desenhamos com o meu editor [Andrés Pepe Estrada].

ED RAMPELL

A argumentação final do promotor Julio César Strassera no final de Argentina, 1985 é o melhor discurso antifascista que já vi no cinema desde o grand finale de Charlie Chaplin em O Grande Ditador, de 1940.

SANTIAGO MITRE

Essas foram suas palavras exatas. Tivemos que apertar porque era muito mais longo, é claro. Todos os fragmentos que Ricardo Darín [o ator que interpreta Strassera] está dizendo são exatamente as palavras que Strassera usou. Alguém na internet editou os dois [discursos] juntos. Você vai de Strassera a Ricardo, e é incrível.

Ricardo foi muito inteligente em sua decisão; ele nunca quis copiar Strassera. Ele queria entender o que Strassera estava passando - os medos, a coragem e a responsabilidade de Strassera - por meio de sua própria sensibilidade [de Ricardo] e tentar viver as coisas como se fossem seus próprios momentos para trazer isso de volta à vida. Ele não queria assistir muitas fitas de Strassera, para não copiá-lo. Mas em algum momento, quando vimos essa coisa que alguém fez na internet, editando uma com a outra, nossa foto de Strassera e a Strassera real – elas são exatamente iguais. Foi uma dessas coisas mágicas que às vezes acontecem no cinema que são incríveis.

Ed Rampell

Que papel os jovens desempenharam na acusação?

SANTIAGO MITRE

Para mim, foi a chave para a coisa toda. Quando eu estava fazendo a pesquisa e trabalhando nas ideias do filme, cheguei a isso. Luis Moreno Ocampo [interpretado por Peter Lanzani], o real, me explicou o contexto das pessoas que trabalhavam na justiça no momento, que não queriam participar do julgamento, porque temiam outro golpe de estado, porque faziam parte da ditadura, ou porque eram nomeados [nomeados] na ditadura, então eram meio que apoiadores.

Então, [a promotoria] não tinha tempo, eles precisavam ir rápido, então ele teve a ideia de trazer os escalões mais baixos, que eram advogados de quase vinte anos, ou nem advogados - eles trabalhavam no [departamento] justiça para ajudar. E para mim foi o meu ponto de viragem onde percebi que este é um filme que vai ser uma forte intervenção política nestes dias, porque vês tantos jovens a abraçar discursos antidemocráticos ou a parecer que não acreditam na democracia porque têm vivido na democracia por toda a vida e esquecem como foi difícil para a Argentina e muitos países voltar à democracia. É doloroso ver pessoas de vinte ou dezoito anos, adolescentes, com discursos de direita.

Então, eu quis, com esse filme, falar diretamente para as gerações mais jovens que estão esquecendo como foi difícil voltar da ditadura e como é importante defender a democracia. É algo tão relevante nos dias de hoje, porque estamos vendo isso em todos os lugares: tantas tentativas de impedir que a democracia aconteça.

ED RAMPELL

Que papel desempenharam os jornalistas durante o julgamento?

SANTIAGO MITRE

Essa é uma pergunta muito boa. Foi algo muito interessante. Porque claro, durante a ditadura a mídia era controlada pelos ditadores. Então, os jornalistas, aqueles que sabiam o que estava acontecendo, não falavam muito porque podiam ser mortos ou desaparecidos. Então, foi difícil como espalhar a notícia. Fizeram-no através de outros países, principalmente, os que o fizeram.

A maior parte da sociedade não sabia muito até voltarmos à democracia. Então o julgamento, que durou seis meses, estava todos os dias nos jornais, nos noticiários do rádio, na TV, então foi como um despertar para uma sociedade que não queria ver o horror da ditadura durante o seu governo. O julgamento foi um despertar para a sociedade entender o quão terrível foi o que aconteceu na Argentina. Ele construiu o que continua essa tradição democrática que estamos tendo agora desde 83.

ED RAMPELL

O que vem a seguir para você?

SANTIAGO MITRE

Bem, eu estive em uma montanha-russa. Exibimos o filme pela primeira vez em agosto, no Festival de Cinema de Veneza. Estou fazendo muitas apresentações em muitos lugares do mundo, o que tem sido muito interessante. Agora é como nossa última parte desta experiência com este filme - o Oscar. Então, vou aproveitar isso e depois disso vou começar a pensar no que fazer a seguir e no que começar a escrever novamente. Sou escritor, então gosto muito da minha solidão e quero voltar a ela. Mas também, esta é uma ótima experiência e quero aproveitá-la. Não vai durar muito mais.

ED RAMPELL

Boa sorte no Oscar.

SANTIAGO MITRE

Muito obrigado.

Argentina, 1985 está disponível mundialmente no Amazon Prime.

Colaboradores

Santiago Mitre é um cineasta e roteirista argentino.

Ed Rampell é um historiador/crítico de cinema baseado em Los Angeles, autor de Progressive Hollywood: A People's Film History of the United States e co-autor de The Hawaii Movie and Television Book.

China se equilibra como sujeito oculto da Guerra da Ucrânia

Aliada da Rússia, Pequim aposta em ambiguidade de olho em seus próprios interesses

Igor Gielow

Folha de S.Paulo

Putin e Xi durante o encontro de fevereiro de 2022 em Pequim, antes do início da guerra - Alexei Drujinin - 4.fev.2022/AFP

Em 4 de fevereiro de 2022, Vladimir Putin e Xi Jinping apertaram as mãos em Pequim e declararam "parceria sem limites" entre a Rússia e a China. Vinte dias depois, o presidente russo invadia a Ucrânia e disparava a maior guerra em solo europeu desde o conflito mundial encerrado em 1945.

Um ano depois, o noticiário sobre a invasão girava em torno não só do atrito dos campos de batalha ou da retórica nuclear de Putin, mas muito sobre o papel da China. Para o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, e o secretário-geral da Otan (aliança militar ocidental), Jens Stoltenberg, Pequim está prestes a armar o aliado.


Putin e Xi durante o encontro de fevereiro de 2022 em Pequim, antes do início da guerra - Alexei Drujinin - 4.fev.2022/AFP

Esse arco narrativo inclui inúmeros itens, como os alertas feitos por Joe Biden a Xi para que não se inspirasse em Putin para atacar a ilha autônoma de Taiwan ou o aumento exponencial da cooperação militar entre Moscou e Pequim, provando que a China permanece como o grande sujeito oculto neste primeiro ano da Guerra da Ucrânia.

Os EUA, rivais estratégicos declarados dos chineses na Guerra Fria 2.0 iniciada em 2017, têm insistido em explicitar o papel de Xi no contexto da guerra europeia. Pequim, por sua vez, insiste na ambiguidade e nega que irá interferir militarmente em favor do aliado.

Ambos os lados, de certa forma, têm razão. A China se recusa a condenar a invasão russa até hoje. Afirma querer mediar a paz e promete um plano para tanto —de fato, é talvez o único ator que poderia tentar assumir esse papel, já almejado pela Turquia e por Israel.

Na última sexta (24), aniversário de primeiro ano da agressão russa, chineses apresentaram uma proposta de paz absolutamente genérica, pedindo cessar-fogo e fim de sanções contra Moscou ao mesmo tempo. Foram rejeitados por Kiev e pelo Ocidente.

Por outro lado, se há relatos de insatisfação de Xi com Putin, ambos escalaram exercícios e patrulhas conjuntas, algo análogo à mentalidade de blocos da primeira Guerra Fria, entre EUA e União Soviética. E, ao aumentar em 48,6% a importação de hidrocarbonetos e produtos russos, chegando a um comércio bilateral recorde de US$ 190 bilhões (R$ 984 bilhões), Xi ajudou a custear a guerra.

Não sem pensar em si. Aufere vantagens econômicas com isso: petróleo mais barato, dado que o mercado europeu se fechou aos russos, e promessa de que o gás que deixou de ir para a Alemanha e aliados irá no futuro abastecer sua economia.

O balanço é delicado para Xi. O líder chinês, que firmou-se com um inédito terceiro mandato em 2022, enfrenta dificuldades econômicas domésticas significativas —que tenta reverter com o fim da política de Covid zero, que bagunçou cadeias produtivas, e com medidas no mercado imobiliário.

Sem ter como bancar uma crise de grandes proporções com os EUA, buscou uma aproximação a partir de um encontro com Biden em novembro, só para ver o esforço abatido juntamente com o balão chinês alvo de um avançado caça F-22 sobre os céus americanos na recente e algo burlesca crise dos óvnis.

Com generais dos EUA prevendo uma guerra com a China devido a Taiwan tão cedo quanto em 2025, a pressão cresce, o que explica as acusações sem provas de Blinken e Stoltenberg acerca de armas chinesas na Rússia.

Apesar da parceria sino-russa, que Putin sempre que pode chacoalha como um seguro contra a Terceira Guerra Mundial, a posição chinesa é ambígua pelos motivos citados. Há relatos, nenhum deles passível de confirmação, de que Xi não soube da invasão antes da hora, como a linha do tempo sugere, mas que esperava que uma queda rápida da Ucrânia robustecesse sua posição sobre Taiwan.

Seja como for, a ilha não é a Ucrânia, um país soberano invadido. O status taiwanês, território que a China comunista considera seu e diz que retomará de qualquer forma, é frágil mesmo em organismos como a ONU.

Para a retórica da Guerra Fria 2.0, tanto faz. Os EUA têm tentado empurrar a China para fora da sombra na Ucrânia, mesmo sem muito apoio entre seus parceiros europeus, que prezam o comércio com o gigante asiático. E têm aplauso entusiasmado de seus aliados asiáticos, o neomilitarista Japão à frente.

Se isso levará a uma acomodação ou a algo pior, transformando a invasão russa na primeira salva de um conflito maior, é a dúvida principal que talvez só Xi Jinping possa responder.

25 de fevereiro de 2023

Campanha das Diretas faz 40 anos em tempos de ameaças à democracia

Embora derrotado na Câmara, movimento impulsionou fim da ditadura e deixou legado hoje sob ataque

Oscar Pilagallo
Jornalista, é autor de “História da Imprensa Paulista”, entre outros livros. Lança agora “O Girassol que nos Tinge: Uma história das Diretas Já, o Maior Movimento Popular do Brasil" (ed. Fósforo), sobre os 40 anos das Diretas

Folha de S.Paulo

[RESUMO] Em 2 de março de 1983 a emenda que propunha a restauração de eleições diretas para a Presidência obteve assinaturas suficientes para ser apresentada no Congresso. A campanha das Diretas logo atrairia o apoio de políticos da oposição à ditadura e de vastas camadas da população —com participação decisiva da imprensa, sobretudo da Folha—, tornando-se a maior mobilização popular da história do país. Mesmo derrotada na Câmara, impulsionou o processo de redemocratização e de conquistas da Constituição de 1988, legado hoje atacado por ameaças autoritárias, como a invasão das sedes dos três Poderes em 8 de janeiro.

*

Quatro décadas depois das Diretas Já, no momento em que relembra a maior campanha popular e a mais animada festa cívica de sua história, o Brasil se encontra, de novo, na posição de ter que fazer da defesa intransigente da democracia o eixo da ação política.

O paralelismo entre as duas situações históricas tem limites evidentes. Em meados dos anos 1980, combatia-se uma ditadura militar que, duas décadas após ter sido implantada, vivia seus estertores. Hoje, sem que o regime democrático tivesse sido rompido, enfrenta-se a ameaça latente gestada no que sobrou de um projeto autoritário cujos simpatizantes mais fanáticos, apelando à violência, relutam em aceitar o veredito das urnas.

No maior comício das Diretas, mais de 1 milhão de pessoas se reuniram no Vale do Anhangabaú em 16 de abril de 1984 - Renato dos Anjos/Folhapress

Ainda assim, como as diferenças não anulam as semelhanças, não seria impertinente notar o que há em comum entre 1983, quando as Diretas ganham forma ainda embrionária, e 2023. Para citar o que talvez seja o melhor exemplo da comparação, o arco partidário dos palanques de então, que abrangia da esquerda à centro-direita, exibe a mesma amplitude ideológica da frente que no ano passado derrotou a extrema direita.

A correspondência estabelecida entre os dois cenários recobre a efeméride com uma camada adicional de relevância, mas não se sobrepõe ao valor intrínseco das Diretas para a história contemporânea do Brasil.

O impacto expressivo das multidões nas ruas foi suficiente para interferir no curso dos acontecimentos, embora não seja possível cravar que a campanha tenha sido a única responsável pelo ponto final na ditadura. Quando o movimento ganhou as ruas, nos primeiros meses de 1984, o regime militar já demonstrava nítidos sinais de exaustão.

Na economia, o "milagre" dos anos 70 desembocara em uma crise profunda, com forte recessão e inflação descontrolada. Na política, a anistia de 1979 trouxera do exílio opositores da ditadura que desfrutavam de prestígio e popularidade, e as eleições de 1982, pela primeira vez em duas décadas, haviam catapultado críticos do regime ao poder Executivo em estados importantes, como São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.

Se o papel das Diretas para o fim da ditadura não foi um fator determinante, já que o ocaso do regime estava no horizonte, também não foi pequeno. A campanha influenciou a maneira como se deu a transição para a democracia, impondo uma adaptação no roteiro original dos militares, que previa cronograma e ritmo próprios para o desembarque do governo. Ao tomarem as praças nos principais centros urbanos do país, os manifestantes colocaram a sociedade civil na equação política elaborada nos gabinetes.

Especular como seria o desfecho do ciclo militar sem a campanha ajuda a dimensionar seu significado. Talvez as Forças Armadas, preocupadas com a autopreservação da instituição, voltassem aos quartéis de qualquer jeito. É igualmente possível que a ausência de pressão popular tivesse viabilizado manobras continuístas, como a que defendia a extensão do mandato do general João Baptista Figueiredo, o último presidente militar. Ou, mais grave, tivesse aberto espaço para a ala dura dos militares, que fazia de tudo para impor retrocessos à redemocratização.

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Na certidão de nascimento das Diretas Já consta a data de 2 de março de 1983. Foi nesse dia, no início da nova legislatura, que o estreante deputado federal oposicionista Dante de Oliveira (PMDB-MT) obteve o número suficiente de assinaturas de parlamentares para apresentar ao Congresso seu projeto de emenda constitucional que, com 15 linhas datilografadas, restabelecia a eleição direta para presidente da República. A iniciativa, porém, ao contrário do que se poderia supor, dada a grandiosidade que a campanha teria, não despertou o menor interesse.

Naquela altura, o campo progressista estava mais focado na proposta de convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, algo que varresse do mapa político o "entulho autoritário" —o conjunto de normas, leis e atos institucionais baixado pelos militares desde 1964.

Inicialmente, parte das esquerdas, que logo depois abraçaria com entusiasmo a campanha, via na ênfase nas Diretas um deslocamento indesejável de prioridades, pois a eleição em si, argumentava-se, não levaria necessariamente às transformações que enfrentariam a miséria e a desigualdade social, mazelas, aliás, que, apesar dos avanços, resistem ao reformismo dos governos democráticos posteriores.

O jogo das Diretas começaria a ser jogado para valer pouco depois do discurso inaugural de Dante, com a entrada em cena de Ulysses Guimarães, presidente do PMDB, o principal partido de oposição. Antes de outras lideranças, Ulysses percebe o potencial da campanha, e começa a tratar o assunto como prioridade.

Em abril, uma resolução do diretório nacional do partido aprova a estratégia, que é endossada pelo recém-fundado PT, uma legenda aguerrida mas ainda com pouca representatividade na política nacional. No mês seguinte, o petista Luiz Inácio Lula da Silva, que seria o mais ovacionado nos megacomícios, e Ulysses, que faria por merecer a alcunha de Senhor Diretas, deixam rivalidades de lado para assumir em conjunto a defesa das Diretas, ainda sem o aposto "já".

O PMDB sai na frente sozinho ao realizar em Goiânia, em junho de 1983, o primeiro comício com organização centralizada. As 5.000 pessoas presentes não tinham a mais pálida ideia do que viria pela frente. O ato discreto, no entanto, serviu à estratégia de Ulysses de colocar seu bloco na rua, mas sem estardalhaço, para ir dobrando aos poucos as resistências dentro de seu próprio partido, onde nem todos estavam convencidos de que o projeto das Diretas seria a melhor opção para acabar com a ditadura.

A campanha só ganharia fundações adequadas ao porte daquela construção política com a adesão dos governadores de oposição ao regime, principalmente Franco Montoro, em São Paulo, Tancredo Neves, em Minas Gerais, e Leonel Brizola, no Rio de Janeiro. Sim, foram as máquinas de suas administrações que financiaram a estrutura dos megaeventos, provocando críticas do governo central, que apontava o suposto mau uso do dinheiro público —como se financiar a defesa da democracia fosse algo alheio à boa governança.

Os chefes dos Executivos estaduais se encontravam em posição delicada. De um lado, acenavam à sociedade que, cada vez mais, se mostrava disposta a impor sua vontade. De outro, dependiam da liberação de verbas do governo federal para tocar obras, em um momento em que a crise econômica esvaziava os cofres públicos. Assim, espremidos entre forças antagônicas, eles reagiam com instinto de sobrevivência política, cada um calculando o passo seguinte para não ser atropelado pela dinâmica do movimento.

Montoro atuou, no mais das vezes, sob o signo da hesitação. Depois de articular a campanha nos bastidores, deixou de comparecer ao primeiro comício em São Paulo, realizado em frente ao estádio do Pacaembu em fins de novembro de 1983, permitindo que o evento, ainda pequeno, fosse dominado pelo PT.

Na sequência, foi corajoso ao apostar no êxito do megacomício da Sé, em 25 de janeiro de 1984, transformando o aniversário da cidade no divisor de águas das Diretas —a partir do sarrafo na casa dos 300 mil presentes, segundo cálculos da época, cada nova manifestação procurava superar a anterior. O governador, porém, não demonstraria a mesma disposição em financiar aquele que seria o maior de todos os comícios, o do Vale do Anhangabaú, em abril.

Quanto a Tancredo, fez o que sabia fazer de melhor: elevou à categoria de arte política a capacidade de agir com ambiguidade em tempo integral. Não deixou de promover um comício exitoso em Belo Horizonte e caprichou na retórica a favor das Diretas, ao mesmo tempo em que mantinha aberta a porta para o plano B, a eleição indireta, a ser decidida por um Colégio Eleitoral em que ele seria o único político de oposição com chances reais de vitória.

Já Brizola teve um comportamento errático. Relutou em patrocinar comícios, mas quando finalmente o fez pegou o microfone para alfinetar a ditadura, usando um tom que lembrava o líder do início dos anos 1960, quando organizou a resistência contra o establishment militar e a favor da posse do presidente João Goulart.

Numa coreografia difícil de ser sustentada por muito tempo, Brizola mantinha um pé na canoa da campanha e outro na defesa do regime, chegando a propor a extensão do mandato de Figueiredo por dois anos, ao fim dos quais haveria eleição direta.

A campanha durou todo o verão de 1984 e mais um pouco. Depois de algumas iniciativas isoladas, começou em 12 de janeiro com o ensaio geral na Boca Maldita, em Curitiba, e terminou com uma vigília cívica nacional horas antes da votação, em 25 de abril.

Foram mais de cem dias em que a população assumiu o protagonismo da cena política, empurrando as lideranças em direção à democracia. Estimava-se à época que quase 5 milhões de pessoas tivessem participado das dezenas de comícios. Embora reconhecidamente inflado pelos organizadores, o número, de qualquer maneira, foi elevado o bastante para traduzir o consenso da sociedade civil em relação à campanha.

A criatividade espontânea deu a tônica das Diretas. É verdade que o slogan estampado nas indefectíveis camisetas amarelas —"Eu quero votar pra presidente"— saiu das pranchetas de publicitários contratados pelo PMDB, que também encomendou o "Frevo das Diretas" a Moraes Moreira e Paulo Leminski.

Mas os cartazes debochados ("Eu quero votar pra presidente, uai!", como se lia num deles em Belo Horizonte); as paródias ("Como pode um peixe vivo viver fora da água fria?/ Como pode um povo vivo viver sem democracia?", contribuição de Ziraldo); o boneco gigante de Teotônio Vilela em homenagem ao grande inspirador da cruzada cívica, que morreu no pré-lançamento da campanha; as performances artísticas e os happenings engajados; a presença serpenteante do "Dragão das Diretas", obra colorida em papel machê; a politização do futebol e a eclética trilha sonora dos comícios —tudo isso resultava de uma miríade de iniciativas descentralizadas que projetaram a cara descontraída do movimento.

A imprensa, sobretudo a Folha, teve papel decisivo nas Diretas Já. O jornal encampou a proposta quando ela ainda engatinhava, pouco antes do comício do Pacaembu.

Cobrou empenho dos políticos quando identificava apatia cívica, apontou a complacência de lideranças que colocavam interesses pessoais acima dos da nação, salientou a importância do suprapartidarismo nos palanques, ouviu e deu destaque a personalidades que apoiavam a causa, estimulou uma cobertura jornalística que, mais do que noticiar, enaltecia os avanços da campanha. Não à toa a Folha foi chamada de "o Jornal das Diretas".

Outros veículos demoraram para aderir ao movimento, e muitos só o fizeram quando passou a ser impossível ignorar a voz cada vez mais audível das ruas. Não que a imprensa fosse em peso a favor da continuação da ditadura. A questão é que não acreditava que o caminho para a democracia passasse pelas Diretas Já.

O argumento mais consistente era o de que, ao afrontar os militares, a campanha poderia ter efeito contrário, revertendo o lento processo de abertura política que, desde os anos 1970, vinha sendo administrado pelo governo, com avanços e recuos. Além disso, a imprensa duvidava que a emenda fosse aprovada pelo Congresso, onde os governistas estavam super-representados, em parte devido à série de casuísmos que haviam favorecido os candidatos da situação nos anos anteriores.

A TV Globo, por exemplo, ignorou vários comícios e apresentou o da praça da Sé como um show de música por ocasião do aniversário de São Paulo. Mais tarde, no megacomício da Candelária, do Rio, redimiu-se, colocando toda sua estrutura a serviço de uma vibrante cobertura ao vivo. Ao longo da campanha, sob pressão constante do governo, oscilou entre o entusiasmo e a prudência.

A mídia só se manifestaria em uníssono quando o governo impôs um cerco militar a Brasília e censurou o noticiário das rádios e TVs às vésperas da votação da emenda no Congresso. O objetivo era blindar os parlamentares que votassem contra o projeto, evitando sua exposição junto ao eleitorado.

Nos veículos impressos, que continuaram livres para informar e opinar, a iniciativa do governo foi recebida com duras críticas. Nos de mídia eletrônica, obrigados a se submeter ao controle oficial sob pena de serem tirados do ar, informações cifradas e mensagens subliminares, como o uso de gravatas amarelas pelos apresentadores, marcavam a posição editorial.

Como o ceticismo não chegou a superar a esperança, a derrota das Diretas frustrou a nação, até porque o placar foi relativamente apertado. Apesar de ter contabilizado 298 votos a favor —inclusive de 55 parlamentares do PDS, o partido governista – a emenda Dante de Oliveira não obteve a maioria qualificada de dois terços, exigida para mudanças na Constituição.

Votaram contra a proposta 65 deputados, e 113 se ausentaram. Houve ainda três abstenções. Faltaram 22 votos para a vitória. Rejeitada pela Câmara, a emenda não precisou ser enviada ao Senado. Entre os deputados que votaram "não", mais de dois terços (67%) não se reelegeram, em comparação ao índice de 50% entre os que votaram "sim".

A história das Diretas só não termina aí porque o capital eleitoral acumulado nas praças lotadas viabilizou, nos meses seguintes, uma candidatura de oposição, a de Tancredo Neves, que fez prevalecer a eficiência de seu jogo político, que agradava à população sem desagradar aos generais.

O arranjo incluiu a formação da chapa com um vice egresso do partido governista e que fizera carreira à sombra dos militares, José Sarney. Tancredo se elegeu em 15 de janeiro de 1985 com folga. Recebeu 480 votos, contra 180 dados ao seu adversário, o polêmico Paulo Maluf, cuja insistência em concorrer abrira caminho para o êxito do mineiro.

Tancredo, como se sabe, não teve tempo de vestir a faixa presidencial. Internado horas antes do que deveria ser a sua posse, morreu semanas mais tarde, em 21 de abril de 1985, quase um ano depois da derrota das Diretas. Embora eleito por um Colégio Eleitoral restrito, carregava o prestígio de ter feito campanha nos palanques e tinha a aura de mártir da democracia. Para a sociedade civil, era a segunda frustração seguida.

Se a redemocratização teve um início torto, no entanto, o espírito remanescente das Diretas se encarregou de conduzir o país à Constituição de 1988, que, além de contemplar demandas sociais até então ignoradas, resiste como anteparo a ameaças antidemocráticas, como a invasão e a depredação das sedes dos três Poderes em Brasília, em 8 de janeiro.

Derrotada por "fiapos de homens públicos" e "fósseis da ditadura", como disse a Folha em editorial de primeira página em 26 de abril de 1984, as Diretas Já estão inscritas na gênese do mais duradouro período democrático da história do Brasil.

Fim da ditadura na Argentina deu ânimo às Diretas e assombrou militares no Brasil

Brasil voltou à democracia pouco depois dos vizinhos, mas nunca puniu militares por seus atos

Oscar Pilagallo
Jornalista, é autor de “História da Imprensa Paulista”, entre outros livros. Lança agora “O Girassol que nos Tinge: Uma história das Diretas Já, o Maior Movimento Popular do Brasil" (ed. Fósforo), sobre os 40 anos das Diretas

Folha de S.Paulo

[RESUMO] Queda da ditadura argentina em 1983 foi um alento para a campanha pela redemocratização que tomava fôlego no Brasil, ao mesmo tempo em que amedrontou setores das Forças Armadas que temiam que se repetissem aqui os processos contra militares de altas patentes. O Brasil teria um governo civil pouco mais de um ano depois, mas, ao contrário do que ocorreu no país vizinho, a conciliação prevaleceu e militares daqui nunca foram julgados por seus atos.

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Impulsionado pela campanha das Diretas Já, o processo de redemocratização também foi favorecido por guinadas políticas em países geográfica ou culturalmente próximos do Brasil que serviriam de paradigmas.

Já em meados dos anos 1970, a península Ibérica havia deixado para trás prolongadas ditaduras. Em Portugal, a Revolução dos Cravos, de 1974, pusera fim ao regime salazarista. Na Espanha, com a morte do general Franco em 1975, a primeira eleição em quase meio século e o subsequente Pacto de Moncloa haviam selado a redemocratização.

Comemoração para celebrar a democracia e o fim da ditadura (1976-1983) argentina, na Praça de Maio - Ricardo Stuckert-10.dez.21/Reprodução

Depois foi a vez da América Latina. Em 1980, o Uruguai impôs um revés aos militares à frente de um governo autoritário desde 1973. Um plebiscito rejeitou a proposta de reforma constitucional que procurava legitimar pelo voto o regime de exceção. Desde então, a ditadura do país vizinho começou a ruir. Cairia de vez em 1984, com a eleição democrática de um novo governo.

A maior influência, no entanto, veio da Argentina, na forma de um espelho que refletia esperança ou ameaça, de acordo com o ponto de vista do observador. Para a maioria dos brasileiros, os defensores da redemocratização, o fim da ditadura na Argentina significava um alento.

Para setores das Forças Armadas, porém, a responsabilização de militares argentinos de alta patente por crimes cometidos quando estiveram no poder provocava o temor do que denominavam "retaliação" ou "revanchismo".

Implantado em 1976, o regime militar argentino não resistiu à derrota para a Grã-Bretanha na guerra das Malvinas. Em junho de 1982, depois de pouco mais de dois meses de conflito, o Exército argentino capitulou diante da superioridade do inimigo. A contenda resultou da iniciativa dos argentinos de invadir um território que reivindicavam havia muito tempo, uma decisão atribuída à tentativa de se criar um inimigo externo que desviasse a atenção da crise interna, econômica e política.

O desastre nos campos de batalha derrubou o alto comando das Forças Armadas, a começar pelo presidente, o general Leopoldo Galtieri. A rendição abriu espaço para um acordo, sob os auspícios da Igreja Católica, que prometia eleição em breve. Os militares tentaram uma transição negociada que os eximisse de culpa pelos desmandos durante os anos de repressão. A ideia, entretanto, foi rejeitada pela sociedade e obrigou o governo a marcar a eleição presidencial para fins do ano seguinte.

A guerra rachou a esquerda no mundo, e a do Brasil não foi exceção. Os partidos então localizados na órbita da União Soviética se alinharam à Argentina, contra o dito "imperialismo britânico". Já a esquerda democrática optou pela neutralidade. Não tinha como apoiar a Grã-Bretanha, mas também não queria emprestar solidariedade a um país sob ditadura. Quando a guerra terminou, essas divergências ficaram no passado. A partir daí todos concordavam que a posição dos militares argentinos seria insustentável.

Humilhante para a Argentina, a derrota, que causou a morte de cerca de 700 soldados, fez aflorar o ressentimento popular contra as Forças Armadas. Ganhou importância, por exemplo, a atuação das Mães da Praça de Maio, que desde 1977 se manifestavam semanalmente em frente à sede do governo, em Buenos Aires, para cobrar informações sobre seus filhos, desaparecidos e mortos. Foi nesse caldo de contestação que emergiu a candidatura de Raúl Alfonsín, um político moderado, mas com histórico de determinação na defesa dos direitos humanos.

Embora as ditaduras argentina e brasileira tivessem a mesma natureza e pertencessem ao mesmo momento histórico da América Latina, havia particularidades que as diferenciavam. Lá, a alta hierarquia e os chefes de Estado estiveram diretamente envolvidos na repressão. Aqui, embora os porões da ditadura contassem com a conivência da cúpula militar, o aparelho repressivo agiu com considerável grau de autonomia.

Há assimetria também em relação à escala da violência. Aqui, morreram 434 pessoas em ações que visaram principalmente o movimento armado de esquerda, de acordo com o relatório da Comissão Nacional da Verdade. Lá, houve cerca de 30 mil mortos, segundo estimativa de entidades de defesa dos direitos humanos.

Havia ainda outras duas diferenças. Em primeiro lugar, a cena política brasileira nunca produziu um líder com perfil equivalente ao de Alfonsín, que tivesse firmeza em enfrentar o passado e densidade eleitoral. Os moderados de Brasília, como Tancredo Neves e Ulysses Guimarães, sempre estiveram mais inclinados à conciliação.

Em segundo lugar, não houve no Brasil um evento catalisador que precipitasse os acontecimentos, como uma acachapante derrota bélica.

Esse conjunto de distinções, no entanto, não se mostrava suficiente para mitigar a preocupação nas casernas. Os militares brasileiros só pareciam ter olhos para os desdobramentos da situação do outro lado da fronteira. Uma frase atribuída ao general Walter Pires, ministro do Exército de Figueiredo, sintetizava os humores dos membros da mais alta hierarquia. Ele alertava que jamais seria "permitido o revolvimento do passado, o banco dos réus", palavras reproduzidas em cartazes afixados nas paredes de órgãos de repressão castrense.

Era uma realidade que contrastava com a do país vizinho, onde generais e presidentes da República logo seriam julgados e levados para a cadeia e dezenas de processos legais seriam abertos contra os acusados de terem responsabilidade por crimes durante a ditadura. A busca por justiça ganhou fôlego com a posse de Alfonsín, em 10 de dezembro de 1983, duas semanas depois do comício do Pacaembu, que marcou o início, ainda limitado, do movimento das Diretas Já no Brasil.

O novo governante argentino vestiu a faixa de presidente em cerimônia concorrida à qual compareceram, entre tantas outras autoridades estrangeiras, Franco Montoro, então governador de São Paulo, e vários outros políticos do PMDB.

No hotel em que estava instalado em Buenos Aires, o Alvear, Montoro assistiu às imagens de uma festa democrática com mais de 1 milhão de pessoas nas ruas. Na TV, as cenas, embaladas pela música-tema do musical "Evita", deixaram Montoro com os olhos marejados, de acordo com o testemunho do publicitário Mauro Montoryn. Foi então que o jornalista Clóvis Rossi, da Folha, que fazia a cobertura do evento, perguntou ao governador por que não fazer uma mobilização semelhante em São Paulo a favor das Diretas Já.

Pouco mais de um mês depois seria realizado o comício da Sé. Entre as muitas faixas estendidas, uma dizia: "Não rias de mim, Argentina". Era o estandarte da Banda do Pirandello, um espaço gastronômico alternativo que servia de quartel-general das Diretas. Tratava-se, claro, de uma paráfrase a "Don’t Cry for me, Argentina", a canção mais conhecida de "Evita".

A brincadeira não ajudou a desanuviar o ambiente. Na véspera do comício, a imprensa noticiava que o Superior Tribunal Militar tinha começado o julgamento dos integrantes de três governos argentinos desde o golpe de 1976.

Entre os acusados de prisões em massa, tortura e assassinatos, estavam os generais e ex-presidentes Jorge Videla e Roberto Viola, além de Galtieri. Reynaldo Bignone, outro militar que governou o país, se encontrava preso havia duas semanas.

O fantasma do revanchismo deu origem a um fato insólito. No comício anterior ao da Sé, o da Boca Maldita, em Curitiba, de repente um argentino, supostamente representando Alfonsín, subiu no palanque e fez um discurso incisivo a favor da redemocratização, defendendo o caminho adotado por seu país. Os organizadores não sabiam exatamente de onde ele havia surgido.

Na sequência, o governo bateu na oposição, acusando-a de insensatez pelo convite, e foi secundado por parte da imprensa, que falou em provocação e brandiu a Lei dos Estrangeiros, que proibia a cidadãos de outros países participarem ativamente da política no Brasil.

Mais tarde, desconfiou-se de que o inflamado orador argentino era apenas um infiltrado pelo famigerado SNI (Serviço Nacional de Informações) para tentar difamar as Diretas, associando a campanha à interferência da Argentina.

Democracia corintiana liderou Diretas no futebol

Time paulista foi pioneiro no meio esportivo na mobilização pela democracia

Oscar Pilagallo
Jornalista, é autor de “História da Imprensa Paulista”, entre outros livros. Lança agora “O Girassol que nos Tinge: Uma história das Diretas Já, o Maior Movimento Popular do Brasil" (ed. Fósforo), sobre os 40 anos das Diretas

Folha de S.Paulo

[RESUMO] Jogadores corintianos, como Sócrates e Casagrande, e a torcida flamenguista, entre grupos de outros times, levaram a defesa da redemocratização aos estádios de forma pioneira e ajudaram a fazer da campanha das Diretas, que completa 40 anos, uma mobilização que ia muito além da esfera política.

*

A partir do segundo semestre de 1982, com a proximidade das eleições de 15 de novembro —a primeira para governadores em quase 20 anos—, a política invadiu todos os espaços públicos, e os estádios de futebol não foram exceção. Em São Paulo, os jogadores do Corinthians saíram na frente. No Rio, os torcedores do Flamengo foram precursores na defesa da redemocratização.

Duas semanas antes de os brasileiros irem às urnas, o Corinthians entrou em campo com uma camisa onde se lia: "Dia 15 vote". A iniciativa, repetida nos jogos seguintes, resultava do movimento Democracia Corintiana, que desde o ano anterior agitava a equipe.

Vista do "Bloco Corintiano" durante comício pelas Diretas Já, na praça da Sé, em São Paulo (SP) - Avani Stein-26.jun.84/Folhapress

Tudo começa com a eleição para presidente do clube depois da eliminação prematura no Campeonato Brasileiro de 1981, que inviabiliza uma nova reeleição do folclórico cartola Vicente Matheus. Numa manobra continuísta, ele inverte a ordem da chapa, e disputa como vice na chapa encabeçada por Waldemar Pires.

Uma vez eleito, no entanto, o novo presidente põe de lado o roteiro de coadjuvante que lhe haviam reservado. Escolhe como vice-presidente de futebol o empresário Orlando Monteiro Alves, que, por sua vez, indica Adilson Monteiro Alves, seu filho, para ocupar a diretoria da área. O nepotismo tinha o agravante de Adilson, admitidamente, não entender nada do esporte.

O aparente mau começo, porém, acabou sendo a gênese de uma revolução que projetou o time dentro e fora dos campos.

Ex-dirigente estudantil que enfrentara a ditadura em passeatas e assembleias, Adilson fez da deficiência técnica um diferencial político. Na contramão do estilo despótico que marcava a atuação dos dirigentes dos clubes em geral, ele decidiu ouvir todos, dos atletas aos roupeiros, e acatar a decisão da maioria. As primeiras reivindicações, de cunho esportivo, logo incluiriam questões da política nacional, e o movimento se confundiria com as Diretas Já.

Quem falou primeiro em "democracia corintiana" foi Juca Kfouri, hoje colunista da Folha, num debate sobre a renovação no clube. Na plateia, o famoso publicitário e corintiano fanático Washington Olivetto, focado no marketing esportivo que surgia com a recente autorização de vender espaço publicitário nas camisas, anotou a expressão que em breve transformaria em mote.

Em um primeiro momento, ainda sem anunciantes, o time decidiu aproveitar para veicular a mensagem política sobre a eleição de novembro.

A convocação para que a população votasse não era politicamente neutra. Os jogadores entravam em campo com uma faixa que explicitava a mensagem da camisa: "Ganhar ou perder, mas sempre com Democracia". O contexto induzia à interpretação de que o voto deveria ser na oposição, contra a ditadura.

Embora o movimento privilegiasse o coletivo, o ídolo Sócrates era a sua face mais visível. Ao lado dos colegas, como Wladimir e Casagrande, o jogador colocou sua popularidade a serviço da causa, e chegou a anunciar em palanque que ficaria no Brasil, renunciando a um contrato milionário para jogar na Itália, caso as Diretas Já fossem aprovadas pelo Congresso.

O apoio à democracia colocou o Corinthians no circuito cultural. Seus atletas eram ovacionados em shows de uma Rita Lee vestida com a camisa do clube e, na Globo, a novela "Vereda Tropical" (1984) teve o enredo adaptado para incluir um jogador da equipe, vivido por Mário Gomes.

O time paulista já havia cruzado a fronteira entre o futebol e a política quando, no Rio, a torcida do Flamengo, a maior do Brasil, decidiu seguir o mesmo caminho. Em 28 de janeiro de 1984, logo depois do comício da praça da Sé, em São Paulo, um grupo de torcedores ergueu cartazes no Maracanã, durante o jogo contra o Palmeiras, na estreia do Campeonato Brasileiro, onde estava escrito "Fla Diretas". Tratava-se da primeira torcida a se manifestar pela redemocratização.

A ideia surgira durante uma pelada em Botafogo, no campinho da ASA (Associação Scholem Aleichem), reduto da esquerda judaica, onde costumavam jogar universitários ligados ao clandestino Partido Comunista Brasileiro, flamenguistas em sua maioria, como os humoristas Bussunda, que morreria em 2006, e Cláudio Manoel. "Nosso Figueiredo é melhor que o deles", diziam os flamenguistas, comparando o presidente Figueiredo ao zagueiro Figueiredo, querido da torcida.

Antes de estrear, a Fla Diretas enfrentou alguma resistência por parte das torcidas organizadas, mais por disputa de espaço nas arquibancadas do que por razões políticas —até porque o Flamengo tinha tradição na defesa da democracia, tendo deflagrado, cinco anos antes, a Flanistia, iniciativa de apoio à anistia que chegou a ser monitorada pela polícia do regime.

No fim, a Fla Diretas ganhou o apoio decisivo da maior e mais influente torcida do Flamengo, a Raça Rubro-Negra, e tudo se resolveu.

Ganhou também um desenho do flamenguista Henfil retratando o tradicional urubu da Gávea com uma cédula eleitoral no bico assinalada com um X. O rastro do seu voo formava, no ar, o nome da torcida.

Torcida do Fluminense usa faixa com os dizeres "O Flu não vai Malufar... Diretas Já!", em jogo contra o Flamengo após a derrota da emenda de eleições diretas na Câmara, em 1984 - Lewy Moraes-23.set.84/Folhapress

Justiça fiscal seja feita

Reforma tributária precisa ser tratada como pacto federativo

José Guimarães
Advogado e deputado federal (PT-CE), é líder do governo na Câmara

Folha de S.Paulo

O Fórum Econômico Mundial, reunido em janeiro em Davos, na Suíça, foi surpreendido por 205 bilionários e milionários de vários países exigindo pagar mais impostos. Eles reconhecem a hiperconcentração do capital e o acelerado aumento da pobreza no mundo, depois das crises de 2008 e da pandemia. Na mesma linha, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) diz que quer justiça fiscal para que ricos paguem mais impostos, e os pobres, menos.

Cresce na sociedade o consenso de que a justiça fiscal terá que ser feita. Os direitos sociais não podem mais ficar subordinados ao equilíbrio orçamentário ditado por tecnocratas. A reforma tributária precisa ser tratada como pacto social e federativo, que leve em consideração a função social e redistributiva do Estado.

O presidente Lula (PT) e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad - Adriano Machado/Reuters

O momento é de diálogo, para superação do atraso do nosso sistema tributário. Um modelo injusto, que onera os pobres e desonera os ricos. O Brasil precisa remover o entulho tributário; simplificar o sistema de cobrança e criar o Imposto sobre Valor Agregado (IVA) para reduzir as disputas na Justiça; aumentar a progressividade da tributação sobre a renda do capital e do trabalho; e revisar os benefícios fiscais sobre dividendos. Esse é o busílis da reforma.

A unificação dos tributos sobre produtos e serviços, a serem substituídos pelo IVA, seria um avanço na modernização do sistema. A racionalização aproximaria as regras brasileiras das de países de economias mais desenvolvidas, melhoraria o ambiente para atrair investidores.

As anomalias do sistema tributário são tão graves que as disputas judiciais entre Estado e contribuintes já somam R$ 5,4 trilhões. Esse valor representa 75% do PIB. Atualmente, o governo deixa de arrecadar mais de R$ 400 bilhões por ano com benefícios para setores e segmentos da sociedade.

A eleição do presidente Lula e a união dos três Poderes da República encerraram o danoso ciclo de destruição, de fragilização institucional, de ataques a autoridades judiciárias e políticas e à imprensa. Um ciclo que deixou como herança maldita um caos orçamentário, um déficit de R$ 231,5 bilhões. Nesse cenário político promissor, e ao mesmo tempo de crise econômica e social, a reforma tributária surge como argamassa na reconstrução do país.

A dramática situação nacional despertou a sensibilidade do Congresso e uniu forças políticas potentes, dispostas a se engajarem na agenda de reconstrução, de forma republicana, de acordo com nosso presidencialismo de coalizão. No mesmo sentido da convergência de forças democráticas, o presidente Lula, a presidente do STF, Rosa Weber, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), demonstraram publicamente que estão unidos na defesa da democracia, da reconstrução do país, na condenação da tentativa de golpe e na rigorosa investigação e punição dos golpistas.

O Brasil precisa de diálogo, democracia, desenvolvimento e justiça social e tributária para superar suas mazelas históricas, suas heranças coloniais.

Biden arrisca capital político em aposta agressiva na Guerra da Ucrânia

Apoio a envio de assistência financeira e militar a Kiev desidrata entre americanos, enquanto oposição contra-ataca presidente

Thiago Amâncio

Folha de S.Paulo

Ao longo de semanas entre o fim de 2021 e o começo de 2022, enquanto a maior parte do mundo duvidava, Joe Biden alertou que a Rússia preparava uma invasão da Ucrânia. Depois que a ameaça se concretizou, há um ano, o presidente dos EUA empenhou assistência militar e financeira recorde para Kiev.

Mais recentemente, tomou um trem de 10 horas para uma zona de guerra da qual os americanos não têm o domínio para manifestar apoio e tirar uma foto com o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski.

Ainda que com certa precaução para evitar o que pode ser visto como interferência direta guerra, Biden entrou de cabeça no conflito como o principal aliado de Kiev para conter o avanço de Moscou.

O presidente dos EUA, Joe Biden, ao lado de seu homólogo ucraniano, Volodimir Zelenski, em frente ao mosteiro São Miguel das Cúpulas Douradas, em Kiev - Dimitar Dilkoff - 20.fev.23/AFP

O presidente dos EUA, Joe Biden, ao lado de seu homólogo ucraniano, Volodimir Zelenski, em frente ao mosteiro São Miguel das Cúpulas Douradas, em Kiev - Dimitar Dilkoff - 20.fev.23/AFP

Tudo isso ao mesmo tempo em que se movimentam as peças do xadrez para a Casa Branca em 2024 e cresce a oposição ao esforço empenhado pelo democrata em uma guerra do outro lado do mundo.

Biden não esconde o encantamento com Zelenski, repete que está com a Ucrânia "enquanto for preciso" e voltou de Kiev dizendo que seu coração ficou na cidade. Enquanto isso, a campanha de Donald Trump o acusa de se importar mais com a guerra do que com o povo americano e explora a inflação, o medo da recessão e as falhas na resposta ao acidente de trem em Ohio que carregava carga tóxica.

Há a expectativa de que Biden anuncie nas próximas semanas que vai concorrer à reeleição no ano que vem, e pesquisas apontam que vem caindo o apoio dos americanos à assistência à Ucrânia.

Em janeiro, 37% concordavam com o envio de fundos à Europa, segundo pesquisa da Associated Press, contra 44% em maio passado. Empate na margem de erro com os 38% que discordam. A queda na aprovação do fornecimento de armas é maior: de 60% a 48%.

Outra pesquisa, do instituto Gallup, apontou que cresceu de 7% para 22% entre março de 2022 e janeiro de 2023 a parcela das pessoas que acreditavam que o governo estava dando apoio demais para a Ucrânia.

O apoio, afinal, custa caro. O Congresso americano já autorizou o envio de US$ 113 bilhões (R$ 586 bi) em ajuda militar e outros tipos de assistência, segundo o Comitê por um Orçamento Federal Responsável.

Do total, US$ 67 bilhões foram para fins militares, e o restante para ações como apoio econômico e ajuda humanitária. É muito mais, por exemplo, do que os US$ 30 bilhões estimados pelo governo por ano para aliviar a dívida estudantil. Também muito superior ao enviado a outros parceiros dos EUA como Israel, que recebeu US$ 3,3 bilhões em 2020; Afeganistão (antes da tomada do Talibã), com US$ 2,8 bilhões; e Egito, US$ 1,3 bilhão, de acordo com o Council on Foreign Relations.

É na Câmara onde o apoio é mais questionado. O presidente da Casa, o republicano Kevin McCarthy, diz que não quer dar "cheques sem fundo" para Kiev. O deputado da Flórida Matt Gaetz apresentou um projeto do que chamou de "Resolução da Fadiga com a Ucrânia", para "expressar o entendimento de que os EUA devem acabar com a ajuda militar e financeira."

Para o cientista político Ken Kollman, da Universidade de Michigan, "sempre haverá risco para o político que foca na política externa, especialmente gastando muito dinheiro na defesa de outro país".

Mas ainda há suficiente apoio entre eleitores e dentro dos partidos para que a assistência encabeçada por Biden seja considera arriscada politicamente. "Isso pode mudar. Se os EUA entrarem em recessão, terão mais vozes questionando porque estamos gastando dinheiro com isso, mandando dinheiro para o exterior, em vez de apoiar o próprio povo. Mas acredito que hoje a assistência está em sincronia com a visão mainstream nos partidos políticos e no público."

Christopher Johsnon, porta-voz do Departamento de Estado, defende à Folha que "fortalecer os valores democráticos no mundo é muito importante para o povo americano" e que as políticas internas e externas não são excludentes.

"O governo Biden-Harris sempre trabalha para ajudar o povo americano. Temos várias linhas de atuação, com elementos internacionais e domésticos, com o mesmo objetivo. E achamos muito importante chamar atenção da comunidade internacional para terminar com esta guerra."

A Ucrânia já era um tema complexo para Biden antes da guerra, em uma controvérsia envolvendo o período em que foi vice de Barack Obama, que resultaria ainda no primeiro impeachment de Trump.

A história envolve Hunter Biden, filho do presidente, contratado em 2014 para o corpo de diretores da companhia de energia ucraniana Burisma, do oligarca Mikola Zlochevski, envolvido em uma série de suspeitas de corrupção. Uma investigação do Senado em 2020 apontou que Hunter e um sócio "formaram um relacionamento financeiro consistente e significativo" com Zlochevski e que receberam milhões em transações de pessoas acusadas de corrupção.

Entre 2015 e 2016, o procurador-geral da Ucrânia era Viktor Shokin, que investigava Zlochevski. Mas o próprio Shokim era suspeito de corrupção, e houve uma campanha internacional para afastá-lo. Biden foi acusado por republicanos de pressionar pela saída de Shokin do cargo para barrar a apuração contra o filho. A investigação do Senado sobre o caso, embora aponte problemas de Hunter na Ucrânia, não encontrou indícios de que seu pai cometeu irregularidades.

Republicanos ficaram na cola do democrata e, em julho de 2019, Donald Trump ligou para Zelenski, à época recém-eleito, e pediu que investigasse Hunter, condicionando a isso o envio de recursos ao país. O episódio ricocheteou de forma negativa: Biden não foi punido por suposto favorecimento de seu filho, mas Trump sofreu impeachment na Câmara (barrado no Senado) pelo telefonema.

A dias da eleição de 2020, que Biden venceria, o New York Post publicou reportagens com emails vazados que mostravam que Hunter apresentou seu pai em 2015, à época vice-presidente, a um executivo da Burisma, em um suposto conflito de interesses, mas o caso não ganhou tração depois que a reportagem foi abafada por redes sociais e classificada por jornais como "desinformação russa" —depois, as companhias voltaram atrás e admitiram a veracidade do material.

O esforço de Biden como uma espécie de patrocinador da liberdade ucraniana deve dar ao país um novo significado na biografia do presidente, caso concorra realmente na próxima eleição.

China busca fortalecer segurança global para torná-la mais justa e racional

Pequim quer lidar com desafios com abordagem de ganhos mútuos e solucionar dilemas com solidariedade

Zhu Qingqiao
Embaixador da China no Brasil

Folha de S.Paulo

O mundo vive um novo período de agitações e mudanças, com novos e sérios desafios à paz e à segurança. Em abril de 2022, o presidente chinês, Xi Jinping, apresentou a Iniciativa de Segurança Global, uma proposta que define a posição da China na promoção da paz e do progresso mundial.

A iniciativa recebeu ampla atenção e repercutiu de forma positiva na comunidade internacional. Em resposta às expectativas de todas as partes, a China lançou recentemente um documento conceitual sobre a iniciativa. Apresento um resumo para servir de referência e entendê-la melhor.

Pessoas com bandeiras do Partido Comunista Chinês durante evento em Xangai - Aly Song - 22.jun.21/Reuters

Em primeiro lugar, o documento traz as diretrizes conceituais e reafirma que a iniciativa se baseia numa nova visão de que a segurança é um tema de interesse comum, cooperativo e sustentável, que tem como regra básica o respeito mútuo e como princípio fundamental a indivisibilidade da segurança.

Seu objetivo é construir a longo prazo uma comunidade de segurança, eliminando as causas profundas dos conflitos internacionais, melhorando a governança da segurança global e concretizando a paz e o progresso duradouros no mundo.

Inspirada na cultura chinesa de valorização da harmonia, a iniciativa está alinhada com a política externa de uma diplomacia independente e pacífica, oferecendo uma contribuição intelectual da China para abordar os desafios de segurança internacional.

Em segundo lugar, o documento indica a direção das ações. Para lidar com as preocupações de segurança mais prementes da comunidade internacional, propõe 20 prioridades de cooperação, abordando áreas como o papel das Nações Unidas, a estabilidade estratégica global, soluções políticas para questões mais destacadas, desafios de segurança não tradicionais e aprimoramento da governança de segurança global.

A China espera que as partes possam cooperar em uma ou várias dessas áreas, sem se restringir às que foram propostas. Conta também com a participação de todos para enriquecer o conteúdo da iniciativa e explorar novas formas e domínios da parceria.

Em terceiro lugar, o documento visa construir consenso. A iniciativa tem postura aberta e inclusiva, acolhendo e encorajando a participação da comunidade internacional. Sugere criar mais plataformas e mecanismos para intercâmbio e cooperação, aumentar os recursos e o apoio destinados aos países em desenvolvimento e fortalecer a voz dessas nações no sistema de governança de segurança global.

A China tem a disposição de fornecer 5.000 vagas nos próximos cinco anos para capacitar profissionais em países em desenvolvimento, a fim de fortalecer a segurança global e torná-la mais justa e racional.

A história da humanidade demonstra que segurança e progresso são interdependentes e inseparáveis, como duas asas de um mesmo pássaro ou de um mesmo avião. A iniciativa e o documento evidenciam que, diante das turbulências no cenário internacional, a China segue com firmeza o caminho do desenvolvimento pacífico, buscando preservar a paz mundial e contribuir para o desenvolvimento global.

Ao lado do Brasil e dos demais países, a China tem a expectativa de defender o multilateralismo genuíno, lidar com os diversos riscos e desafios com uma abordagem de ganhos mútuos e solucionar os dilemas de segurança com espírito de solidariedade a fim de trazer ao mundo mais paz, segurança e prosperidade.

Dampanha das Diretas faz 40 anos em tempos de ameaças à democracia

Embora derrotado na Câmara, movimento impulsionou fim da ditadura e deixou legado hoje sob ataque

Oscar Pilagallo
Jornalista, é autor de "História da Imprensa Paulista" (Três Estrelas) e "O Girassol que nos Tinge: uma História das Diretas Já, o Maior Movimento Popular do Brasil" (Fósforo)

[RESUMO] Em 2 de março de 1983 a emenda que propunha a restauração de eleições diretas para a Presidência obteve assinaturas suficientes para ser apresentada no Congresso. A campanha das Diretas logo atrairia o apoio de políticos da oposição à ditadura e de vastas camadas da população —com participação decisiva da imprensa, sobretudo da Folha—, tornando-se a maior mobilização popular da história do país. Mesmo derrotada na Câmara, impulsionou o processo de redemocratização e de conquistas da Constituição de 1988, legado hoje atacado por ameaças autoritárias, como a invasão das sedes dos três Poderes em 8 de janeiro.

*

Quatro décadas depois das Diretas Já, no momento em que relembra a maior campanha popular e a mais animada festa cívica de sua história, o Brasil se encontra, de novo, na posição de ter que fazer da defesa intransigente da democracia o eixo da ação política.

O paralelismo entre as duas situações históricas tem limites evidentes. Em meados dos anos 1980, combatia-se uma ditadura militar que, duas décadas após ter sido implantada, vivia seus estertores. Hoje, sem que o regime democrático tivesse sido rompido, enfrenta-se a ameaça latente gestada no que sobrou de um projeto autoritário cujos simpatizantes mais fanáticos, apelando à violência, relutam em aceitar o veredito das urnas.

No maior comício das Diretas, mais de 1 milhão de pessoas se reuniram no Vale do Anhangabaú em 16 de abril de 1984 - Renato dos Anjos/Folhapress

Ainda assim, como as diferenças não anulam as semelhanças, não seria impertinente notar o que há em comum entre 1983, quando as Diretas ganham forma ainda embrionária, e 2023. Para citar o que talvez seja o melhor exemplo da comparação, o arco partidário dos palanques de então, que abrangia da esquerda à centro-direita, exibe a mesma amplitude ideológica da frente que no ano passado derrotou a extrema direita.

A correspondência estabelecida entre os dois cenários recobre a efeméride com uma camada adicional de relevância, mas não se sobrepõe ao valor intrínseco das Diretas para a história contemporânea do Brasil.

O impacto expressivo das multidões nas ruas foi suficiente para interferir no curso dos acontecimentos, embora não seja possível cravar que a campanha tenha sido a única responsável pelo ponto final na ditadura. Quando o movimento ganhou as ruas, nos primeiros meses de 1984, o regime militar já demonstrava nítidos sinais de exaustão.

Na economia, o "milagre" dos anos 70 desembocara em uma crise profunda, com forte recessão e inflação descontrolada. Na política, a anistia de 1979 trouxera do exílio opositores da ditadura que desfrutavam de prestígio e popularidade, e as eleições de 1982, pela primeira vez em duas décadas, haviam catapultado críticos do regime ao poder Executivo em estados importantes, como São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.

Se o papel das Diretas para o fim da ditadura não foi um fator determinante, já que o ocaso do regime estava no horizonte, também não foi pequeno. A campanha influenciou a maneira como se deu a transição para a democracia, impondo uma adaptação no roteiro original dos militares, que previa cronograma e ritmo próprios para o desembarque do governo. Ao tomarem as praças nos principais centros urbanos do país, os manifestantes colocaram a sociedade civil na equação política elaborada nos gabinetes.

Especular como seria o desfecho do ciclo militar sem a campanha ajuda a dimensionar seu significado. Talvez as Forças Armadas, preocupadas com a autopreservação da instituição, voltassem aos quartéis de qualquer jeito. É igualmente possível que a ausência de pressão popular tivesse viabilizado manobras continuístas, como a que defendia a extensão do mandato do general João Baptista Figueiredo, o último presidente militar. Ou, mais grave, tivesse aberto espaço para a ala dura dos militares, que fazia de tudo para impor retrocessos à redemocratização.

Na certidão de nascimento das Diretas Já consta a data de 2 de março de 1983. Foi nesse dia, no início da nova legislatura, que o estreante deputado federal oposicionista Dante de Oliveira (PMDB-MT) obteve o número suficiente de assinaturas de parlamentares para apresentar ao Congresso seu projeto de emenda constitucional que, com 15 linhas datilografadas, restabelecia a eleição direta para presidente da República. A iniciativa, porém, ao contrário do que se poderia supor, dada a grandiosidade que a campanha teria, não despertou o menor interesse.

Naquela altura, o campo progressista estava mais focado na proposta de convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, algo que varresse do mapa político o "entulho autoritário" —o conjunto de normas, leis e atos institucionais baixado pelos militares desde 1964.

Inicialmente, parte das esquerdas, que logo depois abraçaria com entusiasmo a campanha, via na ênfase nas Diretas um deslocamento indesejável de prioridades, pois a eleição em si, argumentava-se, não levaria necessariamente às transformações que enfrentariam a miséria e a desigualdade social, mazelas, aliás, que, apesar dos avanços, resistem ao reformismo dos governos democráticos posteriores.

O jogo das Diretas começaria a ser jogado para valer pouco depois do discurso inaugural de Dante, com a entrada em cena de Ulysses Guimarães, presidente do PMDB, o principal partido de oposição. Antes de outras lideranças, Ulysses percebe o potencial da campanha, e começa a tratar o assunto como prioridade.

Em abril, uma resolução do diretório nacional do partido aprova a estratégia, que é endossada pelo recém-fundado PT, uma legenda aguerrida mas ainda com pouca representatividade na política nacional. No mês seguinte, o petista Luiz Inácio Lula da Silva, que seria o mais ovacionado nos megacomícios, e Ulysses, que faria por merecer a alcunha de Senhor Diretas, deixam rivalidades de lado para assumir em conjunto a defesa das Diretas, ainda sem o aposto "já".

O PMDB sai na frente sozinho ao realizar em Goiânia, em junho de 1983, o primeiro comício com organização centralizada. As 5.000 pessoas presentes não tinham a mais pálida ideia do que viria pela frente. O ato discreto, no entanto, serviu à estratégia de Ulysses de colocar seu bloco na rua, mas sem estardalhaço, para ir dobrando aos poucos as resistências dentro de seu próprio partido, onde nem todos estavam convencidos de que o projeto das Diretas seria a melhor opção para acabar com a ditadura.

A campanha só ganharia fundações adequadas ao porte daquela construção política com a adesão dos governadores de oposição ao regime, principalmente Franco Montoro, em São Paulo, Tancredo Neves, em Minas Gerais, e Leonel Brizola, no Rio de Janeiro. Sim, foram as máquinas de suas administrações que financiaram a estrutura dos megaeventos, provocando críticas do governo central, que apontava o suposto mau uso do dinheiro público —como se financiar a defesa da democracia fosse algo alheio à boa governança.

Os chefes dos Executivos estaduais se encontravam em posição delicada. De um lado, acenavam à sociedade que, cada vez mais, se mostrava disposta a impor sua vontade. De outro, dependiam da liberação de verbas do governo federal para tocar obras, em um momento em que a crise econômica esvaziava os cofres públicos. Assim, espremidos entre forças antagônicas, eles reagiam com instinto de sobrevivência política, cada um calculando o passo seguinte para não ser atropelado pela dinâmica do movimento.

Montoro atuou, no mais das vezes, sob o signo da hesitação. Depois de articular a campanha nos bastidores, deixou de comparecer ao primeiro comício em São Paulo, realizado em frente ao estádio do Pacaembu em fins de novembro de 1983, permitindo que o evento, ainda pequeno, fosse dominado pelo PT.

Na sequência, foi corajoso ao apostar no êxito do megacomício da Sé, em 25 de janeiro de 1984, transformando o aniversário da cidade no divisor de águas das Diretas —a partir do sarrafo na casa dos 300 mil presentes, segundo cálculos da época, cada nova manifestação procurava superar a anterior. O governador, porém, não demonstraria a mesma disposição em financiar aquele que seria o maior de todos os comícios, o do Vale do Anhangabaú, em abril.

Quanto a Tancredo, fez o que sabia fazer de melhor: elevou à categoria de arte política a capacidade de agir com ambiguidade em tempo integral. Não deixou de promover um comício exitoso em Belo Horizonte e caprichou na retórica a favor das Diretas, ao mesmo tempo em que mantinha aberta a porta para o plano B, a eleição indireta, a ser decidida por um Colégio Eleitoral em que ele seria o único político de oposição com chances reais de vitória.

Já Brizola teve um comportamento errático. Relutou em patrocinar comícios, mas quando finalmente o fez pegou o microfone para alfinetar a ditadura, usando um tom que lembrava o líder do início dos anos 1960, quando organizou a resistência contra o establishment militar e a favor da posse do presidente João Goulart.

Numa coreografia difícil de ser sustentada por muito tempo, Brizola mantinha um pé na canoa da campanha e outro na defesa do regime, chegando a propor a extensão do mandato de Figueiredo por dois anos, ao fim dos quais haveria eleição direta.

A campanha durou todo o verão de 1984 e mais um pouco. Depois de algumas iniciativas isoladas, começou em 12 de janeiro com o ensaio geral na Boca Maldita, em Curitiba, e terminou com uma vigília cívica nacional horas antes da votação, em 25 de abril.

Foram mais de cem dias em que a população assumiu o protagonismo da cena política, empurrando as lideranças em direção à democracia. Estimava-se à época que quase 5 milhões de pessoas tivessem participado das dezenas de comícios. Embora reconhecidamente inflado pelos organizadores, o número, de qualquer maneira, foi elevado o bastante para traduzir o consenso da sociedade civil em relação à campanha.

A criatividade espontânea deu a tônica das Diretas. É verdade que o slogan estampado nas indefectíveis camisetas amarelas —"Eu quero votar pra presidente"— saiu das pranchetas de publicitários contratados pelo PMDB, que também encomendou o "Frevo das Diretas" a Moraes Moreira e Paulo Leminski.

Mas os cartazes debochados ("Eu quero votar pra presidente, uai!", como se lia num deles em Belo Horizonte); as paródias ("Como pode um peixe vivo viver fora da água fria?/ Como pode um povo vivo viver sem democracia?", contribuição de Ziraldo); o boneco gigante de Teotônio Vilela em homenagem ao grande inspirador da cruzada cívica, que morreu no pré-lançamento da campanha; as performances artísticas e os happenings engajados; a presença serpenteante do "Dragão das Diretas", obra colorida em papel machê; a politização do futebol e a eclética trilha sonora dos comícios —tudo isso resultava de uma miríade de iniciativas descentralizadas que projetaram a cara descontraída do movimento.

A imprensa, sobretudo a Folha, teve papel decisivo nas Diretas Já. O jornal encampou a proposta quando ela ainda engatinhava, pouco antes do comício do Pacaembu.

Cobrou empenho dos políticos quando identificava apatia cívica, apontou a complacência de lideranças que colocavam interesses pessoais acima dos da nação, salientou a importância do suprapartidarismo nos palanques, ouviu e deu destaque a personalidades que apoiavam a causa, estimulou uma cobertura jornalística que, mais do que noticiar, enaltecia os avanços da campanha. Não à toa a Folha foi chamada de "o Jornal das Diretas".

Outros veículos demoraram para aderir ao movimento, e muitos só o fizeram quando passou a ser impossível ignorar a voz cada vez mais audível das ruas. Não que a imprensa fosse em peso a favor da continuação da ditadura. A questão é que não acreditava que o caminho para a democracia passasse pelas Diretas Já.

O argumento mais consistente era o de que, ao afrontar os militares, a campanha poderia ter efeito contrário, revertendo o lento processo de abertura política que, desde os anos 1970, vinha sendo administrado pelo governo, com avanços e recuos. Além disso, a imprensa duvidava que a emenda fosse aprovada pelo Congresso, onde os governistas estavam super-representados, em parte devido à série de casuísmos que haviam favorecido os candidatos da situação nos anos anteriores.

A TV Globo, por exemplo, ignorou vários comícios e apresentou o da praça da Sé como um show de música por ocasião do aniversário de São Paulo. Mais tarde, no megacomício da Candelária, do Rio, redimiu-se, colocando toda sua estrutura a serviço de uma vibrante cobertura ao vivo. Ao longo da campanha, sob pressão constante do governo, oscilou entre o entusiasmo e a prudência.

A mídia só se manifestaria em uníssono quando o governo impôs um cerco militar a Brasília e censurou o noticiário das rádios e TVs às vésperas da votação da emenda no Congresso. O objetivo era blindar os parlamentares que votassem contra o projeto, evitando sua exposição junto ao eleitorado.

Nos veículos impressos, que continuaram livres para informar e opinar, a iniciativa do governo foi recebida com duras críticas. Nos de mídia eletrônica, obrigados a se submeter ao controle oficial sob pena de serem tirados do ar, informações cifradas e mensagens subliminares, como o uso de gravatas amarelas pelos apresentadores, marcavam a posição editorial.

Como o ceticismo não chegou a superar a esperança, a derrota das Diretas frustrou a nação, até porque o placar foi relativamente apertado. Apesar de ter contabilizado 298 votos a favor —inclusive de 55 parlamentares do PDS, o partido governista – a emenda Dante de Oliveira não obteve a maioria qualificada de dois terços, exigida para mudanças na Constituição.

Votaram contra a proposta 65 deputados, e 113 se ausentaram. Houve ainda três abstenções. Faltaram 22 votos para a vitória. Rejeitada pela Câmara, a emenda não precisou ser enviada ao Senado. Entre os deputados que votaram "não", mais de dois terços (67%) não se reelegeram, em comparação ao índice de 50% entre os que votaram "sim".

A história das Diretas só não termina aí porque o capital eleitoral acumulado nas praças lotadas viabilizou, nos meses seguintes, uma candidatura de oposição, a de Tancredo Neves, que fez prevalecer a eficiência de seu jogo político, que agradava à população sem desagradar aos generais.

O arranjo incluiu a formação da chapa com um vice egresso do partido governista e que fizera carreira à sombra dos militares, José Sarney. Tancredo se elegeu em 15 de janeiro de 1985 com folga. Recebeu 480 votos, contra 180 dados ao seu adversário, o polêmico Paulo Maluf, cuja insistência em concorrer abrira caminho para o êxito do mineiro.

Tancredo, como se sabe, não teve tempo de vestir a faixa presidencial. Internado horas antes do que deveria ser a sua posse, morreu semanas mais tarde, em 21 de abril de 1985, quase um ano depois da derrota das Diretas. Embora eleito por um Colégio Eleitoral restrito, carregava o prestígio de ter feito campanha nos palanques e tinha a aura de mártir da democracia. Para a sociedade civil, era a segunda frustração seguida.

Se a redemocratização teve um início torto, no entanto, o espírito remanescente das Diretas se encarregou de conduzir o país à Constituição de 1988, que, além de contemplar demandas sociais até então ignoradas, resiste como anteparo a ameaças antidemocráticas, como a invasão e a depredação das sedes dos três Poderes em Brasília, em 8 de janeiro.

Derrotada por "fiapos de homens públicos" e "fósseis da ditadura", como disse a Folha em editorial de primeira página em 26 de abril de 1984, as Diretas Já estão inscritas na gênese do mais duradouro período democrático da história do Brasil.

Livro sobre Diretas explica como canções de Ultraje, Caetano, Chico e Milton viraram hinos

Obra de Oscar Pilagallo comenta as músicas que marcaram as multidões que tomaram as ruas do país

Oscar Pilagallo
Jornalista, é autor de "História da Imprensa Paulista" (Três Estrelas) e "O Girassol que nos Tinge: uma História das Diretas Já, o Maior Movimento Popular do Brasil" (Fósforo)

[RESUMO] No texto a seguir, adaptado de capítulo do livro "O Girassol que nos Tinge: Uma História das Diretas Já, o Maior Movimento Popular do Brasil", o jornalista Oscar Pilagallo conta como uma lista eclética e improvável de canções, do rock à MPB tradicional, embalou as multidões que iam às ruas pela redemocratização do país.

*

Num dia qualquer de 1982 —entre a surpreendente derrota da seleção brasileira na Copa da Espanha, em 5 de julho, e a auspiciosa primeira eleição direta para governadores em mais de 15 anos, em 15 de novembro—, Roger Moreira tomou uma chuveirada que mudaria sua vida e emprestaria irreverência à trilha sonora da campanha das Diretas. Cantarolando na ducha, acabou entoando, por uma associação sonora qualquer, a palavra "inútil", que ficou reverberando em sua cabeça até se transformar no refrão "a gente somos inútil".

Nascido em família da classe média paulistana residente na chique região dos Jardins, Roger estava distante do perfil dos jovens engajados que militavam no então ressurgido movimento estudantil.

Chico Buarque e a atriz Bruna Lombardi em comício pelas Diretas Já - Renato dos Anjos/Folhapress
Adolescente, a transgressão não ia além dos sapos que, apanhados na fazenda dos pais, soltava nas aulas. Em vez de contestação juvenil, algazarra inconsequente. Tinha largado o vício do fliperama, mas ainda gostava de entrar pela madrugada brincando de videogame ou folheando gibis, como "Pato Donald".

"Eu não era muito politizado, mal sabia o que era esquerda e direita", lembraria quatro décadas mais tarde, quando já estava alinhado à direita, inclusive apoiando o presidente Jair Bolsonaro, de extrema direita. E, no entanto, o guitarrista alienado de 1983 iria capturar o desejo coletivo, mas ainda não verbalizado nas ruas, de deixar para trás a ditadura.

Vazada em críticas ao governo e à sociedade, com ironias sublinhadas pela concordância verbal torta, a letra de "Inútil" passeia por mazelas brasileiras. Há menções à política industrial ("a gente faz trilho e não tem trem pra botar"), ao descuido social ("a gente faz filho e não consegue criar") e à censura ("a gente escreve peça e não consegue encenar"). Roger olha também para o próprio umbigo ("a gente faz música e não consegue gravar") e reflete o desapontamento nacional com a Copa perdida pelo futebol-arte ("a gente joga bola e não consegue ganhar").

Foi o verso de abertura, porém, que catapultou a música ao cenário político nacional: "A gente não sabemos escolher presidente". Era um grito que expunha frustrações e sacudia consciências, mexendo com os brios de quem, talvez vestindo a carapuça, se acomodara à impotência política.

A parabólica de Roger estava voltada para o lugar certo. "Inútil" teve a primeira audição pública em abril de 1983, pouco mais de um mês depois de a emenda Dante de Oliveira ter obtido o número necessário de assinaturas para ser apreciada pelo Congresso. A então desconhecida banda Ultraje a Rigor tocou-a no Teatro Lira Paulistana, um dos endereços mais prestigiados da cena musical de vanguarda dos anos 1980 e que decidira abrir espaço para novas bandas no projeto Boca no Trombone.



Roger Moreira, do Ultraje a Rigor, no segundo dia da segunda edição do festival SWU (Starts With You) Music and Arts Festival, em Paulínia, em 2011 - Zanone Fraissat/Folhapress

Gravada quase em seguida em um compacto simples, teria que aguardar por longos meses a liberação da censura. A provocação juvenil parecia incomodar os militares, como um sapo jogado na caserna.

Antes de obter a autorização de Brasília, no entanto, a música chegaria aos palanques da campanha das Diretas por vias informais. Tudo começa quando André Midani, presidente da gravadora WEA, resolveu distribuir para amigos fitas cassete com a gravação inédita. Uma delas cai nas mãos do publicitário Washington Olivetto, o criador da Democracia Corintiana, que a envia a Osmar Santos.

O radialista e apresentador toca "Inútil" no seu programa na extinta rádio Excelsior, o "Balancê", que fazia sucesso entremeando música e conversa sobre política e futebol. Na sequência, procura Roger e lhe pede autorização para reproduzi-la no sistema de som do primeiro dos grandes comícios das diretas, em 12 de janeiro de 1984, na Boca Maldita, em Curitiba. Seria a estreia de Osmar Santos como mestre de cerimônias da campanha e de "Inútil" como um de seus hinos. No palanque, Ulysses Guimarães se arrisca a cantarolar um trechinho.

Finalmente liberada pela censura, que desistiu de exigir mudanças na letra, a música emplacou, tendo contado até com a publicidade que lhe deu Ulysses. Quando Carlos Átila, porta-voz do presidente Figueiredo, declarou em seguida que as manifestações populares só serviam para "desestabilizar a sucessão", o deputado disse à imprensa que mandaria ao funcionário do Palácio do Planalto uma cópia do single de presente. "Ele que repita isso, que toque o disco e fique ouvindo."

Roger estava longe de ser, entre seus pares, uma andorinha solitária no verão das Diretas. Tardio como foi, o rock brasileiro, além de abordar temas típicos da juventude, como a rebeldia e o amor, lançou um olhar crítico sobre a política nacional desde a virada da década.

Em 1978, Renato Russo, que acabara de completar a maioridade, se perguntava "Que país é este?" em um rock punk que gritava haver "sujeira pra todo lado". O Senado, citado como exemplo, não era apenas uma rima. Pouco antes haviam tomado posse os senadores biônicos, uma invenção da ditadura para garantir a maioria governista. Apresentada em espaços alternativos de Brasília pelo grupo Aborto Elétrico, a música, no entanto, só ficaria conhecida em 1987, dois anos após o fim da ditadura, quando o compositor a gravou com sua nova banda, a Legião Urbana.

Formada no início dos anos 1980, a Plebe Rude, também da vertente punk do rock da capital federal, não dava trégua ao governo. Em "A Voz do Brasil", a banda captou a percepção geral da sociedade sobre o programa chapa-branca que registrava, diária e burocraticamente, os feitos do governo: "Todo dia eu ligo meu rádio para ouvir lavagem cerebral".

No fim da campanha das Diretas, em "Proteção", o grupo denunciou a truculência das autoridades que cercaram Brasília para dificultar a votação da emenda Dante de Oliveira, que propunha as eleições diretas. "Tanques lá fora/Exército de plantão", "e tudo isso pra sua proteção".

Em São Paulo, o Garotos Podres, cujo nome não deixa dúvida sobre sua inserção no punk, foi outro grupo meio marginal que engrossou o caldo de críticas ao regime e ao sistema. Formado em 1982, começou fazendo shows para arrecadar fundos para os metalúrgicos em greve. Dois anos depois, enquanto empresários e trabalhadores buscavam um objetivo em comum na política, os Garotos atacariam os patrões: "Eles são os terroristas/ com sua maldita polícia". Com a censura, trocaram "polícia" por "preguiça", mas o recado estava dado.

Já o Língua de Trapo, com seus integrantes egressos da USP, preferia o sarcasmo para fustigar o governo, como no show "Sem Indiretas", gravado ao vivo durante a campanha das Diretas, em que cantava: "Deve ser bom processar jornalista/ e se fingir caluniado/ deve ser bom tachar de comunista/ quem não for mesmo um aliado". Em outra canção, "Amor à Vista", comentava a penúria nacional com deboche mais explícito. "Os tempos são difíceis e você tem que se desdobrar", diz o narrador-gigolô à sua mulher. A balada romântica reversa evolui para a crônica política: "Nós moramos em São Paulo e aqui a oposição está no poder/ mas o colapso econômico, isso ninguém pode resolver".

E então o rufião abre seu voto: "Oh, Baby, eu votei no PT/ Que é que tem?/ Gente baixa também pode ter consciência". Se os versos não enaltecem os partidos de Lula e Ulysses, as duas legendas mais identificadas com as diretas sobrevivem ao escárnio do Língua de Trapo.

O rock foi também o veículo para Caetano Veloso se expressar com veemência contra os rumos do Brasil naquele final anunciado da ditadura. A canção "Podres Poderes" nasceu durante a campanha das Diretas e, inédita em disco, foi apresentada ao público em maio de 1984, mês seguinte ao da derrota da emenda na Câmara dos Deputados.

Numa saraivada de perguntas retóricas que distribuem lambadas nos políticos, o compositor coloca a ditadura brasileira em contexto cultural continental: "Será que nunca faremos senão confirmar/ a incompetência da América católica/ que sempre precisará de ridículos tiranos?". O cacófato "caca", de "América católica", seria para enfatizar a "porcaria" dessa tradição, sentido que a palavra tem em português e espanhol.

Caetano não eximia os brasileiros de culpa por permitirem que os homens exercessem seus podres poderes. "Somos uns boçais", como afirma na letra, é sua maneira de dizer "a gente somos inútil".

À novidade da contundência do rock nacional somou-se a melhor tradição de resistência da música popular brasileira, representada por dois de seus expoentes: Chico Buarque e Milton Nascimento. Juntas, as duas vertentes engrossariam o caldo sonoro da campanha das Diretas.

Embora sempre claramente alinhado ao campo progressista, Chico não fora, e nem se considerava, um compositor de músicas de protesto. Ao contrário, havia, por parte dele, uma desconfiança "diante da cultura engajada depois de 64, quando já estava desconectada do lastro social que lhe dava base material antes do golpe", na descrição de Fernando de Barros e Silva, que perfilou o artista. Nas palavras do próprio Chico: "A moda das canções de protesto me incomodava, [...], dava a impressão de ser um pouco oportunista".

Uma das poucas músicas que o próprio Chico colocaria nessa categoria é "Apesar de Você", um samba antigo que parecia ter sido escrito sob medida para os comícios das Diretas. A música tem uma história que se confunde com o movimento oposicionista à ditadura.

Chico passou pouco mais de um ano autoexilado na Itália no final dos anos 1960, quando, depois do AI-5, continuar no Brasil era uma opção arriscada para alguém que, como ele, estava na mira dos órgãos de repressão. Com dificuldade financeira para se manter no exterior, acabou voltando no início de 1970, no auge dos "anos de chumbo", expressão, aliás, que ele atualizaria no livro de contos publicado em 2021.

Foi então, percebendo que o país só havia piorado no período em que estivera fora, que Chico compôs os versos, endereçados a um interlocutor não nominado ("você"), a quem acusava de ter inventado "toda a escuridão".

A letra, como tantas na época, tinha duplo sentido para driblar a censura, podia ser ouvida como um lamento de marido. Não deixava muita dúvida, contudo, sobre a intenção política do autor. Versos como "A minha gente hoje anda/ falando de lado/ e olhando pro chão" ou "Eu pergunto a você/ onde vai se esconder/ da enorme euforia" continham indisfarçável mensagem.

"Você" era o general-presidente Médici ou o coletivo da ditadura. E, no entanto, naquele que é considerado um dos maiores cochilos dos censores, a música passou sem cortes e fez enorme sucesso. Até que, meses depois, o governo percebeu a própria falha e reagiu, proibindo sua execução e destruindo o estoque dos discos.



A cantora Fafá de Belém em comício pelas "Diretas Já em São Bernardo do Campo (SP), em março de 1984 - Silvio Ferreira/Folhapress

Com a abertura política, o samba, incluído no LP de 1978, passou a embalar eventos decisivos da oposição, como as eleições parlamentares daquele mesmo ano e o pleito de 1982, que elegeu os governadores que estariam à frente da campanha das Diretas. Mesmo considerando-a uma música "do passado", Chico não se furtou a cantá-la de novo nos showmícios de 1984 diante das multidões que sabiam de cor o refrão que refletia o anseio pelo fim da ditadura: "Amanhã vai ser outro dia".

Outra obra buarqueana associada às Diretas é o samba-enredo "Vai Passar". Lançada em meio à campanha, a música, em tom alegórico, passa em revista a ditadura ("página infeliz da nossa história") a partir do golpe, consumado enquanto "dormia a nossa pátria mãe tão distraída".

A frase que dá título à música, enunciada como um comentário contido no fim da gravação, é gritada no palanque, como se um apoteótico Chico não estivesse mais se referindo ao "estandarte do sanatório geral", e sim à emenda Dante de Oliveira: "Vai passar!".

No mesmo ano, o compositor revisitaria a campanha em "Pelas Tabelas", que ele resume como a história de "um sujeito procurando uma mulher, apaixonado, no meio da manifestação pelas Diretas". A letra, que passeia na fronteira entre o individual e o coletivo, recebeu uma leitura predominantemente política que, no entanto, o próprio Chico considera "viciada". Com efeito, a construção sofisticada, que remete à "barafunda mental" de sua obra literária posterior, se presta mais aos palcos do que aos palanques.

Chico marcou presença, sim, mas quem forneceu a trilha sonora da campanha cívica foi mesmo Milton Nascimento. Não com uma, nem com duas, mas com três canções consideradas hinos das Diretas.

O compositor captava em suas músicas dos anos 1960 e 1970 as delícias do amor, as venturas da fraternidade, a força da mulher, as coisas da terra que o acolheu, tudo isso sem, de vez em quando, deixar de visitar a política. "Quero a utopia, quero tudo e mais", cantava três anos antes das Diretas em "Coração Civil", que assina com o parceiro Fernando Brant.

A música reivindica para o brasileiro uma cidadania plena, não só com justiça e liberdade, mas também com direito ao vinho e à alegria. O caminho até lá passaria pela democracia que o país ensaiava timidamente: "Os meninos e o povo no poder, eu quero ver".

A letra cita, quase didaticamente, o contexto que a inspirou: a Convenção Americana dos Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, que havia entrado em vigor em 1978, quase dez anos depois de assinada. É um clamor cívico: "São José da Costa Rica, coração civil/ Me inspire no meu sonho de amor Brasil".

No mesmo álbum, os parceiros assinavam outra canção com forte apelo político, "Nos Bailes da Vida", cujo verso mais conhecido ("todo artista tem de ir aonde o povo está") era a senha para que os membros mais proeminentes da classe subissem nos palanques das Diretas e emprestassem seu prestígio à causa.

"Coração Civil" e "Nos Bailes da Vida" ainda tocavam nas rádios quando, no início de 1983, a dupla compôs "Menestrel das Alagoas", em homenagem a Teotônio Vilela. É o primeiro dos três mencionados hinos das Diretas.

Incansável na defesa da anistia, solidário com os metalúrgicos presos em São Paulo e paladino das eleições diretas para presidente, o ex-senador concedera pouco antes, por ocasião do pleito de novembro de 1982, uma entrevista emocionante em que, já abalado pelo câncer que em breve ceifaria sua vida, falou com esperança sobre o futuro do Brasil.

Gravada por Fafá de Belém, que se transformaria na musa das Diretas, a canção enaltecia a "ira santa" e a "saúde civil" do político, que ao final da gravação declara: "Esta música é a melodia do povo. Sinto-me dentro dela porque venho fazendo de minha vida o roteiro da liberdade".

A tríade de Milton Nascimento que embalou as diretas, verdadeiros "cânticos de mobilização popular", na definição do estudioso da MPB Jairo Severiano, fecha com "Coração de Estudante", que consta do álbum "Ao Vivo", lançado no Natal de 1983, justamente quando representantes da oposição e da sociedade civil se organizavam para colocar de pé os megacomícios.

A melodia, na realidade, não era nova. Havia sido composta por Wagner Tiso para o filme "Jango", de Sílvio Tendler, que nem fora lançado. Milton fez a letra baseado em outro contexto, lembrando-se da morte do estudante Edson Luís, em 1968, em confronto com a polícia, episódio que precedeu as intensas manifestações contra o governo naquele ano.

Dirigida ao jovem, a canção mescla desalento ("já podaram seus momentos / desviaram seu destino") e fé no porvir ("mas renova-se a esperança / nova aurora a cada dia").

O título evocava o nome de uma planta delicada, coração-de-estudante, muito comum em Minas, e a cada vez que Milton soltava a voz nos palanques, ele regava um pouquinho aquela "folha da juventude".

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