31 de julho de 2021

A indústria de mercenários colombianos está por trás do golpe no Haiti

Quase todos os assassinos envolvidos no assassinato do presidente haitiano Jovenel Moïse eram colombianos. Isso não é coincidência: se você quiser mercenários de aluguel barato, muitas vezes treinados pelos militares dos EUA, pode encontrá-los de sobra na Colômbia.

Oliver Dodd

Jacobin

Tropas colombianas e norte-americanas realizam exercícios militares conjuntos em Tolemaida, Colômbia, em janeiro de 2020. Pelo menos sete dos mercenários colombianos envolvidos no assassinato do presidente haitiano Jovenel Moïse receberam treinamento direto dos Estados Unidos. (Raul Arboleda / AFP via Getty Images)

A vice presidente de direita da Colômbia Marta Lucía Ramírez, recentemente reclamou que a “Colômbia não deveria estar chegando às manchetes internacionais por causa de um bando de criminosos e assassinos de aluguel”. Ela estava se referindo à recentes revelações que, dos 28 assassinos diretamente envolvidos no assassinato do presidente haitiano Jovenel Moïse, 26 eram colombianos – um produto da próspera indústria de assassinos mercenários patrocinada pelo Estado.

O exército da Colômbia é treinado pelos melhores militares das Forças Armadas dos Estados Unidos e frequentemente é contratado para proteger a propriedade privada de empresas multinacionais, conduzir missões de contra insurgência e executar operações com alvos de alto valor [high-value-target operations]. Quando se trata do mercado internacional de mercenários, estas vantagens comparativas dão aos colombianos a dianteira.

Como no caso do assassinato do presidente haitiano, muitos mercenários colombianos – por vezes chamados de “paramilitares,” “soldados privados” ou “contractors de segurança” – são membros aposentados das Forças Armadas da Colômbia, testados nas batalhas em ambientes de difícil combate, como em selvas para lutar contra rebeldes e ex-membros de grupos de extermínio da direita paramilitar. Não são só altamente treinados em técnicas de assassinato e possuem prática em terrenos difíceis, como também são tipicamente muito mais baratos do que seus concorrentes em outros países.

Dos 26 colombianos identificados como envolvidos no assassinato do presidente haitiano, ao menos 13 eram ex-soldados colombianos e 2 foram investigados por envolvimento em crimes de guerra. Ao menos 7 dos mercenários colombianos envolvidos no assassinato no Haiti receberam diretamente treinamento dos EUA, apesar do Departamento de Estado dos EUA, como de costume, se responder de forma ambígua sobre o que exatamente lhes foi ensinado. Muitos possuem laços com agências de inteligência dos EUA, com ao menos um deles intimamente associado com o DEA [Drug Enforcement Administration]. Um dos mercenários capturados, Manuel Antonio Grosso Guarín, até dois anos atrás era soldado colombiano, especialista em operações especiais e encarregado de conduzir operações de alto custo estratégico, incluindo assassinatos.

A empresa que recrutou os mercenários colombianos, a CTU Security, sediada em Miami, é de um empresário venezuelano, Tony Intriago, que desfruta de conexões com o presidente de direita da Colombia, Iván Duque. Intriago ajudou a organizar o “Aid Concert” em fevereiro de 2019, em Cúcuta, na fronteira entre Venezuela e Colômbia, que buscava debilitar o governo venezuelano.

Está confirmado que mercenários colombianos estiveram diretamente envolvidos em operações no Iraque, Afeganistão e Venezuela. Dezenas de empresas de mercenários sediadas na Colômbia foram contratadas pela Arábia Saudita para lutar no Iêmen. Mercenários colombianos também foram exportados para Honduras para defender os interesses de propriedade privada e depois se descobriu sobre seu envolvimento no golpe de 2009 contra Manuel Zelaya. Dos US$ 3,1 bilhões que os Estados Unidos gastou entre 2005 e 2009 em operações de contra insurgência e antinarcóticos executadas por empresas privadas, as principais beneficiadas foram empresas colombianas. Se você precisa de mercenários para fazer seu trabalho sujo, particularmente de tendência reacionária, os colombianos são um bom investimento.

A privatização da guerra

O mercado de mercenários passou a crescer com a guerra promovida pelo Estado colombiano contra insurgentes de esquerda e ativistas sociais, iniciada há meio século. Mas como foi revelado pelo assassinato no Haiti, o mercado por soldados mercenários com tropas especiais cresceu consideravelmente nos últimos anos. O comandante geral das Forças Armadas da Colômbia, Luis Fernando Navarro, disse à imprensa no dia seguinte ao assassinato de Moïse que “não há regras que impeçam [mercenários] de serem recrutados” no estrangeiro.

Encorajada pela doutrina de segurança nacional dos EUA de 2003, a Colômbia já legalizou e apoiou o desenvolvimento de tropas armadas não-estatais, geralmente controladas pelas elites econômicas como proprietários de terra, industriais e traficantes de drogas. A ascensão da indústria de mercenários da Colômbia coincidiu com a expansão das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) nos anos 1990, quando o governo legalizou e depois expandiu o sistema Convivir – uma reforma que sancionou a criação de forças mercenárias, controladas por elites econômicas e trabalhando em conjunto com autoridades do governo, militares e unidades de inteligência.

Paramilitares mercenários têm sido inclusive patrocinados por multinacionais, como a Chiquita (United Fruit Company), Drummond e Coca-Cola. Atualmente, mercenários estão envolvidos na proteção da acumulação de capital por todo o país, especialmente multinacionais de petróleo, gás e carvão.

É de conhecimento público que autoridades estatais colombianas mantêm fortes relações com grupos paramilitares mercenários. Milhares de policiais e militares colombianos, assim como 60 congressistas e 7 governadores, são conhecidos por terem apoiado entidades paramilitares de direita, e um manual secreto das Forças Especiais dos EUA vazado pelo Wikileaks em 2014, mostra o extenso apoio dos EUA à soldados mercenários de tropas especiais para condução de operações táticas e militares (somadas a outras táticas como censuras, psy-ops e o uso de recompensas como parte das “operações com alvos de alto valor”).

A difusão global de mercenários colombianos é parte de uma gradual privatização da guerra a nível internacional, no qual a Colômbia é líder mundial. Em 2014, havia cerca de 740 empresas de defesa no país, e em 2018 (seguido pelo acordo de paz de 2016), o mercado de defesa estava avaliado em US$ 11,1 bilhões e a estimativa é chegar a US$ 47,2 bilhões até 2024.

Junto com o apoio jurídico e logístico, o Estado colombiano intencionalmente alimentou uma crescente indústria de mercenários na Colômbia ao oferecer sistematicamente recompensas por líderes insurgentes. Aqueles viajando entre os territórios disputados em áreas de conflito são frequentemente recepcionados por soldados entregando panfletos com nomes e rostos de militantes suspeitos, junto com detalhes da recompensa por informações que levem à “neutralização” deles.

O uso de recompensas monetárias na guerra tem sido sistemática há anos, escalando sob a presidência do direitista Álvaro Uribe (2002-2010), que recrutou centenas de informantes pagos como parte de uma rede de inteligência controlada pelo Estado. Uribe, que é de uma rica família de proprietários e permanece o político mais influente da Colômbia, também foi um dos mais apaixonados defensores do uso de mercenários – todo seu governo apoiava esquadrões da morte paramilitares, envolvendo desde seus membros familiares até o chefe de inteligência, polícia e líderes militares.

Incentivos monetários de fato têm sido parte da estratégia militar do Estado há muito tempo. Em um trágico escândalo conhecido como “falsos positivos”, dinheiro e promoções de trabalho foram oferecidas a soldados e mercenários que alegavam ter matado rebeldes. Soldados são conhecidos por ocasionalmente contratar mercenários para estes “falsos-positivos”.

A ênfase em oferecer recompensas monetárias para elevar a contagem de mortes, levou a uma cultura de abuso dos militares no país. Cerca de 6.400 civis foram taxados como guerrilheiros e falsamente acusados de serem insurgentes comunistas por soldados que buscavam ganhar dinheiro no sistema de recompensas, de acordo com a Jurisdicción Especial para la Paz (JEP) da Colômbia. Pelo menos dois mercenários envolvidos no assassinato do presidente do Haiti, acredita-se terem envolvimento no escândalo do falso positivo como ex-soldados militares.

Colaboração contínua

Em maio, Jesús Santrich, um líder das FARC considerado o insurgente mais carismático da Colômbia, foi assassinado em território venezuelano por forças oficiais colombianas ou por mercenários contratados pelo Estado. Santrich tinha um prêmio de US$ 10milhões por sua cabeça, assim como uma recompensa ofertada pelo Estado colombiano. Anunciando a morte de Santrich no aplicativo de mensagens Telegram, as FARC soltaram uma foto da mão ensanguentada de Santrich, com seu dedo mindinho amputado – sugerindo que ele provavelmente fora assassinado por mercenários que buscavam coletar uma recompensa em troca do dedo do guerrilheiro.

Em relação ao assassinato de Santrich, um ex-oficial militar colombiano que se tornou mercenário, explicou que mesmo antes do anúncio pelas FARC–Segunda Marquetalia (um grupo de lutadores das FARC que recusaram o desarmamento após os acordos de paz da Colômbia em 2016), suas fontes nas Forças Armadas Nacionais já haviam confirmado à ele pessoalmente que Santrich tinha sido assassinado. Ainda que o mercenário colombiano não soubesse com certeza quem exatamente estava por trás do assassinato, uma explicação plausível era que mercenários conduziram o assassinato para coletar a recompensa pela cabeça de Santrich – cujas cifras do prêmio eram altas até mesmo para mercenários.

Isso confirma que militares colombianos e atores mercenários desfrutam de uma forte e atual relação, ao passo que o uso de mercenários no contexto de conflito armado é facilitado por apoio estatal e colaborações com forças mercenárias.

O fato de mercenários terem sido novamente empregados na Venezuela recentemente também não foi nenhuma surpresa. Mercenários colombianos são usados há tempos em território venezuelano, no esforço para enfraquecer os governos Chávez e Maduro. Em 2004, um grupo de 153 paramilitares colombianos foi preso em uma operação, acusados de planejar o assassinato de Hugo Chávez.

Assim como a empresa sediada em Miami que contratou os mercenários colombianos para a operação no Haiti, outra empresa sediada em Miami, a Silvercorp, fora utilizada na tentativa de assassinato do presidente venezuelano Nicolás Maduro, em 2020. Para esta operação fracassada, apelidada de Operação Gedeon, o território colombiano foi usado como base de operações e rota preparatória em toda sua execução. Situada no norte do país, onde paramilitares patrocinados pelo Estado são fortes, estes mercenários posicionaram seus campos de treinamento próximo às bases militares da Colômbia e EUA, e então lançaram sua operação usando pistas de voo, rios e áreas costeiras colombianas.

Tendo observado e entrevistado rebeldes colombianos em seus territórios localizados no interior e nas montanhas, eu acho inconcebível que um grupo armado tenha conseguido criar campos de treinamento de mercenários por um longo período de tempo e ainda planeja o assassinato de um presidente estrangeiro, com apoio ou permissividade de instituições estatais.

O motivo econômico

A Colômbia foi internacionalmente condenada após invadir o território equatoriano em 2008 para assassinar Raúl Reyes, líder das FARC (uma operação na qual um dos mercenários no Haiti esteve envolvido). Buscando evitar mais reações adversas decorrentes dessas intervenções militares diretas, a Colômbia, desde então, tendeu – como no assassinato de Santrich – a confiar no uso de mercenários como representantes para dar às operações militares um manto mais plausível.

Ex-militares colombianos não são só contratados como mercenários devido ao extenso treinamento e experiência em combate – também há motivações econômicas subjacentes. O recrutamento forçado de colombianos pobres e uma força militar ativa com cerca de 300 mil pessoas cria uma reserva constante de soldados aposentados desesperados lutando para encontrar emprego, com pouca ou nenhuma habilidade transferível na precária economia colombiana (quase metade da força de trabalho colombiana está na informalidade). Entre 10 e 15 mil pessoas do efetivo militar se aposentam todos os anos, tornando estes veteranos “um mundo que é difícil de controlar”, de acordo com o Coronel John Marulanda, presidente de uma associação colombiana para militares aposentados.

Com salários de cerca de US$ 200 por mês, soldados colombianos podem ganhar muito mais como mercenários no setor privado, ao passo em que o desespero por veteranos colombianos altamente treinados permite que as empresas cortem os salários de mercenários com treinamento similar em lugares como os Estados Unidos. De acordo com o New York Times, empresas militares privadas miram explicitamente ex-soldados na Colômbia, e as “grandes oportunidades, com bons salários e seguros, chamou a atenção de nossos melhores soldados”, encorajando muitos a sair das Forças Armadas, de acordo com Jaime Ruiz, o presidente da Asociación Colombiana de Oficiales Retirados de las Fuerzas Militares.

Com soldados colombianos sendo frequentemente contratados para proteger propriedades privadas como parte de suas responsabilidades oficiais, soldados aposentados também já têm a vantagem de terem trabalhado com empresas privadas e os tipos de interesse que constituem o setor militar privado. Grupamentos táticos tem sido exclusivamente projetados e dedicados à proteção de multinacionais de petróleo e carvão, e oficiais de alta patente chefiando tais operações têm sido formalmente acusados de encomendar assassinatos com mercenários paramilitares, com algumas das acusações vindas até de militares de carreira bem estabelecidos.

As fortes relações também continuam existindo entre corporações, associações empresariais e o Ministério de Defesa Nacional, como entrevistas com líderes corporativos demonstraram. Por exemplo, ao trabalhar com as empresas de ônibus da Colômbia, o Exército Nacional pode identificar onde todos estão viajando pelo país e a localização e período de embarque e desembarque, forçando guerrilhas urbanas a viajarem sob identidades falsas.

Podem ter sido mercenários colombianos, e não o Estado colombiano, que estiveram diretamente envolvidos no assassinato do presidente haitiano. Mas o desenvolvimento da indústria de mercenários do país só pode ser compreendida como intimamente associada ao histórico estatal de apoio político a atores paramilitares e mercenários. O assassinato do presidente do Haiti é inseparável de uma história muito mais profunda da privatização da guerra na Colômbia. No Haiti e ao redor do mundo, nós agora vemos os frutos amargos dessa exportação patrocinada pelo Estado.

Sobre o autor

Oliver Dodd é jornalista e pesquisador PhD da Universidade de Nottingham, na Inglaterra, que trabalha no conflito armado e nos processos de paz da Colômbia. Ele pode ser seguido no Twitter @Olivercdodd.

30 de julho de 2021

"Se a fábrica for entregue aos credores, vamos explodir tudo primeiro"

Em 2017, 277 trabalhadores da indústria automobilística franceses enfrentando perda de empregos destruíram € 250.000 em maquinário - e ameaçaram explodir a fábrica por completo. A Jacobin falou com os trabalhadores sobre como eles colocaram explosivamente suas demandas na agenda política da França.

Alexander Brown

Jacobin

Trabalhadores da GM&s incendeiam uma barricada de equipamentos industriais durante uma manifestação na fábrica em La Souterraine, França, 28 de junho de 2017. (PASCAL LACHENAUD / AFP via Getty Images)

Tradução / A crise econômica desencadeada pela COVID-19 significa que cada vez mais trabalhadores vive com medo de perder o emprego. Muitos de nós já foram despedidos. Neste clima de insegurança, os trabalhadores buscam estratégias para lidar com a incerteza que é uma característica, não um defeito, da gig economy. Mecanismos de enfrentamento a crises como essas frequentemente envolvem automedicação, excesso de comida ou choro. Menos frequentemente ameaçamos destruir coletivamente as nossas escrivaninhas e detonar os nossos locais de trabalho, para que os patrões tenham de repensar a possibilidade de encerrar os nossos contratos. Entretanto, em 2017, um grupo de 277 metalúrgicos na fábrica de estamparia de metal da GM&S na França decidiu fazer exatamente isso. As consequências da sua decisão chegaria aos trabalhadores da GM&S desde o Creuse rural até o tapete vermelho em Cannes.

Foram as imagens de trabalhadores da GM&S cortando uma prensa de metal de 12 metros de comprimento com o valor de 250 mil euros com um maçarico que primeiro chamou a atenção da imprensa em todo o mundo. E isso foi só o começo. Confrontados com a liquidação total e irreversível dos seus meios de subsistência e com apenas uma semana até que o tribunal comercial se pronunciasse sobre o seu caso, os trabalhadores comprometeram-se a destruir uma máquina por dia até que o futuro da fábrica fosse resolvido. A seriedade deles foi confirmada quando evisceraram uma máquina de soldar com uma empilhadora mais tarde naquele dia

As imagens mais marcantes, no entanto, foram as dos cilindros de gás. Os trabalhadores prenderam latas de gasolina nestes enormes contêineres altamente explosivos e ligaram tudo a detonadores caseiros. Na frente dessa terrível estrutura, eles escreveram uma ameaça desesperada: on va tout péter – vamos fazer tudo voar pelos ares. Se a fábrica fosse entregue aos credores, ela não seria entregue intacta.

Trabalhadores amarram latas de gás em containers altamente explosivos e escrevem que “vamos fazer tudo voar pelos ares”, em 13 de maio de 2017. (PASCAL LACHENAUD / AFP via Getty Images)

Os historiadores — mesmo os progressistas — há muito tempo retratam a quebra de máquinas como uma forma ultrapassada de alcançar o objetivo em uma disputa trabalhista. Em 1865, quando os amoladores de Sheffield estavam quebrando as máquinas, Karl Marx os chamou de “antiquados”. Para historiador Eric Hobsbawm, a quebra de máquinas teve seu momento na fase inicial da Revolução Industrial, quando tentar participar de conversas “ortodoxas” entre patrões e representantes dos trabalhadores — “complementadas quando necessário com uma interrupção coordenada do trabalho” — poderia levar para a forca. Por que razão, então, a quebra de máquinas reapareceu entre os metalúrgicos altamente organizados e disciplinados no coração da França de Emmanuel Macron?

O auge e a queda da GM&S

A GM&S (na época SOCOMEC) começou em 1963 como uma oficina familiar especializada em brinquedos de metal e scooters. Ela foi fundada na era chamada pelos franceses de les trentes glorieuses — trinta anos de crescente afluência, pleno emprego e intervenção do Estado na economia após a Segunda Guerra Mundial — e os veteranos na GM&S, alguns com mais de três décadas de experiência, se referem aos dias da SOCOMEC em tons nostálgicos. “Hoje tudo o que conta é fazer o máximo de dinheiro em tão pouco tempo quanto possível, não se importam mais com os danos à sociedade... É claro que verdadeiros patrões como aqueles depois da guerra já não existem.” Em nossas conversas, os trabalhadores da GM&S muitas vezes contrastavam seu antigo chefe, o Sr. Godefroy, com os proprietários recentes, os “bandidos” e “financistas” que eles percebem como tendo destruído a fábrica através do desinvestimento, enquanto engordam com os lucros, dividendos e subsídios estatais desviados.

Jackie Clarke, um historiador da desindustrialização, argumenta que os (ex)trabalhadores “distinguem os ‘bons’ chefes idealizados dos ‘maus’ chefes como uma forma de apreender as mudanças estruturais e ideológicas que se cristalizam nestas diferentes formas de propriedade e gestão”. Se o Sr. Godefroy, que conhecia os seus trabalhadores pelo nome e reinvestia os lucros na empresa, simbolizava uma variante paternalista e intervencionista do capitalismo pós-guerra, então os proprietários subsequentes – incluindo os diretores dos fundos de pensões anglo-irlandeses e um homem descrito como “especialista em liquidação de empresas francesas“- vieram personificar o vicioso e financeiro neoliberalismo que domina a política a partir dos anos 1980.

No entanto, se o aumento da subcontratação sobre o planejamento corporativo interno é uma marca da virada neoliberal, a GM&S tem sido tanto a beneficiária quanto a vítima da flexibilização neoliberal. Isso porque, em 1985, a empresa começou a produzir peças metálicas estampadas com subcontratada dos gigantes automobilísticos franceses Peugeot e Renault. Desde então, a GM&S fabricou todas as partes do carro que você não vê. Não são para-choques ou portas, mas reforços da porta e do para-choques, bem como suportes do motor, flanges de escape, colunas de direção, arcos de rodas e panelas de óleo. Já viu um Renault Espace? Provavelmente foram esses caras que o soldaram.

Digo “caras” por uma razão: a força de trabalho da GM&S é esmagadoramente masculina, com uma idade média próxima dos 50. Contando com pouca flexibilidade jovem, ensino superior ou habilidades em TI, os ex-trabalhadores da GM&S sempre vão estar deslocados na França do então recém-eleito Macron. Eles sabiam que aquilo que o presidente liberal chamou de “la France start-up nation” ou “France 2.0” não é para eles. Mesmo um metalo hipoteticamente pronto e disposto a trocar as suas prensas de metal pelo Microsoft Office teria dificuldade em encontrar um posto em Creuse. Pois, segundo o operador de máquinas e representante da Confederação Geral do Trabalho (CGT), Franck Cariat, a maioria não sabe nem como fazer um currículo.

Tudo isso significava que, quando a empresa entrou em recuperação judicial em dezembro de 2016, os trabalhadores da GM&S não podiam dar-se ao luxo de irem embora gentilmente. O tribunal havia estabelecido um prazo para a apresentação de um novo proprietário: 23 de maio de 2017. Se não for encontrado até então, a fábrica seria fechada e sua força de trabalho demitida.

Por que ameaçaram fazer tudo voar pelos ares

O objetivo dos trabalhadores era simples: pressionar a Peugeot e a Renault a encomendar peças suficientes para manter a fábrica viável a médio prazo. Afinal, que capitalista sensato compraria uma subcontratada sem clientes? Para alcançar sue objetivo, os trabalhadores tiveram que tornar a vida mais difícil para os fabricantes de automóveis. Eles bloquearam as fábricas da Peugeot e da Renault, e ocuparam as suas brilhantes salas de exposição nos Champs-Élysées. Escreveram petições intermináveis e reuniram-se com políticos cheios de desculpas. Ocuparam a fábrica, dormindo lá todas as noites da semana. Incerto quanto ao futuro, os trabalhadores e suas famílias tentaram ignorar da melhor forma possível a ansiedade. “Nos fins-de-semana, não falamos sobre isso.” O relógio está correndo.

No passado, estes trabalhadores poderiam exercer pressão, retendo as peças de carro que produziram. No entanto, agora essas peças também são feitas em outros lugares, como Portugal ou Marrocos. Os trabalhadores descobriram que as suas linhas de produção foram duplicadas no estrangeiro quando um carregamento de peças foi devolvido à GM&S para reparos. Após examiná-las, eles perceberam que essas partes não foram produzidas em La Souterraine. Mesmo que largassem suas ferramentas, ou as partissem em pedaços, a produção continuaria sem entraves em outros lugares. E com pouca poder no local de trabalho, os trabalhadores poderiam confiar em poucas de suas estratégias tradicionais.

Se a Renault e a Peugeot estavam em cima do pescoço dos trabalhadores, não foi por desprezo. É o impulso incansável em gerar valor para os acionistas que leva homens e mulheres bem vistos a recorrerem à produção offshore com consciências tranquilas, mesmo quando isso significa miséria para aqueles que ficaram para trás, à medida que as cadeias de suprimento globais são reorganizadas. Enquanto os 277 trabalhadores na GM&S tinham nomes, rostos, famílias, casas, passatempos, costas ruins, e problemas de bebida, o seu verdadeiro antagonista — a disciplina impessoal da motivação pelo lucro — era bem menos tangível e aberto à discussão.

Contra as vicissitudes do mercado, a última e melhor esperança dos operários era forçar o Estado a intervir. Apesar de décadas de reformas neoliberais e privatizações, o Estado francês manteve interesses substanciais tanto na Renault (15%) quanto na PSA (13%). Na época, as empresas estavam tendo um lucro total de 7 bilhões de euros por ano. O dinheiro estava lá para salvar a GM&S. Era a vontade política que faltava. Se o Estado pressionasse os fabricantes de automóveis, o contorno nebuloso de um futuro para a fábrica de La Souterraine permaneceria no horizonte. Apesar das garantias dadas pelo presidente François Hollande e pelo Ministro da Economia Arnaud Montebourg, não se registrou nenhuma pressão nesse sentido. E se o impasse foi alcançado sob um governo nominalmente socialista, o advento de Macron em maio de 2017 foi um sinal de tempos sombrios pela frente. Com o pessoal de Macron no comando, havia pouca chance de uma audiência simpática nos corredores do poder. Os trabalhadores precisavam de publicidade para forçar a questão para dentro da agenda.

Para os trabalhadores, infelizmente, a França está fortemente centrada em Paris — com uma elite que faria corar até a classe dominante inglesa, centrada em Londres. Creuse, a quatro horas da capital, não é um lugar que gera publicidade por si só. O departamento é predominantemente rural, com uma economia local lenta, baseada principalmente na agricultura e na indústria leve. O desemprego é elevado e, tal como muitas partes da França rural, Creuse está perdendo população à medida que os jovens saem para encontrar trabalho nas cidades. A mais próxima delas, Limoges, até tem a duvidosa honra de possuir seu próprio verbo — limoger — o que significa demitir alguém do seu posto e enviá-lo para onde não possa fazer nenhum mal. É raro alguém limoger a si mesmo sem uma boa causa. Os trabalhadores precisavam dar aos mercenários de Paris uma razão para fazer exatamente isso.

O problema é que, em um país onde a tática operária inclui sequestros de CEOs [“bossnapping”] e despejar milhares de litros de ácido sulfúrico vermelho neon nos rios, pode ser difícil se fazer ouvir na maior parte do tempo. Eles precisavam fazer algo espetacular. Então, diante da liquidação irreversível de seus meios de subsistência, decidiram por um curso de ação que Marx havia descartado em meados do século XIX: eles destruíram as máquinas.

De Creuse a Cannes

Quando contactei o porta-voz não oficial dos 277 trabalhadores da indústria GM&S, Vincent Labrousse, estava consciente do fato de que os destruidores de máquinas raramente têm a oportunidade de se explicar. Vejam os luditas – os miseráveis operários têxteis ingleses que esmagaram os seus teares numa tentativa desesperada de se protegerem das novas máquinas e práticas da Revolução Industrial. Eles foram tratados como simples criminosos na época, e por muito tempo depois. Parafraseando Stringer Bell, não se tomam notas sobre uma conspiração criminosa, e muitos luditas foram para a sepultura com os seus segredos bem guardados. Consequentemente, os historiadores discutem sobre suas motivações por mais de dois séculos.

Os luditas certamente nunca se beneficiaram de uma sessão de perguntas e respostas no Festival de Cannes para esclarecer a sua posição. Entretanto, algumas coisas mudaram nos séculos seguintes e, em 2019, quarenta destruidores de máquinas compartilharam o tapete vermelho com Bong Joon-ho, Julianne Moore e Antonio Banderas. Preferindo os casacos de sinalização ao invés de ternos Versace, os trabalhadores estavam lá para divulgar Blow It to Bits, o documentário que o cineasta polonês estadunidense Lech Kowalski criou enquanto vivia e lutava ao lado dos trabalhadores da GM&S ao longo de sete meses.

Kowalski é talvez um candidato improvável para fazer um filme totalmente kenloachiano. Afinal de contas, ele não era conhecido como um cineasta envolvido com a esquerda, nem seus filmes tipicamente incluíam representações da classe trabalhadora. Pelo contrário, ele era até recentemente mais conhecido por seus retratos de ícones do punk como Johnny Thunders e Dee Dee Ramone. Mas as ações dos trabalhadores chamaram a sua atenção e levaram Kowalksi a tirar de foco os dandies desolados da cena punk em Nova York e olhar para grupo de aguerridos sindicalistas no coração da França de Macron. A estratégia dos trabalhadores funcionou; eles começariam sua publicidade no auge.

O resultado é um filme que nos dá uma visão única das motivações, medos e esperanças do destruidor de máquinas moderno. Uma coisa é clara: os trabalhadores da GM&S não foram motivados por sentimentos anti-tecnologia. O vídeo em que os trabalhadores destruíram uma prensa de 250 mil euros foi, na verdade, simulado. Eles tinham, na verdade, pintado uma carcaça enferrujada para dar a impressão de que era uma máquina brilhante e cara usada para fazer peças para a Renault e Labrousse teve o esforço de me convencer de que a máquina quebrada nunca prejudicou o futuro da fábrica. Mesmo que um trabalhador tenha anunciando o seu compromisso de destruir uma máquina por dia, seu sentimentalismo é revelado no seguinte trecho do seu discurso para os colegas: “Se as coisas não saírem do nosso jeito, vamos desmontar nossas máquinas e cada trabalhador vai sair com uma peça para colocar no fundo de seu jardim, para lembrar.” Seja o que for que os historiadores falem dos luditas e dos seus motivos, os jardineiros e os detectores amadores de metal do futuro atestarão que os trabalhadores da GM&S enxergavam suas ferramentas de trabalho com afeto e não com antipatia.

O trabalhador por trás desse discurso foi Yann Augras. Uma das figuras mais inspiradoras que morreu tragicamente em um acidente de carro em 2020. Em um ponto do documentário, Augras, que nasceu em Creuse e trabalhara na GM&S desde os 19 anos, lidera uma tentativa de bloquear as fábricas Renault e Peugeot, deitando-se em frente à entrada e impedindo caminhões de entrar e sair. Esta barreira humana pouco convincente de homens de meia-idade entrelaçados, na verdade, forçou a Peugeot a transportar as suas peças para o seu destino gastando 20 mil euros por hora em aluguéis de helicópteros privados (“lá se vai a nossa indenização”). Augras é arrastado, ensanguentado, por um quarteto bufante da tropa de choque. Sua tirada: “Não se machuquem, eu sou pesado!”

Trabalhadores se manifestando na frente da fábrica são dispersados pela tropa de choque em 5 de setembro de 2017. (JACQUES DEMARTHON / AFP via Getty Images)

Este não é o único momento de leviandade sombria. Em outra cena, dois trabalhadores estão perplexos no pátio da fábrica, cercados por uma fogueira de pallets cuspindo fumaça. “Você consegue imaginar lutar assim para manter o seu emprego? É uma loucura! É inédito!” Como nos recorda a economista Joan Robinson, a única coisa pior do que ser explorado sob o capitalismo é ficar sem trabalho e não ser explorado sob o capitalismo.

Seria desonesto dizer que esta história tem um final feliz. É verdade, a fábrica não foi destruída e um novo proprietário foi encontrado, mas somente 120 trabalhadores mantiveram os seus empregos. Com as vendas globais de automóveis caindo no último ano, o futuro até mesmo para os trabalhadores restantes na GM&S, rebatizada de LSI, permanece instável.

Aqueles que mantiveram os seus empregos continuam a lutar ao lado dos 157 que não o mantiveram. Eles lutam por uma indenização ou supra-légale – o que Kowalski chama de pára-quedas do trabalhador – para os ex-trabalhadores da GM&S que deram tantos anos de suas vidas a uma indústria. Se há beleza nesta história, encontra-se na determinação e solidariedade contínuas demonstradas pelos trabalhadores da GM&S face à brutal indiferença do capital e do Estado.

Para nós, da esquerda, acostumados a perder, há muito a aprender com os trabalhadores que ameaçavam explodir a fábrica. Tenacidade, bravura, camaradagem, com certeza, mas também como bloquear uma fábrica, e como forçar uma mídia hostil a reconhecer a sua existência. Da próxima vez que as coisas não forem como esperávamos — e haverá uma próxima vez — vamos encontrar força nas palavras de Labrousse, que perdeu o emprego ao lado de 150 de seus colegas em 2017: “Nós poderíamos não ter feito nada. Mas aí não estaríamos aqui. Todos ganhamos alguma coisa. Mantivemos a nossa dignidade. Eles não nos derrubaram. Isso vale para todos os contratos de indenização do mundo. Mesmo que não nos dê o que comer.”

Sobre o autor

Alexander Brown é historiador e assistente de pesquisa no Instituto Max Planck para o Desenvolvimento Humano em Berlim.

Acordo com centrão não garante contenção de Bolsonaro, diz cientista político

Para Fernando Limongi, aliança barra impeachment, mas não leva a relação produtiva com Congresso

Ricardo Balthazar

Folha de S.Paulo

O professor Fernando Limongi, da Escola de Economia da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo. - Bruno Santos - 12.mar.2019/Folhapress

A aliança com o centrão não será capaz de conter os instintos autoritários do presidente Jair Bolsonaro nem levará o governo a uma relação mais produtiva com o Legislativo, diz o cientista político Fernando Limongi, professor da Escola de Economia da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo.

Na sua avaliação, o acordo fechado com o bloco partidário que dá as cartas no Congresso tem como único objetivo proteger o presidente contra a abertura de um processo de impeachment e garantir sua sobrevivência no cargo até as eleições do próximo ano, quando pretende concorrer à reeleição.

Homem de cabelos pretos curtos com camisa azul clara e as mãos cruzadas à frente do corpo.Homem de cabelos pretos curtos com camisa azul clara e as mãos cruzadas à frente do corpo.

Autor de estudos sobre as mudanças nas relações entre o Executivo e o Legislativo após o fim da ditadura militar (1964-1985) e a redemocratização do país, Limongi acha que essas características distinguem a união com o centrão das coalizões partidárias que apoiaram os antecessores de Bolsonaro.

Ele é cético sobre as chances de sucesso de mudanças institucionais como as que vêm sendo cogitadas pelos líderes do bloco para introduzir no Brasil um novo regime de governo, com a adoção do semipresidencialismo, e outro sistema eleitoral, com novas regras para escolha dos deputados federais.

O pesquisador, que trabalha num livro sobre a crise que levou ao impeachment de Dilma Rousseff (PT) em 2016, diz que o fim da instabilidade vivida pelo país desde essa época depende de reformas de longo prazo que aperfeiçoem as instituições e garantam o respeito às regras do jogo democrático.

A aliança de Bolsonaro com o centrão representa uma aceitação das regras do jogo político e dos seus limites? Não. Esse acordo não foi feito em nome de um projeto político. É uma ação totalmente defensiva, para proteger o presidente contra o risco de um processo de impeachment. É totalmente diferente do que os antecessores de Bolsonaro fizeram ao buscar maioria para governar e implementar propostas.

O que caracteriza o governo Bolsonaro é sua completa irresponsabilidade política. Ele nunca assume uma proposta ou usa seu peso político para obter alguma coisa. Quando manda um projeto para o Congresso, cruza os braços e age como se coubesse aos outros resolver o problema. Isso não leva a nada.

O que vemos agora é uma mera acomodação. Bolsonaristas de primeira hora estão sendo deslocados das posições que haviam assumido, que passam a ser ocupadas pelo centrão. Mas o centrão também não tem proposta nenhuma. Vai continuar o descalabro que temos visto, e eles farão o que quiserem.

Falta uma agenda? Bolsonaro não tem projeto que não seja destruir tudo que foi feito desde a redemocratização do país, sem dizer o que deve ser posto no lugar. É uma agenda totalmente negativa, como ficou claro durante a pandemia e em tantas outras áreas, meio ambiente, educação, proteção social, o que for.

Tivemos uma grande continuidade entre os governos do PSDB e do PT na condução de várias políticas públicas. Bolsonaro se coloca contra isso. Paulo Guedes é uma fonte inesgotável de bagunça na economia. É um governo inconsequente, sem responsabilidade com nada do que diz que quer fazer.

O centrão parece empenhado em aprovar alguma reforma tributária na Câmara. O centrão não assumiu nenhuma responsabilidade com projetos do governo, porque ninguém pediu. O centrão pode ser tudo isso que a gente conhece, mas nos governos do PT era cobrado a executar políticas específicas quando assumia um ministério como o das Cidades. No atual governo, não há nada.

A aliança é capaz de conter as inclinações autoritárias de Bolsonaro? Ele é incontrolável, mas sua irresponsabilidade é também uma forma de covardia. Fala muito, esbraveja demais, mas sempre está pronto a recuar no dia seguinte e desmentir o que falou. Não estou dizendo que ele não gostaria de dar um golpe, ou não seja antidemocrático. Ele é, mas também é covarde.

Então qual é o risco? Ele tem suporte em parte do Exército, na Polícia Federal, nas Polícias Militares, em parte da população. Muitos dos seus apoiadores têm armas, inclusive na população. Bolsonaro é um perigo. Ele age não só contra a democracia, mas contra a civilidade, nossa capacidade de viver pacificamente, com tolerância. Todo mundo sabia disso. Ou alguém achou mesmo que poderia domesticá-lo?

O centrão oferece garantia contra tentações golpistas? O centrão deveria observar a história. Bolsonaro é um traidor. No passado, fez o filho Carlos se candidatar a vereador contra a própria mãe. Abandonou todo mundo que estava com ele no começo quando precisou. Ninguém para na cozinha do Planalto. Se o centrão vai parar ou não, ainda veremos.

O engajamento político dos militares desde a ascensão de Bolsonaro é surpreendente, por razões negativas. Ele mostra que os militares não aprenderam com a experiência dos governos militares, quando se viu sua incapacidade de lidar com problemas sérios.

Havia na ditadura a ideia de que eles eram bons administradores, sabiam pôr a casa em ordem e fazer a economia crescer. Hoje, os militares no governo estão associados a um desastre, à bagunça e à incompetência.

Uma parte deles é bolsonarista mesmo e pensa como o presidente. Pelo menos a parte mais evidente para a opinião pública. Se existe outra ala mais civilizada, mais organizada, ela está perdendo a luta perante a opinião pública. E esse grupo terá trabalho depois para limpar a sujeira deixada pelos outros.

Temos um problema aí. Muitos entre eles não entendem como funciona a democracia. Precisam se reciclar, reformar os currículos da academia, entender o papel que devem desempenhar no mundo de hoje. Estão todos sofrendo as consequências do governo Bolsonaro, que destrói tudo.

Há risco de alguma ação contra o processo eleitoral? Que possa ferir o processo eleitoral, não. Mas uma contestação do resultado, como a que ocorreu nos Estados Unidos após a derrota de Donald Trump, pode ser mais séria aqui. Muitos seguidores de Bolsonaro já deram provas de que são loucos o suficiente para tanto. Não acho que tenham chance de sucesso, mas os custos que vão impor a todos nós serão muito elevados.

A adoção do semipresidencialismo, ou reformas como as cogitadas no sistema eleitoral poderiam evitar situações como essa? É hora de parar com esse hiperinstitucionalismo. Não dá para achar que as instituições são responsáveis por tudo, e que você pode resolver tudo com mudanças nas instituições. É uma forma de absolver os erros estratégicos dos atores políticos. É muito conveniente para eles jogar a culpa nas instituições.

Bolsonaro é produto de um processo de destruição da ordem democrática que vem de longe. Começou após a reeleição de Dilma Rousseff, em 2014, quando o PSDB foi à Justiça contestar a legitimidade do resultado das eleições.

O problema está em entender como funciona a democracia e aceitar que ela implica em derrotas, vitórias, perdas, negociações, moderação, convivência, etc. O PSDB cometeu um erro crasso ao contestar o resultado das urnas, sem exibir qualquer indício de fraude. Não à toa, Bolsonaro ameaça fazer igual.

Sempre teremos um presidente eleito. Não há como escapar. Se o país eleger um despreparado, teremos isso que está aí. Pessoas que defendem reformas pensam que vão conseguir um sistema à prova disso, em que só gente como elas seja eleita. Pode inventar o sistema que quiser. Não é assim que funciona.

Se os atores políticos cometem erros como os que cometeram, não há defesa contra isso. Após a reeleição de Dilma, setores das elites passaram a pensar que um quarto mandato do PT seria intolerável. Por quê? Aumentaram a idade para aposentadoria dos ministros do Supremo Tribunal Federal, para evitar que novas vagas se abrissem e fossem preenchidas pelo PT. Qual é a lógica?

A insistência do PT em lançar [o ex-presidente] Lula como candidato em 2018, quando estava preso e impedido pelas regras eleitorais, foi um erro. O PSDB errou ao manter o apoio ao governo Michel Temer [2016-2018] mesmo após a delação do [empresário] Joesley Batista. Ficou evidente a hipocrisia do partido, e seu eleitorado migrou para Jair Bolsonaro.

​Não há falhas no sistema político que possam ser corrigidas? Sempre há como aperfeiçoar as instituições. O que estou dizendo é que não é aí que mora o problema. E há questões menos discutidas do que o sistema eleitoral e que me parecem mais graves. Um certo exagero na autonomia conferida a algumas instituições que se arvoram no papel de tutoras do sistema político, como o Supremo, o Ministério Público e até mesmo a PF.

Essas instituições têm comportamentos erráticos, porque não são monolíticas. Todas têm um cara que é para um lado, um cara que é para outro, mas todos gozam de independência e de proteção corporativa e institucional para fazer aquilo que bem entendem.

O Supremo é fonte constante de instabilidade. As idas e vindas na questão das prisões em segunda instância são inexplicáveis. No auge da Lava Jato, o tribunal fechou o olho e deixou rolar uma série de incongruências e extrapolações da lei, incluindo abusos em prisões preventivas. Eles jogam pensando no resultado, não na lei, na regra.

O STF precisa agir como uma instituição, um corpo coletivo. Menos liminares, mais decisões do plenário. Há espaço para reformas internas, incluindo uma redefinição das suas competências, que não podem ser tão abrangentes como hoje em dia. Aí o Supremo poderia começar a impor ordem nessa bagunça.

O poder que o presidente da Câmara dos Deputados tem para barrar o impeachment deveria ser revisto? Não me parece uma reforma crucial. Seria para lidar com uma situação excepcional, e a gente não quer viver num mundo em que estamos sempre correndo para corrigir o que vemos como um problema imediato. Estaríamos fazendo como o STF.

As instituições e as lideranças políticas precisam começar a pensar um pouco mais no longo prazo. Esta regra é a melhor para mim, estando eu no governo e estando eu na oposição? É a melhor regra para um membro do STF, estando em maioria ou minoria? Parece que ninguém mais faz esse tipo de raciocínio.

Alguma estabilidade só emergirá quando as pessoas pensarem no longo prazo e refletirem sobre a situação do ponto de vista do perseguido, do que pode ser objeto do poder arbitrário. O Brasil pós-redemocratização é uma história de sucesso, do ponto de vista institucional, das políticas públicas e da alternância no poder. Nosso destino não é conviver com essa desrazão completa que vemos hoje.

FERNANDO LIMONGI, 63

Doutor em ciência política pela Universidade de Chicago, foi professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo entre 1986 e 2018. Atualmente, dá aulas na Escola de Economia de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas. Publicou os livros "Democracy and Development" (2000), em co-autoria com Michael Alvarez, José Antonio Cheibub e Adam Przeworski, "Executivo e Legislativo na Nova Ordem Constitucional" (1999) e "Política Orçamentária no Presidencialismo de Coalizão" (2008), com Argelina Figueiredo, da Universidade Estadual do Rio.

Os grandes poluidores da Europa querem garantir que a UE não limite a sua poluição

A União Europeia está considerando uma importante legislação climática para reduzir as emissões em todo o continente. Mas há um inimigo familiar que se mobiliza para enfraquecer a legislação: os lobistas dos grandes poluidores corporativos.

Jacobin

A Royal Dutch Shell confirmou recentemente que iria recorrer da decisão de um tribunal holandês que exigiria que reduzisse as emissões de carbono mais rapidamente. (Guilhem Vellut/Flickr)

Tradução / Tem sido aclamada como um potencial "momento seminal no esforço global para combater as alterações climáticas" e uma tentativa de "dar à humanidade uma oportunidade de lutar". Mas o novo plano abrangente da União Europeia (UE) para combater o aquecimento global pode ser bloqueado pelo inimigo habitual da reforma progressiva em Bruxelas, casa da sede da UE: os poderosos lobistas corporativos.

No início deste mês, o ramo executivo da UE, a Comissão Europeia, apresentou finalmente o plano há muito esperado para cumprir a sua meta de reduzir as emissões em 55% até 2030 e alcançar a neutralidade de carbono até 2050 — oferecendo uma combinação de novos impostos, normas de emissões mais rigorosas e regulamentos mais fortes. O conjunto abrangente de propostas poderá ter repercussões globais: a UE é a terceira maior economia do mundo e o terceiro maior emissor de gases com efeito de estufa, depois dos Estados Unidos e da China, gerando mais de 7% do total de emissões de carbono do planeta.

Em muitos aspetos, no entanto, a batalha está apenas no início. Para entrar em vigor, a legislação precisa da aprovação tanto do Parlamento Europeu como de uma "maioria qualificada" dos governos nacionais — pelo menos 15 dos 27 Estados-membros da UE que, em conjunto, representam no mínimo 65% da população da Europa. No total, espera-se que o labiríntico processo de negociação demore cerca de dois anos.

Muitos grupos ambientalistas consideram que o plano em cima da mesa não é suficientemente ambicioso. Mas enquanto governos e legisladores se preparam para estudar as suas quase quatro mil páginas de texto, o pacote climático da UE poderá vir a ser ainda mais enfraquecido nos próximos meses. Algumas das indústrias mais poluentes da Europa já manifestaram a sua oposição a medidas-chave — e, ao contrário das suas congéneres do movimento ambientalista, têm amplos recursos financeiros e poderosas armas de lóbi que podem usar em seu benefício.

ALARGAMENTO DE IMPOSTOS SOBRE COMBUSTÍVEIS

Uma proposta incluída no pacote climático criaria um novo imposto sobre o querosene, pondo termo à isenção de longa data dos impostos europeus sobre os combustíveis do setor da aviação civil. Embora o principal grupo de pressão da aviação europeia, Airlines for Europe, insista em declarar o seu apoio os amplos objetivos climáticos da UE, não deixou de advertir, após a publicação do plano da Comissão, que os "impostos europeus mal concebidos não reduzirão as emissões".

A Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA), outro grupo industrial, foi ainda mais explícita quanto à sua oposição ao fim da isenção. No dia do lançamento do plano climático, emitiu um comunicado de imprensa com o título "O imposto não é a resposta para a sustentabilidade da aviação".

Ambos são forças a ter em conta em Bruxelas. De acordo com os dados publicamente disponíveis, o grupo Airlines for Europe gastou mais de um milhão de euros em esforços para pressionar os funcionários da UE no ano passado, enquanto a IATA gastou mais de 900 mil euros entre 2019 e o início de 2020.

Os membros de cada grupo também não se pouparam a esforços para reunir os seus próprios exércitos de lobistas. A fabricante de aeronaves Airbus gastou mais de 1,75 milhões de euros para influenciar as decisões da EU em 2019, ano do seu mais recente relatório disponível. A companhia aérea Air France-KLM, entretanto, duplicou os seus gastos em lóbi no ano passado, desembolsando mais de 900.000 euros para conseguir aceder a um pacote de resgate financeiro de 10 mil milhões de euros dos governos francês e holandês, que exigia luz verde da Comissão Europeia. A companhia aérea alemã Lufthansa gastou mais de 300 mil euros em lóbis junto de funcionários da UE, enquanto a gigante dos voos low-cost Ryanair pagou mais de 200 mil euros, de acordo com as últimas revelações anuais divulgadas.

O plano climático da UE também faria com que o sector de transporte marítimo perdesse a sua isenção de impostos sobre combustíveis — uma medida que já causou irritação no lóbi da indústria. Numa reação à divulgação da proposta, a Associação de Armadores da Comunidade Europeia argumentou que "remover a atual isenção de impostos para o combustível não é consistente com a via do progresso”.

O grupo, que declarou mais de 500 mil euros em despesas de lóbi nos seus relatórios mais recentes, disse estar “ansioso por um diálogo estreito com os decisores políticos da UE, para assegurar que as ambições climáticas sejam alcançadas e que a competitividade da navegação europeia seja salvaguardada".

EXPANSÃO DO COMÉRCIO DE EMISSÕES

Outro pilar do plano climático é uma expansão do mercado de carbono da UE. É conhecido como o sistema de limite e negociação (cap-and-trade), cujos regulamentos estabelecem limites máximos para as emissões de carbono e exigem que as empresas comprem créditos, caso poluam acima desses limites. Enquanto o programa atual se aplica apenas às indústrias mais poluentes, como a siderurgia ou a produção de energia, a UE pretende alargar estas regras a toda a economia, atribuindo pela primeira vez um preço ao carbono em sectores como os transportes e a construção civil.

Alguns especialistas argumentam que os programas cap-and-trade são inadequados e vulneráveis à manipulação política. Mas, tal como com a proposta de imposto sobre o querosene, a indústria aérea já manifestou a sua oposição à medida.

De acordo com os pedidos de informação do grupo de vigilância empresarial InfluenceMap, tanto a Air France-KLM como a Lufthansa criticaram as extensões do sistema de créditos de carbono propostas pela Comissão Europeia. Numa mensagem de e-mail enviada em janeiro de 2021 ao comissário europeu Frans Timmermans, que dirige a política climática europeia, a Lufthansa argumentou que uma expansão do comércio de emissões "afetaria unilateralmente os custos das companhias aéreas da UE".

A indústria europeia de combustíveis fósseis também está reticente em relação à proposta. FuelsEurope, o principal lóbi das refinarias de petróleo e gás natural — grupo que inclui a BP, ExxonMobil, Shell, TotalEnergies e o gigante norueguês da energia Equinor – criticou diretamente a proposta da Comissão Europeia de expandir o cap-and-trade. No seu site, o grupo defende que "a inclusão do transporte rodoviário [no sistema de comércio de emissões] dificilmente se revelará eficaz" e apela, em alternativa, à criação de um mercado de carbono separado "feito à medida" para o trânsito automóvel.

Só a FuelsEurope gastou mais de 3,25 milhões de euros para fazer pressão sobre a UE em 2020, cerca de mais um milhão que em 2019. Tal como nos Estados Unidos, as empresas de energia são das maiores gastadoras na política europeia. A BP, ExxonMobil e Shell encontram-se entre as dez empresas com maiores despesas em lóbi na UE. Cada uma declarou mais de três milhões de euros em taxas anuais de lóbi, de acordo com os últimos dados disponíveis.

Os fornecedores de gás natural europeus são igualmente poderosos. O seu grupo de pressão Eurogas — que também inclui alguns membros da FuelsEurope — manifestou a sua oposição a uma extensão imediata do cap-and-trade, defendendo uma transição mais gradual. Numa tomada de posição publicada em junho, a Eurogas, que gastou mais de 400 mil euros em lóbi no ano em que divulgou os seus dados mais recentes, reconheceu que “diferentes setores têm diferentes custos de prevenção e a sua inclusão imediata no sistema de limite e negociação existente, sem passos intermédios, poderia inicialmente pôr em risco o aumento da pressão sobre os setores atualmente abrangidos pelo sistema de comércio de emissões”.

Tal como outras indústrias, os lóbis do petróleo e gás natural afirmam apoiar o objetivo mais vasto da UE de alcançar a neutralidade de carbono até 2050. Mas como salienta Myriam Douo, uma ativista do grupo ambiental Friends of the Earth Europe, as próprias ações do setor comprometem regularmente essa promessa.

Segundo Douo, um dos culpados mais evidentes é a Royal Dutch Shell, com sede nos Países Baixos e integrada no Reino Unido. Para além de ter produzido quase mil milhões de barris de petróleo e gás natural no ano passado, a empresa confirmou recentemente que iria recorrer da decisão de um tribunal holandês, que a obrigava a reduzir mais rapidamente as emissões de carbono.

“Uma empresa que realmente se preocupa com as alterações climáticas e que está seriamente empenhada em mudar a sua atividade, apelaria de uma decisão que a obriga a uma mudança dessa atividade?”, questiona a ativista. "Existe um enorme fosso entre o seu discurso e as suas ações".

ELIMINAÇÃO GRADUAL DE CARROS MOVIDOS A GASOLINA E GASÓLEO

A UE está também a apelar a uma eliminação gradual dos automóveis movidos a gasolina e gasóleo. A atual proposta da Comissão exigiria uma redução de 55% nas emissões de carbono dos automóveis e carrinhas vendidos na UE até 2030, seguida de um corte de 100% até 2035 — abrindo caminho a uma proibição efetiva da venda de automóveis movidos a combustíveis fósseis.

Embora a indústria automóvel europeia tenha saudado a transição para os veículos elétricos, que constituem uma parte cada vez maior das vendas, está muito mais relutante em aceitar o fim definitivo da venda de automóveis a gasolina e a gasóleo. “Banir uma única tecnologia não é uma forma racional de avançar nesta fase”, declarou a Associação Europeia de Fabricantes de Automóveis (ACEA) num comunicado emitido após o lançamento do plano da UE.

A ACEA gastou mais de 2,5 milhões de euros em lóbi no ano passado, e os seus principais membros são por si grandes gastadores: a Volkswagen gerou uma conta de lóbi de três milhões de euros em 2019; a Daimler, dona da Mercedes, gastou mais de dois milhões em 2020; a BMW mais de 1,25 milhões no mesmo período; e a Toyota, que liderou uma campanha global para promover veículos movidos a hidrogénio e resistiu a uma transição total para carros elétricos, gastou mais de 400 mil euros entre abril de 2020 e março de 2021.

Lobby em casa

Como normalmente acontece na União Europeia, o plano climático será negociado em duas vias. Para além das negociações em Bruxelas, os governos nacionais podem ajudar a promover ou inviabilizar certos pontos do acordo — defendendo propostas, pressionando alterações ou retendo apoios, quando considerem adequado.

Enquanto examinam os milhares de páginas do plano serão, quase de certeza, alvo de pressão dos lóbis empresariais. Como divulgou a organização não-governamental InfluenceMap num relatório do início deste mês, todos os lóbis empresariais intersectoriais das maiores economias europeias — Alemanha, França, Itália e Espanha — expressaram preocupações relativas a vários aspetos do plano. Tal como a Câmara de Comércio dos EUA, estes lóbis nacionais tendem a defender as posições dos seus membros mais poluidores em nome da indústria em geral, adotando o que a ONG apelidou de "abordagem do menor denominador comum".

De uma forma geral, o apoio oficial da indústria aos objetivos da UE não se coaduna com a sua oposição às propostas concretas em cima da mesa de negociações — uma contradição que, provavelmente, se tornará mais evidente à medida que as negociações se forem intensificando nos próximos meses.

“É uma ‘lavagem verde‘”, afirma Douo, da Friends of the Earth Europe. "Estão a tentar apresentar-se como aliados do clima e isso não é de todo verdade".

Embora também sejam críticos em relação ao plano climático da UE e esperem vê-lo evoluir — se bem que numa direção muito diferente — os grupos ambientalistas não têm condições para competir com a influência do lóbi dos combustíveis fósseis.

Confrontadas com recursos limitados, as principais ONG ambientais da Europa formaram recentemente a sua própria coligação: os Green 10. Em 2019, o grupo declarou mais de 25 mil euros em despesas de lóbi — menos de 1% do que a FuelsEurope gastou no ano passado.

"Temos de nos unir para obter esse acesso, e depois temos uma reunião com dez organizações", diz Douo sobre a influência do grupo junto da Comissão Europeia. "É um alcance completamente diferente; não é nada comparado com o que a indústria tem".

Colaborador

Cole Stangler é um jornalista radicado em Paris que escreve sobre trabalho e política. Ex-redator do International Business Times e In These Times, ele também publicou trabalhos na VICE, na Nation e no Village Voice.

29 de julho de 2021

"Nós nos entrelaçarmos em nível continental é a única maneira de enfrentar o modelo"

Diante da investida das políticas neoliberais, baseadas na flexibilização trabalhista e na superexploração da mãe natureza, só há uma saída: a unidade dos povos da América Latina.

Uma entrevista com
Leônidas Iza

Entrevistado por
Andrés Carminati e Pablo Toro

Jacobin

Leônidas Iza é o novo presidente da Confederación de Nacionalidades Indígenas del Ecuador (CONAIE), eleito com 65% dos votos em junho de 2021.


Leônidas Iza é o novo presidente da Confederación de Nacionalidades Indígenas del Ecuador (CONAIE), eleito com 65% dos votos em junho de 2021. Natural de Cotopaxi e presidente do Movimento Indígena e Camponês daquela cidade serrana, foi uma das principais lideranças durante os protestos de outubro de 2019, consolidando sua referência a partir daqueles dias.

Sua eleição se dá no contexto imediatamente posterior ao processo eleitoral que permitiu a vitória do candidato de direita Guillermo Lasso. A centralidade da CONAIE como principal movimento social do Equador e o prestígio renovado que assumiu com as lutas de 2019 fazem de Leônidas um dos principais adversários do governo neoliberal. Cientes disso, as esferas oficiais iniciaram uma campanha de criminalização contra as lideranças que lideraram o surto de outubro.

Recentemente, em um programa da emissora estatal TC televisão, dois jornalistas encheram de dardos uma foto do rosto de Iza enquanto o chamavam de "camponês, anarquista, bronquista, obsessivo e narcisista" para completar a sigla CABRON. O programa foi finalmente retirado do ar e os apresentadores "pediram desculpas" via Twitter, embora em sua defesa continuassem insistindo na ideia de criminalizar o protesto social. Com certeza, este episódio se tornará mais uma anedota diante dos confrontos que se avizinham, tanto materiais quanto simbólicos.

Nossa América vive uma situação conflituosa, com grandes mobilizações, conflitos e novos cenários eleitorais sob o manto de uma grande crise econômica e social. Da Jacobin América Latina tivemos a oportunidade de entrevistar Leônidas para conhecer sua visão sobre esta situação local e regional.

Andrés Carminati e Pablo Toro

Queríamos começar perguntando sobre o contexto social e político em que você deve assumir a presidência da CONAIE. Estávamos particularmente interessados ​​em conhecer sua caracterização geral do governo Lasso e as tarefas que você acredita serem as principais tarefas do movimento indígena a curto e médio prazo.

Leônidas Iza

Uma saudação cordial a todos os nossos irmãos da América Latina, dos diversos países, num momento em que temos necessidade de nos articular a nível continental e global.

Certamente, depois de um processo eleitoral altamente polarizado que terminou com a chegada ao governo do Presidente Lasso, os equatorianos têm um cenário muito complexo diante de nós. Lasso propôs a abertura para o grande capital. Seu governo vem para fortalecer o neoliberalismo. Dentro dessa grande orientação, existem quatro elementos que nos preocupam particularmente e que faremos todos os esforços para enfrentar.

O governo nacional os declarou publicamente: 1) os processos de privatização; 2) os processos de expansão da mineração de petroleira-mineraria, dependentes de uma economia extrativista; 3) a abertura do Acordo de Livre Comércio (TLC), especialmente com os Estados Unidos; e 4) neste caso, a aceitação da imposição do Fundo Monetário Internacional (FMI), que tema ver com todos os ajustes estruturais que correspondem ao arcabouço institucional do Estado.

Flexibilidade da mão de obra, ajustes estruturais, aumento dos preços dos combustíveis por meio da eliminação de subsídios são políticas ditadas pelas "preocupações" do FMI. Esses ajustes também vêm com novas iniciativas, como a extensão de impostos e taxas para outros setores: para setores dos trabalhadores. Se antes o imposto de renda era cobrado de $ 11.000 em diante, agora se pretende reduzir esse número para aproximadamente $ 7.000. Outra proposta em baila é o aumento do imposto sobre o valor agregado (IVA), diretamente vinculado aos setores mais populares do Equador. Essa é a agenda que o governo nacional está promovendo.

Nós, por outro lado, vivemos uma política muito diferente: primeiro, garantir a unidade do movimento indígena; segundo, garantir uma plataforma de articulação em nível nacional com outros setores populares, outros setores camponeses e agrários do Equador; e terceiro, fazer uma articulação continental, porque vemos que a aplicação das políticas de ajuste do FMI não é algo que só ocorre no Equador, mas tem um caráter regional e certamente também global. Esse é o cenário que podemos traçar hoje e marca um contexto político muito difícil para os setores populares do Equador.

Andrés Carminati e Pablo Toro

Gostaríamos de lhe perguntar que avaliação faz das últimas eleições, em particular sobre a participação de Pachakutik como braço político da CONAIE. Também estaríamos interessados ​​se você pudesse desenvolver os fundamentos do "voto nulo ideológico" no segundo turno. Como você certamente sabe, essa tática foi duramente questionada pelas correntes progressistas de nossos países; há uma certa dificuldade em compreender as diferenças que impediam um acordo com o correísmo.

Leônidas Iza 

Ao longo do ano, no movimento Pachakutik, um processo muito tenso foi gerado, que acabou com uma polarização no final que não foi administrada em conjunto. O movimento indígena, a CONAIE, exigia que a eleição dos representantes dos diferentes espaços ocorresse por meio de estruturas organizacionais, como era feito anteriormente com adesão coletiva. Mas, de repente, o movimento Pachakutik privilegiou apenas a decisão com os adeptos individuais. Houve uma polarização e, logicamente, a lógica coletiva não prevaleceu. Isso gerou um impasse muito importante na vida organizacional e política do movimento indígena no Equador. Porém (acreditamos que devido à referência no levante de outubro passado, que levou o movimento indígena a ter uma imagem positiva de 72%), mesmo com todo esse desgaste, o movimento conseguiu um número muito bom de assentos na Assembleia Nacional.

Quatro razões explicam o grande número de deputados e a importante referência presidencial que alcançamos. Primeiro, as lutas históricas: há uma conquista, que neste caso é um voto ideológico, um voto que está apoiando ali as estruturas organizacionais, apoiando o movimento Pachakutik. Um segundo elemento é dado pela referência de outubro, que realmente permitiu ancorar, expandir para outros setores da sociedade - e não apenas o movimento indígena - que se sentia realmente representado por outros espaços de organização social da sociedade.

Um terceiro elemento, nos parece, é o trabalho estruturado do movimento indígena do Equador, mesmo sabendo que o movimento Pachakutik não respeitou uma decisão coletiva. As estruturas organizacionais seguraram a decisão de apoiar a campanha eleitoral em seus ombros de qualquer maneira. E um quarto elemento são as ações de nossas autoridades eleitas pelo povo no território, especialmente em governos seccionais, prefeituras e prefeitos, juntas de freguesia ... Poderíamos citar também um quinto elemento: a referência individual de que gozavam nossos candidatos a nível territorial e nacional. Esses são os cinco elementos que permitiram ter uma referência importante nas últimas eleições.

Em relação ao cenário do segundo turno: Digamos, em primeiro lugar, que para o primeiro turno ainda havia algo que pudesse ser resolvido. No entanto, no primeiro turno não houve tal trabalho organizacional ligando os líderes nacionais aos candidatos nacionais. Essa polarização se manteve até o final do primeiro turno e —especialmente nos porta-vozes nacionais— não nos permitiu sustentar essa grande unidade que mantivemos no território.

Já para o segundo turno, entre estas duas versões, entre a direita e a candidata do correísmo ... Teríamos preferido, claro, que se projetasse de outra forma; não tem havido muita incidência do correísmo. Logicamente, era impossível para as bases do movimento indígena, derrotadas por dez anos de correismo, decidirem da noite para o dia votar a favor de sua candidatura. Por outras palavras, todos os horrores, erros e problemas que o correísmo cometia na sua administração foram transferidos de forma bastante mecânica, sem qualquer análise, para o candidato progressista Andrés Arauz.

Neste processo, tínhamos pedido antes de tudo a autocrítica, não a imposição da lógica que se tinha vivido nos últimos anos do correísmo. Realmente, penso que o que não permitiu a Andrés Arauz ganhar foi a imagem de Rafael Correa, que não permitiu que o seu candidato crescesse em diferentes setores que foram atingidos pelo correísmo, devido à forma que adotou na administração do Estado. Como poderiam esperar que o movimento indígena, cujas lideranças foram criminalizadas, cujos membros foram afetados pela abertura da fronteira mineira na Amazônia e no sertão, de repente concordasse?

Não foi possível ... Nunca houve um processo de autocrítica por parte do Correísmo, pelo que o peso daqueles dez anos de história acabou por pesar mais do que qualquer outra coisa. No segundo turno, portanto, o movimento indígena não teve muitos motivos para tentar concordar com o candidato progressista. Mas ele também não poderia votar na direita, é claro. Por isso, definiu um “voto nulo ideológico”, que permitia manter a independência política, a autonomia e, logicamente - pelo menos como indiquei pessoalmente - também um elevado nível de responsabilidade. Porque foi essa decisão que não permitiu unificar este entendimento de “progressismo”, este entendimento de “esquerda”. Uma decisão cujas origens, repito, remontam a esses elementos que não foram bem tratados, àquelas decisões que são tomadas nos espaços de poder quando aqueles que se dizem de esquerda estão administrando.

A esquerda não pode criminalizar os líderes populares. Uma esquerda não pode ter como objetivo dividir as organizações. Você não pode pretender instalar a estigmatização de seus oponentes que observamos as políticas públicas. E sobre isso, não houve o menor processo de autocrítica, e foi essa circunstância que não permitiu que a tendência se unificasse. Algo que, é claro, resultou em um custo político muito importante para o Equador e para a América Latina.

A este respeito tive, em termos individuais, outra leitura. Mas somos obrigados a agir de acordo com as decisões coletivas dos povos e nacionalidades. Nesse sentido, tivemos que seguir defendendo as teses políticas que definiram a maioria das estruturas organizacionais filiadas à CONAIE. O que não aconteceu com o camarada Jaime Vargas: quando houve uma quebra na lógica da decisão coletiva das organizações, logicamente, a direção política da CONAIE estava desequilibrada no fechamento do segundo turno.

Andrés Carminati e Pablo Toro

Em entrevista concedida em fevereiro deste ano, o senhor disse que durante o debate presidencial nenhum candidato havia levado em conta o levante de outubro de 2019, mas sim que houve uma tentativa de silenciar aqueles dias. Nesse sentido, que significado você acha que outubro de 2019 tem para pensar sobre o atual Equador? Que vestígios vivos sobraram do surto?

Leônidas Iza

Acredito que o levante de outubro deixa como lição para qualquer governo no poder - de esquerda ou de direita - que se não governar com o povo, de acordo com as decisões do povo, o povo simplesmente se levanta. Essa é uma mensagem poderosa, instalada, não é algo para simplesmente lembrar, como um ícone inofensivo, mas está realmente lá: a capacidade de mobilização da sociedade equatoriana e a capacidade de organização que a CONAIE tem no país. Essa é uma informação muito importante

Eu também acho que ele deixou uma mensagem poderosa sobre como continuar a partir daí. Uma mensagem sobre o poder de articulação da participação juvenil. Acho que essa foi uma mensagem não só das revoltas no Equador, mas em toda a região: a participação da juventude como ator social. O que aconteceu no Equador, o que aconteceu na Bolívia, no Chile, o que aconteceu na Colômbia nestes últimos dias de luta ... Como símbolo de luta nas gestações libertárias, os jovens, as mulheres, os diferentes grupos que muitas vezes estiveram escondidos, ofuscado pelo poder político estabelecido, ou poder econômico realmente existente dentro do país, veio à tona com força impressionante.

Por fim, um terceiro elemento que me parece importante em relação ao levante de outubro de 2019 é a comunicação. Temos capacidade de organização, temos representação, temos figuras que podem disputar politicamente, mas muitas vezes precisamos considerar a comunicação também como um instrumento central. Nesse caso, podemos fazer isso; foi possível articular-se com meios alternativos de comunicação e várias mentiras foram desarmadas. É por isso que há um ataque sistemático por parte de vários meios de comunicação, porque se ofendem com a força motriz dos meios de comunicação alternativos.

Em relação ao exposto, um quarto elemento pode ser elencado, que é a instalação do discurso de suposta violência pelos manifestantes. O que realmente aconteceu é que o estado aumentou os níveis de violência e o povo conseguiu se defender. Os primeiros dias com papelão, de repente com paus. E isso realmente deixou um aprendizado. Agora, por exemplo, os Guardas Comunitários estão presentes na cidade ou no campo. Essas são as lições que continuarão a durar para não deixar que outubro de 2019 continue sendo um ícone inofensivo. Não, ao contrário, é um espírito atual da luta do Equador e em nível continental.

Andrés Carminati e Pablo Toro 

Por fim, gostaríamos de saber como você lê a situação atual da América Latina. O que a Nustra América pensa da CONAIE?

Leônidas Iza 

O progressismo que teve a América Latina tem cometido alguns excessos contra seus povos. Acredito que o povo esteja disposto a superar esses erros e lutar por um projeto econômico e político independente das imposições das transnacionais, dos modelos econômicos do imperialismo, que sempre nos tiveram como quintal, como vendedores de matérias-primas.

Os povos da América Latina sabem bem que o capital estrangeiro suga o sangue da Mãe Terra e estão dispostos a pensar uma política mais apegada à realidade das nacionalidades, dos trabalhadores e dos sindicatos a nível continental. Por isso, aprofundar-se na matriz organizacional, na matriz política de articulação, é fundamental. Aí está a força, aí está o coração dos povos e nacionalidades latino-americanas.

O continente latino-americano, antes de ser denominado assim, foi constituído por muitas civilizações com processos de igualdade econômica. Os povos indígenas, que antes eram considerados os “povos atrasados”, aqueles que não permitiam o “desenvolvimento” do continente, estão agora mais presentes do que nunca no seio da política. Logicamente, isso acarreta um alto grau de responsabilidade por parte da sociedade, dos governos progressistas, para recolher o aprendizado das civilizações aqui presentes e, a partir disso, construir uma política nacional, uma política continental.

O que aconteceu no Chile com a irmã Elisa Loncón, o que está acontecendo agora com o povo peruano, depois de um processo muito doloroso ... Essas coisas mostram que a sociedade está disposta a repensar a política e repensá-la para a esquerda. Há uma semente que está disposta a superar todos os erros e horrores cometidos por uma esquerda institucionalizada. A mensagem do Peru, do Chile, a mensagem do Equador (mesmo reconhecendo esses problemas da dicotomia política, que beneficiou a direita neste caso) é uma mensagem de unidade. É uma mensagem de que é possível caminhar para uma nova América Latina reunificada. Uma América Latina de trabalhadores, povos e nacionalidades, que sofrem o ataque das políticas neoliberais baseadas na flexibilização do trabalho e na superexploração da mãe natureza.

Da CONAIE traçamos uma linha de articulação de uma plataforma internacional que reúna todas as identidades dos povos, das nacionalidades. Com todas as identidades dos trabalhadores, sindicatos, organizações que lutam em defesa da natureza ou em defesa dos direitos de grupos minoritários. Uma plataforma internacional deve ser articulada. E queremos dar a nossa contribuição, somar o nosso grão de areia a esta articulação, porque acreditamos que o entrelaçamento a nível continental é a única forma de enfrentar o modelo que os países centrais há tanto tempo nos impõem.

Sobre o entrevistado

Presidente do Movimento Indígena e Camponês de Cotopaxi (Equador).

Sobre os entrevistadores

Andrés Carminati é Doutor em História e professor da Universidade Nacional de Rosário (Argentina).

Pablo Toro é jornalista e mestre em comunicação pela Universidade de Santiago do Chile.

28 de julho de 2021

Forças da mudança

Cédric Durand



Tradução / A extensão da ruptura com o neoliberalismo iniciada pelo governo Biden dependerá tanto do desenrolar da política de Washington quanto do impacto das mobilizações vindas de baixo. Ainda assim, em segundo plano, forças impessoais continuarão a afetar a metamorfose do capitalismo em seus estágios sucessivos. É a partir dessas restrições estruturais e oportunidades que se forma o tecido da atual conjuntura.

O que a economia política contemporânea pode nos dizer sobre eles? Além da esfera do pensamento liberal dominante, uma série de contribuições teóricas recentes tentou diagnosticar o momento atual, situando-o nos ritmos de longo prazo do desenvolvimento capitalista. Eles oferecem uma nova luz, senão uma chave mágica, para a compreensão da mudança sistêmica representada pela economia do presidente norte-americano Joe Biden.

Essas forças de mudança são rotineiramente ignoradas pelos economistas liberais. As trocas de mercado são vistas como uma esfera de atividade que depende exclusivamente de si mesma; a intervenção coletiva consciente não deve interferir na mão invisível ou na ordem espontânea. No entanto, está cada vez mais claro que essa fé no ajuste num mercado que se equilibra a si mesmo não pode fornecer uma teoria geral da rápida mudança socioeconômica, nem uma explicação específica de nossa atual turbulência política.

Reconhecendo essa limitação, a revista The Economist rejeitou recentemente a modelagem de equilíbrio neoclássica e o instrumentalismo de Friedman em favor da economia evolucionária, que “busca explicar os fenômenos do mundo real como o resultado de um processo de mudança contínua”. “O passado informa o presente” – declarou. “As escolhas econômicas são feitas e informadas por contextos históricos, culturais e institucionais”.

Essa intervenção sinaliza o enfraquecimento do domínio da economia neoclássica sobre a profissão como um todo. Mesmo assim, o esquema evolucionário mantém uma profunda lealdade à ideologia burguesa, baseada na crença de que a natureza não dá saltos (natura non facit saltum). Para esta escola de pensamento, a evolução é sempre incremental. Pode haver exceções pragmáticas a essa regra, como quando os neoliberais abraçam a terapia de choque para desmantelar os resquícios da ordem socialista “antinatural” – tal como ocorreu na Europa Oriental. Ou mesmo lançar uma revolução contra o modelo social francês no estilo de Emmanuel Macron. Mas esse voluntarismo oportunista está enraizado no pressuposto das virtudes transistóricas do mercado; não se baseia em uma teoria dos períodos da história capitalista, nem em uma explicação de seus pontos de inflexão, além de argumentos ad-hoc.

Quatro décadas atrás, John Elliott escreveu no Quarterly Journal of Economics que, apesar de seus compromissos ideológicos opostos, Marx e Schumpeter concordaram sobre as três características salientes da dinâmica evolucionária do capitalismo: “Vem de dentro do sistema econômico e não é meramente uma adaptação às mudanças exógenas. Ocorre de forma descontínua, e não de modo suave. Traz mudanças qualitativas ou “revoluções”, que fundamentalmente deslocam velhos equilíbrios e criam condições radicalmente novas”. Pierre Dockès delineou essa perspectiva “mutacionista” em sua obra monumental, Le Capitalisme et ses rythmes (O capitalismo e os seus ritmos) (2017): “a mutação afeta não um aspecto ou caráter da ordem produtiva, mas o próprio sistema; produz uma mudança de estado. A partir de um certo limiar, ocorre uma percolação: a mudança quantitativa dos elementos se cristaliza em uma mudança qualitativa do estado do sistema”.

Ainda assim, a questão permanece: o que atualmente está impulsionando a percolação e como exatamente ela se cristaliza? Mais especificamente, quais tendências de longo prazo estão impulsionando a mutação atual do capitalismo para além do neoliberalismo?

***

Para iluminar essas questões, podemos primeiro nos voltar para a rica tradição intelectual derivada de Schumpeter e Nikolaï Kondratiev, que vincula a mudança tecnológica às ondas de várias décadas de acumulação de capital. De acordo com essa tradição, os clusters de inovação são implantados durante a fase de expansão até o ponto em que as opções mais lucrativas se esgotam. Em seguida, uma fase depressiva promove uma busca intensiva por novas oportunidades de negócios, lançando as sementes de uma nova fase potencial de expansão. Essas mudanças são ondas longas – e não ciclos. Embora as depressões sejam um resultado inelutável do desenvolvimento capitalista, não é de forma alguma certo que uma nova fase de expansão seja desencadeada.

De acordo com Long Waves of Capitalist Development (1980) (“Ondas longas do desenvolvimento capitalista”),de Ernest Mandel, “não é a inovação tecnológica per se que desencadeia uma nova expansão de longo prazo. Somente quando essa expansão já tiver começado é que as inovações tecnológicas podem ocorrer em escala maciça”. Isso certamente requer “um forte aumento da taxa de lucro e uma grande expansão do mercado”. Como “o modo capitalista de assegurar a primeira condição conflita com o modo de assegurar a segunda”, Mandel argumenta que devem ocorrer “mudanças no ambiente social em que o capitalismo opera”. Em suma, enquanto as retrações são endógenas, as reviravoltas exigem “choques sistêmicos” exógenos – guerras, contrarrevoluções, derrotas da classe trabalhadora, a descoberta de novos recursos – para permitir que a acumulação de capital decole novamente.

Antes de sua morte, em 1995, Mandel identificara a “integração total da ex-URSS e da República Popular da China no mercado mundial capitalista”; ao mesmo tempo julgara que uma “grande derrota da classe trabalhadora” ocorreria como pré-condição para uma recuperação. Esta análise foi parcialmente corroborada: a expansão das cadeias globais de valor e o aumento da taxa de exploração resultante das políticas neoliberais, além da disponibilidade de uma enorme força de trabalho de reserva, foram mudanças decisivas que impulsionaram a recuperação da economia global de meados dos anos 90 em diante até o crash de 2008. Contudo, devido ao crescente excesso de capacidade e à demanda anêmica, uma fase de expansão completa liderada pela economia digital não se materializou.

A teoria de Mandel raramente é mencionada hoje em dia, mas mesmo assim é possível encontrar algumas de suas ideias na influente obra de Carlotta Perez e Mariana Mazzucato. Em um documento conjunto, publicado em 2014, intitulado Innovation as Growth Policy: the challenge for Europe (Inovação como política de crescimento: o desafio para a Europa), elas também procuraram apresentar as condições para uma recuperação econômica. “Os mercados sozinhos não podem trazer de volta a prosperidade” – escreveram.

Ademais, acrescentaram: “O investimento é impulsionado pela inovação; especificamente, pela percepção de onde estão as novas oportunidades tecnológicas. O investimento privado só entra em ação quando essas oportunidades são claras; o investimento público deve ser direcionado para a criação dessas oportunidades em todos os espaços políticos e afetar toda a economia”. Perez e Mazzucato tentaram ir além de Mandel em sua crença na necessidade de “choques sistêmicos”, pois deram ao Estado a responsabilidade para criar os fatores extraeconômicos necessários para lançar uma expansão. A inovação desejável deve se tornar lucrativa por meio da política industrial – regulamentação financeira, gestão da demanda, educação etc. – enquanto que políticas tributária, fiscal e monetária adequadas devem prover esse lançamento com os recursos necessários.

As forças de mudança, nessa perspectiva, podem estar fora da esfera econômica. Para Perez e Mazzucato, os “problemas atuais são estruturais” (leia-se: endógenos) e datam de décadas anteriores à crise de 2008. Crucialmente, ademais, elas acreditam que as condições para os superar residem na autonomia na formulação de políticas. A política pode mudar as condições estruturais. Esta é uma lição inescapável do alçamento (catch-up) chinês liderado pelo Partido Comunista. É, também, a justificativa básica para levar o capitalismo ao sucesso.

Se aceitarmos esse argumento, é tentador levá-lo um passo adiante, explorando os fatores que podem fomentar a mudança institucional e reformular as condições para a acumulação de capital. O que imediatamente vem à mente é o “duplo movimento” de Karl Polanyi. Em The Great Transformation (1944) (“A grande transformação”), ele escreve que “embora a economia do laissez-faire fosse o produto da ação deliberada do Estado, as restrições subsequentes a ele começaram de forma espontânea”. Se a liberalização é um projeto político, o impacto destrutivo das forças de mercado é automaticamente “interrompido pela autoproteção realista da sociedade”. Embora o foco de Polanyi esteja na mudança institucional, e não nas ondas de acumulação, sua análise traça uma conexão imprescindível entre as duas.

Uma contribuição recente da escola pós-keynesiana começa de onde Polanyi parou; eis que propõe uma endogenização elegante do conflito de classes por meio das instituições, de acordo com as flutuações econômicas de longo prazo. No modelo de Michalis Nikiforos, “o aumento na participação nos lucros está relacionado ao domínio do mercado autorregulado – ora, isso inevitavelmente gera uma crise. A sociedade vai se mobilizar para se proteger e vai haver um contramovimento, que (…) aparece como um aumento da participação salarial”.

Para Nikiforos, “este contramovimento pode também produzir, mais tarde, uma crise, a qual tornará mais necessária a emergência do mercado autorregulado. E isso conduzirá a uma mudança na reversão na distribuição da renda, assim como um aumento da participação nos lucros”. Ele argumenta que a instabilidade da distribuição de renda se deve à dinâmica da luta de classes: quanto mais poder uma classe tem, maior seu potencial para se apropriar de uma parcela maior da renda da sociedade. Mas o poder de cada classe, por sua vez, repousa sobre os “seus efeitos potenciais sobre o desempenho macroeconômico da economia”. Quando o lucro excessivo começa a prejudicar a economia em geral, aumenta a pressão política por um arranjo mais favorável aos salários. E vice-versa.

Este quadro permite uma interpretação direta da presente conjuntura: “A crise recente e a estagnação atual são o resultado dos arranjos institucionais neoliberais, os quais surgiram como resposta à compressão dos lucros e à crise dos anos 1970… O crescimento das forças políticas igualitárias que estavam até muito recentemente à margem do sistema político, assim como a popularidade do livro de Piketty, são todas manifestações da reação da sociedade contra os arranjos institucionais responsáveis ​​pela crise e pela estagnação”. O foco unidimensional na distribuição de renda é, obviamente, uma limitação do modelo de Nikiforos; entretanto, ele tem a vantagem de oferecer um mecanismo explicativo em ambas as extremidades da flutuação.

Economistas influenciados pela chamada Escola de Regulação também tentaram explicar a recorrência de “crises estruturais”, as quais requerem uma grande reestruturação institucional no bojo da qual é produzido um novo equilíbrio de forças de classe. Em The Rise and Fall of Neoliberal Capitalism (A ascensão e queda do capitalismo neoliberal), publicado em 2015, David Kotz antecipou que haveria um movimento em direção a uma forma mais regulada de capitalismo.

Ele definiu essa mudança como emergência de um Estado mais forte que é capaz de influenciar e restringir o mercado. Ele observa que “a crise atual não é a primeira, mas a terceira crise de uma forma liberal de capitalismo nos Estados Unidos. Cada uma das duas crises anteriores foi seguida por uma forma regulamentada de capitalismo. As grandes empresas desempenharam um papel importante na mudança para o capitalismo regulado tanto em 1900 quanto no final dos anos 1940. Os grandes movimentos sociais criaram um contexto que levou os líderes das grandes empresas a apoiar ou consentir em um papel estatal expandido”.

Um dos pontos fortes da Escola de Regulação, herdada de sua ascendência althusseriana, é que sua teorização sobre a sucessão de regimes de acumulação não se limita à dicotomia entre capitalismo regulado ou liberal. Cada modo de regulação é organizado sob a restrição de uma forma institucional específica que pesa sobre os outros componentes do sistema. Isso permite um compromisso sério com a evolução qualitativa do capitalismo em seus estágios sucessivos.

Sob essa estrutura, a competição, o nexo capital-trabalho e as finanças desempenharam papéis proeminentes em diferentes períodos históricos. Olhando para o futuro, Robert Boyer vê a conjuntura atual como aberta para a produção de três formas potenciais de capitalismo regulado: um bio-capitalismo centrado em atividades antropogenéticas; um capitalismo de plataforma associado ao surgimento de grandes empresas digitais; e um capitalismo de estado neo-dirigistaligado ao modelo chinês ou, alternativamente, ao que ele chama de “populismo democrático”.

A fraqueza da abordagem regulacionista, no entanto, é que os mecanismos precisos de mudança tendem a ser negligenciados. Enquanto as disfunções crescentes no regime de acumulação levam a uma crise estrutural, o processo pelo qual um novo regime emerge é imprevisível – eis que dependem de descobertas incidentais (trouvailles) racionalizadas ex-post por legisladores, teóricos e atores sociais. O fascínio pela capacidade do capitalismo de se ressuscitar após as crises vem à custa de uma imaginação política empobrecida.

A extensão mais promissora da perspectiva da Escola de Regulação – a qual se aproxima da formulação de uma teoria coerente da mudança institucional – pode ser encontrada em The Last Neoliberal (O Último Neoliberal) (2021), de Bruno Amable e Stefano Palombarini. Esses autores fazem aí uma análise incisiva da França de Macron. Para Amable e Palombarini, as dinâmicas macroeconômicas, instituições e mediações políticas existem como um todo.

A arquitetura institucional da sociedade origina-se da sedimentação histórica de compromissos macrossociais que são o resultado de processos políticos irredutivelmente conflitantes. Esses processos políticos são determinados pela dinâmica econômica por meio das expectativas em evolução de vários grupos sociais. Seguindo Gramsci, a abordagem neorrealista coloca uma ênfase clara na autonomia da política. As expectativas sociais não se fixam em uma expressão grosseira de interesses, mas procedem de representações ideológicas móveis que respondem a uma elaboração política específica.

Macron nada contra a maré internacional, em direção a uma intensificação da reestruturação neoliberal. A teoria de Amable e Palombarini fornece uma forte interpretação desse fenômeno. A progressiva desarticulação do modelo nacional intensamente coordenado, ocorrida ao longo de quatro décadas de reformas neoliberais incrementais, frustrou as expectativas das classes populares. Isso levou a uma desagregação dos blocos tradicionais de direita e esquerda, abrindo caminho para um movimento burguês neoliberal puro sangue, personificado por Macron. No entanto, diante da falta de apoio popular, esse movimento tem dificuldade de buscar a neoliberalização radical. Isso foi vigorosamente demonstrado pelos gilet jaunes (coletes amarelos), antes mesmo que a crise de Covid-19 tornasse o manual neoliberal obsoleto.

***

Há muito que aprender com as várias interações – sejam elas polanyiana, pós-keynesiana, regulação, gramsciana – da abordagem dos estágios históricos: a não linearidade da mudança, a contingência da expansão tecnológico-econômica em configurações institucionais adequadas, as reações sociopolíticas às forças destrutivas dos mercados e às mudanças qualitativas no sistema ocasionadas por suas mutações. Essas percepções ajudam a decifrar a conjuntura atual e a prever suas possíveis direções. No entanto, devemos também ter em mente os efeitos cumulativos de sucessivos estágios de desenvolvimento. As contradições não existem apenas dentro de cada fase; eles também aumentam de estágio em estágio, à medida que a dinâmica de um regime de acumulação entra em conflito com seus predecessores. O capitalismo, como sistema, está envelhecendo.

Com a globalização da manufatura, o excesso de capacidade continua a crescer e as fixações espaciais continuam a se exaurir, fazendo com que a contradição interna do processo de acumulação se manifeste em um nível verdadeiramente global. É bem duvidoso que a industrialização dos serviços e sua fragmentação internacional possam criar oportunidades grandes o suficiente para absorver essa massa de capital superacumulado.

Nesse ínterim, o que James O’Connor descreveu como a “segunda contradição” do capitalismo está ganhando força. Para O’Connor, um obstáculo chave para o desenvolvimento capitalista surge não dentro do processo de acumulação per se, mas “entre as relações de produção capitalistas (e as forças produtivas) e as condições de produção capitalista”, devido à “apropriação e consumação economicamente autodestrutivas da força de trabalho, do espaço urbano e de sua infraestrutura, assim como da natureza externa ou ambiental feitas pelo capitalismo”. A crise ecológica, o aumento do preço da saúde e da educação, a deterioração da infraestrutura física – tudo isso indica custos crescentes do lado da oferta que podem dificultar ainda mais o processo de acumulação. Lidar com essas questões não está de forma alguma fora do alcance do engenho humano. Mas seria tolice não perguntar se a restrição sistêmica adicional relativa à obtenção de lucro suficiente não colocou a barra muito alta para um novo salto do capitalismo.

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