4 de dezembro de 2007

Jesus: Messias ou Bolchevique?

O Cristo dos Evangelhos é de fato um revolucionário – mas de um tipo mais milenarista do que propriamente político.

Terry Eagleton


Era Jesus um revolucionário?

Ele certamente mantinha companhias políticas sombrias. Uma delas, do seu círculo mais íntimo, era conhecido como Simão, o Zelote – sendo zelotes um movimento anti-imperial clandestino, empenhado em dirigir os romanos para fora do território palestino. Os zelotes desejavam um Estado judaico teocrático, mais purificado e tradicionalista; e difundiram uma ideologia não muito diferente da Al-Qaeda de hoje. Para uma audiência regular, os ensinamentos de Jesus podem ter soado como familiar propaganda Zelote. Podemos tomar como óbvio que entre as massas que rodeavam Jesus havia Zelotes e outros dissidentes, comprovando quão “politicamente correto” ele soava.

É, no entanto, pouco provável que Jesus tenha tomado partido da resistência anti-imperial. Por um lado, parece ter apoiado o pagamento de impostos (“A César o que é de César”), enquanto os zelotes não o faziam. Por outro, cruzou sabres com os Fariseus, que eram, de alguma forma e em alguma medida, algo como o que se pode dizer a ala teológica dos zelotes.

Outra razão pela qual Jesus parece não ter sido um zelote é que seus discípulos não foram presos após sua execução. Fossem eles rebeldes presumidos e as forças de ocupação imperial, muito provavelmente, teriam se movido para varrê-los do mapa. Pode ser que tenha havido uma pitada de militantes políticos entre seus discípulos, mas as autoridades romanas parecem ter enxergado claramente que o movimento de Jesus não intencionava colocar o Estado abaixo. Não foi por isso que o seu dirigente máximo foi, por fim, crucificado.

Teriam certamente soado o alerta caso Jesus tivesse se proclamado Messias; já que o Messias era visto pela maioria como um militante político disposto a colocar o Estado de Israel de pé novamente. Mas Jesus não se proclamou Messias, exceto em duas ocasiões, ambas as quais historicamente ambíguas. De qualquer forma, a ideia de que um errante carismático e sua comitiva desarmada – grande, porém não massiva – pudesse destruir o Templo, ou derrubar o Estado é absurda, assim como as autoridades judaicas e romanas devem ter reconhecido à época. Havia forças suficientes para parar-lhes os pés: milhares de guardiães templários, para já não dizer nada sobre as guarnições romanas.

Pode ser que a ação violenta de Jesus – na tentativa de varrer do Templo os usurários cambistas, navegando nas adjacências das perigosas águas da Blasfêmia – tenha sido o suficiente para que seus antagonistas o pregassem na Cruz. Pôr para correr cambistas não foi, contudo, um gesto de intenção “anti-capitalista”. Jesus teria posto de pernas para o ar as mesas de cambistas e pequenos vendilhões, e, daí, declarado o lugar como um covil de bandidos; mas o excesso retórico de tais palavras é hoje, sabidamente, um acréscimo póstumo. Ele provavelmente significava não mais do que a destruição do Templo de um modo tão-só meramente simbólico, mais do que expressão de um intempestivo desgosto, para com esse ato de ganância mercantilista.

Ele – mais provavelmente – teria sido condenado por insubordinação e entregue à lei como um perigo à Ordem pública. Pôncio Pilatos provavelmente enviou Jesus à morte como um candidato a Messias mesmo que ele, ou o próprio Jesus, não acreditasse que assim o fosse. O Messias (ou “Christos”, em grego) era considerado pelos judeus como uma figura-guerreira, da alta realeza, ao passo que a satírica entrada de Jesus em Jerusalém, montado este no traseiro de um jumento, pode ser lida como um gesto anti-messiânico por excelência, um satírico tapa na cara ao gosto de todas essas distintas noções do que é soberania militar.

Era Jesus, então, um líder “espiritual” mais do que um dirigente político propriamente dito?

Para Jesus, não poderia haver negociação alguma entre o domínio da justiça – o chamado “Reino de Deus” – e os poderes deste mundo terreno. Neste quesito, ele confrontou seus próximos com absoluta decisão. Não importava se estes fossem a favor ou contra ele, não lhes foi permitido qualquer meio-termo liberal. O que estava em jogo não era uma questão de reformas – de “servir vinho novo em velhas garrafas” –, mas todo um inimaginável novo regime o qual, na visão de Jesus, já estava vindo à tona impetuosamente neste mundo; e do qual ele se considerava tanto prenúncio como encarnação. Neste sentido muito específico, foi um vanguardista revolucionário, e não-reformador social.

Tal qual o socialismo para Marx, o domínio da justiça é tanto imanente no presente quanto um objetivo a ser conquistado no futuro. Mas não pode haver transição suave – do velho para o novo –, à maneira de algum socialismo evolucionário. Dada a urgência, e a severidade, de nossa condição – a que os Evangelhos se referem como o “pecado do mundo” – alcançar uma Ordem social justa envolve passar pela morte, pela condição do nada mais absoluto, pela turbulência irascível e pelo auto-despojamento radical.

Uma razão essencial para que Jesus e seus seguidores esperassem a chegada iminente do Reino dos Céus é que eles não tinham sequer a noção de que a atividade humana poderia jogar qualquer papel de auxílio em sua instauração na Terra. Para os primeiros cristãos, tal reino era, sobretudo, um dom de Deus, e não um ato histórico. Não podia haver espaço para uma tal política teológica na visão dos Evangelhos, razão pela qual Jesus não foi um revolucionário no sentido em que Lenin o fora. Ele não poderia sequer ter sonhado em ser um leninista porque não estava disponível, à época, qualquer concepção de mundo afim à auto-determinação histórica. O único tipo de conceito de história que poderia importar era a Heilsgeschichte ou, trocando em miúdos, algo como História da Salvação ou História Sagrada

O cristianismo, portanto, pode ser considerado uma visão de mundo mais pessimista que o humanismo secular, ao mesmo tempo em que é infinitamente mais otimista. Por um lado, é de um severo realismo em relação à teimosia da persistente condição humana – a perversidade do desejo humano, o prevalecimento da idolatria e/ou da auto-ilusão, o escândalo mesmo do sofrimento, a enfadonha continuidade da opressão e da injustiça, a carência de qualquer virtude pública, a insolência dos poderes, a fragilidade da bondade, e o insaciável apetite, por poder, e por interesses próprios.

Por um outro lado, sustenta que não só a redenção desta desafiante – e terrível – condição é possível mas que, surpreendentemente e, em certo sentido, já aconteceu. Nem mesmo o mais torpe mecanicista dos marxistas poderia proclamar – hoje em dia – que o socialismo é inevitável, e, muito menos, que ele já surgiu, sem que nos tivéssemos dado conta. Para a fé cristã, no entanto, o advento de tal reino é assegurado, uma vez que a vinda de Jesus do mundo dos mortos já o teria fundado. Uma nova polis – uma cidade futura – é possível em base a um corpus transfigurado. E isso é, tradicionalmente, concebido enquanto “ressurreição”.

Então, Jesus foi um revolucionário ou não? Não nos termos que um Lenin ou Trotsky o teriam reconhecido. Mas isso por que era menos revolucionário do que eles foram, ou ainda mais? Certamente menos, por que não defendia a superação da estrutura de poder que se lhe confrontava. Mas assim o fazia, entre outras razões, porque esperava que logo este seria varrido para longe por uma forma de existência mais perfeita em justiça, paz, camaradagem e exuberância de espírito do que até mesmo os camaradas Lenin e Trotsky poderiam ter sequer imaginado. Talvez a resposta desconcertante não seja que Jesus era menos ou mais revolucionário, mas que era tanto mais quanto menos.

Este é um trecho editado da introdução de Terry Eagleton para Os Evangelhos, publicado pela Verso a £ 7,99.

Sobre o autor

Terry Eagleton is a literary critic, writer and chair in English literature in Lancaster University's department of English and creative writing. His latest book is The Event of Literature

21 de novembro de 2007

Marxismo para o século XXI: Instrumento revolucionário ou mais escolasticismo?

Michael A. Lebowitz


Tradução / “Livrem-me desses ditos marxistas que pensam que têm a chave da história no bolso traseiro das calças. Livrem-me de discípulos como aqueles que seguiram Hegel e Ricardo.” Poucas pessoas compreenderam melhor que Marx como uma teoria se desintegra quando o ponto de partida do trabalho teórico “não é mais a realidade mas sim a nova forma teórica na qual o mestre a sublimou”.

Felizmente para ele, Marx foi poupado ao espetáculo dos discípulos escandalizados pela “relação frequentemente paradoxal desta teoria com a realidade” e, em consequência, levados a demonstrar que a sua teoria é ainda correta por intermédio de “empiricismo crasso”, “frases usadas em modo escolástico” e “argumentação astuciosa”. Feliz Marx que (a acreditar em Engels) foi acima de tudo um revolucionário cuja “real missão na vida foi contribuir, de uma forma ou de outra, para a derrubada da sociedade capitalista” – ele não assistiu à afirmação, por parte de escolásticos do século XX, de que aquilo de que a classe operária realmente necessitava para a sua emancipação é da prova final de que ele teve razão desde o início sobre a transformação dos valores em preços e sobre a tendência à queda da taxa de lucro!

Como podemos hoje seguir a missão de Marx e contribuir para a derrubada do capitalismo? Como podemos ajudar a classe operária a tornar-se “consciente da sua própria posição e das suas necessidades, consciente das condições para a sua emancipação”?

Em uma conferência de há uns anos atrás, subsequentemente publicada na ‘Monthly Review’ (Junho de 2004) com o título “O que mantém o capitalismo em movimento?” (“What keeps capitalism going?”), realcei dois pontos principais. Em primeiro lugar, se conseguimos perceber alguma coisa de ‘O Capital’, deve ser pelo menos que o capital tende a produzir a classe operária de que necessita – trabalhadores que encaram as exigências dele como “leis naturais evidentes por si próprias”. Porquê? O ponto é realmente simples: (a) o salário aparece necessariamente como um pagamento por uma quantidade de trabalho, extinguindo assim qualquer traço de exploração; (b) todas as noções de justiça e de equidade estão baseadas nesta aparência da troca de trabalho por dinheiro; (c) o capital, produzido pelos trabalhadores, aparece necessariamente como uma contribuição independente dos capitalistas e portanto merecedora de uma remuneração separada; e (d) os trabalhadores, como indivíduos dentro das relações capitalistas, estão realmente dependentes do capital para fazer face às suas próprias necessidades e, na verdade, estão mesmo dependentes de capitais particulares.

Consequentemente, na ausência de um entendimento sobre a natureza do capital, mesmo quando os trabalhadores lutam, estas lutas são por “equidade”, por justiça dentro das relações capitalistas, mas não de justiça para além do capitalismo – isto é, no melhor dos casos, elas refletem uma consciência sindicalista ou social-democrata, que não desafia a lógica do capital. Atendendo, pois, que a resposta espontânea das pessoas em luta não vai (e não pode ir) para além do capital, a responsabilidade dos marxistas mantém-se (como sempre) a de comunicar a essência do capital aos trabalhadores e assim a necessidade de ir para além dele. Mas isto não chega.

O meu segundo ponto era que “para aqueles que estão sob o poder do capital, contudo, algo mais é necessário do que simplesmente compreender a natureza do capital e as suas raízes na exploração. As pessoas precisam de acreditar que um mundo melhor é possível. Elas precisam de sentir que existe uma alternativa pela qual vale a pena lutar. A este respeito, descrever a natureza de uma alternativa socialista – e analisar as inadequações e os fracassos dos esforços do século XX – é uma parte essencial do processo pelo qual as pessoas podem ser conduzidas a pôr um fim ao capitalismo”.

Pode alguém seriamente negar este segundo ponto? Dados os fracassos do “socialismo real” e o sucesso do capital até agora no debate de ideias – o sucesso do capital em convencer as pessoas de que “não há alternativa”, contribuir para o derrube do capitalismo requer de nós que demonstremos aos trabalhadores que existe uma alternativa socialista para a barbárie do capitalismo.

Socialismo para o século XXI

Há um espectro que assola o capitalismo, presentemente. Não é o do socialismo do século XX – seja ele real ou teórico. Antes, é um desafio ao capital que começa com as necessidades dos seres humanos. No núcleo central do conceito de socialismo para o século XXI há uma focagem no desenvolvimento humano. Os marxistas precisam de compreender este espectro e a sua centralidade no pensamento de Marx.

O termo socialismo para o século XXI ganhou curso geral com a declaração de Hugo Chávez no Fórum Social Mundial de 2005 sobre a necessidade de reinventar o socialismo: “Temos que reclamar o socialismo como tese, projecto e caminho, mas um novo tipo de socialismo, humanista, que põe os homens e não as máquinas ou o Estado acima de tudo.”

Como eu próprio indico em ‘Build it Now: Socialism for the 21st. Century’ (Monthly Review Press, 2006), esta visão – embora não identificada ainda com o socialismo – estava já presente na Constituição bolivariana (1999) que fala sobre “assegurar um desenvolvimento humano integral” e sobre “desenvolver o potencial criativo de todo o ser humano e o exercício pleno da sua personalidade numa sociedade democrática”. E foi articulada quando Chávez falou em 2003 sobre a natureza da “economia social” que “baseia a sua lógica no ser humano, no trabalho, quer dizer, no trabalhador e na sua família, quer dizer, no ser humano” – uma economia que “gera sobretudo valores de uso” e cujo propósito é “a construção do novo homem, da nova mulher, da nova sociedade”.

Esta é uma visão que rejeita a lógica perversa do capital e a ideia de que o critério para o que é bom é ser lucrativo. Rejeita a ligação entre as pessoas através da troca de mercadorias, em que o nosso critério para decidir satisfazer as necessidades dos outros é se isso nos beneficia ou não como indivíduos ou grupos de indivíduos. István Mészáros expressou tudo isto claramente no seu ‘Beyond Capital’ quando invocou Marx para falar sobre uma sociedade na qual, em vez da troca de mercadorias, há uma troca de actividades, baseadas todas elas em necessidades comunais e propósitos comunais. E Chávez abraçou expressamente a perspectiva de Mészáros, em Julho de 2005, quando disse “temos que criar um sistema comunal de produção e consumo, um novo sistema”. Temos que construir, insistiu ele, “este sistema comunal de produção e de consumo, de ajudar a criá-lo, a partir das bases populares, com a participação das comunidades, através das organizações das comunidade, de cooperativas, auto-gestão e diferentes meios de criar este sistema”.

O conceito de socialismo para o século XXI que tem estado a evoluir na Venezuela combina três características: (a) detenção social dos meios de produção, o que é a base para a (b) produção social organizada pelos trabalhadores de modo a (c) satisfazer necessidades e propósitos comunais. (Desenvolvo este ponto em ‘New wings for socialism’, em Monthly Review, Abril de 2007). No cerne deste conceito e penetrando todos os seus elementos está, no entanto, a ligação essencial entre desenvolvimento humano e praxis.

A focagem na prática esteve presente desde o início na Constituição bolivariana, que insiste em que a participação e o protagonismo do povo são “a via necessária para obter o seu envolvimento, necessário para assegurar o seu completo desenvolvimento, tanto individual como colectivo”. Insiste ainda na identificação do planeamento democrático e do orçamento participativo a todos os níveis da sociedade, bem como na “auto-gestão, co-gestão e cooperativas de todas as formas” como exemplos de “formas de associação guiadas pelos valores da cooperação mútua e da solidariedade”. Com o presente desenvolvimento dos conselhos comunais (representando entre 200 e 400 famílias, em áreas urbanas) como a célula de um novo tipo de Estado e com propostas para conselhos de trabalhadores e gestão pelos trabalhadores, há definitivamente um aprofundamento do compromisso feito na Venezuela por aquilo a que Chávez chamou de “um novo tipo de socialismo, humanista”.

Contudo, como afirmei já em ‘Build it Now’, dados os muitos obstáculos (tanto internos como externos) a este processo, não está claro se a tentativa da Venezuela será bem sucedida. Seja como for, o socialismo está de volta à agenda, um socialismo para o século XXI que tem no seu cerne o conceito de “prática revolucionária”, de Marx – “a coincidência da mudança das circunstâncias com a actividade humana de auto-mudança”.

Tudo isto devia ser reconhecido como uma ruptura com o pensamento sobre o socialismo no século XX. Nesta visão, o socialismo era considerado como o primeiro estádio pós-capitalista – uma sociedade com as suas próprias características e leis específicas, que era distinta do estádio mais elevado, o comunismo. Tendo passado para além da exploração e da irracionalidade do capitalismo, o socialismo asseguraria o rápido desenvolvimento das forças produtivas e assim prepararia o terreno para a sociedade comunista da abundância.

Embora esta concepção (e a acentuação posta nas forças produtivas) correspondesse às preocupações imediatas de sociedades tentando romper com o capitalismo e contudo rodeadas por inimigos capitalistas mais poderosos, o estádio separado do socialismo foi apresentado como a visão de Marx de um degrau necessário pelo qual todos os povos teriam de passar. Os comentários do próprio Marx sobre os inerentes “defeitos” da nova sociedade foram ademais tomadas como justificação para se construir sobre a base do auto-interesse – “a cada um segundo a sua contribuição” teria de prevalecer até que o desenvolvimento das forças produtivas tenha criado a sociedade da abundância.

Mas essa não era a perspectiva de Marx. Em vez de dois estádios separados, Marx compreendeu que a nova sociedade se desenvolve necessariamente através de um processo – um processo pelo qual transcende os defeitos económicos, sociais e intelectuais que herdou do capitalismo. E o defeito específico que ele identificou não foi que as forças produtivas estivessem demasiado atrasadas, mas sim a natureza dos seres humanos produzida na velha sociedade, com as suas velhas ideias – pessoas que continuam a ser orientadas para si próprias e, assim, se consideram com direito a receber exactamente aquilo com que contribuíram para a sociedade. Construir sobre os defeitos – em vez de trabalhar conscientemente para os eliminar – é uma receita para restaurar o capitalismo (como a experiência demonstrou).

Resumidamente, assim como o capitalismo se desenvolveu através de um processo de “subordinação de todos os elementos da sociedade a si próprio” e através da criação para si próprio dos órgãos que lhe faltavam, assim também deve o socialismo desenvolver-se. No lugar da lógica do capital e do auto-interesse, a nova sociedade socialista desenvolve-se inserindo a sua própria lógica centrada nos seres humanos; em lugar de tomar o interesse egoísta como premissa, os produtores associados trabalham para desenvolver novas normas sociais baseadas na cooperação e na solidariedade entre membros da sociedade.

Assim, construir a nova sociedade põe a tónica não na crescente produção de coisas mas, antes, na criação das condições para o desenvolvimento de forças humanas – isto é, condições que substituam os seres humanos fragmentados e amputados do capitalismo pelo “indivíduo totalmente desenvolvido” e permitam às pessoas que se desenvolvam através da sua própria actividade. Com o “desenvolvimento integral do indivíduo”, todas as fontes manantes da riqueza cooperativa fluirão mais abundantemente.

O conceito de socialismo para o século XXI resgata a ideia original de Marx de uma “associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”, de uma sociedade centrada no “desenvolvimento de todos os poderes humanos como o seu objectivo próprio”. Ele adere à opinião de Che Guevara - expressa no seu clássico ‘O Homem e o Socialismo em Cuba’ - que de modo a construir o socialismo, é essencial, para além de construir novas fundações materiais, construir novos seres humanos. Assim, ele rejeita a prática de ignorar a transformação das relações sociais e dos seres humanos, para se concentrar no desenvolvimento das forças produtivas – uma característica infeliz dos esforços, dirigidos a partir do topo, para construir o socialismo no século XX.

Marxismo para o século XXI

Há uma relação entre o marxismo do século XX e os erros nas tentativas de construir o socialismo no século XX? Eu creio que há muitas. Para começar, os marxistas deveriam relegar o ‘Prefácio’ de 1859 (com as suas fórmulas de determinismo economicista) para um livro de provérbios, estudando em vez disso as observações dos ‘Grundrisse’ sobre o “tornar-se” e o “ser” de um sistema orgânico, observações que permitirão uma melhor compreensão de processo. Para além disso, compreender o enfoque de ‘O Capital’ em como as relações de produção precedem e moldam o carácter das novas forças produtivas ajudaria a reduzir a adoração da tecnologia e do desenvolvimento das forças produtivas.

Contudo, penso que há um problema do socialismo do século XX que deriva do próprio ‘O Capital’. Porque é que os marxistas não começam directamente a partir da questão do desenvolvimento humano e do conceito de “ser humano rico”? Porque é que tantos marxistas não compreendem que a premissa de Marx, ao escrever ‘O Capital’, era o seu entendimento de que a verdadeira riqueza é a riqueza humana, “a individualidade rica, tão multifacetada na sua produção como nos seus consumos”, e que escreveu da perspectiva de uma sociedade em que os resultados do trabalho passado “estão lá para satisfazer a própria necessidade do trabalhador de se desenvolver”? Se Marx não tivesse a alternativa socialista claramente em vista, como poderia ele descrever a situação em que os meios de produção empregam os trabalhadores como “esta inversão, esta distorção que é tão peculiar e característica da produção capitalista”? Uma inversão de quê?

O problema tem origem numa má compreensão de ‘O Capital’ de Marx – na visão de que ‘O Capital’ é o estudo do capitalismo por Marx, em vez de uma exploração a partir do lado do capital, conduzida através do esboço de uma crítica da economia política do capital. Quando se falha a compreensão dos limites de ‘O Capital’ (limites apontados pelo próprio Marx), não é surpreendente que logo se sigam o determinismo económico, a visão das forças produtivas introduzidas pelo capital como neutras, o tratamento do proletariado como uma abstracção, a incapacidade para compreender como “o poder contemporâneo do capital se baseia” na criação de novas necessidades para os trabalhadores, a falha no reconhecimento de que a tendência “geral e necessária” do capital é para dividir e separar os trabalhadores, a efectiva desaparição de cena da luta de classes conduzida do lado do proletariado.

Em ‘Beyond Capital: Marx’s Political Economy of the Working Class’ (Palgrave, 2003) e na palestra do Pémio Deutscher, ‘The politics of assumption, the assumption of politics’ (‘Historical Materialism’, nº 14.2, 2006), abordo as implicações da falha de Marx em completar o seu projecto epistemológico – em particular, o marxismo unilateral que decorre da falha no reconhecimento das implicações da falta do livro sobre o Trabalho Assalariado. Porque é que ele nunca escreveu esse livro? Marx estava menos interessado, sugeri eu, no acabamento do seu projecto epistemológico do que no seu projecto revolucionário.

É claro, como seguidores de Marx, podemos prosseguir ambos esses projectos. Contudo, os escolásticos e os discípulos para quem o ponto de partida “não é mais a realidade, mas sim a nova forma teórica na qual o mestre a sublimou” não podem prosseguir nenhum deles. Precisamos de retornar à premissa de Marx – a visão de uma sociedade do “ser humano rico”, em que há um “absoluto desdobramento das suas potencialidades criativas”, “a completa realização do conteúdo humano”, o “desenvolvimento de todos os poderes humanos enquanto tais como fim em si”. Em resumo, precisamos de aderir à visão do “socialismo para o século XXI”.

E, como marxistas que vivemos neste mundo real, precisamos de nos perguntar como precisamente é que poderemos ajudar a classe trabalhadora do século XXI a tornar-se “consciente da sua própria posição e das suas necessidades, consciente das condições para a sua emancipação”. Quais são as suas necessidades? Quais são as barreiras que o capitalismo do século XXI criou à realização dessas necessidades? Quais são, nas suas actuais condições de vida, os caminhos à disposição dos trabalhadores para lutar agora contra o capital? Na verdade, que fazer?

Precisamos, em síntese, de compreender as condições que o capitalismo global do século XXI criou. Obviamente, elas não são aquelas que nós teríamos escolhido. Mas são as únicas disponíveis nas quais podemos fazer história.

18 de outubro de 2007

É o petróleo

As forças americanas no Iraque estão instaladas em cima de um quarto das reservas mundiais.

Jim Holt

London Review of Books


Tradução / A guerra do Iraque "não tem como ser ganha", é um "atoleiro", um "fiasco": eis a visão consagrada. Mas há bons motivos para achar que, da perspectiva de George W. Bush e Dick Cheney, ela não é nada disso. Na verdade, os Estados Unidos podem estar encalacrados exatamente onde Bush & Cia. queriam, e por isso não existe uma estratégia de retirada.

O Iraque tem reservas conhecidas de 115 bilhões de barris de petróleo, o que é mais do que cinco vezes o total das reservas americanas. Devido ao seu longo isolamento, ele é o menos explorado dos países ricos em petróleo. Meros 2 mil poços foram perfurados em todo o seu território, enquanto, só no Texas, há 1 milhão de poços abertos. O Conselho de Relações Exteriores dos Estados Unidos calcula que o Iraque possa ter mais uns 220 bilhões de barris de petróleo a descobrir. Outra avaliação fala em 300 bilhões. Se essas estimativas estiverem próximas da realidade, as forças americanas estão instaladas em cima de um quarto das reservas mundiais de petróleo. O valor do petróleo iraquiano, em grande parte óleo cru leve com baixos custos de produção, seria da ordem de 30 trilhões de dólares, em valores de hoje. Para fins comparativos, o custo total projetado da invasão/ocupação americana está em torno de 1 trilhão de dólares.

Quem vai ficar com o petróleo do Iraque? Uma das "metas" fixadas pelo governo Bush para o governo do Iraque é a aprovação de uma lei regulando a distribuição das receitas do petróleo. O projeto de lei que os Estados Unidos prepararam para o Congresso iraquiano cede praticamente todo o petróleo do país a empresas ocidentais. A Companhia Nacional de Petróleo do Iraque conservaria o controle de dezessete dos oitenta campos de petróleo, deixando o resto - inclusive todo o petróleo ainda por descobrir - sob o controle de empresas estrangeiras, por trinta anos. "As empresas estrangeiras não serão obrigadas a investir os seus lucros na economia iraquiana", escreveu a analista Antonia Juhasz, em março, no The New York Times, depois que o projeto de lei vazou e veio a público. "Elas poderiam até aproveitar a atual 'instabilidade' da economia iraquiana para assinar os contratos agora, num momento em que o governo do Iraque está no seu ponto mais fraco, e depois esperar até dois anos antes de entrar no país." Quando as negociações em torno da lei do petróleo chegaram a um impasse, em setembro, o governo autônomo da província iraquiana do Curdistão simplesmente assinou um acordo à parte com a Hunt Oil Company, sediada em Dallas e comandada por um aliado político do presidente Bush.

Como os Estados Unidos manterão a hegemonia sobre o petróleo iraquiano? Estabelecendo bases militares permanentes no país. Cinco "superbases" auto-suficientes estão em estágios diversos de construção. Todas ficam bem distantes das áreas urbanas, onde a maioria das baixas tem ocorrido. Essas bases têm sido pouco mencionadas na imprensa americana, composta de um número cada vez menor de correspondentes no Iraque, os quais não têm como se deslocar livremente, devido às altas taxas de risco. (Qualquer repórter precisa de muita coragem para deixar a Zona Verde sem escolta militar.) Em fevereiro do ano passado, o repórter Thomas Ricks, do The Washington Post, descreveu uma dessas instalações, a Base Aérea de Balad, a 65 quilômetros ao norte de Bagdá. A Balad é uma fatia (bem fortificada) de subúrbio americano, erguida no meio do deserto, que conta com lanchonetes fast-food, campo de golfe em miniatura, campo de futebol americano, cinema e vários bairros distintos - entre eles a "KBRlândia", nome inspirado na subsidiária da empresa Halliburton responsável pela maior parte das obras de construção da base. Embora poucos dos 20 mil soldados postados na base jamais tenham tido contato com um iraquiano, a sua pista de pouso é uma das mais movimentadas do mundo. "Só ficamos atrás do aeroporto de Heathrow, em Londres", disse a Ricks um comandante da Força Aérea.

Inicialmente, o Departamento de Defesa mostrou-se tímido em relação às bases. "Que eu me lembre, nunca ouvi menção à idéia de uma base permanente no Iraque", disse Donald Rumsfeld, em 2003. Nos últimos meses, porém, o governo Bush começou a falar abertamente em manter tropas no Iraque pelos próximos anos, ou mesmo décadas. Vários visitantes da Casa Branca contaram ao The New York Times que o próprio presidente passou a referir-se ao "modelo coreano". Depois que a Câmara dos Deputados decidiu negar recursos para a construção de "bases permanentes" no Iraque, o termo preferido passou a ser "bases duradouras", como se três ou quatro décadas não fossem na prática uma eternidade.

Os Estados Unidos serão capazes de manter uma presença militar no Iraque por tempo indefinido? Plausivelmente, alegarão que existe motivo para lá permanecerem enquanto o conflito civil continuar fervilhando, ou até ocorrer o extermínio de todos os grupelhos que, por conveniência, se auto-intitulam "Al-Qaeda". A guerra civil diminuirá de intensidade à proporção que os xiitas, os sunitas e os curdos se refugiarem em enclaves separados, reduzindo a superfície da fricção sectária, e à medida que os chefes guerreiros consolidarem sua autoridade local. O resultado será uma partilha do país de facto. Que jamais irá tornar-se uma divisão de jure. (Um Curdistão independente ao norte pode incomodar a Turquia, uma região xiita independente no leste pode converter-se num satélite do Irã, e uma região sunita independente no oeste pode transformar-se em porto seguro para a Al-Qaeda.)

Esse Iraque balcanizado será presidido por um governo federal fraco, em Bagdá, sustentado e supervisionado pela embaixada americana na cidade, um prédio recém-construído nas proporções do Pentágono de Washington - uma zona verde dentro da Zona Verde. Quanto ao número de soldados americanos no Iraque, o secretário da Defesa, Robert Gates, disse ao Congresso que, "na sua cabeça", imaginava uma força de longo prazo constituída de cinco brigadas - um quarto do número atual -, o que, somado ao pessoal de apoio, significaria um mínimo de 35 mil soldados, provavelmente acompanhados do mesmo número de mercenários a serviço da segurança terceirizada. (Pode ser que ele tenha errado por excesso de modéstia, já que cada uma das cinco superbases tem a capacidade de acomodar entre 10 e 20 mil soldados.)

Essas forças podem deixar as suas bases para reprimir escaramuças civis ocasionais, ao custo de um número de baixas cada vez menor. Como disse um membro destacado do governo Bush ao The New York Times, em junho, as bases de longo prazo "são lugares onde podemos pousar e decolar os aviões sem a necessidade de soldados americanos postados a cada esquina". Mas a principal função no dia-a-dia será proteger a infra-estrutura petrolífera.

É essa a "balbúrdia" que Bush e Cheney entregarão ao próximo governo americano. E se esse governo for democrata? Ele desmantelará as bases e retirará todas as forças americanas? Parece improvável, tendo em vista os muitos beneficiários da ocupação prolongada do Iraque e da exploração dos seus recursos petrolíferos. Os três principais candidatos do Partido Democrata - Hillary Clinton, Barack Obama e John Edwards - já garantiram a sua posição futura, recusando-se a prometer que, se eleitos, irão retirar as forças americanas do Iraque antes de 2013, o fim de um primeiro mandato.

Nesse caso, entre os vencedores estão: empresas de serviços petrolíferos como a Halliburton; as próprias grandes companhias de petróleo (os lucros serão inimagináveis e os democratas também podem ser comprados); os eleitores americanos, a quem se poderá garantir a estabilidade dos preços nos postos de gasolina (isso às vezes parece ser a única coisa que conta para eles); a Europa e o Japão, que se beneficiarão do controle ocidental sobre tamanha parte das reservas petrolíferas mundiais; e, estranhamente, Osama bin Laden, que nunca mais precisará se preocupar com a possibilidade de que os sítios sagrados de Meca e Medina venham a ser profanados por tropas americanas, pois a estabilidade da dinastia saudita deixará de ser uma das principais preocupações dos Estados Unidos. Entre os perdedores está a Rússia, que não poderá mais controlar a Europa por meio dos seus recursos energéticos. Outra grande perdedora é a Organização dos Países Exportadores de Petróleo, a OPEP, e especialmente a Arábia Saudita, cujo poder de manter no alto os preços do petróleo, através da imposição de cotas de produção, ficará seriamente comprometido.

Há ainda o caso do Irã, que é mais complicado. A curto prazo, o Irã vem se beneficiando muito com a guerra no Iraque. A coalizão xiita que governa o Iraque é hoje controlada por uma facção favorável a Teerã, e os Estados Unidos acabaram armando, a contragosto, os elementos mais pró-Irã dos militares iraquianos. Quanto ao programa nuclear do Irã, nem ataques aéreos e nem negociações parecem poder detê-lo no momento. Mas o regime iraniano é precário. Mulás impopulares mantêm o poder financiando os serviços de segurança internos e comprando as elites com o dinheiro do petróleo, que representa 70% da renda do governo. Se os preços do petróleo de repente caíssem, por exemplo, a 40 dólares o barril (de um preço atual acima de 80), o regime repressor de Teerã perderia a sua receita contínua. Os Estados Unidos poderiam fazer isso com facilidade, abrindo a torneira do petróleo iraquiano pelo tempo necessário (e, de quebra, talvez conseguissem a queda do venezuelano Hugo Chávez, cujo atrevimento se baseia em petróleo).

Leve-se em consideração, ainda, as relações entre os Estados Unidos e a China. Como conseqüência do déficit comercial, está nas mãos da China cerca de 1 trilhão de dólares da dívida americana em moeda nacional (aí inclusos 400 bilhões de dólares em títulos do Tesouro americano). Isso dá a Pequim um enorme poder de barganha: caso decidisse descarregar grandes parcelas da dívida americana, a China poderia deixar a economia dos Estados Unidos de joelhos. De acordo com cifras oficiais, a economia da China cresce a uma taxa próxima de 10% ao ano. Mesmo que o número real esteja mais próximo de 4 ou 5%, como acreditam alguns, o peso crescente da China representa uma ameaça para os interesses americanos. (Um fato: a China está adquirindo novos submarinos cinco vezes mais rápido que os Estados Unidos.) Em contrapartida, o acesso à energia é a principal limitação ao crescimento da China - que, com os Estados Unidos no controle da maior parte do petróleo do planeta, ficaria em grande parte à mercê de Washington. Assim, a ameaça chinesa seria neutralizada.

Muita gente ainda se diz perplexa com os motivos exatos que teriam levado Bush e Cheney à invasão e ocupação do Iraque. Thomas Powers, um dos mais astutos observadores do mundo da chamada "inteligência", admitiu certo espanto, no artigo "Por que Bush invadiu o Iraque?" [publicado na piauí número 14]. "O mais bizarro", escreveu ele, "é que parece não ter havido uma versão interna, sofisticada e profissional do pensamento que deu forma aos acontecimentos." Alan Greenspan, em suas memórias recém-publicadas, é bem mais claro sobre essa questão. "Fico entristecido", diz ele, "por ser politicamente inconveniente reconhecer o que todo mundo sabe: a guerra no Iraque se deve em grande parte ao petróleo."

Será que a estratégia de invadir o Iraque para assumir o controle de seus recursos petrolíferos foi decidida pela força-tarefa sobre energia, organizada por Dick Cheney, em 2001? Não se pode saber ao certo, uma vez que as deliberações dessa força-tarefa, composta em grande parte por diretores de companhias petrolíferas e de energia, foram mantidas em segredo pelo governo, sob a alegação de "privilégio do Executivo". Não se pode dizer com certeza que o petróleo tenha sido o motivo primordial. Mas a hipótese é bem forte quando se busca explicar o que de fato aconteceu no Iraque. A ocupação pode parecer um serviço horrivelmente malfeito, mas a atitude descuidada do governo Bush em relação à "construção de uma nação" praticamente garantiu que o Iraque venha a se transformar num protetorado americano pelas próximas décadas - uma condição necessária para a extração da sua riqueza petrolífera.

Se os Estados Unidos tivessem conseguido criar um governo forte e democrático, num Iraque efetivamente protegido por uma polícia e um exército próprios, e depois tivessem saído do país, o que impediria esse governo de assumir o controle do seu próprio petróleo, como todos os outros regimes do Oriente Médio? Partindo-se do princípio que a estratégia de Bush e Cheney gira em torno do petróleo, as táticas adotadas - a dissolução do exército, a desmontagem do Partido Baath, um incremento da guerra que acelerou a migração interna - não poderiam ter sido mais eficientes. Os custos - alguns bilhões de dólares por mês e mais algumas dúzias de baixas americanas (um número que deve diminuir e é comparável ao número de motociclistas americanos que morrem devido à revogação das leis sobre o uso do capacete) - são irrisórios, se comparados com 30 trilhões de dólares em reservas de petróleo, a garantia da supremacia geopolítica americana e a gasolina barata para os eleitores. Em termos de realpolitik, a invasão do Iraque não foi um fiasco. É um sucesso retumbante.

Ainda assim, há motivos para ceticismo, em relação ao quadro que descrevi: ele supõe que um plano secreto e altamente ambicioso tenha resultado exatamente da maneira imaginada pelos seus criadores, e isso quase nunca acontece.

Sobre o autor

Jim Holt’s Why Does the World Exist? will be published later this year.

27 de agosto de 2007

Previdência e opinião pública

As classes dominantes tentam "comprovar" a inviabilidade da Previdência e propõem reformas para fazer retroceder conquistas

Eduardo Fagnani e José Celso Cardoso Jr.


"O Brasil é um país em que a miséria de grande parte da população não encontra outra explicação que a resistência das classes dominantes a toda mudança capaz de pôr em risco seus privilégios." (Celso Furtado, 1979)

NO ATUAL debate sobre a Previdência, a percepção de Furtado permanece viva. As classes dominantes jamais aceitaram os avanços de 1988, mesmo quando se trata apenas de garantir direitos sociais básicos para a construção de uma sociedade democrática e justa.

Desde então, tentam "comprovar" sua inviabilidade financeira e propõem reformas para fazer retroceder conquistas -muitas das quais já efetivadas. É emblemático que, em 2006, entidades do setor financeiro tenham patrocinado o documento "Um novo modelo de Previdência Social para o Brasil", que propugna enterrar o que restou da seguridade social brasileira.

Em 2007, o FNPS reacendeu essas esperanças. O debate é focado na solução de problemas complexos -crises fiscal e financeira do Estado- por meio do ajuste fiscal; e, este, pela supressão de direitos. Transparece uma construção ideológica baseada em fatos parciais, alguns dos quais presentes na réplica de Fabio Giambiagi ("Tendências/Debates", 8/8) a um artigo de nossa autoria. Ele afirma que "o Brasil gasta muito em aposentadorias e pouco em investimento".

O Brasil gasta muito em aposentadorias? A proporção gasto/PIB (7%) indica que não transgredimos os padrões internacionais. Nem sequer se pode afirmar que o gasto social brasileiro seja elevado. Estudos da Cepal indicam que o gasto social por habitante na Argentina é o dobro. Também ficamos atrás de Panamá, Chile, Costa Rica, Cuba e Uruguai.

É o gasto em aposentadoria o principal gasto corrente a inviabilizar os investimentos? Os encargos financeiros lideram o ranking (8% do PIB). Em razão das taxas de juros, entre 1994 e 2002 a relação dívida pública/ PIB foi de 29% para 60%; e, de 2003 a 2006, o estoque da dívida cresceu R$ 500 bilhões -algo como 50 anos de Bolsa Família; 22 anos de gastos federais em educação; 300 linhas similares ao trecho quatro do metrô paulista. Assim, por que obscurecer a questão financeira e apontar todas as baterias contra a Previdência Social?

Argumentam que a despesa com benefícios tem crescido. De fato, foi de 2,5% para 7% do PIB (1988-2006).

Mas, por que cresceu? Por causa da montagem de um razoável sistema de proteção social que beneficia direta e indiretamente mais de 87 milhões de pessoas; do medíocre crescimento do PIB (2% ao ano, em média); da "corrida às aposentadorias" diante de reformas como as de 1998 e 2003; da recuperação real do salário mínimo (100% de 1994 a 2006), que, aliás, apenas o fez retornar ao patamar dos anos 80.

É certo que o ritmo será mantido? Não. A emenda constitucional 20/98 já tornou as regras severas; o PAC atrelou reajustes do mínimo ao PIB; e 50% da PEA (desempregados e informais) terá dificuldade de comprovar contribuição previdenciária mínima.

A população vai envelhecer? Sim, a proporção de idosos aumentará de 5,5% para 15,3% entre 2000 e 2040.

Mas o que acontecerá com o resto da população? A de até 14 anos cairá de 29,8% para 19,3%, e a de 15 a 64 anos aumentará de 64,8% para 65,4%. Logo, se teremos ônus ou bônus demográfico vai depender do nível e do tipo de crescimento econômico vindouro, e não da transição demográfica em si.

O Brasil não estabelece idade mínima? Ora, a EC 20/98 criou duas alternativas: a) aposentadoria "por idade" aos 65/60 anos (homens/mulheres) e 15 anos de contribuição; b) "por tempo de contribuição" aos 35/30 anos, com incidência do fator previdenciário até a idade mínima de 60/55. Nos dois casos, o fluxo dos novos benefícios indica idade média semelhante à dos países da OCDE, cujas condições socioeconômicas, demográficas e regionais são superiores às nossas.

Por fim, não questionamos as convicções democráticas do nosso interlocutor. Mas apontamos que, ao afirmar que o "déficit" da Previdência "é um fato real, e não contábil", desconsidera os artigos da Constituição que explicitam e vinculam as fontes de financiamento da seguridade social.

Em 2006, ela foi superavitária em mais de R$ 50 bilhões. A menção ao conservadorismo se baseia em sua obra, na qual tece críticas severas aos avanços sociais da Carta de 1988.

Em suma, o debate proposto pela ortodoxia é pontilhado por fatos parciais para justificar o ajuste fiscal. O movimento social tem apontado para uma estratégia de desenvolvimento capaz de construir uma sociedade justa. A escolha caberá à sociedade. O papel ético dos especialistas é esclarecer a opinião pública.

Sobre os autores

Eduardo Fagnani, 51, economista, é professor doutor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Cesit (Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho).

José Celso Cardoso Jr., 38, economista, doutorando pelo Instituto de Economia da Unicamp, é técnico de pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

Uma década de Bolsa Família

Ana Fonseca e Carlos Lopes

Folha de S.Paulo


Costuma-se dizer que o sucesso tem muitas mães. Quase sempre isso é verdade. Como participantes do processo que deu corpo ao Bolsa Família, consideramos oportuno acrescentar ângulos à reflexão do balanço de uma década dessa conquista do povo brasileiro.

O Bolsa Família atende hoje a 13,8 milhões de famílias. O valor médio de seu benefício mensal é de R$ 152. Em 2003, quando implantado, ele atendia a 3,6 milhões de famílias com cerca de R$ 74 mensais, em média.

Mas esse resultado é fruto de um processo histórico em que se logrou aperfeiçoar uma engenharia social capaz de enfrentar a miséria da população de maneira mais profunda.

Pessoas e instituições que se arvoram como protagonistas de uma construção que foi coletiva estão equivocadas. A produção de memórias é sempre parte de um campo de disputas de interesses. Os relatos que apagam tal construção estão longe de serem inocentes.

O desenvolvimento do Bolsa Família se beneficia de experiências anteriores. Em 1995, em Campinas e Ribeirão Preto, no Estado de São Paulo, e no Distrito Federal, foram implantados programas de renda mínima que logo se espalharam por muitos municípios.

Não foi por acaso que, em 2003, o presidente Lula aprovou a expressão "Bolsa Família, uma evolução dos programas de complementação de renda com condicionalidades", em reconhecimento dos antecedentes múltiplos e variados.

O cadastro único dos programas sociais consolidou-se como uma conquista contra os interesses setoriais, que preferiam criar e gerir os seus próprios cadastros, reproduzindo, também no campo da identificação do público alvo, a fragmentação, a disputa de poder e a sobreposição de esforços.

Atribui-se a isso, em parte, o sucesso do Bolsa Família. Em setembro de 2003, estavam registradas no Cadastro Único federal, recebendo benefícios de distintos programas, cerca de 17,2 milhões de famílias. O Bolsa Escola repassava a cada beneficiário por mês R$ 24,80, em média. O Bolsa Alimentação, R$ 21. Em dezembro daquele ano, o Bolsa Família já concedia o triplo da média dos outros programas.

O I Seminário Nacional do Cadastro Único, ainda em 2003, foi o primeiro fórum a reunir gestores federais, estaduais e municipais para discutir as muitas facetas do processo de cadastramento. Com ele, criou-se um ponto de apoio importante para a discussão federativa e republicana sobre a gestão do cadastro único. Ao longo dos anos, ele se converteu em uma ferramenta de planejamento e gestão de políticas.

Em 2011, o governo federal inseriu o Bolsa Família em uma política mais ampla de transferência de renda. Com o plano Brasil sem Miséria, assumiu o compromisso de garantir aos brasileiros uma renda mínima mensal de R$ 70. Comprometeu-se a ampliar o acesso a serviços públicos e a efetuar a inclusão produtiva urbana e rural.

Os dez anos do maior programa de transferência de renda do mundo são motivo de orgulho e esperança para a população brasileira, e é isso que nós devemos celebrar.

Sobre os autores

Ana Fonseca, 62, é pesquisadora do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi secretária-executiva do programa Bolsa Família (2003)

Carlos Lopes, 52, economista, ex-representante da Organização das Nações Unidas no Brasil (2003-2005), é secretário-executivo da comissão econômica para a África da ONU.

23 de agosto de 2007

Ameaças ao crescimento?

A maior ameaça talvez seja interna; a turma da bufunfa já se agita e pede mais aperto fiscal e pausa no corte do juro

Paulo Nogueira Batista Jr.

Folha de S.Paulo

A TURBULÊNCIA financeira internacional ameaça o crescimento da economia brasileira? A preocupação com o tema é compreensível. Afinal, a história econômica do Brasil é marcada por crises cambiais recorrentes.

No período Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, o quadro foi realmente terrível. O Brasil enfrentou crises de balanço de pagamentos em nada menos que seis dos oito anos do governo FHC! Cada vez que a economia brasileira ameaçava levantar a cabeça, sobrevinha um choque cambial e abortava o crescimento incipiente. Era o vôo da galinha, como se dizia na época.
Pode acontecer o mesmo agora? Não parece provável. Como tentei mostrar no artigo da quinta-feira passada, a posição brasileira é atualmente bem mais forte do que foi na década de 90 e no início da atual.
Não somos invulneráveis, mas a balança comercial, o balanço de pagamentos em conta corrente, o ingresso de investimentos diretos e o nível de reservas internacionais indicam que o país pode resistir a choques externos de magnitude considerável sem ser obrigado a tomar medidas recessivas.
Se a crise financeira externa se agravar, as nossas exportações sofrerão, é claro, afetando em alguma medida o ritmo de crescimento brasileiro. Uma crise duradoura provocaria uma desaceleração da economia mundial e reduziria a demanda externa por produtos brasileiros e os preços das commodities exportadas pelo país. Não se deve perder de vista, entretanto, que a expansão recente da economia brasileira se apóia primordialmente no mercado interno, e não nas exportações. As fontes principais da retomada têm sido a ampliação do investimento e do consumo. O Brasil pode continuar crescendo mesmo que a economia internacional perca dinamismo.
A maior ameaça ao crescimento talvez seja interna. A turma da bufunfa, embora "cansada", já se agita e já se mobiliza. Pede aumento do superávit fiscal primário. Quer que o Banco Central interrompa, ou pelo menos desacelere, os cortes na taxa básica de juro.
Repare, leitor, que o nosso juro real básico ainda é mais de três vezes superior à média internacional. Mas os bufunfeiros não querem nem saber. O presidente de um grande banco privado nacional, que acaba de divulgar lucros exorbitantes, pediu "prudência" ao BC diante da turbulência financeira externa. E sugeriu que a Selic seja mantida em 11,5% na próxima reunião do Copom.

Na realidade, a turma da bufunfa é incansável. Sempre encontra um motivo ou pretexto para manter os juros nas alturas. Quando não é a crise financeira externa, é o risco de inflação. Quando não é a inflação, é o crescimento exageradamente robusto da economia brasileira. Quando não é o crescimento, é o risco de crescimento excessivo -e vai por aí.
Se dependesse dessa turma, o Brasil estaria eternamente condenado ao crescimento medíocre. Até o economista John Williamson, conhecido como "pai do Consenso de Washington", em entrevista publicada na Folha de ontem, comentou que seria "sábia" a decisão de continuar diminuindo os juros no Brasil.
"Não existe nenhuma base para pânico neste momento", declarou. Fiquei empolgado. Um economista subdesenvolvido sempre vibra quando encontra apoio externo. Ditas em inglês, por um economista do establishment internacional, as opiniões mais triviais adquirem ares de sabedoria profunda e inexpugnável. E ressoam intensamente (assim espero) nos subúrbios financeiros do planeta.

Sobre o autor

Paulo Nogueira Batista JR. , 52, escreve às quintas-feiras nesta coluna. Diretor-executivo no FMI, representa um grupo de nove países (Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Haiti, Panamá, República Dominicana, Suriname e Trinidad e Tobago).

2 de agosto de 2007

Falácias sobre o "déficit" da Previdência

Os setores conservadores não aceitaram as conquistas do movimento social em 88. Eis por que alardeiam que o suposto déficit é "explosivo"

EDUARDO FAGNANI e JOSÉ CELSO CARDOSO JR.

Folha de S.Paulo

A SEGURIDADE social, um dos avanços da Constituição de 1988, compreende os setores da Previdência (urbana e rural), saúde, assistência social e seguro-desemprego. Para financiá-la, foi instituído o orçamento da seguridade social.
Ao fazê-lo, os constituintes não inventaram a roda. Seguiram o padrão clássico baseado na contribuição tripartite (empregados, empregadores e governo). Note-se que, num conjunto de países europeus, a seguridade é financiada, em média, da seguinte forma: 38% pela contribuição dos empregadores; 22% pela contribuição dos empregados; 36% pela contribuição do governo (impostos); e 4% por outras fontes.
Desde 1934, o Brasil segue esse padrão. O orçamento da seguridade apenas o aperfeiçoou, vinculando constitucionalmente impostos e contribuições sociais. Portanto, quando o governo aporta recursos para a seguridade, não está cobrindo o "déficit", mas fazendo o que é de sua responsabilidade, nos termos da Constituição.
Todavia, os setores conservadores jamais aceitaram as conquistas do movimento social em 1988 e, desde então, para justificar a "urgente" necessidade de reformas visando enterrar inovações trazidas pela seguridade, alardeiam que o suposto déficit é "explosivo" e levará o país à "catástrofe" fiscal. Ao fazê-lo, cometem pecado capital: renegam a existência da Constituição e os fundamentos do Estado democrático de Direito.
Na atual conjuntura, portanto, não há nada de novo no "front" conservador. A instituição do Fórum Nacional da Previdência Social tem apenas proporcionado uma nova onda de revelações equivocadas e apocalípticas.
Um dos expoentes desse matiz, porta-voz de setores conservadores organizados da sociedade, é o sr. Fabio Giambiagi, que tem ocupado espaço de destaque na mídia para alardear o terror.
Agora, no jornal "Valor Econômico", promete combater "mitos ainda enraizados no debate sobre o tema", supostamente defendidos por "aqueles personagens que ficam defendendo a tese de que o homem não foi à Lua e que tudo não passa de uma invenção, de tão surrealista que é a conversa" (sic) ("Valor Econômico", 4/7).
Um dos supostos "mitos" é o de que "a Previdência não tem déficit". E assim conclui essa "argumentação": "Saber se a receita do imposto X deve ser do INSS ou do Tesouro não tem importância nenhuma para efeito do que estamos tratando. O problema é real, não contábil!". Ora, ao contrário, essa questão é de importância capital.
Em primeiro lugar, trata-se de cumprir a Constituição, especialmente os artigos 165, 194, 195 e 239, que versam sobre a seguridade social e o orçamento da seguridade social.
Em segundo lugar, é justamente esse conceito de déficit que precisa ser melhor debatido (e rebatido) dentro da lógica fiscalista.
O autor sempre lança mão desse raciocínio meramente contábil, para apresentar o que lhe parece ser o fim do mundo e dos tempos. Ora, por que será que ele não fala em déficit do SUS ou da educação? Ou déficit das Forças Armadas ou do projeto espacial brasileiro? Ou déficit do Pan no Brasil?
Simplesmente porque, nesses casos, ele não identifica nenhum descompasso entre estrutura de financiamento e estrutura de despesas.
Já no caso da Previdência, que, para ele, deveria ser algo totalmente autofinanciável pelos próprios segurados, ele vê um descasamento contábil entre arrecadação estrita ao INSS e o conjunto das despesas previdenciárias, incluindo a Previdência rural, o BPC/Loas e os regimes próprios do setor público.
Há dois problemas nítidos nessa argumentação: 1) aplica o raciocínio da capitalização atuarial individual a um modelo que é na verdade de repartição simples; e 2) compara alhos com bugalhos.
Assim, em suma, "surrealista" é o debate proposto por Giambiagi.
Em última instância, o que sempre esteve por detrás da reforma da seguridade é a disputa por recursos públicos. A Previdência é o segundo maior item de gasto corrente. Daí a fome do mercado pela reforma e captura desses recursos. As perguntas que na verdade precisariam ser respondidas neste debate são: Que tipo de sistema de proteção social é o mais adequado a um país com as heterogeneidades e desigualdades do Brasil? Qual a estrutura de benefícios desse sistema, quais os critérios de acesso e como se financiará?
Infelizmente, é improvável que respostas para essas questões venham da mágica série de artigos prometidos por nosso especialista.

Sobre os autores
EDUARDO FAGNANI, 51, economista, é professor doutor do Instituto de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e pesquisador do Cesit (Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho).
JOSÉ CELSO CARDOSO JR., 38, economista, doutorando pelo Instituto de Economia da Unicamp, é técnico de pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

Falácias sobre o "déficit" da Previdência

Os setores conservadores não aceitaram as conquistas do movimento social em 88. Eis por que alardeiam que o suposto déficit é "explosivo"

EDUARDO FAGNANI e JOSÉ CELSO CARDOSO JR.

Folha de S.Paulo

A SEGURIDADE social, um dos avanços da Constituição de 1988, compreende os setores da Previdência (urbana e rural), saúde, assistência social e seguro-desemprego. Para financiá-la, foi instituído o orçamento da seguridade social.
Ao fazê-lo, os constituintes não inventaram a roda. Seguiram o padrão clássico baseado na contribuição tripartite (empregados, empregadores e governo). Note-se que, num conjunto de países europeus, a seguridade é financiada, em média, da seguinte forma: 38% pela contribuição dos empregadores; 22% pela contribuição dos empregados; 36% pela contribuição do governo (impostos); e 4% por outras fontes.
Desde 1934, o Brasil segue esse padrão. O orçamento da seguridade apenas o aperfeiçoou, vinculando constitucionalmente impostos e contribuições sociais. Portanto, quando o governo aporta recursos para a seguridade, não está cobrindo o "déficit", mas fazendo o que é de sua responsabilidade, nos termos da Constituição.
Todavia, os setores conservadores jamais aceitaram as conquistas do movimento social em 1988 e, desde então, para justificar a "urgente" necessidade de reformas visando enterrar inovações trazidas pela seguridade, alardeiam que o suposto déficit é "explosivo" e levará o país à "catástrofe" fiscal. Ao fazê-lo, cometem pecado capital: renegam a existência da Constituição e os fundamentos do Estado democrático de Direito.
Na atual conjuntura, portanto, não há nada de novo no "front" conservador. A instituição do Fórum Nacional da Previdência Social tem apenas proporcionado uma nova onda de revelações equivocadas e apocalípticas.
Um dos expoentes desse matiz, porta-voz de setores conservadores organizados da sociedade, é o sr. Fabio Giambiagi, que tem ocupado espaço de destaque na mídia para alardear o terror.
Agora, no jornal "Valor Econômico", promete combater "mitos ainda enraizados no debate sobre o tema", supostamente defendidos por "aqueles personagens que ficam defendendo a tese de que o homem não foi à Lua e que tudo não passa de uma invenção, de tão surrealista que é a conversa" (sic) ("Valor Econômico", 4/7).
Um dos supostos "mitos" é o de que "a Previdência não tem déficit". E assim conclui essa "argumentação": "Saber se a receita do imposto X deve ser do INSS ou do Tesouro não tem importância nenhuma para efeito do que estamos tratando. O problema é real, não contábil!". Ora, ao contrário, essa questão é de importância capital.
Em primeiro lugar, trata-se de cumprir a Constituição, especialmente os artigos 165, 194, 195 e 239, que versam sobre a seguridade social e o orçamento da seguridade social.
Em segundo lugar, é justamente esse conceito de déficit que precisa ser melhor debatido (e rebatido) dentro da lógica fiscalista.
O autor sempre lança mão desse raciocínio meramente contábil, para apresentar o que lhe parece ser o fim do mundo e dos tempos. Ora, por que será que ele não fala em déficit do SUS ou da educação? Ou déficit das Forças Armadas ou do projeto espacial brasileiro? Ou déficit do Pan no Brasil?
Simplesmente porque, nesses casos, ele não identifica nenhum descompasso entre estrutura de financiamento e estrutura de despesas.
Já no caso da Previdência, que, para ele, deveria ser algo totalmente autofinanciável pelos próprios segurados, ele vê um descasamento contábil entre arrecadação estrita ao INSS e o conjunto das despesas previdenciárias, incluindo a Previdência rural, o BPC/Loas e os regimes próprios do setor público.
Há dois problemas nítidos nessa argumentação: 1) aplica o raciocínio da capitalização atuarial individual a um modelo que é na verdade de repartição simples; e 2) compara alhos com bugalhos.
Assim, em suma, "surrealista" é o debate proposto por Giambiagi.
Em última instância, o que sempre esteve por detrás da reforma da seguridade é a disputa por recursos públicos. A Previdência é o segundo maior item de gasto corrente. Daí a fome do mercado pela reforma e captura desses recursos. As perguntas que na verdade precisariam ser respondidas neste debate são: Que tipo de sistema de proteção social é o mais adequado a um país com as heterogeneidades e desigualdades do Brasil? Qual a estrutura de benefícios desse sistema, quais os critérios de acesso e como se financiará?
Infelizmente, é improvável que respostas para essas questões venham da mágica série de artigos prometidos por nosso especialista.

Sobre os autores
EDUARDO FAGNANI, 51, economista, é professor doutor do Instituto de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e pesquisador do Cesit (Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho).
JOSÉ CELSO CARDOSO JR., 38, economista, doutorando pelo Instituto de Economia da Unicamp, é técnico de pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

1 de agosto de 2007

Contra o realismo histórico

Dentro do épico Guerra e Paz de Tolstoi, Hayden White argumenta, três gêneros são entrelaçados: histórico, romance e filosófico. Se os dois primeiros - e as batalhas, amores e mortes que eles contam - continuam a linha do realismo europeu, no terceiro Tolstoi apresenta a história como uma força além do controle humano, em uma tentativa de desmantelar as ideologias de progresso.

Hayden White

New Left Review

NLR 46•JULY/AUG 2007

Nós, os russos em geral, não sabemos escrever romances no sentido em que se entende esse gênero na Europa.[1]  
Tolstói 

Tradução / Guerra e paz (1865-1869), de Liev Tolstói, é uma obra volumosa e de enorme complexidade, à qual nenhum breve resumo é capaz de fazer justiça. Ela consiste basicamente em dois livros alentados, um histórico, outro ficcional, integrados para expor o efeito da invasão napoleônica em 1812 sobre a sociedade russa. Como a obra mescla vários gêneros – história, romance, épica –, os críticos divergem sobre sua classificação. Aqui vou considerá-la como exemplo daquilo que ela é de maneira mais flagrante, a saber, um romance histórico. Mas Guerra e paz é um romance histórico de tipo específico: procura mostrar que, mesmo sendo impossível deixar de usar a “história” como contexto para a representação de grandes eventos, as exposições “históricas” de tais eventos não conseguem de maneira nenhuma explicá-los. Na verdade, Guerra e paz é uma obra que consuma e, ao mesmo tempo, efetivamente desmantela o romance histórico. Com isso, ela corrói os fundamentos do realismo literário da Europa ocidental, questionando a ideologia da história em que ele se baseava.

O próprio Tolstói negava que sua exposição da invasão napoleônica da Rússia em 1812 recaísse sob a rubrica de algum gênero específico. Em 1931, o crítico Boris Eikhenbaum disse que Tolstói havia iniciado a obra – cujo título original era 1805 – como uma combinação entre dois gêneros russos consolidados, o “romance de família” e o “romance militar-histórico”.[2] Mas, do começo do Livro VII em diante, afirmava Eikhenbaum, o livro passava para um novo gênero, o épico histórico-filosófico. Assim, podemos identificar pelo menos três linhas de gênero que se entrelaçam na composição de Guerra e paz: uma linha histórica (o relato da invasão da Rússia por Napoleão), uma linha romanesca (o impacto dessa guerra sobre quatro famílias ficcionais da nobreza russa) e uma linha filosófica (digressões discursivas sobre certas ideias abstratas sugeridas pelos eventos, históricos e ficcionais, narrados no livro). É essa combinação de linhas que faz de Guerra e paz uma consumação do gênero do romance histórico. Tolstói não só compõe um romance histórico, como submete o gênero a uma análise à luz de sua filosofia da história própria. Essa dimensão crítico-filosófica estava totalmente ausente dos grandes romancistas históricos anteriores a Tolstói: Scott, Manzoni e Dumas.

I

Embora Guerra e paz seja muito longo, a ação descrita se estende por um período de tempo relativamente curto: os sete anos entre a Batalha de Austerlitz em 1805 e a retirada de Napoleão da Rússia em 5 de dezembro de 1812. A ação se divide a grosso modo entre um relato das campanhas, batalhas e manobras militares da guerra e uma exposição da vida na alta sociedade russa, tal como fora afetada pela guerra. Aquele fala do esforço em conquistar terras, poder e glória por meios militares; esta, do esforço em conquistar amor, poder e riqueza pelos meios fornecidos pela “sociedade”. As duas narrativas nunca convergem inteiramente, mas nem há razão para isso, visto que tratam da mesma coisa: as similaridades entre “guerra” e “paz”.

Guerra e paz saiu originalmente como uma série entre 1865 e 1869, e a maioria de suas edições divide a obra em vários livros, com capítulos ou subseções. Há pouquíssima continuidade entre um livro e outro (embora sigam uma ordem cronológica) ou entre uma subseção e outra. Os segmentos constituem uma série de vinhetas, pequenos episódios, historietas (eis três em seguida no Livro VIII: “Os Rostov no teatro de ópera, Helene no camarote ao lado”, “Descrição da ópera”, “Anatole e Dolokhov em Moscou”). Essas vinhetas às vezes se assemelham aos faits divers dos jornais da época. Os personagens não se desenvolvem de um episódio ao outro, mas simplesmente reaparecem de tempos em tempos com um novo leque de atributos. Mas, por outro lado, a ação inteira do livro cobre apenas sete escassos anos. Há alguns momentos de revelação: um com Bolkonski, vários com Pierre; e um personagem, Natacha Rostova, realmente se desenvolve – mas nenhum deles apresenta qualquer mudança de caráter significativa e duradoura. Mais do que um desenvolvimento, a maioria dos personagens passa por uma espécie de reconfiguração, com o acréscimo de novos traços e o rearranjo de traços anteriores, à medida que sofrem uma decepção ou frustração atrás da outra, tanto na “guerra” quanto na “paz”. Não é um romance feliz, ainda que, originalmente, Tolstói o planejasse como uma espécie de comédia, em que bem estaria o que bem terminasse.

As seções que compõem Guerra e paz formam uma série, mas não uma sequência. A sequencialidade distribui o sentido num espaço narrativo por hipotaxe, distinguindo gradualmente o que é e o que não é importante entre todos os dados no texto e encaminhando tudo para um desfecho ou uma conclusão em que finalmente é possível captar ou entender a significação dominante dos eventos relatados. Usualmente, um tratamento histórico dos eventos consiste na tentativa de revelar a sequência (criação de um enredo narrativo) em lugar daquilo que parece ser mera serialidade (crônica). Mas Tolstói resiste à sequencialidade precisamente porque está lidando com a história: ele não acredita que a história tenha enredo. Então, para resistir à tentação de criar um enredo, ele volta à cronologia como o grande princípio organizador de seu retrato da vida na Rússia entre 1805 e 1812.

Assim, os Livros I a VI relatam eventos dos anos 1805-1810 e consistem numa exposição bastante direta das relações militares e diplomáticas entre a França e a Rússia, em descrições de algumas batalhas iniciais entre o Grande Exército de Napoleão e uma aliança russo-austríaca, e a apresentação dos principais personagens ficcionais, representando a nobreza russa. O livro começa sem qualquer introdução, assim como, cerca de 1.400 páginas depois, terminará sem um fim. Mergulhamos imediatamente numa cena social em São Petersburgo, uma soirée onde conversam sobre a súbita ascensão da carreira de Napoleão Bonaparte. Somos apresentados a Pierre Bezukhov, que mais à frente revela ser a principal figura ficcional do livro, mas não recebemos praticamente nenhuma informação sobre ele (é filho ilegítimo, mas sua mãe nunca é mencionada e nada sabemos de sua infância ou criação). Ele nada tem de marcante – e assim continua até o final. Pouco age, mas acontecem-lhe muitas coisas.

Como herói, Pierre deixa muito a desejar; é mais o tipo do interiorano rústico que vai para a cidade do que a encarnação da virtus aristocrática. Seu amigo Andrei Bolkonski é um candidato mais promissor para o papel. Os seis primeiros livros seguem de modo intermitente o decurso do casamento sem amor do príncipe Andrei e a morte da esposa durante o parto, seu melancólico desencantamento com a vida, o amor pela bela e jovem condessa Natacha Rostov e o noivado dos dois. Mas ele também é um fiasco como herói. Estraga o noivado com Natacha e morre antes de acertar a situação com ela.

Os Livros VII e VIII fornecem uma espécie de transição entre os anos 1807- 1812 e uma preparação para a nova filosofia da história que será utilizada para desmontar as versões oficiais da Guerra de 1812. O Livro VII aborda a “paz”, a vida no campo e a feliz família Rostov em casa, enquanto o Livro VIII apresenta a vida na cidade – Moscou – e a sedução de Natacha Rostov por Anatole Kuráguin, cunhado de Pierre. Pierre frustra o plano de Anatole para raptar Natacha. Andrei repudia Natacha, ela tenta se suicidar, sem êxito, e Pierre percebe que ama Natacha e não a esposa errante, Helene Kuraguina, com quem se casara vergonhosamente apenas por luxúria. Como sugere esse insuficiente resumo, nas seções ficcionais do livro começam a acontecer muitas coisas, enquanto Tolstói nos prepara para as complicações que surgem devido ao impacto da “história”.

Os Livros IX a XV, a “porção” mais extensa de Guerra e paz, abordam os sete meses de “guerra”, de maio a dezembro de 1812. Contam como Napoleão invade a Rússia e encontra a oposição dos soldados sob o comando do Marechal de Campo Kutuzov, velho, cansado, aleijado e quase cego. O exército napoleônico avança, ocupa e saqueia Moscou, mas Napoleão perde o controle dos soldados que se convertem numa turba entregue a bebedeiras e pilhagens, e decide se retirar de Moscou e voltar à França. O que resta de seu exército é destroçado durante a retirada; Napoleão acaba por abandonar o que restou dos quinhentos mil homens que conduzira até a Rússia e retorna à França, para seu Waterloo.

Causalidade e liberdade 

É nessa porção do texto que se encontra a substância de Guerra e paz. É aqui que a “história” deixa de ser um relato do passado e brota como força em si, revelando-se a manipuladora oculta dos destinos dos indivíduos e das nações. A mudança da noção de história como soma total dos eventos no passado para a de “história” como uma força que faz os eventos acontecerem e dá à sociedade humana uma direção específica, ainda que incognoscível, emerge explicitamente no Livro IX, onde o narrador reflete sobre a ironia da crença dos grandes homens de serem eles causas, e não consequências, da transformação histórica. Tolstói argumenta que os historiadores alimentam a vaidade de reis e generais escrevendo a história como se suas ocorrências se devessem à vontade, aos desejos e às ordens deles. Na verdade, insiste o autor, todo evento histórico é consequência de “miríades de causas”, tão numerosas a ponto de tornar a história “irracional e incompreensível”. Os movimentos de indivíduos e povos exigem a concordância de todos os envolvidos, de modo que qualquer coisa que tenha acontecido poderia muito bem não ter acontecido, mas, depois de acontecer, aparece retrospectivamente como algo necessário e inevitável.

Assim, ficamos entregues a uma situação paradoxal, em que devemos reconhecer que somos determinados pela história e, ao mesmo tempo, somos livres em relação a ela. Tolstói, a esse respeito, parece acreditar numa “coincidência de opostos”. Pois, embora dedique muito tempo a mostrar que tudo na história “aconteceu porque tinha de acontecer”, ele também sustenta que, em última análise, é irrelevante se nos consideramos livres ou determinados em qualquer situação dada. Assim, escreve Tolstói:

Há dois lados na vida de todo homem, sua vida individual, que é tanto mais livre quanto mais abstratos são seus interesses, e sua vida natural de colmeia, em que ele obedece inevitavelmente a leis que lhe são postas. 
O homem vive conscientemente para si próprio, mas é um instrumento inconsciente na consecução dos fins históricos universais da humanidade.3 

Os homens estão divididos – afirma Tolstói – entre sua vida consciente, que vivenciam como se fossem livres, e sua vida animal, física, “de colmeia”, que não é “vivenciada”, mas simplesmente vivida como se fosse “natural”. Tolstói sustenta que essas duas dimensões da vida humana estão inversamente relacionadas com o grau de poder social de que goza o indivíduo: “Quanto mais alta a posição de um homem na escala social, quanto maior o número de pessoas a que está ligado e maior o poder que tem sobre os outros, tanto mais evidentes são a predestinação e a inevitabilidade de todas as suas ações”. Dessa forma, para Tolstói, “um rei é escravo da história” – e segue-se, ou assim parece, que o servo mais vil é, em certo sentido, o mais “livre” dos homens.

Segundo esse tipo de raciocínio, a realização pessoal consiste no reconhecimento de que aquilo que queremos, desejamos ou ambicionamos conscientemente é, na realidade, resultado do condicionamento social, ao passo que o que deveríamos querer e buscar é a imersão na vida “de colmeia”, onde a regeneração e a morte servem aos fins da “vida” mais do que aos da sociedade. Ainda que Napoleão pensasse ser o arquiteto das guerras que travava para conquistar a Rússia, “ele nunca estivera tanto sob o domínio de leis inevitáveis que o levavam, pensando agir por vontade própria, a realizar para a vida de colmeia – isto é, para a história – tudo o que fosse preciso realizar”.4 Isso é menos paradoxal do que pode parecer à primeira vista. Pois Tolstói acredita que, visto que todo evento é resultado de todas as forças causais em operação no conjunto da história, deve-se considerar o senso humano de livre arbítrio como algo predestinado; dessa maneira, sejam os homens livres ou não, o senso de serem livres precisa ser incluído entre as causas que contribuem para a ocorrência de todos os eventos causados por seres humanos. O aspecto mais importante assinalado por Tolstói é que, quanto maior o poder de um indivíduo ou grupo, maior a ilusão quanto à natureza e extensão desse poder e maior o sofrimento causado em seu exercício. A realização, portanto, consistirá no abandono de qualquer tentativa de obter ou exercer o poder e no retorno à vida “de colmeia” representada pela família, casta e raça. A passividade é a condição a que se deve aspirar. A capacidade de agir, característica dos heróis, é a fonte de tudo o que há de terrível na existência socialmente organizada.

Assim, a aparente diferença entre atividade e paciência, ou ação e paixão, base para a distinção entre, de um lado, uma vida heroica e, de outro lado, uma vida comum, humilde ou despretensiosa, revela-se uma falsa dicotomia. Mostrar-se-á que Napoleão, o homem de ação por excelência, era o produto de forças sobre as quais ele não tinha absolutamente controle nenhum, ao passo que Kutuzov, o não-general idoso, distraído, sonolento, quase cego, irá se revelar como vencedor de Napoleão e salvador da Rússia. Kutuzov é a encarnação da passividade ativa, enquanto Napoleão não passa de um ativista passivo. A força de vontade de Kutuzov se manifesta em sua resistência a qualquer tentativa de obrigá-lo a combater Napoleão, enquanto Napoleão aparece em sua insistência em combater a qualquer momento e em qualquer lugar. Assim, a vitória de um é decidida pela passividade; a derrota do outro, pela ação. Em Guerra e paz, a guerra é uma atividade absurda, no fundo uma farsa.

No Livro X, por exemplo, Tolstói interrompe sua narração da visita de Pierre Bezukhov ao campo de batalha de Borodino para comentar a falta de sentido de se ter travado tal batalha.

Em 24 de agosto foi travada a batalha do Reduto de Shevardino, no dia 25 não se disparou nenhum tiro de nenhum dos lados e no dia 26 ocorreu a própria batalha de Borodino. 
Como e por que se deram e foram aceitas as batalhas de Shevardino e Borodino? Por que se travou a batalha de Borodino? Não havia o menor sentido nela, nem para os franceses, nem para os russos. Seu resultado imediato para os russos foi, e estava fadado a ser, que nos aproximamos mais da destruição de Moscou – coisa que mais temíamos no mundo; para os franceses, seu resultado imediato foi que se aproximaram mais da destruição de todo o seu exército – coisa que mais temiam no mundo. Qual seria o resultado, era totalmente óbvio e, apesar disso, Napoleão ofereceu e Kutuzov aceitou aquela batalha.5 

A explicação de Tolstói – contra a das falsas ideias dos historiadores oficiais – foi que “Kutuzov agiu involuntária e irracionalmente. Mas depois, para se encaixar com o que ocorrera, os historiadores apresentaram sinais engenhosamente fabricados do gênio e clarividência dos generais, os quais, entre todos os instrumentos cegos da história, eram os mais escravizados e involuntários”. Tolstói zomba de táticos e estrategos, com seus mapas, quadros e diagramas, que tentam converter a guerra moderna de massa numa questão de planejamento rigoroso. Os meros números dos exércitos engajados na invasão da Rússia asseguravam que as campanhas travadas por ambos os lados eram uma questão mais de força inercial do que de escolha e decisão. Tolstói mostra Napoleão tomando decisões arbitrárias para as quais não se apresenta nenhuma razão, consumindo seu exército como um menino comendo doces e fazendo birra quando surgem impedimentos à sua vontade. Kutuzov, por outro lado, sabe apenas uma coisa: manter o exército ou seus remanescentes intactos, lutar apenas quando forçado a isso e recuar, recuar, recuar – mesmo ao ponto de entregar Moscou ao inimigo. É uma batalha do falso brilho e egocentrismo contra a mais autêntica obtusidade, paciência e resignação ao destino. Ao fim, Napoleão se vê ocupando uma cidade desabitada, seus soldados sem equipamentos para o inverno, suas linhas de abastecimento cortadas.

Todavia, Napoleão, o maior de todos os gênios, que os historiadores afirmam que tinha controle do exército... usou seu poder para escolher o mais tolo e desastroso de todos os rumos que lhe estavam abertos... [D]eixou Moscou... Durante todo aquele período, Napoleão, que parece ter liderado todos esses movimentos – assim como a figura de proa de um navio pode, a um selvagem, parecer que está no comando da nau – agiu como uma criança que, segurando dois cordéis dentro de uma carruagem, pensa que está a dirigi-la.6 

É por isso que o relato de guerra em Guerra e paz, embora mostrando inúmeros esforços, lutas, batalhas e destruições, ao fim e ao cabo nada terá de heroico em si. O que de início aparece como algo nobre e heroico, até mesmo trágico para os historiadores do período, é desmascarado por Tolstói como uma aventura insensata, sangrenta e infrutífera de um charlatão do Ocidente, que não tinha ideia do que estava fazendo. O “heroísmo” dos russos, em reação ao ataque de Napoleão, é de tipo estoico e passivo. Os russos simplesmente suportam. Este é o gênio da raça.

Assim, depois de uma conversa com o general Kutuzov, o príncipe Andrei volta a seu regimento,

tranquilizado quanto ao curso geral das coisas e quanto ao homem a que ele fora confiado. Quanto mais percebia a ausência de qualquer motivo pessoal naquele velho – a quem parecia restarem apenas o hábito das paixões e, em lugar de um intelecto (reunindo fatos e extraindo conclusões), apenas a capacidade de contemplar calmamente o curso dos eventos –, mais tranquilizado se sentia de que tudo seria como deveria ser... “E acima de tudo”, pensou o príncipe Andrei, “acredita-se nele porque é russo”.7 

Este, claro, é Andrei falando, não Tolstói; e não é possível saber com certeza se Tolstói não deseja que seus leitores interpretem as ideias de Andrei com alguns grãos de sal – principalmente porque Andrei é um daqueles homens “inteligentes” que sempre enxergam a realidade mais pela lente de sua razão do que por meio de seus sentimentos. Apesar disso, a “russidade” desempenha um papel no épico de Tolstói, como explicação da vitória da Rússia sobre o tirano do Ocidente.

De fato, pode-se afirmar que, nas partes militar-históricas do romance, Tolstói lança a “francidade” contra a “russidade”, uma totalmente composta de consciência, brilho, raison, estilo e ação; a outra, de sentimento, solidez, paciência, prosaísmo e paixão. É por isso que, apesar de todo o movimento, todo o som e fúria do relato de guerra, nada acontece realmente. Embora haja muitas ocorrências em Guerra e paz, é muito difícil identificar eventos específicos e as cadeias de consequências que um dado evento qualquer poderia acarretar para os eventos subsequentes. As batalhas começam mais por acaso do que por deliberação e terminam sem resultados decisivos. Monarcas, generais e outras autoridades lançam ordens, mas invariavelmente elas se perdem, chegam ao destinatário errado ou são ignoradas pelos subordinados. Os franceses ocupam Moscou, mas nunca chegam a submetê-la plenamente. Quando a cidade é abandonada pelo exército russo, Napoleão aparece como vencedor da guerra, mas os russos se recusam a reconhecer sua vitória, a tratar com ele ou a combatê-lo abertamente. No fim, Napoleão é obrigado a abandonar Moscou, porque os russos simplesmente agem como se ele nunca tivesse estado ali. Kutuzov vence – se é que se pode dizer que “venceu” – agindo o mínimo possível, batendo em retirada e abandonando Moscou, permitindo que Napoleão esgote suas forças na inútil espera de ser saudado como conquistador. Assim, como relato da invasão napoleônica da Rússia, Guerra e paz é uma história sem eventos ou os tipos de ações que poderiam formar um enredo. Nessa ausência de eventos e de enredo, pode-se dizer, portanto, que ele se aproxima, se é que não o antecipa, do romance modernista – ou daquele aspecto do modernismo já imanente num realista como o Flaubert de A educação sentimental.

II

Todos os principais personagens ficcionais russos em Guerra e paz pertencem à nobreza. A exceção é Platon Karataiev, um velho soldado analfabeto que acredita piamente na harmonia do universo, faz amizade com Pierre no cativeiro, é abatido como um cachorro quando cai de exaustão na beira da estrada e a quem Pierre considera “a personificação de tudo o que é russo... do espírito e da verdade”. Ao contrário de todos os aristocratas no livro, Karataiev possui uma sabedoria nascida do solo e do gênio russos, mas é uma sabedoria mais vivida do que refletida. “Toda palavra e ação dele era a manifestação de uma atividade desconhecida a si, a qual era sua vida. Mas sua vida, tal como ele a via, não tinha sentido como uma coisa separada. Tinha sentido apenas como parte de um todo do qual ele sempre foi consciente.”8

Karataiev representa o paradigma de um ser humano que se libertou da sociedade. Não aspira a nada, não quer nada, aceita o que lhe vem, não sente nenhuma separação entre si mesmo e seu meio, não tem um “eu”. Para Pierre, Karataiev era “uma personificação insondável, completa, eterna do espírito de simplicidade e verdade”. É o anti-herói por excelência, ou seja, um santo. Todos os demais personagens de Guerra e paz acabam sendo medidos por ele – e ficam aquém. E bem no final do romance, no epílogo que nos mostra as famílias Bezukhov e Rostov em 1820, Karataiev é invocado para testar o desejo de Pierre de retornar ao mundo da sociedade e participar de um movimento político. Natacha pergunta a Pierre se Karataiev aprovaria seus planos de entrar na luta política.

“Não, não aprovaria”, disse Pierre depois de refletir. “O que ele aprovaria seria nossa vida em família. Ele sempre desejou muito encontrar correção, felicidade e paz em tudo, e eu ficaria orgulhoso em deixar que ele nos visse.” 

Esta é a última cena do romance. Não é um final, mas não fazemos ideia do que o futuro reserva para Pierre e Natacha. Sabemos apenas que Pierre e Natacha encontraram em seu mútuo amor e em sua vida familiar um modelo – é o que Pierre pelo menos pensa – do que a sociedade poderia vir a ser. “Gostaria apenas de dizer”, continua Pierre, “que as ideias que têm grandes resultados são sempre simples. Minha ideia geral é que, se as pessoas ruins estão unidas e constituem um poder, então as honestas deveriam fazer o mesmo. Ora, isso é bastante simples”.9

Em certo sentido, Tolstói quer que acreditemos que a nobreza russa da época perdera sua “russidade” na medida em que se “socializara”. Ao se civilizarem, galicizaram-se. Tolstói indica esse aspecto ao apresentar seus aristocratas russos falando em francês com mais facilidade do que em russo; retomam o russo quando estão no campo e precisam se comunicar com seus servos e criados. Vemos Pierre no começo do livro logo depois de voltar dos estudos em Paris, admirador de Napoleão e do iluminismo francês, adotando maneiras francesas em vívido contraste com sua natureza russa rústica, que se reflete em sua aparência grosseira, sua miopia e deselegância.

Fisiologicamente, Pierre é a própria antítese dos belos cavalheiros da corte russa: Andrei, Anatole, Dolokhov, Boris etc. Como Kutuzov, Pierre é gordo demais para montar a cavalo comodamente, míope demais para observar o que se passa ao redor, tosco demais na fala para conquistar belas mulheres e persuadir homens inteligentes. Meu palpite – mas não disponho de nenhuma indicação no texto que lhe dê base – é que Pierre era filho de uma serva e que seus traços físicos pretendem indicar suas raízes no solo da Mãe Rússia. Seja como for, a Bildung ou “educação sentimental” de Pierre nos modos e maneiras do mundo é o inverso da de seus correspondentes ocidentais. Suas experiências de “guerra e paz” o afastam sempre mais da “sociedade”, aprofundando mais e mais a busca do tipo de comunidade que encontrara com outros homens, ao ficar como prisioneiro dos franceses, ameaçado de morte, privado de qualquer bem material, restando-lhe apenas a fraternidade de Karataiev – e suas parábolas sobre o poder terapêutico do amor. Depois que Karataiev foi morto por um guarda francês, certa noite Pierre cai exausto e tem mais uma vez o sonho que tivera em Mozhaisk, após a batalha de Borodino:

Outra vez fatos reais se misturaram com sonhos e outra vez alguém, ele ou outro, deu expressão a seus pensamentos, e até aos mesmos que haviam sido expressos em seu sonho em Mozhaisk. “A vida é tudo. A vida é Deus. Tudo muda e move e esse movimento é Deus. E enquanto há vida há alegria na consciência do divino. Amar a vida é amar Deus. Mais difícil e mais abençoado do que tudo é amar esta vida nos próprios sofrimentos, nos sofrimentos de inocentes.” “Karataiev!”, veio à mente de Pierre.10 

A mudança pela qual passa Pierre, como resultado de sua experiência de cativeiro e degradação, é radical:

A própria pergunta que antes o atormentara, a coisa que tentara continuamente encontrar – a finalidade da vida –, agora não existia mais para ele. Aquela busca da finalidade da vida não só meramente desaparecera por algum tempo – ele sentiu que ela não existia mais para si e não iria se apresentar outra vez. E essa própria ausência de uma finalidade lhe deu a sensação completa e jubilosa de liberdade que agora constituía sua felicidade... Agora ele tinha fé – não fé em algum tipo de norma, em palavras ou ideias, mas fé num Deus sempre vivo, sempre manifesto. 

Essa nova fé em Deus, porém, fornece a Pierre uma nova relação com outros homens e mulheres.

Essa peculiaridade legítima de cada indivíduo que costumava enervar e irritar Pierre agora se convertia em base da simpatia que sentia e o interesse que nutria por outras pessoas. A diferença e, às vezes, a total contradição entre as opiniões e a vida dos homens e entre um homem e outro agradavam-no e lhe despertavam um sorriso gentil e divertido.11 

Pierre não persistirá nessas novas percepções: “todo o sentido da vida” se concentrará na encantadora Natacha, agora mais humilde depois de passar pela experiência da morte do príncipe Andrei.

Trajetórias 

O príncipe Andrei Bolkonski, a coisa mais próxima de um herói romântico no livro, perde o amor de sua vida, Natacha Rostova, e morre pelos ferimentos que recebeu num fortuito fogo de barragem. Ele é melancólico, inteligente e corajoso, filho devotado, bom amigo, mas marido indiferente, pai enfastiado com o filho, amante formal de Natacha. Num rascunho inicial do livro, Tolstói pretendia que ele vivesse, se casasse e fosse feliz. Mas depois resolveu matar Andrei numa cena que parece sugerir que a morte de um espírito nobre testado pela adversidade e pela perda pode levar à realização pessoal. Eis o discurso que vem logo após o trecho narrando como o príncipe Andrei aceitou a morte:

“Sim, a morte é um despertar!” E de súbito sua alma se iluminou e o véu que até então ocultara o desconhecido foi removido de sua visão espiritual. Ele sentiu como se os poderes até então confinados dentro de si tivessem se liberado, e aquela estranha claridade não o deixou mais.12 

A emotividade dessa cena, porém, é embaraçosa e poderia ser citada em prol de uma moção para excluir Tolstói de qualquer rol de realistas ao estilo ocidental.

Natacha, a beldade esguia e esplêndida de olhos negros, a coisa mais próxima de uma heroína romântica no livro, apaixona-se por um pretendente após o outro, trai Andrei com o volúvel Anatole, mostra, na verdade, que “ama o amor”, até que vem finalmente a se arrepender, quando vela Andrei em seu leito de morte. Mas ela se transforma em seu relacionamento com Pierre, passando no fim do livro por um improvável renascimento como dona de casa compulsiva e mãe obsessiva. É como se Natacha (interpretada por Audrey Hepburn na adaptação cinematográfica de King Vidor) finalmente ficasse adulta durante os sete anos transcorridos entre sua penúltima aparição aos vinte anos, em 1813, e sua última aparição em 1820. De borboleta social, passou a mãe de quatro filhos, esposa dominadora, ainda que devotada, entregue aos serviços domésticos. Mas, como veremos, as causas dessa transformação não são claras. É verdade que ela sofreu muito, mas seus sofrimentos não têm nada de trágico, pois não são enfrentados por nenhuma causa nobre.

Nicolai Rostov, o tipo do fidalgo rural simplório, soldado, caçador, filho respeitoso e cumpridor, mas amante indiferente, pouco dado à introspecção, mas industrioso e solene, finalmente se casa com a irmã de Andrei, a princesa Maria, e com isso – ela é uma herdeira rica – salva o patrimônio de seu pai dissipador. À política e à sociedade Nicolai prefere a caça, a montaria, a bebida, a vida de soldado e a camaradagem de caserna. Mas abandona a carreira militar para reconstruir a propriedade da família, arruinada pelo exército de Napoleão, zeloso fazendeiro e administrador de suas terras e, por fim, amável anfitrião das famílias que iam visitá-lo todos os anos – às vezes “com dezesseis cavalos e dezenas de criados, e ficavam por meses a fio”. No final do livro, ele se lança a um programa de leitura para aprimorar o intelecto.

Os Kuráguin, encabeçados pelo príncipe Vassíli, figura política de peso e dado às intrigas da corte, formam a única “má” família entre as quatro que têm importância no livro. Pierre se casa com a filha dos Kuráguin, Helene (Anita Ekberg na versão de Hollywood), de beleza voluptuosa, mas fria, que logo o rejeita como amante toleirão e inadequado, pega a maior parte da fortuna dele e o larga, deixando-o a refletir sobre sua culpa, em primeiro lugar, de ter se casado com ela por luxúria. Helene se torna o centro da cena social em São Petersburgo e detém considerável poder social, até que uma de suas intrigas sai errado. Ela morre em circunstâncias misteriosas – provavelmente por suicídio – depois de ser levada por sua sede de poder e riqueza a assumir compromisso de casamento com dois homens ao mesmo tempo. O irmão de Helene, o envolvente libertino Anatole, seduz Natacha, arruína seu noivado com Andrei, é expulso da localidade por Pierre (seu cunhado) e perde uma perna na batalha de Borodino.

Tal como resumi a narrativa, bastaria mudar os nomes e os cenários e a ação poderia se passar numa novela romântica da Harlequin ou num épico americano de costumes dos anos 1950. Mas há uma diferença fundamental: Tolstói trata com uma casta de aristocratas com os quais se identificava plenamente, admirando-os e partilhando os mesmos ideais. Quando Tolstói concebeu Guerra e paz, essa casta perdera sua função social original, mas não seus privilégios. Guerra e paz, porém, mostra a nobreza russa ainda a serviço de uma função militar vital, embora sua riqueza, fundada numa enorme população de servos trabalhando na ignorância e em condições similares à escravidão, com equipamentos antiquados e técnicas pré-industriais de agricultura e manufatura, vinha se dissipando rapidamente e seus privilégios tradicionais se tornando difíceis de justificar. O surgimento de forças sociais e tecnológicas que mal se discerniam na Rússia durante as guerras napoleônicas era plenamente visível na época em que Tolstói serviu na Guerra da Crimeia (1854-1856). A aristocracia russa por ele pintada ainda não se degenerou totalmente, mas já vem se esgarçando e Tolstói deixa isso muito claro.

No entanto, não se apontam as razões para esse declínio. Naturalmente, Tolstói estava longe de ser um defensor da modernização. Mais tarde, tornou-se uma espécie de radical social, dedicado ao pacifismo, ao vegetarianismo e a várias versões do pietismo cristão. Em Guerra e paz, tal como em Anna Kariênina, ele idealiza os efeitos redentores do trabalho na terra e, em seus idílicos quadros da vida em família ao final do livro, contrapõe a natureza pacífica desse ambiente à natureza beligerante da “sociedade”. Sua descrição da propriedade dos Rostov, depois que Nicolai a reconstrói, é uma pintura idealizada do que poderia ser uma fazenda bem dirigida, com servos tratados como seres humanos e não como gado, para uma nova vida na Rússia. Essa ideia era absurda, sem dúvida, mas não porque a abolição da servidão não fosse necessária, e sim porque a agricultura camponesa jamais poderia servir de base para uma sociedade moderna.

O sonho tolstoiano de uma comunidade baseada numa economia camponesa, mais eficiente graças ao respeito pela terra, fornece a dimensão utópica de Guerra e paz, mas também é um indicador da distância entre Tolstói e os escritores realistas ocidentais de meados do século. O sinal do realismo deles é a eliminação de qualquer fantasia utópica como alternativa às sociedades de classes para as quais escreviam.

III

Apontei como Tolstói invoca a história como tema e, ao mesmo tempo, reconceitualiza-a de uma forma que lhe retira qualquer força explicativa. Agora cabe dizer que ele faz algo muito parecido com suas ficções. Invoca os personagens arquetípicos das narrativas românticas e do romance histórico, ao mesmo tempo colocando-os num contexto em que guerra e paz são igualmente insuportáveis para eles. Assim, o que começa como análise social realista nas ficções de Guerra e paz termina como pastoral. Todos os principais personagens começam como representantes de sua posição e classe social e terminam ou destruídos por uma aceitação irrefletida do código social ou convertidos às alegrias da vida familiar no campo.

De fato, o final da narrativa de ficção é feito às pressas, simplesmente acrescentado como parte de um “epílogo” que se inicia com um longo discurso “sobre as forças operantes na história” e passa bruscamente para uma exposição das condições das famílias Rostov e Bezukhov em 1820. É como se Tolstói tivesse se entediado com o tema e até se irritado um pouco com os personagens. No final, ele descarta suas próprias criações como representantes insípidos de seu crescente arcaísmo.

Por exemplo, a Natacha que aparece em 1820, quinze anos depois de ser apresentada à sociedade, no começo do livro, passou por uma transformação física e espiritual que é totalmente infundada. Depois de páginas e mais páginas enaltecendo sua beleza e vitalidade – tendo como metonímia a esbelteza de pés e mãos, grandes olhos escuros e espírito impetuoso –, eis como ele a descreve, ao aparecer em 1820:

Natacha se casara no começo da primavera de 1813, e em 1820 já tinha três filhas, além de um filho que muito desejara e agora estava amamentando. Ela ficara mais larga e mais corpulenta, de modo que era difícil reconhecer nessa mulher maternal e robusta a esguia e vivaz Natacha de outrora. Seus traços estavam mais definidos e tinham uma expressão calma, suave e serena. Não havia em seu rosto nada da animação sempre refulgente que antes ali ardera e constituíra seu encanto. Agora o que se via geralmente eram apenas o rosto e o corpo, e sua alma não se apresentava à vista. O que se enxergava era uma mulher forte, fértil, fornida. Agora o antigo fogo raramente se avivava em seu rosto. Isso acontecia apenas quando, como era o caso naquele dia, o marido voltava ao lar ou um filho doente se recuperava... ou nas raras ocasiões quando acontecia algo que a fazia cantar, coisa que abandonara totalmente desde o casamento. Nos raros momentos em que o antigo fogo se avivava em seu corpo fornido e plenamente desenvolvido, ela ficava ainda mais atraente do que nos dias de outrora... Não se preocupava com seus modos ou com a delicadeza da linguagem, nem com sua toalete, nem em se mostrar ao marido com suas atitudes mais agradáveis ou em evitar incomodá-lo sendo exigente demais... O assunto que concentrava toda a atenção de Natacha era sua família.13

Natacha seria falsa, artificial, sem autenticidade, quinze anos antes, quando era a belle da sociedade moscovita? Por que agora “ela tinha demandas sobre seu tempo que só poderia atender renunciando à sociedade”? O que encontrou em Pierre que a converteu em sua acólita e em escrava de sua família? A motivação para tal metamorfose permanece obscura. Sabemos apenas que:

Desde os primeiros dias da vida de casados, Natacha anunciara suas exigências. Pierre ficou muito surpreso com a posição de sua esposa, para si totalmente inédita, de que todos os momentos da vida dele pertenciam a ela e à família. As exigências da esposa o espantaram, mas também o lisonjearam, e ele se submeteu a elas.

Terá assumido esse novo espírito junto com o peso que ganhou após o casamento? Tolstói se contenta em explicar a mudança de Natacha invocando o princípio geral de que “o homem tem a faculdade de se deixar absorver totalmente por um assunto, por mais trivial que seja, e não existe nenhum assunto tão trivial que o impeça de adquirir proporções imensas, se a pessoa lhe dedicar toda a sua atenção”. Simplesmente aconteceu que Natacha tomasse sua família como o principal objeto de sua atenção e, “quanto mais se aprofundava... no assunto que a absorvia, mais ele crescia e mais fracos e insuficientes lhe pareciam suas próprias capacidades, de modo que ela as concentrava inteiramente naquela única coisa, e ainda assim não conseguia fazer tudo o que considerava necessário”.14

É como se Tolstói sentisse um prazer perverso em destruir todos aqueles aspectos da personalidade de Natacha que haviam feito dela não só a belle da sociedade, mas também o objeto ideal do amor de tantos homens e mulheres. Na passagem que acabo de citar, Tolstói também faz alusão ferina às “discussões sobre os direitos das mulheres, as relações entre marido e mulher e suas liberdades e direitos”, que parecem incompreensíveis a Natacha. Tais discussões, observa Tolstói, são importantes “apenas para os que não veem no casamento nada além do prazer que os cônjuges obtêm entre si, ou seja, apenas os inícios do casamento e não toda a sua significação, que reside na família”.

Natacha não precisa de nada além do marido e da família. Foi-lhe dado um marido e ele lhe deu uma família. E ela não só não via necessidade nenhuma de qualquer outro marido melhor, mas, como todas as forças de sua alma estavam empenhadas em servir àquele marido e à família, não conseguia imaginar e não via nenhum interesse em imaginar como seria se as coisas fossem diferentes.15 

Os personagens de Tolstói são dilacerados por desejos, sentimentos, atitudes, convicções e aspirações paradoxais e contraditórios. Isso se aplica às duas figuras “históricas” mais importantes, Napoleão e Kutuzov: o primeiro aparece como um menino brilhante, mas ganancioso, o segundo como um velho cansado, mas obstinado. Porém isso se aplica especialmente aos principais personagens de ficção em Guerra e paz: Pierre Bezukhov, Nicolai e Natacha Rostov e Andrei Bolkonski. O caráter desses personagens é formado pela soma de inúmeros detalhes sobre o que sentem, o que querem, seus sofrimentos, seus momentos de alegria ou exaltação e, acima de tudo, sobre o que fazem. Pois todos eles, sendo aristocratas, dispõem dos meios materiais para dar vazão a seus desejos. Mas nunca ficam satisfeitos e estão sempre em movimento; e, movendo-se, mudam. É difícil crer, porém, que, ao mudarem, esses personagens se desenvolvam. Tolstói parece não contemplar a possibilidade de um tipo de materialização heroica de um potencial dado ao nascimento, à maneira do herói do Bildungsroman ocidental. O máximo que seus heróis podem esperar é o tipo de estabilidade e paz desfrutadas por Pierre e Natacha e por Nicolai e sua esposa Maria ao final do livro.

IV

Não que Guerra e paz tenha realmente um final. Ele apenas tropeça num fecho. É claro que muitos romances históricos se interrompem com o súbito anúncio de que a série de eventos narrados acabou e é hora de encerrar o relato. É o que acontece em Waverley, mas também em obras de história, com a designação arbitrária de um determinado evento numa longa série, como o ponto culminante da narrativa. Tolstói nota, de fato, que não existem começos nem fins na história, apenas um fluxo de acontecimentos que os historiadores recortam de diversas maneiras e a partir dos quais fazem relatos, de maneira totalmente arbitrária.

Na história, diz Tolstói, é como na astronomia e os problemas levantados pela descoberta do movimento da Terra em torno do Sol. “É verdade que não sentimos o movimento da Terra, mas, admitindo sua imobilidade, chegamos ao absurdo, ao passo que, admitindo seu movimento (que não sentimos), chegamos a leis.” O mesmo se dá também com a “história”: “É verdade que não somos conscientes de nossa dependência, mas, admitindo nosso livre arbítrio, chegamos ao absurdo, ao passo que, admitindo nossa dependência do mundo exterior, do tempo e das causas, chegamos a leis”.16 Isso parece sugerir que vivemos no dilema entre o que sentimos (ou vivenciamos) e o que sabemos. E a questão parece ser que o conhecimento das leis naturais não nos ajuda em nosso esforço de viver uma vida dotada de significado, em que o sentimento prevaleça sobre a razão e a vontade. Somos mais dependentes quando nos cremos livres e somos mais livres quando escolhemos nossa dependência – da natureza, da terra, de nosso cônjuge, de nossa família e do universo, tudo menos a sociedade ou o estado. Assim encontraremos aquela “paz” mencionada no título de nosso texto. Mas a paz não é o mesmo que a felicidade ou a satisfação do desejo. Na verdade, ela é a supressão do desejo, a capacidade de abandonar todos os projetos sociais, o tipo de calma desfrutada por um casal quando, após o jantar, depois de pôr as crianças na cama, os dois podem sentir prazer na contemplação de sua mútua adequação.

Se o relato de guerra em Guerra e paz é repleto de atividades, movimentos, conversas, intrigas e uma grande dose de violência, mas sem muitos incidentes, o mesmo se pode dizer sobre a narrativa de ficção da alta sociedade russa durante o período de guerra. Embora sejamos convidados a assistir à cena social seguindo os destinos de quatro famílias russas importantes durante o período de 1805 a 1812, não se pode dizer que aconteçam muitas coisas de natureza especificamente social. O conflito de classes, por exemplo, é apresentado não como intrínseco à estrutura social, mas como derivação de diferenças “naturais” primordiais entre a casta dos servos, de um lado, e a alta nobreza fundiária, de outro. Ainda que fosse um grande proprietário de terras, Tolstói dizia ter pouquíssimo entendimento dos servos, artesãos, escriturários e funcionários públicos da Rússia e praticamente esperança nenhuma de que houvesse uma melhoria de suas condições.

Mesmo os conflitos dentro da nobreza – entre os mais ricos e os mais pobres, entre as famílias antigas e os nouveaux riches, os senhores e seus administradores – são apresentados como questões de natureza pessoal ou familiar, desvinculados do tipo de transformações fundamentais da ordem social que um dia viriam a derrubar a autocracia czarista e conduziriam à Revolução Bolchevique. Tolstói era socialmente esclarecido (libertou seus servos, criou escolas para eles e foi um agitador, defendendo a reforma política na Rússia), mas o ponto de vista que molda Guerra e paz ainda era assumidamente aristocrático e pelo menos levemente eslavófilo.

Sempre há uma tendência de “trabalhar” os agentes históricos importantes a fim de lhes dar uma aura de heróis ou vilões no relato que o historiador elabora a partir de seus dados. Napoleão tem sido tratado com tanta frequência como figura dramática que é difícil pensá-lo a não ser como um mito. Tolstói estava ciente desse problema e se sentiu levado a tentar desmistificar Napoleão, tratando-o como homem comum à mercê de forças das quais não tinha consciência e não conseguia controlar. Ele converte todas as suas personalidades históricas em personagens. E faz – ou tenta fazer – o inverso com suas personagens de ficção, isto é, converte-as em personalidades. Pierre, Andrei, Nicolai, Natacha, princesa Maria, Helene Kuraguina, todos são apresentados como aristocratas... comuns. Não há nada de “heroico” neles. Não têm “personalidade” na acepção oitocentista do termo. O que têm são psiques – e, aliás, psiques especialmente complexas.

Finalidades da história 

O romance histórico do começo do século XIX foi fruto de dois desenvolvimentos que dificilmente se imaginariam um século antes: a transformação da história em ciência e o desenvolvimento da narrativa romanesca em gênero literário sério. Desde o Renascimento e ao longo de todo o Iluminismo, a historiografia era vista como um ramo da retórica e o conhecimento histórico como, acima de tudo, um instrumento pedagógico, uma maneira de ensinar a moral por meio de exemplos. No final do século XVIII, porém, a história foi removida da categoria das letras e passou a se vincular à filologia, à paleografia e à diplomacia. Então, no começo do século XIX, a história se estabeleceu como ciência, ganhou espaço nas universidades e recebeu a tarefa de fornecer uma genealogia dos novos estados nacionais que adquiriam forma na esteira das guerras napoleônicas. Essa nova ciência da história ficou oficialmente encarregada do estudo objetivo de eventos reais individuais e de sua descrição numa narrativa verídica (em oposição à narrativa de ficção). Deveria se separar da filosofia e da teologia e se limitar a descrever as coisas como realmente eram, e não como poderiam ter sido ou como gostaríamos que tivessem sido. Esta última tarefa foi entregue à “literatura” e, mais especificamente, à narrativa romanesca, gênero que, na origem, era majoritariamente escrito por mulheres e especificamente destinado a elas, em que a imaginação era autorizada a levantar voo, afastando-se do mundo prosaico da experiência comum e se refugiando num passado idealizado de aventura, amor e magia. Aristóteles diferenciara entre história e “poesia”, entre conhecimento do evento singular e conhecimento do universal. No século XIX, a história se contrapunha à literatura, como conhecimento do mundo real versus ficções de mundos possíveis. O fato histórico, a partir de então, passou a ser definido como o próprio oposto da ficção literária. Qualquer mistura desses dois modos era tão impensável quanto a mistura dos sexos.

Assim, quando publicou anonimamente Waverley, ou Passados sessenta anos em 1814, Walter Scott se desculpou por ter reunido o que Deus, o homem e a cultura haviam insistido em manter à parte. Apesar do sucesso imediato e universal do novo gênero, Scott se desculpou porque ele mesmo acreditava na historiografia nascente em sua época. Considerava que o conhecimento do passado devia se fundar numa pesquisa exaustiva das fontes originais e ele próprio baseou a parte histórica de seu livro na obra de estudiosos da história, literatura e folclore escoceses. Ele justificou a criação das aventuras do fictício Edward Waverley durante a rebelião escocesa de 1745 como recurso pedagógico capaz de facilitar a assimilação do tema histórico para o belo sexo. Confiava que os leitores não iriam confundir fato e ficção, história e romance, e traçou cuidadosamente a linha divisória entre eles. Mas, embora seu sucesso mundial tenha instaurado a legitimidade do novo gênero, os historiadores profissionais consideravam sua obra perigosa. A dignidade da história dependia de se manter intocada por qualquer tipo de “ficção” – literária, científica ou filosófica.

Tolstói não mostra nenhum vestígio desse respeito de Scott pelos historiadores profissionais. Pelo contrário, não só pretendia entender a história russa melhor do que eles, como também dizia compreender a natureza da realidade histórica melhor do que os historiadores e filósofos da história de sua época. Queria devolver vida ao passado, transmitir como era lutar numa batalha, ser ferido, marchar além dos limites da exaustão, arriscar-se à prisão ou à morte devido à incompetência dos líderes. E pensava que a arte podia chegar a isso melhor do que a história. Em Tolstói, não há nenhum romantismo na apresentação das cenas, sons, cheiros e gosto da guerra. Ele transmite o sentimento de camaradagem entre os homens em batalha e reconhece a emoção de situações extremas, como as batalhas de massa, as cargas de cavalaria e os combates corpo a corpo. Mas também mostra que o entusiasmo que os homens podem sentir ao entrar em batalha logo pode desaparecer, varrido por um fogo de barragem da artilharia ou um fogo da infantaria em massa. Tolstói nos oferece a “sensação” da guerra, mais do que a logística das campanhas e batalhas; oferece-nos o território do campo de batalha, mais do que o mapa que lhe daria transparência e racionalidade e o faria parecer mais organizado do que realmente era.

Tolstói faz a mesma coisa ao apresentar a sociedade. Mais uma vez, oferece-nos a sensação do território, não o mapa. Nessas partes do livro, ele queria transmitir como era ser aristocrata, pertencer à “sociedade”, ser russo, lidar com servos, passar o dia de tocaia numa caçada, ir à caça com cães e cavalos, duelar, apaixonar-se, casar-se bem ou mal, criar filhos, sofrer a morte do cônjuge, ser traído pelo ente amado. Ele pinta a vida da aristocracia russa por dentro, com simpatia e compreensão, mas não acriticamente. Mostra o antigo regime em seu derradeiro momento de grandiosidade, quando o czar conseguira inspirar o povo russo a defender o solo sagrado da terra materna, e a nobreza se mostrou à altura da emergência ao comandar o exército contra o invasor. Mas, do ponto de vista de sua própria época, “passados sessenta anos” desde 1805, Tolstói podia ver que a aristocracia russa estava com os dias contados. Em sua apresentação dos Rostov, ele mostra uma família nobre típica já acuada por dificuldades econômicas, com sua função social questionada e sua base social – dependendo da mão de obra dos servos – desgastada. O mesmo se passa com todas as outras famílias. Encabeçadas por tiranos envelhecidos de um ou outro tipo, têm como principal perspectiva de futuro a esperança de que as filhas se casem com algum grande proprietário de terras. No quadro da vida social russa pintado por Tolstói, há tão pouco romantismo quanto em seu quadro da guerra.

Em Guerra e paz, é o imperador Napoleão que a história castiga com uma espécie de loucura, em primeiro lugar por lhe conceder um sucesso militar que, na realidade, não merece; em segundo, por alçá-lo ao topo do poder político como imperador; em terceiro, por levá-lo a conceber uma campanha militar inexequível. A história fez tudo isso, mas sem nenhuma finalidade moral ou metafísica. E isso porque a “história” é apenas o nome que os homens dão às coisas como elas realmente são, as coisas que aconteceram no passado, estão acontecendo no presente e acontecerão no futuro. Como esses acontecimentos não exibem nenhum plano ou finalidade, qualquer conhecimento que se possa derivar do estudo deles é de tipo puramente localizado, contingente, concreto e limitado.

Assim, para Tolstói, a circunspecção é a melhor parte do conhecimento, tal como do valor. Os personagens admiráveis em Guerra e paz – o general Kutuzov, Pierre Bezukhov, Nicolai Rostov, sua irmã Natacha, a princesa Maria, o camponês místico Platon Karataiev – são, no fundo, ricos devido a qualquer sabedoria imaginável a que tenham renunciado. Afinal – ao término do romance –, depois que Napoleão tem de voltar a Paris, é deposto e exilado, depois que seu vencedor Kutuzov morre, depois que o czar Alexandre cai sob a influência de místicos e charlatães, depois que Moscou é reconstruída, depois que Nicolai e Maria se casam, depois que Pierre e Natacha são abençoados com quatro filhos, no final das contas pouquíssimo se ganhou em sabedoria humana e menos ainda em savoir-faire social. Pierre – o protagonista central do romance – parece aturdido como sempre com a realidade social; Natacha ficou adulta, mas dificilmente terá amadurecido; Nicolai resolveu seus problemas financeiros casando-se com uma mulher que aprecia bastante, mas não ama; o czar caiu no tipo de incompreensão reacionária da sociedade russa que fomentará uma revolta após a outra durante os cem anos seguintes, e assim por diante. A história não é algo que se entenda, é algo que se atura – quando se tem sorte.

Notas:

1 Liev Tolstói, “Drafts for an Introduction to War and Peace”, in Tolstoy, War and Peace: The Maude Translation, Backgrounds and Sources, Criticism, 2a. ed. Nova York, 1996, p. 1087. Todas as citações subsequentes foram extraídas dessa edição, doravante assinalada como WP. Este artigo foi publicado originalmente como “Contra il realismo storico”, in Franco Moretti (org.), Il romanzo, vol. V: Lezioni, Turim, 2003, pp. 221-37.
2 Eikhenbaum caracterizou a evolução das concepções de Tolstói sobre a história nos seguintes termos: “O anti-historicismo original de Tolstói lhe ditou uma ideia bastante modesta de uma crônica de guerra e família. Então, movido por preocupações da época, ele começou a transformar a crônica num poema histórico, num épico, e a introduzir toda uma série de noções histórico-filosóficas. Seu anti-historicismo se converteu em niilismo histórico, e sua crônica-romance se tornou um novo gênero, que nasceu da combinação da ação romanesca e de materiais históricos com a reflexão filosófica. O resultado foi um gênero negativo, na medida em que os elementos constituintes estavam em conflito entre si”. A seguir, Eikhenbaum afirma que “o romance de Tolstói não era um novo gênero”, mas uma combinação de duas formas correntes nos anos 1820 e 1830, o romance da vida familiar ou “do senhor rural” e o romance militar-histórico. Boris Eikhenbaum, “The Genre of War and Peace in the Context of Russian Literary History”, in WP, p. 1126.
3 WP, p. 537.
4 WP, pp. 537-8.
5 WP, pp. 671-2.
6 WP, pp. 886, 892.
7 WP, p. 664.
8 WP, pp. 1040-1.
9 WP, pp. 1040-1.
10 WP, p. 941.
11 WP, pp. 977-80.
12 WP, p. 873.
13 WP, pp. 1020-1.
14 WP, p. 1021.
15 WP, p. 1022.
16 WP, p. 1074.

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