30 de novembro de 2018

Por que o socialismo é melhor na cama

O capitalismo é ruim de cama por ser ruim para os relacionamentos. O socialismo pode fazer melhor.

Liza Featherstone


Pausa para uma dança em um intervalo entre sessões do XIX Congresso da Komsomol (a União da Juventude Comunista na União Soviética). Foto: RIA Novosti / Wikimedia

Tradução / Os estadunidenses, ou talvez em sua maioria os jovens e heterossexuais, vem sofrendo de uma seca sexual. As razões para isso são complicadas, mas de acordo com um artigo exaustivo e copiosamente bem-pesquisado de Kate Julian, no The Atlantic, o problema é um coquetel enjoativo de alienação social, tecnologia, ansiedade, depressão e a pressão neoliberal para ser bem-sucedido. Além disso, o Wall Street Journal reporta que a rede de lingerie Victoria’s Secret vem passando por problemas pois “sexo não está vendendo”.

O capitalismo vem tentando vender sexo desde os seus primórdios – só que agora nós não estamos comprando. Julian cita o Ministro da Saúde sueco, após um estudo recente descobrir um problema similar naquele país: “Se tiverem se deteriorado as condições sociais para uma boa vida sexual – por exemplo, por causa do estresse ou de outros fatores nocivos –… isso é um problema político”. Nesse contexto, Why Women Have Better Sex Under Socialism: And Other Arguments For Economic Independence (“Por Quê As Mulheres Transam Melhor no Socialismo: E Outros Argumentos a Favor da Independência Econômica”, em tradução livre), uma polêmica curta, direta, e maravilhosamente cativante da antropóloga Kristen Ghodsee, não poderia ser mais urgente.

“O capitalismo desregulado é ruim para as mulheres”, argumenta Ghodsee, “E se nós adotarmos algumas ideias do socialismo, as mulheres terão vidas melhores… e sim, até mesmo sexo melhor”. É um argumento com fundamentos históricos, baseado em sua extensa pesquisa acadêmica sobre a antiga União Soviética e os países do Bloco do Leste.

De maneira convincente, Ghodsee argumenta que através de serviços de cuidados infantis abertos ao público, da participação total na força de trabalho, do investimento em educação das mulheres, e de uma robusta propaganda feminista, os Estados socialistas realizaram enormes avanços para a igualdade feminina, mesmo em culturas bastante patriarcais. Também melhorou muito a qualidade material da vida das mulheres. A mortalidade feminina e infantil diminuiu e o analfabetismo essencialmente desapareceu. Tudo isso teve tremendas implicações para o sexo heterossexual: com homens e mulheres se beneficiando igualmente de serviços públicos como educação e saúde, e do acesso a empregos estáveis e à uma remuneração decente, as mulheres deixaram de depender dos homens, e o sexo e o amor puderam passar a ser considerados nos seus próprios termos, livres de incentivos econômicos. Nas palavras de Ghodsee, sem rodeios: “as mulheres não tinham que casar por dinheiro”.

É fácil imaginar como tais condições poderiam melhorar a vida das mulheres. Entretanto, será que é um fato evidente que o sexo desmercadificado é melhor? Afinal, algumas profissionais do sexo e seus clientes gostam da natureza de seus encontros; alguns homens e mulheres comprometidos provavelmente também sentem o mesmo. Eu não sinto menos prazer no sexo se o homem paga a conta (talvez eu até mesmo sinta mais prazer, o que só complica as coisas). Então, para a sorte de nós que ainda precisamos ser convencidas, Ghodsee apresenta fortes evidências para apoiar seu argumento de que as mulheres transam melhor no socialismo.

De todas as residentes do antigo bloco soviético, as vidas sexuais das mulheres da Alemanha Oriental foram alvo das pesquisas mais robustas, e esses dados foram contrastados com os de suas menos afortunadas correspondentes na Alemanha Ocidental, que viviam em um regime capitalista (além de religioso, um estorvo adicional à libido). Além de políticas como cuidados infantis universais e empregabilidade feminina, o governo realizava um forte trabalho de incentivo à ideologia feminista, promovendo a igualdade de gênero e a independência feminina como benefícios exclusivos do socialismo, e até mesmo propagandeando a importância dos homens dividirem o serviço doméstico. Pelo fato das mulheres da Alemanha Oriental terem se tornado economicamente independentes dos homens, eles se tornaram mais sexualmente atenciosos e generosos do que seus correspondentes no Ocidente. Em contraste, com as mulheres dependendo deles para a sua sobrevivência, os homens da Alemanha Ocidental tinham pouco incentivo para melhorar sua performance no quarto. Além disso, a vida na República Democrática Alemã era mais relaxante do que no Ocidente, com pouco estresse econômico e uma abundância de tempo para o lazer.

Essa diferença gerou resultados claros e mensuráveis. Os pesquisadores encontraram taxas muito mais altas de satisfação sexual nas mulheres da Alemanha Oriental do que na Ocidental. Um levantamento apontou que 80% das mulheres Orientais sempre sentiam orgasmos, comparadas com 63% na Alemanha Ocidental. Em uma divisão particularmente comovente, 82% das mulheres da Alemanha Oriental se sentiam “felizes” após o sexo, comparadas com pouco mais da metade disso no Ocidente. Essas estatísticas foram (charmosamente) utilizadas pelo Estado germânico oriental para argumentar pela superioridade do comunismo, e foram recebidos com um ceticismo defensivo pela mídia da Alemanha Ocidental.

Ghodsee, que não é nenhuma propagandista, repetidamente deixa claro que mesmo no terreno limitado desse livro, o socialismo não era perfeito. Ela admite que o “sexo soviético era uma porcaria” sob Stalin, com o aborto sendo ilegal de 1936 a 1955 e a igualdade feminina sendo de baixa prioridade. Ghodsee reconta os primórdios idealistas do feminismo na União Soviética, com a visão de Alexandra Kollontai do amor romântico de camaradagem que a mulher socialista liberada iria vivenciar, e como Stalin abandonou esses ideais em face das pressões econômicas. E assim como na maior parte do mundo no século XX, o bloco soviético não era um ótimo lugar para pessoas LGBT, o que deve ter afetado de maneira significativa a vida sexual de milhões.

Exceto talvez como uma tara hipotética, o totalitarismo não é lá muito sensual. O relato de Ghodsee sobre os aspectos sexualmente repressivos desses regimes é um lembrete estimulante de como o sexo necessita do libertarianismo tanto quanto do socialismo. É claro que o libertarianismo de livre-mercado dos irmãos Koch está em profundo desacordo tanto com o socialismo quanto com um bom sexo. Porém, um compromisso social-libertário de deixar adultos que consentem fazer o que quiserem é algo vital. Autoritários patriarcais que buscam controlar nossa sexualidade e reprodução, sejam stalinistas ou Republicanos contemporâneos, são os inimigos do sexo. Mesmo Estados que nós não encaramos como repressivos às vezes policiam a sexualidade das mulheres de forma brutal – veja, por exemplo, os efeitos punitivos da abordagem escandinava às profissionais do sexo.

A maior parte da arte erótica era proibida nos países socialistas. Contudo, havia importantes exceções. A Iugoslávia permitia algumas revistas eróticas. Em outras partes, manuais sexuais profundamente atentos ao prazer eram encorajados, e se tornaram campeões de vendas na República Democrática Alemã e na Polônia, como Ghodsee escreveu recentemente no Washington Post. Toda criança búlgara sabia onde estava escondido o exemplar dos seus pais de Man and Woman, Intimally (“Homem e Mulher, Na Intimamente”, em tradução livre).

Prazer e perigo

Esse livro é um tônico para um discurso severamente debilitado. Nos últimos anos, o prazer sexual das mulheres em grande parte desapareceu das políticas feministas e de esquerda – de fato, praticamente deixou de ser pensado como uma questão política séria. Esse apagamento é recente, até mesmo repentino, mas nós já vivenciamos isso antes.

Ao contrário do que dizia o estereótipo popular, o sexo, e especificamente o prazer das mulheres, era essencial para a segunda onda do feminismo estadunidense. (Exceto por alguns pontos fora da curva, como Emma Goldman ou Victoria Woodhull, as mulheres do passado são quase sempre vistas como puritanas assexuadas, provavelmente porque cada nova geração sente repulsa ao pensar na sexualidade de suas mães e avós.) Em grupos voltados à conscientização, as mulheres analisavam como o patriarcado as havia confundido em relação a seus próprios corpos, corrigindo essa confusão com espelhos. Livros foram escritos sobre o orgasmo feminino, com diagramas mostrando onde as terminações nervosas relevantes poderiam ser encontradas. O aborto sob demanda e o acesso ao controle de natalidade eram exigências centrais do movimento e estavam explicitamente ligados à libertação sexual feminina.

Nos anos 80, entretanto, enfrentando a reação negativa da direita, as feministas estadunidenses recuaram. O movimento começou a fugir de qualquer coisa que parecesse muito insinuante ou insultante para as boas maneiras conservadores. Eu me lembro de uma mulher que costumava ficar nas ruas de Nova York, gritando com as pessoas, especialmente as mulheres. “Assine a petição! Assine a petição!” Ela berrava para nós quando passávamos, com a intensidade de um pregador de praça, empurrando em nossas caras uma representação gráfica, da revista Hustler, de uma mulher sendo processada por um moedor de carne. (Aquela capa da Hustler de 1978 era uma paródia projetada pelo feminista Yippie Paul Krassner, destinada a criticar a exploração das mulheres feita pela revista; mas tais sutilezas facilmente se perdem em uma orgia de indignação.) Se nos recusássemos a assinar, ela gritava em nossos rostos: “espero que você seja estuprada! ” (lembro de parar para ler a petição, mas não lembro o que dizia.) Camille Paglia dirigiu um pequeno documentário, “Glenda e Camille Do Downtown” (“Glenda e Camille vão ao centro da cidade”, em tradução livre), no qual ela e sua amiga drag queen, Glenda Orgasm, instigam uma briga com as mulheres anti-pornografia.

Em um misto de tragédia e comédia irônica, parte do movimento feminista encontrou uma causa comum com a direita ao demonizar a pornografia e tornar-se “firme” contra esse crime. Elas se concentraram na violência sexual masculina contra as mulheres como o principal instrumento de opressão feminina, acima de qualquer outra coisa (ignorando o local de trabalho ou a família). “A pornografia é a teoria, o estupro é a prática”, escreveu Robin Morgan, editora da Revista Ms.

Muitas feministas protestaram, tanto contra o estreitamento do foco do movimento, quanto à visão emergente do sexo como nada além de perigo e trauma para as mulheres, argumentando que o sexo era uma fonte de “prazer e perigo” (o título de uma conferência feminista sobre sexualidade que foi um ponto de referência desse período, bem como a antologia que saiu dela, editada por Carole Vance). Algumas dessas críticas eram acadêmicas, como Vance, enquanto outras, como Susie Bright, Amber Hollibaugh e a falecida Ellen Willis (também mulheres da esquerda), escreviam para um público mais abrangente. O pessoal do “prazer e perigo”, inicialmente marginalizado, acabou por desfrutar de um significativo peso cultural e intelectual, auxiliadas por uma emergente cultura queer com uma visão altamente positiva em relação ao sexo, bem como pela música do movimento riot grrrl, que teve uma enorme influência no feminismo da década de 90. (Eu estava na casa dos vinte anos nesta década e escrevi um pouco sobre esses assuntos.) Algumas escreviam ensaios pessoais e os publicavam em zines e antologias. Nós protestávamos, no estilo ACT UP [1], para exigir direitos para os gays, recursos para a saúde feminina, financiamento para pesquisas sobre a Aids e o “aborto sob demanda e sem desculpas”. Fazíamos topless durante os protestos, com a palavra “SAPATÃO” escrita em nossas barrigas. Mulheres criavam pornografia feminista. Seria fácil zombar da explosão de butiques de vibradores deste período e ainda mais fácil tirar sarro das capas das revistas que anunciam o advento do “Do-Me Feminism” [2]. Mas a ideia de que as mulheres tinham direito ao desejo e ao prazer sexuais, sem que fossem definidos pela violência ou pelas expectativas masculinas, foi uma intervenção importante na cultura em geral, assim como uma re-intervenção (após um breve desvio causado pelas Reaganistas) no feminismo em si.

Em anos recentes, no entanto, o feminismo, incluindo o de esquerda, abandonou quase que totalmente a discussão sobre o prazer, retornando a uma fixação sobre a violência masculina. Embora o movimento #MeToo tenha levado a uma ação (há tempos necessária) em relação ao assédio no ambiente de trabalho e criado um espaço para que mulheres pudessem denunciar os horríveis abusos que ficaram escondidos por muito tempo, ele também levou ao retorno de um discurso feminista em que o sexo, para as mulheres, é mais uma vez visto primariamente como uma fonte de ameaça e de opressão. Isso ofusca muitas de nossas experiências mais estimadas – uma crítica que as feministas do “prazer e perigo” dos anos 80 lançavam contra as obcecadas pela anti-pornografia – e, pior ainda, ameaça apagar o prazer de nossas imaginações utópicas, ao invés disso nos encorajando a nos conformar com uma sociedade em que não sejamos estupradas.

É uma expectativa baixa – muito baixa – e mesmo assim, infelizmente, ainda não realizada por nenhuma sociedade, socialista ou capitalista. O movimento #MeToo, assim como o feminismo anti-pornografia dos anos 1980, está certo em insistir que para que o sexo seja “melhor”, ele deve ser consensual e livre de qualquer medo. Nós não deveríamos perder isso de vista, mesmo enquanto insistimos no direito das mulheres ao prazer. Surpreendentemente, a violência contra as mulheres (violência doméstica, estupro, assédio) está ausente da discussão de Ghodsee – isso porque, como ela aponta, os Estados socialistas suprimiam as discussões sobre esses problemas.

O material sobre a Alemanha Oriental cria alguns dos momentos mais cativantes no livro de Ghodsee. Como qualquer exército ocupante, os soviéticos usaram o estupro como uma arma contra os colonizados naquele país, com o total conhecimento da liderança soviética. Isso significa que a introdução de muitas mulheres germânicas ao “sexo sob o socialismo” foi um horror: alguns historiadores estimaram os estupros em ao menos centenas de milhares, com algumas mulheres sendo atacadas múltiplas vezes. (como qualquer coisa que diz respeito à antiga União Soviética, esse número tem sido amargamente contestado, num tipo de futebol político para aqueles que continuam a reviver a Guerra Fria). A correspondente de guerra soviética Natalya Gessen observou em 1945: “Os russos estavam estuprando todas as mulheres germânicas dos oito aos oitenta anos… era um exército de estupradores”.

Considerando esse início traumático, o bem-estar sexual das mulheres no que veio a ser a República Democrática Alemã é especialmente impressionante. É claro que a guerra é um inferno, e os soldados soviéticos passaram longe de serem os únicos estupradores na Segunda Guerra Mundial (E, apenas para contextualizar, eles estavam absolutamente embriagados). No entanto, a força e a escala específicas da brutalidade das tropas sugere um agudo fracasso da Rússia stalinista em produzir homens que conseguissem imaginar as mulheres como seres humanos semelhantes a si mesmos. Não culpo Ghodsee por não discutir esse episódio pavoroso, mas alguém precisa mencioná-lo, então eu deixarei isso aqui.

Nada disso diminui as muitas conquistas feministas da USSR e de seus aliados no bloco oriental, ou o fato de que a sociedade capitalista fracassou de maneira ainda mais espetacular em reconhecer e desenvolver a plena humanidade das mulheres. É assim que chegamos a esse estranho momento em que, como reporta Kate Julian, muitas mulheres compreensivelmente preferem não se arriscar no sexo com homens jovens tão pobremente socializados, tão viciados em pornografia, tão agressivos e afastados do mundo real, que não percebem que você provavelmente deveria perguntar a uma pessoa o que ela curte antes de asfixiá-la na cama por diversão.

Além desse tipo de alienação bizarra, o capitalismo produz uma extrema vulnerabilidade econômica, que expõe as mulheres a uma violência ainda maior. A insegurança econômica torna mais difícil abandonar os locais de trabalho e relacionamentos abusivos.

Camponesas e camareiras de hotel imigrantes são atacadas no trabalho com muito mais frequência do que empregadas de colarinho-branco – e com toda a repercussão na mídia sobre a violência sexual nos campuses universitários, as mulheres em idade universitária que não tem a sorte de estarem matriculadas em uma instituição de ensino possuem 30% mais chances de serem estupradas, de acordo com dados da Pesquisa Nacional de Vitimização de Crimes do Departamento de Justiça dos EUA de 1995 a 2011. A articulista da Jacobin, Belén Fernández, escrevendo sobre o estupro na Espanha em um ensaio de 2014 para a Al Jazeera, observou esse fato no contexto do neoliberalismo naquele país, apontando o “violento rompimento dos vínculos interpessoais” e da solidariedade humana em uma sociedade onde o capital reina supremo.

Apenas se conectar

A obsessão das feministas estadunidenses do movimento anti-pornografia com os aspectos menos prazerosos da sexualidade era bizarra e desagradável para a maioria das mulheres. Contudo, por melhores que fossemos em criticá-las, a maioria das feministas do “prazer e perigo” da década de 90 não tinha muito a dizer sobre como as condições materiais poderiam afetar o sexo para as mulheres, ou sobre como poderíamos fazer melhor. Politicamente, a década de 90 foi uma selva confusa, onde mesmo nos círculos feministas, poucas pessoas estavam falando sobre o socialismo. Nós não tínhamos, portanto, muitas soluções para os problemas que a maioria das mulheres enfrenta em suas vidas – falta de tempo, trabalho, cuidados para as crianças, desigualdade salarial, violência – e tudo isso torna a busca pelo prazer ainda mais complicada.

Talvez em partes essa seja a razão pela qual tenha ressurgido um feminismo obcecado pela violência, do tipo “os homens são um lixo”. Muitas mulheres vivenciam o sexo como uma fonte de violência, opressão, ou de obrigações tediosas, e os homens estão mais influenciados pela pornografia misógina (ou enganosa) do que nunca. A abordagem da década de 1990 seria tentar, mais uma vez, repensar o sexo em termos feministas, por meio de uma mudança na cultura. Mas Ghodsee oferece uma abordagem para o feminismo pró-sexo que é mais prática, com mais apelo para o discurso dominante (algo surpreendente e revigorante de se escrever sobre um texto socialista). Seu livro traz a ambição libidinal dos anos 1990 para a nossa nascente época socialista-feminista, onde ela talvez possa finalmente fazer sentido.

O capitalismo é ruim para o sexo. Mas o livro de Ghodsee – junto com os dados no artigo de Julian e em muitas outras fontes – sugere que talvez seja porque ele também é ruim para os relacionamentos. Após Stalin, as leis em torno do aborto foram liberalizadas, a ditadura patriarcal se atenuou, e o sexo melhorou para as mulheres soviéticas. Em um estudo contrastando as atitudes sexuais das mulheres russas antes e depois de 1989, o destaque vai para a ênfase que as mulheres da era soviética punham no romance e na amizade. Após a chegada do livre-mercado, as mulheres assumiram uma visão mais instrumental da sexualidade, como algo a ser trocado por dinheiro, segurança e presentes. “Academias de interesseiras” passaram a ensinar as mulheres a encontrar um homem rico. As pesquisas mostram que essa visão instrumental era rara entre as mulheres na era soviética.

Certamente a independência e a ausência de estresse econômico sobre as mulheres exerceu um papel no prazer socialista. Mas as pessoas que viviam nos países previamente socialistas também parecem ter experimentado vidas mais sociais e conectadas do que a maioria das pessoas em um regime capitalista. A amizade era uma parte central da vida diária. Os dados sobre nossas sociedades capitalistas atualmente assexuadas não surpreendem, considerando o quão isoladas as pessoas estão. O sexo é, ao menos em parte, uma forma de companheirismo. Socializar é um hábito facilmente perdido. Essa parece ser uma importante maneira de se medir uma sociedade: as pessoas se sentem seguras, amparadas, excitadas, e mesmo “felizes” na companhia de outros? Nesse momento, a nossa sociedade está fracassando miseravelmente.

Nós sempre vamos sofrer de desilusão amorosa. O socialismo não pode fornecer maravilhosos virtuoses do sexo oral a todos, o tempo todo. Algumas pessoas não se sentirão atraídas por nós, malditos sejam, e amantes continuarão a terminar uns com os outros, de maneira cruel, até mesmo sem explicações. Mas o livro de Ghodsee mostra que para as mulheres, o socialismo pode ao menos melhorar as condições para o prazer – e talvez inextricavelmente, para o amor.

Sobre o autor

Liza Featherstone é escritora da equipe da Jacobin, jornalista freelancer e autora de Selling Women Short: The Landmark Battle for Workers 'Rights at Wal-Mart.

Estamos com os rebeldes

Os protestos dos "coletes amarelos" da França contra os preços dos combustíveis não foram organizados pela esquerda. Mas a luta para ampliar suas demandas é fundamental para bloquear o crescimento da extrema-direita de Marine Le Pen.

Aurélie Dianara

Jacobin

Manifestantes em Paris, França, em 24 de novembro de 2018. NightFlighttoVenus / Flickr

Tradução / Os dois últimos fins-de-semana assistiram a grandes mobilizações de massas em toda a França, pelos “jalecos amarelos” que protestam contra o aumento dos preços dos combustíveis. No sábado, 17 de novembro, 282 mil desses “jalecos amarelos” (assim chamados por causa dos coletes fosforescentes, de alta visibilidade, que todos os motoristas franceses são obrigados, por lei, a ter no carro) mobilizaram-se em todo o país, bloqueando estradas, em “operações tartaruga” para dificultar o trânsito, e ações para passar pelos pedágios sem pagar. Foram mais de duas mil ações em todo o país, quase 400 prisões, várias centenas de feridos e um morto. Houve confrontos diretos com a polícia, e o movimento prosseguiu nos dias seguintes, sem arrefecer, apesar da repressão.

No dia 24 de novembro, o Ministério do Interior estimou que 106 mil pessoas participaram dos protestos, incluindo os 800 que se reuniram em Paris para o autoproclamado “Ato II” do movimento. Embora a polícia municipal tenha impedido que manifestantes se aproximassem do Eliseu, palácio presidencial, os manifestantes realmente tomaram a Avenida dos Champs Elysées, coração da cidade, onde houve confrontos violentos com a polícia ao longo de todo o dia. Alguns jalecos amarelos já anunciaram que pretendem voltar a Paris no próximo sábado.

Mas também notável é a cobertura que a mídia está dando a esses protestos: verdade é que nenhum outro movimento social recente na França teve tão ampla divulgação. Durante dez dias, toda a mídia francesa esteve ocupada tentando identificar esses tão improváveis manifestantes. Muitos deles disseram aos jornalistas que jamais antes participaram de manifestações; declaram-se participantes de um movimento de cidadãos apolíticos, que emergiu por fora das organizações sindicais e dos partidos políticos que em geral dominam manifestações tão amplas.

Mas esse movimento é complexo, embrionário, com muitas faces: homens, mulheres, empregados, trabalhadores precarizados, desempregados que vivem da assistência social, muitos economicamente inativos, aposentados, professores, comerciantes e trabalhadores. Lá estão também grupos partidarizados e sindicalistas, misturados na massa. Vêm da esquerda e da direita. Mas todos têm um ponto em comum: essa é a França que luta para sobreviver até o fim do mês. Dito em termos simples, é movimento popular. Mas não de todo o povo.

Que povo?

O povo que se reuniu no movimento dos jalecos amarelos é o povo da França das periferias: que não vem dos grandes centros urbanos, mas de pequenas cidades e áreas rurais. Uma parte da França que não é vista com frequência nos levantes contemporâneos. Para se tornarem visíveis, vestem os jalecos amarelos fosforescentes, o mesmo que todos os motoristas têm de carregar no carro, por lei, para emergências. Chegam juntos e organizados, pelas mídias sociais — há poucas semanas, começaram a surgir grupos, criados por département (pequenas unidades administrativas francesas) — e em alguns casos houve reuniões preparatórias antes de tomarem as ruas na madrugada do sábado 17 de novembro.

Os jalecos amarelos saíram para protestar contra o aumento nos preços dos combustíveis. E com muito bons motivos: esse ano o preço do combustível subiu 23% e o diesel 14%, depois do salto no preço do barril de petróleo. Além disso, o governo anunciou recentemente que os preços do diesel e da gasolina aumentarão ainda mais — quatro e sete centavos por litro respectivamente –, apresentando esse aumento como meio para financiar uma transição ecologicamente orientada para a energia.

Os aumentos anunciados causaram, não surpreendentemente, grave descontentamento nas classes médias e entre os mais pobres, especialmente os que moram nas periferias das grandes cidades, mais afetados pelo aumento no preço do transporte. O preço dos combustíveis atinge duramente a renda das famílias, no caso desses cidadãos, que viajam muitos quilômetros de carro diariamente.

Em termos de demandas, os jalecos amarelos querem, em primeiro lugar, livrar-se desse “imposto carbono”. Mas por trás da ira há algo mais. Como os manifestantes e apoiadores repetiram várias vezes ao longo das últimas duas semanas, para justificar as próprias ações (que geraram transtornos significativos), a questão do preço dos combustíveis é como “a gota d’água que fez transbordar o copo”.

As vozes que se ouviram em dias recentes manifestam claramente um sentimento de exasperação, a sensação, nessas pessoas, de estarem sendo objeto do desprezo (e de estarem sendo excluídos) da classe política, que essas pessoas de modo geral rejeitam. Muitos exigem que o presidente Emmanuel Macron renuncie. Insistem que Macron tem baixo apoio da população e frágil legitimidade eleitoral: fato é que, nas eleições presidenciais do ano passado, Macron obteve apenas 24% dos votos no primeiro turno; e o não comparecimento às urnas no segundo turno é recorde histórico. “Macron, renuncie!” é slogan que troveja nas províncias e também na Avenida Champs Elysées.

O sentimento de exasperação é resultado de anos de arrocho fiscal e de políticas sociais que aos poucos foram estrangulando as classes médias, inclusive em termos de impostos mais altos. Imediatamente depois de assumir o governo, Macron aboliu o Imposto Solidários sobre Grandes Fortunas [Impôt de Solidarité sur la Fortune (ISF)], com o que deu €4 bilhões de euros a mais aos mais ricos; e aprofundou o Crédito do Imposto para Competitividade e Emprego [Crédit d'Impôt pour la Compétitivité et l'Emploi (CICE)], programa de isenção e cortes de impostos, com o que passou a transferir €41 bilhões ao ano para empresas francesas, inclusive às multinacionais. Pouco depois, com o orçamento para 2018, Macron estabeleceu um imposto fixo [flat tax] que também reduz a taxação sobre o capital, e dá outros €10 bilhões para os mais ricos.

Ao mesmo tempo, o governo aumentou a Contribuição Social Generalizada [Contribution Sociale Généralisée (CSG)], imposto sobre a renda a ser pago por aposentados e pensionistas, depois de as próprias aposentadorias e pensões terem deixado de ser corrigidas pela inflação (o que reduz a capacidade dos aposentados para proverem o próprio sustento). O governo pôs fim aos contratos subsidiados (que permitiam que muitos trabalhassem por contratos parcialmente financiados por organizações públicas) e reduziu em 5 euros mensais a contribuição social para moradia dos mais pobres.

Como se isso não bastasse, o novo “imposto do carbono” pesará cinco vezes mais no orçamento das classes médias, do que no das classe rica. E o governo não tomou qualquer medida para reequilibrar esse tratamento obviamente desigual – garantindo, por exemplo, alguma ajuda às famílias mais pobres.

Essas medidas, que se somam às políticas já postas em prática pelos presidentes Nicolas Sarkozy e François Hollande, só fizeram produzir aumento massivo na desigualdade social na França. Ao longo das últimas duas décadas, as maiores fortunas na França aumentaram dez vezes, ao mesmo tempo em que, como mostra recente estudo do Observatório Francês das Conjunturas Econômicas (OFCE) e do Instituto Nacional de Estatística e Estudos Econômicos (INSEE), o “poder de compra” das famílias francesas caiu €440 por ano desde a crise de 2008. Nesse contexto, nem surpreende que se tenha disseminado um senso de injustiça e humilhação; e a consciência de que a França tem hoje um arrogante “presidente dos ricos.”

Assim se exacerbou uma divisão entre o povo e a elite privilegiada representada pelo presidente, agravada por uma série de recentes escândalos financeiros envolvendo chefes de Estado. Se governos continuam a repetir que alívio fiscal para os mais ricos e grandes companhias estimularia investimentos, os números mostram coisa muito diferente: ainda estamos esperando pelos milhões de empregos prometidos por Hollande e seu então conselheiro Macron quando o Crédit d'Impôt pour la Compétitivité et l'Emploi (CICE) foi lançado em 2012.

Interesses convergentes?

O movimento não está limitado à França continental, mas também alcança as “ex”-colônias francesas em territórios de além-mar e em particular a Ilha de Réunion. Num território onde o desemprego alcança a estratosfera e 42% da população vive abaixo da linha da miséria, os preços do petróleo, gás e da eletricidade também continuam a aumentar. Como na França rural e periférica, esses territórios sofreram de modo muito específico a degradação dos serviços públicos ao longo de mais de uma década, com governos fechando hospitais, os mesmos que cortes e impostos sobre os preços de combustíveis estariam sendo criados para conseguir pagar. O contrato social está em cacos, e por aí a fúria cresce.

Na Ilha Réunion, de fato, o movimento assumiu proporções especialmente impressionantes, com confrontos com a polícia, incêndio de carros e “autodescontos” (saques de lojas), tudo levando à introdução, terça-feira da semana passada, de um toque de recolher imposto pela polícia da ilha.

Na verdade, o conselho regional anunciou, dia 21 de novembro, que congelaria o preço dos combustíveis pelos próximos três anos, mas nem por isso as tensões cederam, e os jalecos amarelos agora exigem cortes no preço do combustível. As demandas do movimento ampliaram-se, e agora cobrem também o custo de vida, o acesso a empregos, medidas que ataquem as desigualdades e uma demanda ampla por “mais respeito”.

No dia 26 de novembro, os jalecos amarelos em toda a França nomearam oito “comunicadores nacionais” para falar por Facebook, responsáveis pelo diálogo com o governo. Embora alguns no movimento questionem a representatividade desses porta-vozes, eles já exigiram uma reunião com o governo, para levar adiante o atendimento às demandas do movimento.

As principais propostas formuladas até agora são uma redução geral nos impostos e a criação de uma “assembleia de cidadãos” para discutir a transição ecológica, mais respeito à voz dos cidadãos, aumento do poder de compra e medidas para renovar e atualizar o valor do trabalho. A reunião também discutirá medidas diversas, como uma proibição ao uso do glifosato, comercialização de biocombustíveis, extinção do Senado, organização de referendos locais e nacionais frequentes, aumento nos subsídios para criação de empregos (não precários), respeito à paridade de gêneros, aumento no salário mínimo e corte nas contribuições sociais de empregadores.

Ontem, os jalecos amarelos lançaram um comunicado à imprensa, incluindo cerca de 40 “diretivas do povo,” enviado também aos Deputados. A lista inclui medidas como completa solução para o problema dos sem-teto; sistema de impostos mais fortemente progressivo, um sistema universal de seguridade social, salários de deputados reduzidos para a média nacional, proibir que se transfiram empresas e empregos para outros países, criar mais contratos sem fim marcado, abolir o imposto CICE, investimento em transporte sustentável, fim das políticas de austeridade, introdução por lei de um salário máximo (de €15 mil /R$66 mil/mês), controle sobre preços de alugueis e fim imediato do fechamento de postos de correio, linhas de trem, escolas, creches etc.

Tudo isso parece desafiar as políticas do presidente “anti-Robin-Hood”, que rouba dos pobres para dar aos ricos. Incontáveis cartazes exigem a renúncia de Macron; na verdade, o movimento atual vem na sequência de muitos outros iniciados mesmo antes de 17 de novembro, desde a luta contra a reforma universitária e os cortes no setor público, até a batalha contra a repressão levada a efeito em nome de “combater o terrorismo”. Mas ainda é preciso esperar para confirmar se a sempre tão almejada “convergência das lutas” estaria afinal acontecendo.

Os jalecos amarelos são vistos com um misto de confusão, suspeita e desconfiança – não só por uma mídia condescendente, mas também em amplas faixas do comentário oriundo do muito variado mundo da Esquerda. A críticas ao comportamento deles é visivelmente influenciada por evidente desprezo pelas “classes subalternas”: as mídias sociais pululam de piadas sobre “imbecis” saídos “dos cortiços”, gente “da França de baixo”. O mesmo tom também apareceu nas redes sociais mais próximas do “movimento” autônomo de esquerda, antes da potente manifestação de 17 de novembro.

Algumas dúvidas são legítimas. Os ecologistas e os defensores da natureza ficaram, para dizer o mínimo, desconcertados pelo burburinho em torno de um movimento que basicamente pede para queimar mais combustível a um preço menor e que parecia inicialmente desinteressado na intenção, pelo menos explícita, do governo de usar este “Imposto sobre carbono” para financiar a transição ecológica.

Essa foi uma das principais razões pelas quais as forças de esquerda não apoiaram, de início, o movimento. Dada porém a extensão da mobilização, muitos reconsideraram a posição inicial; de fato, todas as forças da oposição, da esquerda e da direita (exceto os Verdes) manifestaram apoio discreto ao movimento, sempre cuidando para não ser acusadas de estar “recuperando” o movimento para seus específicos objetivos políticos.

Jean-Luc Mélenchon e o deputado e escritor François Ruffin, dentre outras figuras de France Insoumise — além de muitos de seus militantes dos movimentos de base – participaram das mobilizações ao lado dos jalecos amarelos. Na terça-feira, 20 de novembro, o sindicato moderado FO Transports anunciou apoio ao movimento. Até Philippe Martinez, secretário-geral da principal união sindical francesa, a inicialmente cética CGT, afinal manifestou apoio cauteloso e convocou manifestação conjunta para 1º de dezembro.

Também começam a chegar apoios da esquerda dos movimentos. Por exemplo, o comitê Vérité pour Adama – que luta por verdade e justiça no caso do assassinato de Adama Traoré, 24 anos, morto numa delegacia de polícia em julho de 2016 em Beaumont-sur-Oise, área pobre dos subúrbios de Paris – anunciou que se integrará ao movimento que os jalecos amarelos convocaram para as ruas no sábado. Muitos dos “grandes nomes” da esquerda ativista e intelectual francesa – como as Assa Traoré, Frédéric Lordon e Edouard Louis – já convocaram para tomar as ruas em apoio ao movimento.

Apesar dessas tardias expressões de apoio, muitos na esquerda continuam em dúvida quanto a essa mobilização. O caráter apolítico autodeclarado do movimento e o fato de que muitos jalecos amarelos dizem jamais ter participado de movimentos de rua antes têm atraído acusações de “autoreferencialismo” ou de que seria movimento de natureza pequeno-burguesa. Até os que clamam pela “convergência das lutas” encontraram dificuldades para apoiar demandas de pessoas que não se mobilizaram ano passado, contra a tripla ofensiva do governo, contra metroviários e ferroviários, estudantes e migrantes.

Acima de tudo há suspeitas de que o movimento tenha sido infiltrado pelo Rassemblement National (RN, ex- Front National), de Marine le Pen, ou até por fascistas, que estariam no comando do movimento. Desde o início da mobilização tem havido ocasionais expressões de racismo e de islamofobia – incidentes que tiveram ampla cobertura na imprensa (cobertura que não é regra geral nesses casos). Na sexta-feira, Martinez, líder da CGT, alertou seus sindicalistas de que talvez houvesse, nos bloqueios dos Jalecos Amarelos, “elemento da extrema direita que tumultuaram as demandas na questão da imigração.”

Ante essas suspeitas, muitos ativistas recomendaram cautela, que se esperasse para ver o que aconteceria e que direção tomaria o movimento. Não há dúvidas de que nos bloqueios de estrada havia gente de todo tipo: a maioria “apolíticos”, mas também fascistas do RN, apoiadores da direita conservadora linha dura que seguem Laurent Wauquiez (Os Republicanos), nacionalistas, socialistas, Insubmissos, comunistas, sindicalistas, anarquistas e por aí vai. Mas precisamente essa atitude de “esperar para ver o que acontece” pode acabar por entregar o movimento às tendências reacionárias.

Até a crítica moralista, que acusa os jalecos amarelos de serem materialistas e egoístas, pode ser questionada. O aumento no preço do pão foi o principal fator que empurrou para as ruas as mulheres, em sua furiosa marcha sobre Versailles em outubro de 1789? A história das lutas sociais está semeada de movimentos que brotaram de uma exasperação despertada pelas condições materiais em que viviam as classes populares, movimentos que podem ampliar a consciência e o âmbito das demandas e que podem, sim, convergir com outras lutas. Ou não.

A situação dos jalecos amarelos é complexa e multiforme, mas manifesta desconforto real. Para a esquerda política, participar do movimento gera várias dificuldades, mas a esquerda pode pelo menos tentar compreender o desconforto, dar-lhe slogans úteis e impedir que todo o movimento seja recuperado pela extrema direita. Só assim os jalecos amarelos conseguirão deixar de ser simples movimento contra impostos e orientar-se para demandas ecológicas e redistributivas mais importantes.

Movimentos e "mídia"

Também é verdade que, por enquanto, a enorme visibilidade que a mídia deu aos jalecos amarelos eclipsou outros movimentos importantes também em curso na França nesse momento. O principal exemplo são os eventos organizados no sábado para o dia internacional contra a violência contra a mulher. Durante meses, coletivos e organizações feministas trabalharam para organizar uma “maré” com a violência sexista e sexual.

Um ano depois do #MeToo, que encontrou eco real na França, Nous Toutes [Nós Todas] trabalham para criar um movimento unitário e massivo, num país no qual o movimento feminino sempre foi marcado por tensões e divisões agudas. O sucesso foi gigante: no sábado, mais de 50 mil pessoas tomaram as ruas em toda a França, incluídas as 30 mil da manifestação em Paris. É número muito inferior ao que se viu em Roma (os organizadores falaram de 200 mil pessoas), mas muito superior aos 2 mil manifestantes franceses, ano passado. E o número dos que tomaram as ruas contra o sexismo foi, em todos os casos, muito maior que os 8 mil jalecos amarelos que marcharam pela avenida Champs Elysées e dominaram as manchetes nos dias subsequentes.

Há muitos outros exemplos de lutas de massa que aconteceram em semanas recentes na França, e que não tiveram a mesma cobertura de mídia que os jalecos amarelos: houve manifestação de professores no dia 12 de novembro, para defender as escolas contra cortes de empregos; da Dordogne a Rouen, trabalhadores dos serviços postais fizeram greve contra o desmantelamento do serviço postal público; no dia 20 de novembro, as enfermeiras mobilizaram-se para salvar o financiamento público dos hospitais. Embora hoje estejamos vendo menos alguma convergência de lutas que uma multiplicação de lutas diferentes, há sinais de que essa situação pode evoluir para alguma convergência real da França periférica, da França das cidades e dos banlieues [“bairros”], e do restante da esquerda ativista francesa.

Nas próximas semanas veremos se a França das periferias pode unir-se à França dos grandes centros urbanos, aos estudantes e aos trabalhadores sindicalizados. Por enquanto, o governo parece decidido a não ceder. No domingo, a ministra dos transportes Elisabeth Borne reiterou que o governo não recuará do “imposto do carbono”.

Na terça-feira, Macron fez uma série de anúncios sobre a transição ecológica, sem nenhuma concessão às demandas do Movimento. Na sexta-feira, uma delegação de jalecos amarelos deve reunir-se com o primeiro-ministro francês Edouard Philippe. No meio tempo, o estado derrubou os bloqueios de estrada e prendeu centenas de pessoas: algumas já foram até julgadas e condenadas. No sábado à noite, um twitter de Macron confirmou seu apoio à ação da Polícia: “Vergonha para os que tentaram intimidar os eleitos. Não há espaço para esta violência na República.” Como sempre, a mídia dominante serviu amplamente aos objetivos estratégicos do governo, focando as ações de violência, para desacreditar o Movimento.

Mas há algo mais sutil e mais maquiavélico – e com certeza mais perigoso – na própria estratégia de Macron. Na tentativa do governo (e da mídia) para pintar o movimento dos jalecos amarelos como movimento reacionário, dirigido pela extrema direita, há uma manobra para atrair apoios para La République en Marche e, assim, preparar o terreno para eleições europeias.

Essa manobra começou já há alguns meses, e também está conectada aos raids da Polícia nos escritórios do Partido La France Insoumise, de Melenchon e principal força da esquerda francesa. Em setembro, depois de uma primavera de mobilizações, mas especialmente depois do “Benalla affair” (revelação de vídeos nos quais o guarda-costas pessoal do presidente, fantasiado de oficial de polícia, aparece espancando manifestantes), Macron desabou nas pesquisas de opinião.

Na direção inversa, o líder de e France Insoumise, Jean-Luc Mélenchon, subiu nas pesquisas de aprovação, convertendo-se em principal nome da oposição. Em outubro, o governo enfrentou outra crise, com a renúncia do ministro do meio ambiente, o Verde Nicolas Hulot — que renunciou denunciando a influência de lobbyistas nas políticas de Macron – e do ministro do Interior Gérard Collomb.

Foi nesse contexto que os raids policiais aconteceram contra 15 locais onde funcionam serviços do partido France Insoumise e propriedades conexas. Foi operação de amplitude sem precedentes na história política da França, especialmente se se considera que teria sido apenas uma parte de uma investigação preliminar sobre gastos eleitorais do partido de Melenchon.

Macron em seguida abriu sua campanha para as eleições europeias de maio de 2019, que visa a apresentar seu partido como a única força “progressista” que resiste contra os vários “nacionalismos” – com o que tenta meter os partidos de Martine LePen e de Melenchon num mesmo único saco “populista”. Em 2017, Macron foi eleito graças, principalmente ao voto contra Le Pen — como já acontecera antes, em 2002, quando Jacques Chirac venceu as eleições contra o pai de Marine, Jean-Marie Le Pen, mas com a importante diferença de que, enquanto Chirac recebera 82% dos votos, Macron mal chegou aos 66%.

A estratégia de Macron é recriar o mesmo cenário polarizado para as eleições europeias. Por essa razão já se apresentou como o “anti-Salvini” e o “anti-Orban.” Mesmo assim, a política de imigração de Macron, como construída pela Lei sobre Asilo e Imigração, é perfeitamente compatível com as leis de Salvini ou Trump: por exemplo, as medidas que permitem detenção de crianças e a prorrogação da detenção preventiva.

O populismo identitarista e xenófobo que floresce hoje por toda a Europa não é reação ou via alternativa às políticas liberais: é extensão delas. Como recentemente destacou Quinn Slobodian, expoentes do partido Alternative für Deutschland e da extrema direita austríaca mantêm laços íntimos com a famosa Sociedade Mont Pellerin, central global intelectual do neoliberalismo.

O imposto único promovido pelo governo italiano Salvini-Di Maio é outro exemplo da conivência entre as ideias do bloco neoliberal (centro-esquerda e centro-direita) e da direita identitarista. O objetivo comum desses todos é permitir que o capital circule e bloquear a trilha para os seres humanos. A Europa desejada por Salvini e Orban é uma extensão identitarista, não o oposto, da Europa neoliberal.

No horizonte de maio de 2019, as eleições europeias são, portanto, um continente azul-castanho. O partido de Le Pen está à frente das atuais pesquisas para as eleições do ano que vem, à frente do partido de Macron, dos Republicanos e de France Insoumise. De fato, nos últimos dias, os veículos da grande mídia francesa só fazem malhar o espectro do extremismo. O partido de Le Pen, apresentado como principal força de oposição, é denunciado como principal força da oposição, ativo por trás das coxias para empurrar os jalecos amarelos para uma via de violência. Mas também há forças da esquerda determinadas a modelar o movimento e impedir que Macron ou Le Pen explorem as ruas a favor de seus próprios objetivos. Todos esses ativistas também estarão na Avenida Champs Elysées no sábado ao lado e com os manifestantes vestidos nos jalecos amarelos.

29 de novembro de 2018

Qual autocrítica cabe ao PT?

Partido deve evitar cantilena desejada por inimigos

Breno Altman


Fabio Braga/Folhapress

De Giordano Bruno, Galilei e Copérnico, entre outros hereges, a Santa Inquisição não queria extrair apenas a liberdade ou a própria vida. Acima de tudo, buscava abjuração das ideias. Puni-los era insuficiente: a Igreja somente se dava por satisfeita quando beijavam a cruz e reconheciam que a Terra era o centro do universo.

Esse espírito atravessou os tempos. Muitas das vozes que exigem autocrítica do Partido dos Trabalhadores, por exemplo, assim mascaram o desejo de vê-lo renegando sua natureza classista.

Líderes, intelectuais e veículos de comunicação vinculados à combalida centro-direita acenaram com apoio a Fernando Haddad, no segundo turno, desde que o PT aceitasse a supremacia da economia de mercado e a imutabilidade do Estado liberal, desfazendo-se da liderança de Lula e rompendo com aliados internacionais.

A campanha não cedeu a essas pressões, mas claudicou nas primeiras duas semanas do segundo turno, dedicando energias fundamentais à possibilidade de deslocar a centro-direita para um pacto contra o bolsonarismo. Tirou o vermelho de suas cores eleitorais, mudou o jingle, desidratou a presença de Lula, modificou parte do programa, abraçou o algoz do "mensalão" e até flertou com a Operação Lava Jato.

Há um fio condutor entre essa conduta e erros que levaram o petismo a ser presa relativamente fácil do golpe parlamentar de 2016: a ilusão de que possa haver compatibilidade entre neoliberalismo e democracia, com setores relevantes das elites reagindo a mudanças distributivas sem romper com a ordem constitucional e a soberania popular.

Essa percepção fantasiosa, inibindo tanto um projeto radical para a reforma do Estado quanto uma aposta prioritária na mobilização popular, deixou o PT vulnerável à contrarrevolução preventiva que se armou a partir de 2014.

Ficou encurralado por um cerco institucional ao qual não estava preparado para romper de fora para dentro do poder público, recorrendo à organização e ao movimento de suas bases sociais.

As lições da derrubada do governo Dilma Rousseff acabaram por levar à bem-sucedida construção do primeiro turno, iniciada ainda em 2017, marcada pelo enfrentamento ao bloco antidemocrático, a defesa da candidatura do ex-presidente Lula até o limite possível e a transferência de votos para um representante de seu legado.

O segundo turno, contudo, esteve contaminado pela centralidade da aliança com a ala moderada do neoliberalismo, jamais efetivada e de baixo potencial eleitoral. Pagou-se o preço em tempo perdido, esmaecimento de simbologia junto ao eleitorado mais pobre, perda de combatividade e alheamento da pauta econômico-social.

Quando essa miragem se desfez, na última semana, e a campanha assumiu a confrontação contra Bolsonaro em todos os terrenos, estimulou-se amplo movimento antifascista, reduzindo pela metade a diferença eleitoral que chegara a 20%. Já era tarde, no entanto.

Mesmo derrotados, porém, o PT e seu candidato caíram de pé, porque foram capazes de recompor sua identidade, negando-se ao beijo na cruz e reencontrando-se com seu veio histórico. Possivelmente preservarão condições de combate se evitarem a cantilena da autocrítica desejada por seus inimigos e até por alguns potenciais aliados.

Sobre o autor
Jornalista e fundador do site Opera Mundi

27 de novembro de 2018

Economia para o socialista autodidata

Eis aqui o que você deve ler.

Mike Beggs

Jacobin


Pode chegar um momento na vida de um socialista em que, tendo passado a acreditar que "o modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, político e intelectual em geral", ele queira compreender melhor a estrutura econômica da sociedade capitalista. Aqui estão algumas sugestões para pessoas que querem levar a sério, mas não sabem por onde começar.

Comece em qualquer seção que desejar; elas deveriam reforçar um ao outro. Se você está começando sem nenhuma formação em economia, pode ser útil começar com um ou dois livros básicos da seção (4) antes ou junto com as visões e história dos livros de economia em (1) e (2). Os livros de história da seção (3) são adequados para iniciantes.

1. Visões marxiana e keynesiana

Michael Howard and John King (1985) The Political Economy of Karl Marx, New York University Press.

Existem muitos guias para O Capital de Marx, mas não há nenhum melhor do que este se você quiser entrar na teoria econômica como algo a ser pensado e debatido. Howard e King são simpáticos, mas também críticos implacáveis, exatamente como Karl Marx gostaria. Cada capítulo tem uma lista de leitura para partes específicas de O Capital e outras obras de Marx, bem como os principais debates na literatura secundária. Abrange também os antecessores clássicos de Marx, Smith e Ricardo.

Você poderia continuar com os dois volumes de Howard e King, A History of Marxian Economics (1989, 1992; Princeton University Press) - ou simplesmente pular para os brilhantes últimos capítulos onde eles resumem as controvérsias das décadas de 1960-80 e tentam descobrir o que permanece útil e o que deve ser abandonado na tradição.

Diane Elson (1979) "The Value Theory of Labour", in Elson (ed.) Value: The Representation of Labour in Capitalism, CSE Books.

Se Howard e King o convencerem de que não resta muito da "teoria do trabalho" como uma explicação quantitativa do valor, mas que os aspectos "qualitativos" ainda são úteis, aqui está onde detalhar o que isso significa. O título do ensaio de Elson diz tudo: em vez de uma teoria do valor-trabalho, ela propõe uma teoria do valor-trabalho: o ponto principal da visão marxista é que, sob o capitalismo, o trabalho é organizado e dominado pela forma-valor.

Embora Elson o critique por não ter ido longe o suficiente, Isaak Rubin apresentou uma visão semelhante da forma-valor nos seus Essays on Marx's Theory of Value (1972, traduzido do original russo de 1928, Black and Red).

Victoria Chick (1983) Macroeconomics After Keynes: A Reconsideration of the General Theory, MIT Press.

Superficialmente, este é um guia excepcional para o leitor da Keynes's General Theory. Os capítulos são mapeados nos capítulos de Keynes. Fornece exposição e comentários, além de uma revisão da literatura posterior. É também um trabalho original da teoria pós-keynesiana em si, com um foco particular no dinheiro e nas finanças (Chick foi aluno de Hyman Minsky). Em um nível mais profundo, este é também um guia magistral para o próprio raciocínio econômico, no estilo clássico de Cambridge: muitos diagramas, algumas equações, um compromisso com a clareza em vez do formalismo, e uma consciência de que estamos lidando com relações entre pessoas no tempo histórico.

Stabilizing an Unstable Economy (1986), de Minsky, é também um excelente ponto de entrada para o pós-keynesianismo e, possivelmente, um ponto de partida mais suave. Mostra tanto os pontos fortes analíticos como as fraquezas políticas de uma visão de mundo pós-keynesiana.

A History of Post-Keynesian Economics (2002), de John King, é um bom companheiro para a History of Marxian Economics mencionada acima; afinal de contas, estes fios entrelaçaram o pensamento econômico radical do século XX. Isto é tão crítico e por vezes pessimista (embora sempre construtivo e solidário) como os volumes de Marx de Howard e King, que acompanham uma tradição com tantas promessas analíticas, mas com uma posição precária na academia e pouca base social fora dela.

2. História do pensamento econômico

Ernesto Screpanti and Stefano Zamagni (2005) An Outline of the History of Economic Thought, Oxford University Press.

Axel Leijonhufvud certa vez apresentou um grande argumento para abordar a economia através de sua história. As melhores ideias nem sempre vencem, e voltar aos pontos anteriores da "árvore de decisão" nos ajuda a compreender o que estava em jogo em cada debate e por que razão as coisas passaram a ser enquadradas da forma como foram.

Screpanti e Zamagni fornecem o equilíbrio certo entre narrativa histórica e análise crítica para tal abordagem. Screpanti é um marxista com simpatias analíticas; Zamagni foi discípulo de John Hicks, o inglês que seguiu o seu brilhante caminho desde as alturas do neoclassicismo até uma espécie de pós-keynesianismo. Histórias da economia escritas de forma radical tendem a prolongar-se demasiado no século XIX. Este está apenas atingindo o seu ritmo nos "anos de alta teoria" (década de 1930), antes de um fantástico conjunto de capítulos sobre a micro e macroeconomia modernas e os seus possíveis futuros. O livro coloca ideias convencionais e marginais em pé de igualdade: o espaço depende do interesse intelectual.

Antal Matyas (1985 English translation) History of Modern Non-Marxian Economics, Macmillan.

Além das histórias de Howard e King sobre o pensamento marxista e pós-keynesiano mencionadas acima, uma menção honrosa deve ser atribuída a este livro incomum. Como o título sugere, esta é a tradução de um livro didático visto por trás do espelho: parte do currículo da Universidade de Economia de Budapeste, na década de 1970.

Nenhum volume ocidental cobre a história da economia desde a revolução marginalista com tantos detalhes. Um revisor invejoso do Journal of Economic History observou que era "sem dúvida um dos livros mais abrangentes e objetivos sobre o assunto, incomparável em profundidade e talvez em alcance". Enciclopédico e justo, mas cheio de críticas muitas vezes originais e muitas vezes devastadoras. Se ao menos mais marxistas prestassem tanta atenção à economia dominante.

3. História econômica

Ellen Meiksins Wood (2002) The Origin of Capitalism: A Longer View, Verso.

Uma breve visão geral dos tratamentos marxistas das origens do capitalismo - mas este é um bom ponto de partida para explorar a história econômica marxista em geral.

Se você quiser ir além dos marxistas, os três volumes de Civilization and Capitalism de Fernand Braudel (1981-4, Harper and Row) são os melhores livros de mesa que você encontrará sobre história socioeconômica, legíveis e lindamente repletos de mapas, ilustrações e diagramas. A History of Gold and Money: 1450-1920, de Pierre Vilar, é uma ponte entre a escola dos Annales de Braudel e a historiografia marxista, e uma excelente visão de longo prazo sobre o dinheiro (tradução para o inglês de 1976, New Left Books).

Philip Armstrong, Andrew Glyn and John Harrison (1991) Capitalism Since 1945, Basil Blackwell.

Uma história econômica radical desde o longo boom do pós-guerra até à era de Reagan e Thatcher. Varia desde a alta diplomacia monetária até à fortuna crescente e decrescente do trabalho, misturando teoria econômica e história institucional.

Você pode seguir com algo que aproxime a história do presente: Capital Resurgent (2004), de Dumenil e Levy, e sua sequência, The Crisis of Neoliberalism (2011, ambos Harvard University Press).

Francis Spufford (2012) Red Plenty, Graywolf Press.

Esta é a única obra de ficção da lista (a menos que você conte um dos livros abaixo), mas com mais notas de rodapé do que um romance de David Foster Wallace, esta é uma dramatização séria e divertida do funcionamento e das disfunções da economia planejada na União Soviética. Spufford simpatiza com os objetivos dos planejadores e está genuinamente interessado em descobrir o que deu errado.

Se preferir uma abordagem mais convencional, experimente An Economic History of the URSS, 1917-1991 (1992, Penguin), de Alec Nove.

4. Livros didáticos e programas de estudos

Mesmo que você esteja principalmente interessado na "crítica da economia política", em algum momento você precisará ler alguns livros didáticos para se familiarizar com o raciocínio e as técnicas econômicas. Esta é uma seleção de textos críticos que ainda cobrem o conteúdo principal.

Para iniciantes:

CORE (core-econ.org) é uma tentativa de repensar o currículo introdutório à economia, associado ao Institute for New Economic Thinking. Tudo está disponível gratuitamente online e lindamente apresentado. Tem a mente aberta, mas de forma alguma é heterodoxa. Vários radicais contribuíram, incluindo Sam Bowles e Suresh Naidu. Em vez de começar com a oferta e a procura, o primeiro livro começa com a desigualdade.

Foundations of Economics: A Beginner's Companion (1998, Routledge), de Yanis Varoufakis, foi concebido para ser lido juntamente com um microlivro padrão, apresentando análises, críticas e a história da doutrina padrão. Peter Dorman's Microeconomics: A Fresh Start and Macroeconomics: A Fresh Start (2014, Springer) são versões críticas dos livros didáticos padrão. O livro Political Economy: The Contest of Economic Ideas, de Frank Stilwell (2011, Oxford University Press), adota uma abordagem comparativa da história do pensamento, indo dos clássicos e Marx aos institucionalistas e keynesianos.

Intermediário:

Applied Intermediate Macroeconomics, de Kevin Hoover (2011, Cambridge University Press), cobre o material padrão, mas de forma empírica. Esta é a macro pragmática dos bancos centrais. A teoria existe, mas ensina análise básica de dados junto com ela.

Não tenho conhecimento de um texto recente semelhante no lado micro, mas existem alguns bons e mais antigos - e, exceto por mais teoria dos jogos e informações imperfeitas, o micro dos livros didáticos mudou lentamente nas últimas décadas. Não se deixe enganar pelo nome - você provavelmente precisará de alguma preparação elementar antes de abordar o Microeconomic Theory: An Introduction de Stefano Zamagni (tradução para o inglês de 1987, Basil Blackwell). Mas este é um grande texto crítico de um dos autores do Outline of the History of Economic Thought recomendado acima.

Zamagni é especialmente bom na teoria da empresa e da distribuição, estabelecendo tratamentos tanto neoclássicos como pós-keynesianos. Infelizmente, o texto carece de exercícios, que são essenciais para realmente se entender essas coisas. Você poderia complementá-lo com o trabalho mais introdutório de Tom Asimakopulos, de uma perspectiva semelhante (Microeconomics, 1978, Oxford University Press). Ou você pode conferir um texto padrão moderno: Intermediate Microeconomics, de Hal Varian, é claro e bom, embora não crítico (2009, W. W. Norton).

Ficando sério:

Você pode encontrar online excelentes programas de cursos de programas de pós-graduação heterodoxos. Os líderes do departamento de economia da New School colocaram ótimas listas de leitura online - procure cursos de Duncan Foley, Anwar Shaikh, Lance Taylor e outros. A economia de Amherst também tem algumas boas por aí. Sanjay Reddy e Raphaële Chappe adataram a abordagem da New School para micro para um curso online - "Advanced Microeconomics for the Critical Mind" - mas você realmente precisará ter dominado a microeconomia para ingressar. "Economics of Money and Banking" de Perry Mehrling no Coursera é fantástico e acessível.

Depois de ter coberto pelo menos os livros intermediários, você estará preparado para uma seleção muito mais ampla de textos mais radicais. O livro Reconstructing Macroeconomics de Lance Taylor apresenta uma crítica ao macro padrão juntamente com uma alternativa "estruturalista" (2004, Harvard University Press). Post-Keynesian Economics: New Foundations, de Marc Lavoie, é uma pesquisa abrangente do pós-keynesianismo contemporâneo (2015, Edward Elgar). Capitalism: Competition, Conflict, Crises is the magnum opus of Marxist Anwar Shaikh (2016, Oxford University Press). Microeconomics: Behaviour, Institutions and Evolution, de Sam Bowles, é a abordagem muito diferente de um radical que abraça a teoria dos jogos (2004, Princeton University Press).

Este é um material difícil para o iniciante, mas qualquer um pode lidar com ele desde que tenha os fundamentos acima. E é aqui que todo o trabalho compensa. Agora você está a caminho da sua própria crítica da economia política. Os economistas interpretaram o capitalismo de várias maneiras; o objetivo, claro, é mudá-lo.

Colaborador

Mike Beggs é editor da Jacobin e professor de economia política na Universidade de Sydney.

24 de novembro de 2018

Primeiro alvo

Votação do Escola sem Partido na Câmara promete ser a estreia de uma longa guerra de valores

André Singer



O pragmatismo de Jair Bolsonaro na organização do futuro gabinete empacou na porta das salas de aula. Durante 24 dias, as inúmeras contradições da arquitetura presidencial foram sendo contornadas de maneira ambígua. Quando chegou ao ensino, entretanto, religiosos obrigaram o capitão reformado a bater continência para o fundamentalismo.

Na quarta (21), praticamente certo na chefia do MEC, a ponto de ser anunciado por grandes veículos de comunicação, o educador Mozart Neves Ramos foi posto abaixo por não ser posicionado o suficiente. Porta-voz do "derruba ministro", o deputado evangélico Sóstenes Cavalcanti (MDB-RJ) foi claro: "Para nós, o novo governo pode errar em qualquer ministério, menos no da Educação, que é uma questão ideológica".

No dia seguinte, foi anunciada a escolha de Ricardo Vélez Rodriguez, para quem existe "uma instrumentalização da educação em aras de um socialismo vácuo".

Na economia, escolhas ambivalentes de Paulo Guedes têm sido toleradas pela base bolsonariana. Um ex-ministro com passado dilmista, Joaquim Levy, emplacou no BNDES. O novo presidente da Petrobras, que descartou a privatização in limine da companhia, foi recebido com relativa indiferença. Desde que faça a reforma da Previdência e promova algum crescimento, o Posto Ipiranga será deixado em paz.

Na Justiça, Sergio Moro tem passado como gato sobre brasa. À revista IstoÉ, único meio a obter entrevista exclusiva do ex-juiz, ele declarou ter aceitado o cargo "para implementar uma agenda anticorrupção". Como justifica, então, o fato de sentar-se ao lado dos nomeados Onyx Lorenzoni (Casa Civil), Teresa Cristina (Agricultura) e Luiz Henrique Mandetta (Saúde), os três suspeitos de desvios? A pergunta não lhe foi feita e a resposta não parece interessar em demasia aos eleitores do futuro mandatário.

A grita em torno do titular da Educação, por outro lado, indica onde o calo aperta dentro da composição que elegeu o novo presidente. Ao trocar Ramos por Rodriguez, Bolsonaro sabe que comprará briga não só com a esquerda, mas com importantes setores do establishment cultural. Deve ter calculado, portanto, os ganhos que tal iniciativa lhe trará.

Movimento subterrâneo que veio à tona em junho de 2013, no bojo de manifestações que abrigaram da extrema esquerda à extrema direita, certo macartismo tupiniquim chega agora à Esplanada dos Ministérios. A votação do projeto de lei Escola sem Partido na Câmara dos Deputados, marcada para a próxima quinta, promete ser a estreia de uma longa guerra de valores. Tendo em vista o simbolismo envolvido, convém não subestimar o impacto desta primeira batalha.

Sobre o autor:

Professor de ciência política da USP, ex-secretário de Imprensa da Presidência (2003-2007). É autor de “O Lulismo em Crise”.

23 de novembro de 2018

Política e a recessão de 2014-16

O diagnóstico de Krugman de 'bad luck' e 'bad policy' deve ser ampliado para incluir 'bad politics'

Nelson Barbosa

Folha de S.Paulo


Paul Krugman, Prêmio Nobel de Economia, analisou superficialmente a recessão brasileira de 2014-16 e concluiu que suas principais causas foram azar ("bad luck") e erros de política econômica ("bad policy").

Outros colegascomentaram a análise de Krugman, mas volto ao tema para adicionar uma dimensão política à questão.

Primeiro, não há como negar que a economia brasileira sofreu um enorme choque exógeno e adverso, via queda dos preços de commodities e grande seca no Sudeste, em 2014-16.

A redução dos preços dos bens primários exportados pelo Brasil foi maior e mais prolongada em 2014-16 do que após a crise financeira de 2008. No mesmo sentido, a seca pressionou os preços de energia para cima, aumentando o impacto do fim dos subsídios em 2015.

Segundo estimativas de Braulio Borges, do Ibre, 40% da recessão de 2014-16 pode ser atribuída a essas causas externas. Krugman acertou ao enfatizar a "bad luck", que geralmente é ignorada pelos críticos de sempre dos governos do PT, que preferem enfatizar somente fatores internos em 2014-16.

Ironicamente, para esses mesmos críticos, o bom desempenho do Brasil em 2006-11 foi fruto somente de condições externas favoráveis, não da política econômica daquela época. Melhor ignorar essas análises de dois pesos e duas medidas e voltar ao Krugman.

Se 40% da recessão pode ser atribuída a choques exógenos, o que dizer dos 60% restantes? Nesse ponto discordo de Krugman, pois ele enfatiza somente o ajuste fiscal e monetário de 2015 como a outra causa da crise.

Houve excessos, mas o ajuste de 2015 foi necessário para corrigir os erros política econômica de 2012-14.

A elevação da Selic foi necessária para controlar os efeitos indiretos da depreciação cambial e da liberalização de preços administrados em 2015. Como a inflação já estava alta, não era possível acomodar aquele choque.

Passado o choque, a tendência da inflação se inverteu já no início de 2016, permitindo ao BC reduzir a Selic.

Se houve equívoco, ele ocorreu em 2017, quando o Copom demorou para cortar a taxa básica de juros em face da rápida queda da inflação e da lenta recuperação da economia.

Já do lado fiscal Krugman está parcialmente certo. Houve forte contração fiscal em 2015, de 1,2% do PIB quando consideramos a variação do resultado fiscal estrutural do setor público (segundo estimativa do Ministério da Fazenda).

O ajuste fiscal foi recessivo, sobretudo quando os choques externos (commodities e clima) e os impactos iniciais da Operação Lava Jato (parada súbita do crédito e do investimento) empurraram a economia mais para baixo em 2015.

Essa mudança brusca levou o governo a tentar flexibilizar sua política fiscal já em meados de 2015, mas a iniciativa foi bloqueada pela crise política daquele ano.

Somente após a deposição de Dilma Rousseff, em maio de 2016, o Congresso aprovou o até então polêmico “Orçamento com déficit” e permitiu que a política fiscal ajudasse a estabilizar a economia.

Como Krugman desconhece esses detalhes, seu diagnóstico de bad policy está incompleto. Sim, houve forte contração fiscal em 2015, baseada na hipótese da austeridade expansionista defendida pelo Ministro da Fazenda da época, mas o governo tentou corrigir seu erro inicial já no segundo semestre do mesmo ano.

A tentativa não aparece nos dados por que foi bloqueada (sabotada) pela estratégia do “quanto pior melhor” da oposição naquela época.

Logo, para entender a grande recessão de 2014-16, o diagnóstico de "bad luck" e "bad policy" deve ser ampliado para incluir, também, "bad politics".

Sobre o autor

Professor da FGV-SP, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

O socialismo é pelo humanismo real

O objetivo do socialismo é tão simples quanto belo: a libertação de todas as pessoas da dominação, substituindo os sonhos atrofiados e a alienação pelo florescimento humano e pela criatividade ilimitada.

Adam J Sacks


"A Vendedora de Flores (Menina com Lírios)" por Diego Rivera

Tradução / Marx tinha um olhar aguçado para enxergar o coração, num mundo sem coração. Desde muito cedo ele se preocupava com as maneiras como o capitalismo submerge os “problemas humanos” na luta pela sobrevivência material. Ele ansiava pelo dia em que esses problemas ficariam mais claramente em foco, quando o véu opressivo do capitalismo tivesse sido levantado e uma “sociedade humana” finalmente passasse a existir.

Numa época em que os socialistas estão novamente sendo chamados a explicar sua política, é importante lembrar que o socialismo sempre foi e continua sendo um movimento humanista que busca libertar as pessoas da dominação e da exploração – promovendo o florescimento individual, a criatividade e até mesmo o crescimento espiritual, no lugar de sonhos atrofiados e alienação.

Os socialistas há muito tempo têm mantido esses objetivos. Quando o socialismo surgiu como um movimento de massas no final do século XIX, não era incomum ouvi-lo sendo proclamado como o maior avanço do humanitarismo desde o Novo Testamento. O socialismo, seus adeptos pensavam, poderia proporcionar a renovação da consciência necessária para salvar a sociedade.

No início do século XX, o socialista alemão Leo Kestenberg adotou o lema “educação para a humanidade”, numa Europa que enfrentava o dilúvio do fascismo. Ele esperava que a luta pelo socialismo pudesse servir de ponte para um novo humanismo radical, uma sociedade que recompensasse a bondade em vez da exploração. Karl Kautsky, chamado de “Papa do Marxismo”, invocava a noção de uma “consciência socialista”, como um meio de “salvar a nação” (ele tinha em mente os EUA).

Várias décadas depois, no seu primeiro discurso para o Parlamento chileno como presidente, Salvador Allende, num tom arrebatador semelhante ao de Kautsky, descreveu o socialismo como uma “missão” que poderia infundir significado no país:

“Como as pessoas em geral – e os jovens em particular – podem desenvolver um senso de missão que inspire neles uma nova alegria de viver e que dê dignidade à sua existência? Não há outra maneira senão nos dedicarmos à realização de grandes tarefas impessoais, como a tarefa de alcançar um novo estágio na condição humana, até agora degradada por sua divisão entre privilegiados e despossuídos... Aqui e agora, no Chile e na América Latina, temos a possibilidade e o dever de liberar energias criativas, particularmente as energias da juventude, em missões que nos inspirem mais do que qualquer outra no passado.”

Aí está o coração da filosofia marxiana: o elã do sujeito humano, o esforço inspirado rumo ao crescimento.

Rosa Luxemburgo, a grande socialista polaco-alemã, personificando esse impulso na sua própria maneira de viver, escreveu a um camarada:

“Ser um ser humano significa atirar alegremente toda a sua vida ‘nas escalas gigantescas do destino’, se for necessário, e ao mesmo tempo regozijar-se com o brilho de cada dia e com a beleza de cada nuvem... o mundo é tão bonito, com todos os seus horrores, e seria ainda mais lindo se nele não houvesse fracos ou covardes”.

A militante estadunidense pelos direitos civis e socialista Ella Baker também enfatizava o humanismo em sua prática diária. Para ela, o propósito de se construir uma organização era despertar o espírito humano e empoderar as pessoas para mudar o mundo. “Dê a luz”, dizia Baker, e “as pessoas encontrarão o caminho”. Tratar as pessoas como brinquedos, mesmo que à serviço de uma meta libertadora, seria um anátema para o espírito do socialismo.

É muito comum que os críticos confundam o lado ético e humanista do socialismo com uma variante do socialismo “utópico” ao qual Marx se opunha. Marx contrastava seus escritos com pensadores como Charles Fourier e Robert Owen, cujas imaginações os levavam até o reino do hiper-idealismo, quando não a vôos de fantasia que beiravam magia. Marx identificava seu próprio trabalho como “científico” – mas essa palavra não capta exatamente o significado da palavra original em alemão, “wissenschaft“. Esse último termo implica a busca humana holística pelo conhecimento, tanto nas ciências naturais quanto nas ciências humanas – diferente das conotações que reduzem o caráter científico e a importância destas últimas (em inglês, por exemplo, o termo para “ciências” simplesmente não engloba as ciências humanas, tratadas como “humanidades”). A crítica de Marx às condições de vida de seu tempo estava repleta de um compromisso com a realização da dignidade humana – ele deplorava as mercadorias “sem alma” do capitalismo e suas implicações para o eu humano.

Talvez o maior teórico do socialismo como uma espécie de meta-moralidade humanista pós-secular tenha sido Jean Jaurès, mais conhecido por seu livro de 1911, “Uma História Socialista da Revolução Francesa”. Jaurès pesquisou os discursos dominantes na França da virada do século e os achou terrivelmente imbecilizantes: o nacionalismo era uma estratégia reacionária deliberada para impedir pensamentos de uma esfera superior; a religião oficial era uma força nociva cuja tão louvada caridade simplesmente encobria uma nova forma de opressão; e os espiritualismos da moda da época – como a Teosofia, que atraía as pessoas das religiões organizadas para novos cultos pós-seculares – não passavam de misticismos diletantes, amortecendo a coragem das pessoas para enfrentar as lutas da vida real. Apenas o socialismo, Jaurès defendia, seria capaz de emancipar a consciência do homem e restaurar um senso de infinitas possibilidades humanas.

Algumas décadas depois, uma das vozes mais fortes por um marxismo da consciência foi Isaac Deutscher, mais conhecido por suas biografias definitivas de Stalin e Trotsky. Um judeu galego que optou pelo Partido Comunista Polonês ao invés do Bund (a popular União Judaica Trabalhista da Lituânia, Polônia e Rússia), Deutscher estava numa posição única para observar tanto os desencantos do poder socialista de Estado no Oriente quanto o pessimismo da Nova Esquerda no Ocidente. Ele retornaria muitas vezes àquela condição humana fundamental no coração do marxismo. Deutscher observava que essa subjetividade humana, que já existe dentro de cada um de nós como um potencial, é distorcida, esmagada e aniquilada pelo capitalismo. Ele literalmente reduz a nossa individualidade, o que é prejudicial para o nosso bem-estar social tanto quanto para o nossa capacidade de sustento econômico. A promessa do socialismo, para Deutscher, estava na expansão e reintegração da nossa personalidade – na redescoberta de partes de nós mesmos que haviam sido perdidas.

Após o colapso da União Soviética, uma voz crítica pela esperança humanista socialista foi a física cubana Celia Hart. Filha da geração fundadora da revolução, Hart morreu tragicamente jovem em um acidente de carro – mas não sem antes revigorar o que ela chamava de a “bela batalha”. Uma crítica interna do socialismo de Estado cubano, ela defendia o papel dos partidos políticos na “melhoria da humanidade” e adotou como slogan uma citação do poeta cubano José Martí: “pátria é humanidade”. Ela invocava um retorno às origens do socialismo e defendia uma espécie de ecumenismo marxista – “precisamos de todos aqueles que disseram uma verdade à humanidade.” Em 2006, pouco antes de sua morte, os escritos de Hart foram reunidos em um volume em inglês intitulado, apropriadamente, “Nunca é Tarde Demais para Amar ou Se Rebelar”.

Nestas figuras e tradições, podemos ver um socialismo que tem procurado combater não só a escassez de bens materiais, mas a escassez de valores imateriais e humanistas, como o respeito, a estima e a auto-realização. As questões da moral, da psique e da alma nunca foram relegadas às margens, porque cada uma delas é parte integrante do livre crescimento e florescimento do sujeito humano.

Se afirmar “espiritual, mas não religioso” é um clichê dos nossos dias; nessa tradição, poderíamos trocar isso pelo lema “socialista, mas não religioso” – e sustentar uma aspiração diferente: não o fim da história humana, mas sim seu verdadeiro começo.

Sobre o autor

Adam J Sacks é MA e PhD em História pela Brown University e MS em educação pela City College da City University of New York.

22 de novembro de 2018

Água dura em pedra mole

Desaceleração global chega em meio a um quadro pouco promissor para a base da pirâmide

Laura Carvalho
Professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, autora de "Valsa Brasileira: do Boom ao Caos Econômico".


Diante da escalada das tensões comerciais entre Estados Unidos e China e dos impactos da reversão dos fluxos globais de capitais sobre as economias emergentes, o relatório da OCDE divulgado nesta quarta-feira (21) reduziu as expectativas de crescimento para a economia mundial de 3,7% para 3,5% em 2019.

Após a queda brusca no preço de ações de tecnologia nos mercados americanos na terça (20), analistas mais pessimistas chegaram a fazer previsões de uma nova crise global. 

Operador na Bolsa de NY, que passa por sucessivas quedas - Drew Angerer - 20.nov.18/Getty Images/AFP

Em artigo publicado no jornal Financial Times nesta quarta-feira, intitulado “The hidden costs of macroeconomic moderation”, Martin Sandbu alertou para uma característica importante das flutuações econômicas: enquanto períodos de aquecimento do mercado de trabalho costumam beneficiar mais os trabalhadores mais jovens e com menor grau de escolaridade, as fases de desaceleração e crise atingem desproporcionalmente esses trabalhadores, que acabam sendo demitidos primeiro e recontratados por último.

Nos dados apresentados por Sandbu para os Estados Unidos e o Reino Unido, vê-se nitidamente que a proporção de jovens no total de desempregados aumenta muito durante as recessões e volta a cair durante as fases de expansão da economia. Segundo o analista, o mesmo comportamento é observado para a proporção de trabalhadores sem diploma de ensino médio.

O custo das flutuações econômicas seria, portanto, assimétrico: “Trabalhadores jovens e mais vulneráveis sofrem muito mais com elas [as flutuações] do que um trabalhador médio”, conclui Sandbu.

Para além dos efeitos nefastos do ponto de vista da justiça social, o analista lembra que a experiência do desemprego muito cedo pode impactar de forma permanente a produtividade desses trabalhadores, elevando os custos de longo prazo da crise para toda a economia.

No Brasil, os dados da Pnad Contínua (Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios) sugerem que, desde o quarto trimestre de 2014, o nível de desocupação —percentual de pessoas que se declaram desocupadas em relação ao total de pessoas em idade para trabalhar— aumentou mais do que a média entre os trabalhadores com ensino fundamental completo (de 4,1% para 7,7%) e entre aqueles com ensino médio incompleto (de 6,4% para 12,1% no mesmo período).

No recorte por idade, o nível de desocupação cresceu desproporcionalmente entre trabalhadores na faixa de 18 a 24 anos: subiu de 9,5% para 17,8%, ante um aumento de 4% para 7,3% no total da população.

Quando se considera apenas o universo de trabalhadores que estão na força de trabalho —e não mais todos aqueles em idade para trabalhar—, a taxa de desocupação parece ter crescido ainda mais entre os sem instrução e os com ensino fundamental incompleto, bem como na faixa de idade entre 14 e 17 anos.

Segundo as estimativas divulgadas em setembro em um levantamento da FGV Social, dirigido por Marcelo Neri, a crise dos últimos quatro anos elevou a desigualdade de renda a uma velocidade 50% maior do que o ritmo de redução de desigualdade que observamos desde o início dos anos 2000.

Como apontou Neri, “a própria desigualdade aprofunda a recessão, já que os pobres consomem uma parcela maior da renda”.

A desaceleração da economia mundial chega, portanto, em meio a um quadro pouco promissor para a economia doméstica e, sobretudo, para a base da pirâmide.

A ausência de propostas do governo eleito para um crescimento econômico inclusivo pode adiar ainda mais, para a maioria dos brasileiros, a restauração do padrão de vida que tinham antes da crise.

19 de novembro de 2018

Apoiadores de Bolsonaro invadem palácio presidencial, Congresso e Supremo Tribunal Federal

A concepção adotada revela a visão absolutamente distorcida da democracia e do verdadeiro papel do juiz em uma ordem democrática

Kenarik Boujikian


Quando ingressei na magistratura, em janeiro de 1989, um magistrado que, na época, não aceitava bem a idéia de que mulheres pudessem fazer parte do Judiciário, disse em tom de chiste que não concebia mulher judicando porque, afinal, Deus era homem e, assim, os juízes só poderiam ser do sexo masculino. Acrescentou, com o gesto de uma lactante: imaginem uma mamada entre um despacho e outro!

Não sei o que mais me chocou, se a discriminação contra as mulheres, que eram em número reduzidíssimo, ou se o fato de, ainda que em tom de brincadeira, algum juiz pudesse se considerar um ser divino -portanto, com poderes absolutos e ilimitados.

Essas lembranças vieram à tona ao ler na edição da Folha de 11/11 uma frase que teria sido dita por um juiz: "A Constituição não é mais importante que o povo, os sentimentos e as aspirações do Brasil. É um modelo, nada mais que isso (...) não passa de um documento; nós somos os valores, e não pode ser interpretado de outra forma: nós somos a Constituição, como dizia Carl Schmitt". Teria ainda acrescentado que determinados delitos "obrigam à adoção de atitudes não-ortodoxas".

A idéia de que cada juiz é a própria Constituição ou o verdadeiro soberano encarna o totalitarismo do qual a humanidade foi vítima recente.

Valiosa a lição de Roberto Romano, que, referindo-se a Carl Schmitt, diz: "Escutemos nosso realista: "o führer defende o Direito contra os piores abusos quando, no instante do perigo e em virtude das atribuições de supremo juiz, as quais, enquanto führer, lhe competem, cria diretamente o Direito". O magistrado sublime decide: certos indivíduos, grupos, setores sociais, étnicos e religiosos são amigos ou inimigos. Dadas as premissas, conhecemos as conseqüências. É relativamente fácil recuar, horrorizados, diante do decisionismo jurídico. Suas mãos mostram excrementos de sangue" (prefácio de "Razão Jurídica e Dignidade Humana", de Marcio Sotelo Felippe).

A concepção adotada revela a visão absolutamente distorcida da democracia e do verdadeiro papel do juiz em uma ordem democrática. Os juízes e o Judiciário estão subordinados ao povo, nos termos do ordenamento jurídico democraticamente construído, e não podem se sobrepor a isso supondo-se eles mesmos o espírito do povo. É a "polis" que determinou, na Constituição e nos tratados internacionais, qual é a sociedade que almeja, sob quais princípios, fundamentos e patamares éticos. O juiz não substitui essas diretrizes pelas suas.

No que tange à matéria penal e processual penal, inaceitável supor conduta "não-ortodoxa", pois são temas em que é intensa a intervenção do Estado no plano da liberdade. Os limites são rígidos e não podem ser ultrapassados, muito menos por um juiz que tem como função evitar que órgãos públicos ou privados, sob qualquer pretexto, os violem.

Mas o bom combate contra tais concepções não pode servir de pretexto para uma investida contra a liberdade de expressão. Vislumbra-se esse risco em debates recentes no próprio Judiciário.

A liberdade de expressão é cláusula pétrea da Constituição. A Convenção Americana de Direitos Humanos estabelece que toda pessoa terá o direito à liberdade de expressão, que inclui a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteira.

Reafirmando esse princípio, a corte interamericana sustentou (opinião consultiva número 5/85) que: "A liberdade de expressão é pedra angular da existência mesma de uma sociedade democrática. É indispensável para a formação da opinião pública. É também condição "sine qua non" para que os partidos políticos, os sindicatos, as sociedades científicas e culturais e quem em geral deseje influir sobre a coletividade possam se desenvolver plenamente. É, enfim, condição para que a comunidade, na hora de fazer escolhas, esteja suficientemente informada. Assim, é possível afirmar que uma sociedade que não está bem informada não é plenamente livre".

Os juízes, evidentemente, gozam dos mesmos atributos dos demais seres humanos. No 7º Congresso das Nações Unidas, o tema mereceu especial destaque, estabelecendo a organização dos princípios básicos relativos à independência judicial, dentre eles a normativa de que de juízes, assim como dos demais cidadãos, não podem ter subtraídos os direitos de liberdade de expressão, associação, crença e reunião, preservando a dignidade de suas funções e a imparcialidade e independência da judicatura.

Magistrados, de qualquer instância, não são deuses, não criam nem destroem, devem garantir o sistema democrático.

Kenarik Boujikian Felippe é juíza de direito em São Paulo, co-fundadora e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia.

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