16 de novembro de 2018

Por que o Iluminismo não foi a era da razão

O clichê da "era da razão" precisa morrer - os pensadores iluministas tinham uma compreensão muito mais sutil das paixões.

Henry Martyn Lloyd

Aeon

Jean Huber, Un dîner des philosophes (1772). Courtesia de Voltaire Foundation/Wikipedia


Tradução / Dos dois lados do Atlântico, grupos de intelectuais têm se lançado numa campanha. A cidade sitiada que eles precisam defendem, dizem, é a que protege a ciência, os fatos e políticas públicas baseadas em evidências. Estes cavaleiros brancos do progresso – como o psicólogo Steven Pinker e o neurocientista Sam Harris – condenam o aparente ressurgimento da paixão, da emoção e da superstição na política. A base da modernidade, eles nos dizem, é a capacidade humana de impedir forças destrutivas por meio da razão fria. Precisamos é de uma ressurgência do Iluminismo agora.

Impressionantemente, essa imagem ingênua da chamada “idade da razão” é estranhamente semelhante à imagem criada por seus detratores. A ideia pejorativa do Iluminismo se estende desde a filosofia de G W F Hegel até a teoria crítica da Escola de Frankfurt, criada em meados do século 20. Esses autores identificam uma patologia no pensamento ocidental que associa diretamente a racionalidade à ciência positiva, à exploração capitalista e ao domínio da natureza – e até mesmo, como no caso de Max Horkheimer e Theodor Adorno, ao Nazismo e ao Holocausto.

Mas, ao defender a ideia do Iluminismo como um movimento racional contrário às paixões, apologistas e críticos são dois lados de uma mesma moeda. O erro de todos é o que torna o clichê da “era da razão” tão poderoso.

As paixões – afetos personificados, desejos, apetites – eram as precursoras da compreensão moderna da emoção. Desde os antigos estoicos, a filosofia trata as paixões como ameaças à liberdade: os fracos são escravos delas; os fortes reafirmam a razão e a vontade e, assim, permanecem livres. O Iluminismo contribuiu com isso, conferindo um ar de ciência a essa imagem da razão, e superstição religiosa à ideia da escravidão entusiasmada.

Mas dizer que o Iluminismo foi um movimento do racionalismo contra a paixão, da ciência contra a superstição e da política progressista contra o tribalismo conservador é se equivocar profundamente. Essas ideias não refletem a textura exuberante do Iluminismo em si, que dava muito valor ao papel da sensibilidade, dos sentimentos e do desejo.

O Iluminismo teve início com a revolução científica de meados do século 17 e viveu seu auge com a Revolução Francesa, no fim do século 18. Hegel, no começo do século 19, foi um dos primeiros a atacá-lo. Ele dizia que o homem racional concebido por Immanuel Kant – o filósofo iluminista por excelência – gerava cidadãos alienados, enfadados e alheios à natureza, tendo o racionalismo assassino do Terror Francês como sua consequência lógica.

Mas o Iluminismo foi um fenômeno diverso; boa parte de sua filosofia não tinha relação com o kantismo, muito menos com a versão hegeliana de Kant. A verdade é que Hegel e os românticos do século 19, que se acreditam inspirados por um novo espírito de beleza e sentimento, criaram o termo “Era da Razão” para contrastar com sua própria autoimagem. O homem kantiano por eles concebido era um homem de palha, assim como o racionalismo dogmático do seu Iluminismo.

Na França, os filósofos nutriam um entusiasmo surpreendente pelas paixões, desconfiando profundamente das abstrações. Em vez de acreditarem na razão como o único meio de combater o erro e a ignorância, os iluministas franceses enfatizavam as sensações. Muitos pensadores iluministas defendiam uma versão polifônica e divertida da racionalidade, uma versão atrelada às particularidades das sensações, da imaginação e da materialização. Contra o caráter íntimo da filosofia especulativa – René Descartes e seus seguidores eram os alvos preferidos – os filósofos se voltaram para fora, e evidenciaram o corpo como ponto de envolvimento entusiasmado com o mundo. Você pode até mesmo dizer que o Iluminismo francês tentou criar uma filosofia sem razão.

Para o filósofo Étienne Bonnot de Condillac, por exemplo, não fazia sentido falar em razão como uma “faculdade”. Todos os aspectos do pensamento humano nasceram dos nossos sentidos, dizia ele – sobretudo da capacidade de se sentir atraído por sensações agradáveis e de se afastar das sensações ruins. Essa ânsia deu origem às paixões e aos desejos, e posteriormente ao desenvolvimento da linguagem, até o florescimento completo da mente.

Para evitar cair na armadilha do raciocínio falso e para se manter o mais próximo possível da experiência sensorial, Condillac defendia as linguagens “primitivas” em relação àquelas que se baseavam em ideias abstratas. Para Condillac, a racionalidade exigia que as sociedades defendessem forma mais “naturais” de comunicação. Isso significava que a racionalidade era necessariamente plural: em vez de existir de uma forma universal e indiferenciada, ela variava de lugar para lugar.

Outro personagem icônico do Iluminismo francês foi Denis Diderot. Mais conhecido como o editor da ambiciosíssima Encyclopédie (1751-72), Diderot escreveu muitos dos verbetes subversivos e irônicos – uma estratégia em parte adotada para evitar os censores franceses. Diderot não escreveu sua obra filosófica com base em tratados abstratos: assim como Voltaire, Jean-Jacques Rousseau e o Marquês de Sade, Diderot foi um mestre do romance filosófico (e também da ficção experimental e pornográfica, da sátira e da crítica de arte). Um século e meio antes de René Magritte ter escrito a famosa frase “Isso não é um cachimbo” em sua obra A Traição das Imagens (1928-9), Diderot escreveu um conto chamado “Isso não é um conto” (Ceci n’est pas un conte).

Diderot realmente acreditava no uso da razão para se buscar a verdade – mas ele era entusiasmado mesmo pelas paixões, sobretudo quando se tratava de moralidade e estética. Assim como muitos dos principais nomes do Iluminismo escocês, como David Hume, ele acreditava que a moralidade se baseava na experiência sensorial. O julgamento ético estava profundamente associado e até mesmo se confundia com o julgamento estético, dizia ele. Analisamos a beleza de um quadro, de uma paisagem ou até mesmo do rosto da pessoa amada da mesma forma que analisamos a moral de um personagem num romance, numa peça ou em nossas próprias vidas – isto é, julgamos o bom e o belo diretamente, sem auxílio da razão. Para Diderot, portanto, a eliminação da paixão só poderia dar origem a uma abominação. Uma pessoa sem a capacidade de se sentir afetada, seja por causa da falta de paixão ou dos sentidos, seria moralmente monstruosa.

O fato de o Iluminismo ter celebrado a sensibilidade e os sentimentos não quer dizer que ele rejeitasse a ciência. Bem ao contrário: o mais sensível dos homens – a pessoa com a maior sensibilidade – era considerado o mais perspicaz observador da natureza. O exemplo arquetípico era o médico afinado com os ritmos corporais dos pacientes e com seus sintomas específicos. O criador do sistema especulativo é que era o inimigo do progresso científico – o médico cartesiano que via o corpo apenas como uma máquina ou aqueles que aprendiam medicina lendo Aristóteles, sem observar os doentes. Assim, o questionamento filosófico da razão não era uma rejeição da racionalidade em si; era apenas uma rejeição à razão como algo isolado dos sentidos, alienado do corpo ardente. Assim, os filósofos estavam mais alinhados aos românticos do que queriam crer.

Generalizar movimentos intelectuais é sempre perigoso. O Iluminismo não tinha características nacionais distintas e até mesmo dentro de um país ele não era monolítico. Alguns pensamentos evocavam, sim, a dicotomia entre razão e paixão, privilegiando a primeira em detrimento da sensação – notadamente Kant. Mas, nesse sentido, Kant estava isolado de muitos, se não de todos, os principais temas de sua época. Sobretudo na França, a racionalidade não se opunha à sensibilidade; ao contrário, ela se baseava e estava intimamente ligada à sensibilidade. O romantismo foi, em grande medida, uma continuação dos temas iluministas, não uma ruptura em relação a eles.

Se pretendemos sanar as divisões do momento histórico contemporâneo, devemos abandonar a ideia fictícia de que só a razão é capaz de nos salvar. O presente merece ser criticado, mas essa crítica não servirá para nada se ela se basear no mito de um passado glorioso e racional que nunca aconteceu.

Henry Martyn Lloyd é pesquisador-bolsista honorário em filosofia pela Universidade de Queensland, Austrália. Ele é autor de Sade's Philosophical System in its Enlightenment Context (2018) e coeditor, juntamente com Geoff Boucher, de Rethinking the Enlightenment: Between History, Philosophy, and Politics (2018).

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