29 de junho de 2019

Os vilões são os EUA, não o Irã

Trump diz que quer impedir o Irã de atacar os EUA e desenvolver armas nucleares, mesmo tendo destruído um acordo internacional que estava fazendo exatamente isso. Estamos diante de uma guerra que Washington diz não querer, mas que estão fazendo de tudo para causar.

Derek Davison


Donald Trump speaks after signing an executive order imposing new sanctions on Iran at the White House on June 24, 2019 in Washington, DC. (Mark Wilson / Getty Images)

Tradução / Quando não está ameaçando o Irã com “novas sanções”, Donald Trump mostra sua preferência pela guerra. Meses atrás, de acordo com o noticiário em Washington, ele pediu a seus assessores, incluindo o Secretário de Estado ‘falcão’, Mike Pompeo, e o Conselheiro de Segurança Nacional ‘ultra-falcão’, John Bolton, para “baixar o tom” da retórica sobre o Irã. Brian Hook, representante especial do Irã, disse ao Congresso que o objetivo da campanha de sanções de “pressão máxima” do governo é a negociação, não o conflito.

Trump foi longe demais ao dizer que será o “melhor amigo” do Irã – com uma condição: os iranianos desistirem de todos os esforços para obterem armas nucleares. “Não teremos um Irã com armas nucleares”, disse aos repórteres em junho. “Quando eles concordarem, terão um país rico. Serão muito felizes e eu serei seu melhor amigo. Espero que isso aconteça”.

Acreditemos, então, na palavra do presidente. Talvez ele esteja interessado em fechar um acordo. Entenderemos, assim, que o governo pode não estar confiando tanto na palavra do Irã (Teerã insistiu que “nunca estará em busca uma arma nuclear”) ou mesmo na palavra do setor de inteligência (cujo relatório, em 2007, concluiu que o Irã interrompeu o trabalho de armas nucleares que estava realizando em 2003). Que tipo de acordo ele estaria procurando com Teerã?

Para ser viável, o plano precisaria ser internacional, envolvendo não somente os EUA e Irã, mas também a China, a Rússia e os principais estados europeus. Todos eles teriam de tomar medidas conjuntas para garantir que o Irã cumprisse suas obrigações sob o pacto e se beneficiassem com isso. O acordo precisaria ser abrangente, cobrindo todos os aspectos do programa nuclear do país; incluir um mecanismo para reforçar a submissão iraniana e fornecer ao país um alívio da atual série de sanções estadunidenses e internacionais.

Esse acordo hipotético seria uma vitória para todas as partes: os EUA e companhia receberiam a cobiçada desnuclearização e o Irã seria libertado das sanções que causaram estragos em sua economia.

Há apenas um problema: esse tipo de acordo já foi criado em 2015. É o chamado “Plano de Ação Conjunto Global” (JCPOA) — no qual o Irã acordou com os Estados Unidos, China, França, Alemanha, Rússia, e Reino Unido. O mesmo acordo que Trump decidiu abandonar no ano passado, que agora levou os EUA e o Irã à beira de um confronto militar.

Enquanto Trump passou a campanha presidencial de 2016 destruindo o JCPOA — chamando-o de “o pior acordo já negociado” e declarando que sua “prioridade número um” seria “desmontá-lo”, os especialistas em controle de armas o apoiaram por ser uma ferramenta eficaz. Mais de oitenta especialistas em não-proliferação assinaram uma declaração conjunta em 2017, antes de Trump abandonar o acordo, dizendo que o JCPOA “provou ser um programa eficaz e verificável, sendo uma vantagem líquida para os esforços internacionais de não-proliferação nuclear”, bem como “um importante sucesso da diplomacia multilateral, cuja implementação plena é fundamental para a paz e a segurança internacionais”.

Quando foi negociado em 2015, a premissa do JCPOA era simples: em troca de aceitar limitações em seu programa de energia nuclear e um intenso regime de inspeções para verificar seu cumprimento, o Irã obteria alívio das sanções estadunidenses e internacionais. Ao obrigá-lo a refazer um reator de água pesada que poderia ter gerado desperdício significativo de plutônio e estabelecer limites estritos ao programa de enriquecimento de urânio do país, o acordo fechou os dois caminhos potenciais do Irã para as armas nuclear. Mais criticamente, o Irã concordou com um nível sem precedentes de monitoramento e inspeções para verificar sua fidelidade. Esse trabalho foi realizado pela Agência Internacional de Energia Atômica, que afirmou incessantemente a adesão do Irã ao acordo.

Esse é o acordo que Trump escolheu violar no ano passado. Com a reimposição das sanções dos EUA – que se aplicam não apenas às entidades estadunidenses, mas a todas as partes que buscam negociar com o Irã – tornou-se impossível para Teerã receber quaisquer benefícios, apesar de sua fidelidade ao acordo. Embora os demais signatários do JCPOA precisem proteger parte do comércio iraniano das sanções norte-americanas, esses esforços têm um alcance muito limitado e, graças ao domínio dos EUA no sistema financeiro global, ainda são vulneráveis a sanções.

Não é de se espantar que os iranianos tenham recentemente começado a reduzir seus próprios compromissos com o acordo nuclear e planejem continuar a reduzi-los. Surpreendentemente, o governo Trump fez um alerta contra o país – o governo “ainda espera que o Irã cumpra os termos [do JCPOA]” “, de acordo com a NBC News. Mas a saída dos EUA do JCPOA, associada à aplicação zelosa de sanções do governo Trump, destruiu o pacto. Para todos os efeitos, o JCPOA não existe mais, e a noção de que o Irã continuaria aderindo a um acordo sem saída é, no mínimo, irracional.

Se a abordagem do governo Trump ao Irã parece incoerente, é porque é. Ele diz querer impedir o Irã de desenvolver armas nucleares, mas destruiu um acordo internacional que estava fazendo exatamente isso. Seus conselheiros dizem que querem forçar o Irã a negociar um acordo mais expansivo que atenda às deficiências do original, mas a melhor maneira de incentivar o país a continuar colaborando seria garantir que ele recebesse todas as vantagens prometidas pelo JCPOA.

Agora, os líderes iranianos chamam a oferta dos EUA de “engano”, e até os ostensivos aliados estadunidenses, como a França, dizem não terem visto “nenhum sinal de que os EUA estejam interessados em dialogar”. O governo alega que quer construir uma “coalizão global” para isolar e combater o Irã, mas suas ações isolaram apenas os EUA, mostrando que são eles, e não o Irã, os vilões nessa situação.

O governo Trump fez sanções a ele mesmo, amontoando-se cada vez mais no Irã e não oferecendo a Teerã qualquer chance de aliviá-las sem envolver algum tipo de rendição. Após a mais recente rodada de sanções dos EUA — que teve como alvo o próprio líder supremo aiatolá Ali Khamenei — o Irã insinuou que o “caminho para a diplomacia” está fechado agora, e não há razão para duvidar de que estejam falando a verdade.

A única constante nos últimos quarenta anos das relações Irã-EUA tem sido o profundo desejo de Washington de mudar o regime de Teerã. Visto sob esse prisma, a recusa do governo em criar uma rampa para descer dessa crise totalmente estadunidense pode ser deliberada — parte de um plano para punir o povo iraniano de maneira tão severa que eles acabem se levantando e derrubando seu governo em nome de Washington. Mas ainda não há indicação de que o esforço esteja funcionando. Enquanto isso, milhões de pessoas estão sofrendo, enquanto a região do Golfo Pérsico se aproxima de uma guerra que os EUA dizem que não querem, mas estão fazendo de tudo para causar.

Sobre o autor

Derek Davison é um autor e analista especializado no Oriente Médio e política externa estadunidense.

O radical negro mais importante do qual você nunca ouviu falar

Hubert Harrison foi um dos primeiros socialistas negros dos Estados Unidos, um feroz defensor da igualdade racial e um pioneiro na análise de como o capitalismo usa o racismo para dividir a classe trabalhadora. Ele merece ser lembrado.

Paul Heideman

Jacobin

Hubert Harrison, sentado à esquerda, e os líderes dos Trabalhadores Industriais do Mundo (IWW), Elizabeth Gurley Flynn e Bill Haywood, à direita, organizaram a greve têxtil de Paterson, em 1913. (American Labor Museum)

Tradução / Hubert Henry Harrison é o mais importante radical negro do qual você nunca ouviu falar. Enquanto outras figuras de liderança do movimento negro, de W.E.B Du Bois à Ella Baker e Malcom X, foram homenageados com nomes de ruas e selos postais, Harrison permanece à sombra, conhecido apenas por especialistas em história dos negros. Na época, entretanto, Harrison foi uma figura que ficou ao lado de gigantes como Marcus Garvey, Ida B. Wells e A. Philip Randolph.

Harrison também fui um dos primeiros socialistas negros dos Estados Unidos. Enquanto esteve no Partido Socialista, ele desenvolveu uma análise de como o capitalismo produz a desigualdade racial e pressionou o movimento operário para confrontar diretamente essa desigualdade. Adepto do partido que aglutinava a esquerda radical, foi expulso durante lutas entre facções antes da Primeira Guerra Mundial. Ele então fundou seu próprio jornal e liderou a onda radical negra do Harlem após a guerra.

No decorrer de sua breve vida, Harrison insistiu em unir a luta contra a opressão racial à luta contra o capitalismo. Seu trabalho é uma fonte vital para os radicais atuais que se unem às duas lutas.

Unindo antirracismo ao socialismo
Harrison nasceu em Saint Croix, uma pequena ilha caribenha, em 1883. Aos 7 anos começou a trabalhar como empregado doméstico. Quando sua mãe morreu, em 1898, ele imigrou para Nova Iorque, terminando o ensino médio e conseguindo um emprego no correio. Rapidamente se estabilizou como um líder intelectual, organizando grupos de discussões políticas entre seus colegas de trabalho e se jogando na enérgica cena de palestras públicas e debates.

Feroz defensor da igualdade racial, ele entrou em conflito com a figura mais importante da política negra de sua geração, o conformista Booker T. Washington. Harrison havia escrito uma carta ao New York Sun em resposta à recente declaração de Washington, que dizia que “o Sudeste dos EUA oferece melhores chances ao negro do que quase qualquer outro país do mundo”. Em sua resposta, Harrison rechaçou Washington por seu silêncio sobre o ultraje do racismo estadunidense e o acusou de manter-se na posição de liderança “pela graça dos brancos que elegem líderes negros para eles”.

Washington nunca respondeu Harrison por escrito, mas sim por ação. Usando sua posição de distribuidor de empregos de mecenato para norte-americanos negros como parte da máquina do Partido Republicano, Washington demitiu Harrison do correio.

Se a intenção de Washington era silenciá-lo, seu plano falhou miseravelmente. Menos de um mês depois de perder o emprego, ele encontrou um novo trabalho, dessa vez como palestrante e organizador do Partido Socialista.

O Partido Socialista era uma organização formidável, principalmente em Nova Iorque, quando Harrison entrou, em 1911. Os socialistas estavam vencendo as eleições municipais e estaduais por todo o país; em Wisconsin, o líder socialista Victor Berger defendeu sua cadeira no Congresso. O partido teve menos sucesso na organização dos trabalhadores negros, apesar do debate considerável, desde a sua fundação, sobre a questão racial.

A tarefa de Harrison era mudar aquilo. Organizando a campanha municipal em meados de 1911, a função do jovem intelectual era ajudar o partido a construir bases de apoio entre eleitores negros. Ele foi extremamente bem-sucedido, inovando ao usar materiais de campanha socialista direcionados aos negros estadunidenses. Quando saíram os resultados, o total de votos do partido saltou para 6 mil desde a última disputa, boa parte devido ao aumento do apoio entre os eleitores negros. O partido, impressionado com a perspicácia de Harrison, contratou-o como orador e organizador “para estabelecer um núcleo de organização entre pessoas negras”.

Harrison começou a trabalhar imediatamente, ajudando a organizar o Colored Socialist Club (Clube Socialistas de Pessoas Negras) na cidade e escrevendo uma série de artigos sobre “O Negro e o Socialismo” no New York Call. A série, divida em 5 partes, discorria uma análise da opressão racial nos EUA. Foi a mais sofisticada do que qualquer outra produzida pelos socialistas estadunidenses. Consistia em uma compreensão materialista do racismo, dizendo que não era resultado de preconceitos de raça “naturais”, tampouco de ideias más dos brancos, mas da “falácia do medo econômico”, pelo qual “a competição econômica cria o preconceito racial”. Foi “o principal interesse dos capitalistas da América,” ele escreve, “preservar o status econômico inferior das raças de cor, porque eles sempre podem usá-la como um exército reserva para outros trabalhos”.

E era do interesse do Partido Socialista se livrar daquela reserva. Harrison argumentou que o partido tinha que assumir a causa de “todas as seções oprimidas da humanidade” e rejeitar a política suicida de excluir trabalhadores negros (como fizeram muitos sindicatos da Federação Americana do Trabalho, a AFL, na época). Para ele, socialistas e americanos negros precisavam um do outro:

“Se a derrubada do sistema atual elevar uma nova classe ao poder; uma classe à qual o negro pertence; uma classe que não tem nada a ganhar com a degradação de qualquer parte de si mesma; essa classe removerá a razão econômica da degradação do negro. Essa é a promessa do socialismo, o movimento inclusivo da classe trabalhadora. No triunfo final desse movimento está a única esperança de salvação desta segunda escravidão; de homens negros e brancos.”

Infelizmente, assim como Harrison estava divulgando sua análise pioneira do racismo, forças maiores do partido estavam trabalhando contra ele. O embate entre esquerda e direita estava chegando ao ponto máximo, em grande parte devido às atitudes em relação aos sindicalistas revolucionários dos Trabalhadores Industriais do Mundo (IWW).

A IWW abraçou o sindicalismo de luta de classes e desprezou a cooperação com os empregadores e o sindicalismo “puro e simples” da AFL. Crucial para Harrison, a IWW também organizou ativamente trabalhadores negros. Enquanto isso, a ala direita do partido priorizou sua aliança com os sindicatos da AFL e via a IWW como revolucionários fervorosos. Eles nutriam um desprezo especial ao líder da IWW Big Bill Haywood, membro do comitê executivo do partido. Em 1912, a direita o arrancou com sucesso do Partido Socialista, levando muitos esquerdistas do partido a saírem com ele.

O forte apoio de Harrison à esquerda do partido o colocou em uma posição precária em Nova York, onde um dos principais inimigos, como Morris Hillquit, liderou o partido. A liderança local começou a restringir o trabalho de Harrison, proibindo até os próprios aliados de agendá-lo como palestrante. Harrison, que nunca recuou de uma briga, enviou uma breve nota ao comitê executivo da cidade, dizendo-lhe para “perseguirem a si mesmos”, e acrescentou: “A propósito, se minha cor tem algo a ver com isso desta vez, agradeço por me avisar.”

A sede local viu Harrison desprezando o comitê executivo e suspendeu sua associação por três meses. Quando o castigo terminou, Harrison deixou o Partido Socialista.

Nova militância
Depois de deixar o Partido Socialista, Harrison se tornou um radical independente, abrindo caminho pela enérgica esquerda de Nova York. Ele deu palestras sobre temas variados, de ateísmo ao controle de natalidade, tornando-se um dos mais respeitados oradores da cidade.

Quando a Primeira Guerra Mundial estourou, Harrison viu nela uma nova oportunidade para o avanço dos negros. Enquanto se opunha à guerra, ele fez ecoar análises como as de W.B. Du Bois e Vladimir Lenin, que entendiam o conflito como uma disputa entre quais potências europeias dominariam o mundo colonial. Ele esperava que, ao final, “lavada pelo batismo de sangue, a raça branca será menos capaz de empurrar a mão forte de sua soberania nas gargantas de outras raças”. Enquanto os imperialistas lutavam entre si, o colonizado precisava se erguer. A Revolta da Páscoa de 1916 exemplificou o tipo de ação que Harrison esperava ver se espalhando pelo mundo colonial. “O povo negro dos EUA nunca representaria nada de muito político até que julgasse oportuno imitar os irlandeses da Grã-Bretanha”, escreveu.

Ele então decidiu começar essa imitação. Na véspera de Natal de 1916, proferiu uma palestra intitulada “Quando o negro acorda: uma fala sobre ‘O movimento dos homens’ entre o povo negro da América” que analisou e catalisou uma nova militância entre os negros estadunidenses. Após o sucesso da palestra, Harrison fundou a Liberty League, uma organização dedicada a luta dos negros contra a supremacia branca e o primeiro grupo identificado com o recém-nascido “Novo Movimento Negro”. O movimento reuniu fundos para criar um jornal, o Voice, editado por Harrison. O periódico focou, em particular, na autodefesa armada contra linchamentos e tumultos anti-negros, que se espalharam quando a economia de guerra dispersou trabalhadores afro-americanos da região rural ao sul.

O Voice decolou rapidamente, com circulação de dez mil por edição. Também chamou a atenção dos concorrentes políticos de Harrison. Fred Moore, um dos tenentes de Booker T. Washington, repudiou o Voice, alegando que “um negro típico não aprova explosões socialistas radicais, como incentivar os negros a se defenderem dos brancos”. Típicos ou não, os estadunidenses negros estavam comprando e lendo o Voice.

Assim como no Partido Socialista, elementos mais conservadores trabalharam para minar a atividade política de Harrison. Seus concorrentes pressionaram os editores, impedindo o jornal de sair em tempo hábil. Harrison também se recusou, motivado por orgulho racial, a receber dinheiro publicitário da grande indústria de alisadores de cabelo e branqueadores de pele, que forneciam financiamento crucial para outras publicações negras. Seu comportamento pessoal também não ajudou – sempre desinteressado em questões financeiras, Harrison lidou mal com o dinheiro. Em novembro de 1917, o Voice havia cessado a publicação, apenas cinco meses após o início.

Harrison também logo se viu em competição pela liderança dos cidadãos negros politicamente inquietos do Harlem. Marcus Garvey, um jornalista jamaicano, foi para os Estados Unidos em 1916 e começou a construir sua organização nacionalista negra, a United Negro Improvement Association (UNIA). Ao recrutar muitos dos primeiros apoiadores de Harrison, a UNIA se transformou em uma organização massiva, angariando rapidamente um número de membros na casa das dezenas de milhares. Em 1920, até o próprio Harrison aceitaria um trabalho editando o jornal de Garvey, The Negro World [O Mundo Negro].

Legado de radicalismo
Harrison morreu durante uma operação de apendicite em 1927, aos 44 anos. Sua morte não foi amplamente noticiada, apesar de seu destaque na década anterior. Após os anos 1920, ele continuou a contribuir com a política cultural radical de Nova Iorque, mas nunca com a influência que tivera enquanto membro do Partido Socialista ou líder do Novo Movimento Negro.

Quase um século depois, contemporâneos de Harrison, como Garvey e A. Philip Randolph, permanecem mais conhecidos do que o negro mais radical, embora Harrison tenha se estabelecido na política de esquerda do Harlem muito antes. Sua obscuridade – heroicamente combatida nos últimos anos pelo estudioso Jeffrey Perry – é resultado de sua falta de sucesso na criação de instituições. Enquanto o jornal de Randolph, o Messenger, publicado por uma década, e a UNIA de Garvey deixaram sua marca em uma geração política, os esforços de Harrison foram menos duradouros. Por isso, sua considerável influência e originalidade não receberam o devido crédito.

No entanto, sua contribuição continua sendo vital. No Partido Socialista em especial, ele articulou uma visão clara do papel do racismo na divisão do movimento dos trabalhadores e a necessidade dos socialistas de atacar a opressão racial onde quer que se encontrasse. E, embora se decepcionasse com o partido devido ao conservadorismo em questões de raça e trabalho, ele nunca abandonou sua crença de que apenas o socialismo traria libertação aos negros.Hoje, seu trabalho permanece inacabado. Tomar consciência dos ideais de igualdade e democracia que o guiaram ainda requer, em suas próprias palavras, “uma revolução... surpreendente necessária a se pensar."

Sobre o autor

Paul Heideman é doutor em estudos americanos pela Rutgers University-Newark.

28 de junho de 2019

Honduras é um espelho para toda a América Latina

Honduras está sob uma década de ditadura, com seu golpe de 2009 anunciando uma maré reacionária em toda a América Latina. A solidariedade internacionalista e antiimperialista é desesperadamente necessária.

Uma entrevista com
Luis Méndez

Traduzida por
Hilary Goodfriend


O ex-presidente hondurenho Manuel Zelaya fala na Universidade George Washington sobre democracia e o golpe hondurenho em 2 de setembro de 2009 em Washington, DC. (Win McNamee / Getty Images)

O dia 28 de junho representa um marco sombrio em Honduras: dez anos de ditadura, de tragédia e resistência, de protesto e repressão. O golpe de Estado de 2009 que derrubou o presidente eleito democraticamente, Manuel Zelaya, carregava ecos estranhos dos dias mais sombrios da guerra apoiada pelos EUA na América Central, e provou ser um precursor da contra-revolução de direita na região.

Nas palavras de Dana Frank, “Honduras foi o primeiro dominó que os Estados Unidos pressionaram para combater os novos governos na América Latina.” Depois que os militares derrubaram Zelaya, golpes parlamentares derrubaram governos democráticos progressistas no Paraguai e no Brasil, e embaixadores reacionários do capital, desde então, subiram ao poder em eleições por todo o continente.

Em 2018, o pesquisador salvadorenho-brasileiro Aleksander Aguilar Antunes entrevistou o ativista hondurenho Luis Méndez para o e-book Golpe electoral y crisis política en Honduras (Golpe eleitoral e crise política em Honduras) do Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO) (Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais - CLACSO). Em sua introdução, Aguilar Antunes escreve:

Carmen Elena Villacorta (...) definiu Honduras como o espelho da América Central. Quase dez anos depois do episódio que desencadeou o golpe, isto é, desde a derrocada e expulsão do país do presidente Manuel Zelaya, é possível pensar em Honduras como o espelho não só da América Central, mas de toda a América Latina. A reacomodação de atores políticos reacionários em diferentes contextos nacionais em todo o continente, o que na prática significou perdas amplas e perigosas em termos de políticas sociais e direitos humanos, vem ocorrendo de diferentes formas: impeachment, fraudes eleitorais e golpes de estado. 
Honduras tem sido um laboratório para essas reconfigurações, assim como diferentes lugares da América Central têm sido historicamente. Se isso é em parte culpa da direita, é também culpa da esquerda, que no poder colocou todas as suas fichas no neodesenvolvimentismo, reduzindo o horizonte da emancipação social ao progressismo. O progressismo baseia-se fundamentalmente em práticas extrativistas corporativas, estatais ou privadas que financiam políticas públicas, e o extrativismo é a morte e o deslocamento territorial. Assim, a regressão que vemos hoje dificilmente poderia ser diferente.

À medida que a esquerda latino-americana se refere às suas falhas em construir uma base sustentável para um projeto político transformador, as elites apoiadas pelos EUA começaram a libertar território para o capital às custas das populações e ecossistemas mais vulneráveis da região. Em Honduras, cuja história e paisagem já foram marcadas por plantações da United Fruit e bases militares dos EUA, este projeto assumiu uma forma particularmente brutal.

O regime pós-golpe foi pioneiro em novos modos dramáticos de extração neoliberal militarizada, desde megaprojetos e monoculturas a cidades charter. A crescente violência do crime organizado - na qual o regime está profundamente implicado - juntamente com a repressão do Estado contra dissidentes provocaram um êxodo de refugiados, que viajaram juntos em uma série de caravanas de alto perfil através do México para buscar asilo na fronteira com os EUA. Apesar de sua eleição fraudulenta em 2017, um desfile de escândalos de corrupção e incansáveis protestos populares, o presidente Juan Orlando Hernández (JOH) permanece no poder. Nas últimas semanas, as iniciativas de privatização provocaram uma onda renovada de mobilização de massa e militância nas ruas. Greves nacionais lideradas por professores e profissionais de saúde foram recebidas com violência por forças de segurança treinadas pelos EUA. Em Tegucigalpa, manifestantes incendiaram o exterior da embaixada dos EUA.

Nesse contexto, os movimentos de resistência deram origem a um novo ator político: a Plataforma por la Defensa de la Salud y la Educación (Plataforma pela Defesa da Saúde e da Educação). A Plataforma reúne trabalhadores do setor público, movimentos sociais tradicionais e novos, e a liderança e membros do partido de oposição Libre juntos em uma nova frente formidável contra o regime, pedindo o fim das reformas de privatização, bem como a renúncia de JOH. Em um recente artigo para a red-plataforma centroamericanista “O Istmo”, coordenada por Aguilar Antunes, Luis Méndez escreve que a Plataforma está “criando as condições para a construção de poder popular real a partir de baixo, capaz de dar um salto qualitativo para novos cenários de contra-poder, e possivelmente um novo episódio na disputa pelo poder no curto prazo”.

Méndez está na linha de frente do levante em Honduras. Educador e artista popular que trabalha com educação política e memória histórica, Méndez ajudou a fundar a escola política da Frente Nacional de Resistencia Popular (FNRP) (Frente Nacional de Resistência Popular - FNRP) e seus primeiros coletivos populares de resistência. Em sua conversa de 2018 com Antunes, Méndez fornece insights sobre o terreno em mutação da luta, bem como uma discussão oportuna da relação tensa entre os movimentos e os partidos políticos criados para servi-los. A entrevista também serve como um guia para a história da resistência e nos ajuda a entender a dinâmica que conduz sua configuração atual na Plataforma.

Para a esquerda dos EUA, a crise em Honduras revela a natureza inextricável da política externa e interna e a necessidade urgente de um antiimperialismo internacionalista e centrado na solidariedade. (Podemos começar exigindo que o Congresso aprove a Lei Berta Cáceres). Como esta entrevista mostra, também oferece lições importantes sobre os desafios e as possibilidades de construção de poder.

Méndez salienta que “sem internacionalismo, sem a solidariedade dos povos do mundo, Honduras não seria nada mais do que uma catástrofe”. Este aniversário sombrio é um momento tão bom quanto qualquer outro para renovar nosso compromisso.

- Hilary Goodfriend

Aleksander Aguilar Antunes

A FNRP é uma organização sócio-política de Honduras que surgiu em resposta ao golpe de 2009, quando o presidente Manuel Zelaya foi detido por militares e exilado para a Costa Rica, o que provocou um processo de organização entre os apoiadores do presidente e setores populares, sindicalistas e progressistas, que repudiaram o golpe e tomaram as ruas de Tegucigalpa para protestar. 

Desse processo de luta surgiu o Partido Libertad y Refundación (Libre) em 2012. Depois de muitas manobras, o governo golpista acabou oficializando-se no Congresso Nacional, permitindo a eleição de Porfirio Lobo (candidato da direita) e continuando com os procedimentos institucionais que culminaram com a reeleição fraudulenta de Juan Orlando Hernández (JOH). 

Com essa trajetória e nesse contexto, qual é a situação atual da FNRP, qual a sua avaliação dessa experiência? Até que ponto as atuais lutas hondurenhas estão ligadas ao que foi feito e ao que é a FNRP?

Luiz Méndez

Um ponto preliminar e importante para contextualizar a situação do FNRP parte de alguns elementos-chave: à conformação FNRP lhe antecederam a Coordinadora Nacional de Resistencia Popular e o Bloque Popular, que inicialmente reuniram amplos setores do movimento social e popular em uma etapa que vai desde a entrada do neoliberalismo na região (década dos anos noventa) e a luta popular contra os acordos de livre comércio na América Central, até a ruptura da institucionalidade com o golpe de 2009. Naquele ano se conformou a Frente Nacional contra el Golpe de Estado e, em seguida, se fundou a FNRP um acúmulo de força do poder popular que culminou na formação de um instrumento político-eleitoral definido como Partido Libertad y Refundación (Libre).

Acho que da pergunta que você me faz, surge outra talvez um pouco desconfortável, mas que é necessário responder: o FNRP realmente existe hoje? Faço esta pergunta a partir de um argumento principal que parte da etapa fundacional da FNRP, concebida como um grande corpo que conseguiu incorporar diferentes atores políticos, sociais e populares com uma posição política e ideológica fortemente anti-capitalista, anti-oligárquica, antiimperialista, anti-patriarcal e anti-racista.

Em outro sentido, uma Frente Nacional de Resistência Popular com eixos-chave para o avanço estratégico: formação política, organização e mobilização popular, com uma clara ideia de seu projeto de construção do poder popular, da refundação do Estado e um de novo pacto social que passava por uma Assembléia Nacional Constituinte original e refundacional. Desta FNRP original à FNRP de hoje, acredito que a situação tem marcado e desalojado não apenas o sentido orgânico de suas estruturas locais, nacionais e de coordenação, mas também o projeto de frente estratégica. Sob essa ideia de transformar a FNRP em um grande corpo e o Partido Livre em um braço político eleitoral, a realidade mostrou, ao longo do tempo, que "o braço político subsumiu o corpo".

Em períodos subsequentes, e após as derrotas por fraude eleitoral, as forças populares enfrentaram uma fragmentação de forças, de ideias e de líderes, bem como recuaram diante de um panorama preocupante marcado por uma falta de liderança política estratégica e incerteza em relação ao projeto de articulação do poder popular. Portanto, embora o FNRP exista como uma estrutura nominal e seja um projeto histórico e exemplar de máxima relevância após o golpe de 2009, é também um projeto transitório para outras formas de organização popular que rejeitam as formas monodirecionais e verticais de liderança que caracterizam movimentos sociais tradicionais e até novos.

Não foi surpresa que, após a fraude eleitoral de 2017, durante o período de revoltas territoriais em todo o país, a FNRP não tenha tido um papel como espaço de articulação nesse processo. Dada a ausência de uma frente de luta, surgiu uma convergência contra a continuidade do regime e a fraude eleitoral; um espaço amplo que conseguiu articular organizações e movimentos tanto no setor social popular, quanto na Aliança da Oposição.

Em etapas posteriores, e após as derrotas por fraude eleitoral, as forças populares enfrentaram um fracionamento de forças, de ideias e de referentes, e recuaram diante de um panorama sombrio de ausência de liderança política e estratégica, de incerteza sobre a projeto articulador da força popular. Portanto, posso concluir que a FNRP, embora seja verdade que exista como estrutura nominal e que constitua um projeto histórico e referencial de grande relevância após o golpe de 2009, é também um projeto transitório para outras formas de organização das forças populares que rejeitam formatos unidirecionais e verticais de condução, típicos de movimentos sociais tradicionais e até novos. Não é de estranhar que, antes da fraude eleitoral de 2017, na fase de insurreições territoriais em nível nacional, a FNRP não atuasse como espaço articulador do processo. Na ausência de uma frente de luta, houve uma convergência contra a continuidade e a fraude eleitoral; um amplo espaço que conseguiu articular organizações e movimentos do setor social popular e da Aliança de Oposição.

Os primeiros três meses de luta popular e de rua contra a fraude eleitoral de JOH no final de 2017 e início de 2018 foram bastante intensas, mas também enfrentaram uma série de repressão, violência e perseguição. Hoje, a população de Honduras tem medo de apresentar queixas porque a captura do sistema de justiça por forças poderosas alinhadas com JOH gerou um ambiente de criminalização do protesto social. Os líderes da oposição e da resistência foram acusados ​​de "terrorismo" e perseguidos em suas próprias casas. 

Nesta conjuntura política, os levantes territoriais das massas populares conscientizadas, a insurreição e a desobediência civil continuam sendo as formas mais indicadas de luta? Você acredita que a única maneira possível de sair da crise hondurenha ainda é a "rebelião popular", como indicou em seu texto "Honduras pós-eleitoral em crise; consolidação ou fim da ditadura nascente", publicado em 17 de janeiro de 2018?

A rebelião popular e as revoltas territoriais representam um caminho legítimo para os povos conterem e, no melhor dos casos, derrubarem o projeto de morte do atual regime ditatorial de Juan Orlando Hernández. Levantamentos territoriais que vão além da defesa do voto, dos processos eleitorais; revoltas territoriais que passam pela defesa da vida, dos bens comuns da natureza, do público. Nesse sentido, apoio a tese da insurreição popular como forma legítima, de fato e de direito, conforme estabelecido no artigo 3º da Constituição da República:

"Artigo 3. Ninguém deve obediência a um governo usurpador ou àqueles que assumem funções públicas ou empregos por força das armas ou usam meios ou procedimentos que violam ou ignoram o que esta Constituição e as leis estabelecem. Os atos verificados por tais autoridades são nulos. As pessoas têm o direito de apelar à insurreição em defesa da ordem constitucional."

Para a ditadura de JOH, essas formas de rebelião popular e autodeterminação dos povos representam uma ameaça ao status quo e à sua já debilitada credibilidade nacional e internacional, portanto, é mais fácil para o regime sujeitar o povo a uma ditadura estatal, de terror e morte, que abandonar seu projeto continuista.

A rebelião popular e as revoltas territoriais que temos visto depois das eleições de 2017 aconteceram de maneira organizada e desorganizada, em situações espontâneas ou condicionadas pela conjuntura. Nestes processos autoconvocados a população procura mecanismos de organização e defesa, rejeitando inclusive a liderança de dirigentes esgotados ou desacreditados, tanto de partidos políticos como de organizações do próprio movimento popular.

O atual ambiente sociopolítico em Honduras continua marcado pelo conflito e pela violência, que tem sido uma característica do país há algum tempo e se tornou a tônica cotidiana desde que as mobilizações populares foram amplificadas e intensificadas em face dos obscuros resultados das eleições presidenciais de novembro de 2017. A novidade dos processos de luta hondurenhos, no entanto, é a aparente falta de estratégia da atual oposição - liderada pelo candidato “derrotado” Salvador Nasralla, pelo presidente hondurenho deposto em 2009, Mel Zelaya, e pelo Partido Libre - para obter respostas contundentes e construtivas às suas demandas. 

Na sua opinião, essa leitura está correta? A oposição partidária não conseguiu impulsionar o poder e a disposição para as lutas de rua e os protestos populares da sociedade hondurenha?

Honduras tem uma história de golpes, enclaves e cálculos políticos. E essa colonialidade das formas de se fazer política eleitoral carrega uma impressão marcada pela história do caudilismo, que neste momento, como das outras vezes em nossa história política, faz mais mal do que bem para os processos emancipatórios.

O triunfo da greve de 1954 foi que ela foi liderada pelos trabalhadores, pelos comitês de greve, pelos comitês locais. Ao contrário do que aconteceu em 2009 e 2017, o movimento social e popular organizado e as populações desorganizadas têm estado em uma espécie de vagão de um projeto devido à disputa pelo poder. Portanto, as forças populares, com falta de autonomia e autodeterminação diante da crise e frente à disputa de poder, criam uma dependência excessiva das lideranças politicamente instáveis ​​ou excessivamente calculistas.

Nesse sentido, sim, há uma ausência de liderança estratégica, de um plano mínimo de luta que permita às forças populares avançar em seu verdadeiro projeto de poder popular.

Temos lido relatos sobre como o investimento estrangeiro em projetos extrativistas no país (represas e empresas de mineração) foi paralisado ou diminuído devido a denúncias de violações de direitos humanos e impunidade após a execução da ativista Berta Cáceres em 2016, fato que teve grande repercussão internacional. No entanto, sob sua influência e de outros líderes, os povos indígenas do país, na defesa de seus territórios contra as políticas extrativistas, foram rotulados como "oponentes do desenvolvimento". 

Esse preconceito foi estendido a outros setores de luta, coletivos e indivíduos que denunciam concessões ilegais e exigem a investigação das mortes de defensores de territórios? Qual o impacto do assassinato político de Berta Cáceres na organização das lutas sociopolíticas em Honduras?

Berta mostrou um horizonte não só para a resistência hondurenha, mas também para as resistências do mundo. Berta é todas as lutas porque aposta em todos os processos orientados para a emancipação dos povos.

Berta, o Consejo Cívico de Organizaciones Populares e Indígenas de Honduras (COPINH) e a resistência de Río Blanco contiveram e removeram o monstro da Sinohydro e da Desarrollos Energéticos S.A. de C.V. (DESA), uma empresa com capital hondurenho que, com um empréstimo de 24,4 milhões de dólares concedido pelo Banco Centro-Americano de Integração Econômica (BCIE), subcontratou a empresa chinesa Sinohydro, pertencente ao grupo Power Construction Corporation da China. Foi uma vitória do povo Lenca em defesa dos bens comuns da natureza. Berta em defesa da floresta, Berta em sua luta contra as tropas dos EUA em Honduras, Berta antipatriarchal, anti-racista, anti-imperialista, anticapitalista.

Essa é uma das dimensões de Berta, de seu legado que renasce em cada luta. Diante disso, o discurso dos negócios, dos grupos políticos e transnacionais e da mídia castrada pelo capital vai na linha de rotular aqueles que defendem os territórios como "oponentes do desenvolvimento", sob a lógica de seus próprios conceitos de "desenvolvimento", de um desenvolvimento centrado na morte, aniquilação e acumulação de capital.

Por essa razão, a empresa privada, em conluio com o Estado de Honduras, assassinou Berta. Nisso somos vigorosos ao afirmar que o assassinato de Berta foi um crime estatal.

Ela foi pioneira do projeto refundacional, iniciadora das revoltas territoriais. Depois de Río Blanco, outras revoltas foram escalonadas em vários lugares: no norte, sul, leste e oeste, e em todas as lutas o espírito de Berta, sua visão cosmogônica da vida, está presente. Berta sempre falou da força ancestral, força e legado que hoje possibilitam a construção de unidade, consensos e lutas.

O caso da Misión contra la Corrupción y la Impunidad de Honduras (MACCIH) parece emblemático no debate sobre o peso dos fatores internacionais e geopolíticos na crise hondurenha. A iniciativa, que foi inspirada na CICIG guatemalteca, foi recebida pelas forças de oposição e resistência com desconfiança, com críticas assinalavam que o seu objectivo era mitigar o descontentamento social, desmobilizar os cidadãos e ganhar tempo para se conseguir a re-eleição.

No entanto, a MACCIH desvendou alguns casos de corrupção, julgou culpados e exigiu responsabilidade civil e criminal, que se tornou uma ameaça para o JOH e seus aliados do poder legislativo e judicial (revelou que os deputados se apropriaram de fundos públicos destinados a ONGs para implementar ações com comunidades, que eram de fato falsas e não executadas; até agora pelo menos trinta ONGs e sessenta deputados estão envolvidos). 

Que análise você faz do contexto em que o país está inserido e a influência desses fatores na evolução da crise atual?

A Organização dos Estados Americanos (OEA) desempenhou, historicamente, um papel de curinga para os interesses hegemônicos do imperialismo e da direita no continente e, no caso do pós-golpe de 2009, desempenhou um papel semelhante ao do Acordo de San José, do Pacto de Guaymuras e, posteriormente, do Acordo de Cartagena.

A MACCIH surgiu como uma missão contra a corrupção e a impunidade com um papel de "acompanhamento", disse o regime, como um argumento para diminuir sua beligerância. Até agora, o roteiro do regime foi bem planejado, mesmo para o próprio Luis Almagro (atual Secretário Geral da OEA), que calculou que a missão em Honduras estava totalmente subordinada às suas decisões.

No entanto, a realidade ultrapassou qualquer cálculo político e a MACCIH, que a princípio não foi bem recebida pelo povo hondurenho, nem pelo movimento de indignação por causa da história da OEA (pela proximidade desta com grupos de uma suposta e impostada sociedade civil), essa MACCIH que não era bem quista no início, começou a dar mostras de autonomia e independência, e com as primeiras denúncias e abordagens contundentes de querer ir à raiz dos problemas, de nomear as redes de crime organizado no interior do próprio governo, a população passou a dar um voto de confiança, especialmente quando apontou para a rede de deputados como ponta de lança ou fio para alcançar a gigantesca rede de corrupção no Congresso Nacional.

Este tremor fez com que o governo, que havia solicitado a MACCIH, se tornasse detrator desta, sob o argumento de defesa da "soberania", a tal ponto que o Supremo Tribunal julgou procedente o recurso de inconstitucionalidade contra a Missão. Posteriormente, com a chegada de Luis Almagro e sua hipocrisia, alguns dos membros da equipe técnica foram marginalizados e demitidos da Missão, incluindo seu porta-voz, Juan Jiménez Mayor.

A MACCIH abalou tanto as redes de corrupção que, com a prisão da ex-primeira dama, Rosa de Lobo, e privação de seus bens (incluindo a casa que pertenceu ao ex-presidente Porfirio Lobo), e diante da denúncia da corrupção à rede de deputados, o Congresso tentou revogar a Ley de Privación de Bienes, a fim de proteger suas estruturas de corrupção. Essa ação foi vetada pelo regime mais pela pressão da comunidade internacional e dos próprios Estados Unidos do que por um interesse da ditadura.

Neste cenário de crise, a hipocrisia da comunidade internacional também desempenhou seu papel, por um lado endossando a fraude eleitoral e, por outro lado, tentando conter a corrupção, senão em geral, em grande parte da estrutura do Estado. Uma comunidade internacional que evitou ir à raiz do problema.

Na região da América Central, e em outras áreas geográficas, vimos e até participamos de alguns atos de apoio e solidariedade internacional com o povo de Honduras em resistência ao golpe de 2009 e contra a fraude eleitoral de 2017.

Isso teve algum significado ou impacto em Honduras? Qual tem sido a importância desse internacionalismo nos momentos mais fortes dos protestos de rua?

Sem o internacionalismo, sem a solidariedade dos povos do mundo, Honduras não seria nada mais do que uma catástrofe, um pandemônio político e social.

No caso da fraude eleitoral de 2017, o papel desempenhado pelos movimentos sociais, partidos políticos progressistas e meios alternativos, assim como outros atores do internacionalismo latino-americano e de outros continentes, foi extraordinário. Eles levantaram suas vozes em todo o mundo denunciando não apenas uma fraude endossada pela OEA e pela União Européia, mas também ameaças, perseguições e assassinatos contra a resistência anti-JOH e a violação permanente dos direitos humanos.

Em 2015, depois que o desvio do Sistema de Saúde se tornou público (mais de 335 milhões de dólares),surgiu um movimento de indignação de grande magnitude. Sua expressão principal foi a Marcha das Tochas, que por alguns meses - quando JOH já era presidente do país e ressoavam os gritos de "Fora JOH!" - reuniu milhares de pessoas em intensos protestos de rua para denunciar a pilhagem do Instituto Hondureño de Seguridad Social (IHSS) e, deliberadamente buscando afastar-se de partidos institucionais e tradicionais, tornou-se um símbolo de um possível "despertar" da cidadania em face das ausências e má gestão do Estado hondurenho. 

Após a "incorporação" de partidos políticos ao movimento, as tochas foram divididas em dois grupos: a Plataforma Indignada e Honduras Indignado Somos Todos. Qual é a relação dessas mobilizações com as lutas contra a fraude em 2017? Os atores políticos envolvidos na época e hoje eram e são diferentes? Qual feedback ocorreu entre aqueles momentos intensos de protesto e ação direta em um período de apenas dois anos?

O roubo ao IHSS foi um gatilho para "outro despertar" da cidadania, uma espécie de "abalo" à consciência individual e coletiva da população em defesa do público e contra a corrupção. A Marcha das Tochas significou isso, mas também representou uma ruptura na dinâmica motriz dos movimentos sociais tradicionais (movimento sindical, camponês e dos professores) e o nascimento dos novos. Poderíamos até pensar que esses processos de indignação se tornaram um aspecto muito característico dos últimos movimentos sociais, que possuíam certas forças, mas também fraquezas de natureza estratégica.

Os partidos políticos, direta ou indiretamente, estavam sempre presentes no movimento de indignação; a juventude que liderou o processo desde o início foi composta por militantes de partidos da oposição (Libre, Partido Anticorrupción (PAC), 11 Liberal, Partido Innovación y Unidad (PINU)). De alguma forma, a maior crise que esse movimento gerou foi o deslocamento dos "velhos" líderes da mesma FNRP, que não conseguiam se colocar à frente da liderança, ser a vanguarda do movimento, que trouxe uma crise devido à disputa pelo poder

Plataforma Indignada, Honduras Indignado Somos Todos e Oposición Indignada foram coletivos cujos militantes assumiram um papel importante no planejamento das convocatórias, na mobilidade da informação e no posicionamento nas redes sociais. Lamentavelmente, com a chegada do MACCIH, mais a conjuntura eleitoral, a pressão da rua foi interrompida e certos líderes desses movimentos passaram a fazer parte das listas político-eleitorais de seus partidos.

A zona norte entrou em outra dinâmica, uma de maior autonomia, com maiores níveis de organização e sustentabilidade da luta por meio das Mesas de Indignación, que hoje continuam realizando ações de mobilização popular. O movimento dos indignados levantou a bandeira com o slogan "Fora JOH!", que, mais do que um slogan, tornou-se um ponto de consenso e unidade para o avanço das forças populares.

Em relação à questão anterior e ampliando-a, uma característica das lutas hondurenhas nesse período de 2015 que chamou a atenção dos cientistas sociais foi a presença de muitos jovens, especialmente universitários - que não querem se associar a uma militância partidária específica - e o apelo à mobilização através de redes sociais e ferramentas digitais. Isso continuou a ser uma marca das lutas a partir de 2017? A juventude e a tecnologia digital consolidaram sua presença nas atuais lutas políticas hondurenhas?

Se há uma força motriz da mobilização popular nesta etapa, é apropriado mencionar e reconhecer o papel do movimento estudantil universitário, que não apenas defendeu permanentemente a autonomia universitária, mas também apoiou as lutas de outros setores em defesa do público e acompanhou organizações e movimentos populares. Em meio às contradições internas que o movimento estudantil apresentavam, os jovens demonstraram que é possível avançar organicamente sem os formatos "caudilhistas" típicos de organizações e movimentos politicamente disfuncionais, nichos de segurança e privilégios para certos líderes.

Em um país onde setores da "liderança" do movimento sindical concordaram com o regime ao ponto de fazer reconhecimentos públicos aos funcionários da ditadura, o que resta senão a indignação, o desconforto no imaginário coletivo, o desânimo diante dos líderes "traidores" do movimento?

Nesse sentido, a juventude universitária, mas também a juventude de outros movimentos e organizações sociais e políticas, denota uma profunda repulsa a essas lideranças que controlam não apenas o movimento sindical, mas outros espaços sociais e populares. Tampouco significa que o movimento estudantil não esteja exposto aos infiltrados, mas, diante do dilema da ausência de referentes, esse movimento explode com formas mais democráticas e horizontais na tomada de decisões, com a plena convicção de que é possível avançar na defesa do público sem pactos sombrios ou compromissos com o regime; em suma, a juventude representa uma face ética da luta, e isso já é um avanço.

Finalmente, o que exatamente significa a proposta de uma "Assembléia Nacional Constituinte original e refundacional"? Quem são seus promotores, como se originou e qual é o estado atual de sua discussão e viabilidade em Honduras?

Voltamos ao ponto de partida. No estágio fundamental da FNRP, houve uma divisão, de modo que duas escolas de pensamento foram criadas. Um deles, mais sistêmica, propôs caminhar para a tomada do poder sob a dinâmica de uma institucionalidade presa pelo golpe (Tribunal Supremo Electoral, Corte Suprema, Ministerio Público e todas as instituições subordinadas ao Poder Executivo), e dalí travar a batalha com um instrumento político eleitoral que surgiu precisamente da assinatura do Acordo de Cartagena.

A outra corrente, "refundacional" (cujos membros na maior parte vieram da Coordinadora Nacional de Resistencia Popular), levantou precisamente o oposto como uma solução para a crise, o colapso da institucionalidade pós-golpe de 2009: um componente originária e refoundacional, em contraposição a uma constituinte derivada que defendeu a FNRP durante processos de assembleias no ano de 2011. Este foi um ponto de inflexão, de contradição profunda que significou a ruptura do movimento refundacional com a estrutura de coordenação da FNRP.

O Espacio Refundacional propôs um processo de auto-convocação constituinte e a mobilização permanente como formas de remover a ditadura do poder, o que aconteceu então? Uma seção do movimento popular relacionada ao Bloque Popular estava alinhada com a liderança do ex-presidente Manuel Zelaya como coordenador geral da FNRP, e outro setor, cujos membros em sua maioria vinham da Coordinadora Nacional de Resistencia Popular, aderiu ao Espacio Refundacional. De algum modo, naquele tempo formaram-se duas frentes, uma mais sistêmica, que apostaria pela via eleitoral, e outra mais anti-sistêmica, que não via condições naquele momento de realizar uma batalha eleitoral sob as regras do golpe.

Berta Cáceres do COPINH, Miriam Miranda da OFRANEH, Magdalena Morales da CNTC, padre Fausto Milla do Instituto Ecuménico de Servicios a la Comunidad (INEHSCO), padre Ismael Moreno do Equipo de Reflexión, Investigación y Comunicación de la Compañía de Jesús (ERIC), Tomas Andino do Partido Socialista de los Trabajadores (PST), entre outros atores do movimento popular, foram fundamentais para promover a ideologia de um projeto refundacional marcado por lutas territoriais em defesa dos bens comuns da natureza, por processos populares auto-convocados, pela construção do poder a partir de baixo e por outras formas de pensar a política e o poder.

Para concluir, penso que a partir desse estágio pós-golpe, e apesar das contradições entre uma linha eleitoral e uma linha refundacional, o projeto político eleitoral assumiu uma identidade a meio do caminho em relação com a refundação e definiu o Partido Libre como um instrumento político eleitoral, que na minha opinião constituiu uma contribuição refundacional para a ideologia política do partido.

Naquele momento, nem a liderança, nem a militância do partido compreendiam em profundidade a categoria de "refundação", como um exercício dialético, para começar, e depois como uma prática militante; menos ainda o conceito de auto-convocação ou revoltas territoriais como fatos concretos de luta, já que eram propostas políticas construídas a partir do Espacio Refundacional, onde as chamadas "refundas" formavam sua própria estrutura orgânica e sua própria identidade, razão pela qual falavam então de uma linha "re-fundacional" e uma corrente "eleitoral" que surgiu após o golpe de 2009. Em 2018 a contradição continua.

Sobre o autor

Luis Méndez é poeta hondurenho, artista e educador popular. É fundador da escola política da Frente Nacional de Resistência Popular (FNRP) e de seus primeiros coletivos populares de resistência.

Sobre o entrevistador

Aleksander Aguilar Antunes é linguista e jornalista salvadorenho-brasileiro. É pesquisador de pós-doutorado no programa “Pueblos in Movimiento” da Asociación Latinoamericana de Sociología (ALAS) e fundador e coordenador da plataforma centro-americanista “O Istmo”.

Sobre a tradutora

Hilary Goodfriend é aluna de doutorado em Estudos Latino-Americanos da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) na Cidade do México.

27 de junho de 2019

Os reinos perdidos da África

Africa has never lacked civilizations, nor has it ever been as cut off from world events as it has been routinely portrayed.

Howard W. French

Mansa Musa, the king of Mali, approached by a Berber on camelback; detail from The Catalan Atlas, attributed to the Majorcan mapmaker Abraham Cresques, 1375. Bibliothèque Nationale de France, Paris.

The Golden Rhinoceros: Histories of the African Middle Ages
by François-Xavier Fauvelle, translated from the French by Troy Tice
Princeton University Press, 264 pp., $29.95

African Dominion: A New History of Empire in Early and Medieval West Africa
by Michael A. Gomez
Princeton University Press, 505 pp., $45.00

African Kings and Black Slaves: Sovereignty and Dispossession in the Early Modern Atlantic
by Herman L. Bennett
University of Pennsylvania Press, 226 pp., $34.95

A Fistful of Shells: West Africa from the Rise of the Slave Trade to the Age of Revolution
by Toby Green
University of Chicago Press, 614 pp., $40.00

Caravans of Gold, Fragments in Time: Art, Culture, and Exchange Across Medieval Saharan Africa
an exhibition at the Block Museum of Art, Evanston, Illinois, January 26–July 21, 2019; the Aga Khan Museum, Toronto, September 21, 2019–February 23, 2020; and the National Museum of African Art, Washington, D.C., April 8–November 29, 2020
Catalog of the exhibition edited by Kathleen Bickford Berzock
Block Museum of Art/Princeton University Press, 311 pp., $65.00

Tradução / Não é de hoje que uma vasta parcela do pensamento ocidental trata a África como se ela existisse fora da história e do progresso, incluindo-se aí tanto pensadores do maior prestígio quanto o entretenimento oferecido a várias gerações de crianças. Desenhos da Disney mostram entusiasmados canibais africanos seminus cozinhando as suas vítimas em caldeirões suspensos sobre enormes fogueiras. [1] Entre os intelectuais, os exemplos embaraçosos são muitos. Voltaire disse dos africanos: “Chegará, sem dúvida, o dia em que esses animais aprenderão a cultivar direito a terra, para embelezá-la com casas e jardins, e a distinguir os trajetos das estrelas. O tempo é fundamental para tudo”. A opinião de Hegel sobre a África é ainda mais categórica: “O que conhecemos com propriedade da África é seu Espírito fora da História, alheio ao Desenvolvimento, ainda às voltas com as condições mais cruas da natureza, e que só podemos apresentar aqui como situado no limiar da História do Mundo”. Ecos dessas visões podem ser ouvidos entre os políticos ocidentais. Donald Trump referiu-se a várias nações africanas como “países de merda” [shithole countries] em 2018, e o presidente francês Emmanuel Macron declarou, em 2017, que “o desafio que a África tem pela frente é completamente diverso e muito mais profundo” que os enfrentados pela Europa. “É uma questão civilizacional.”

Pode ser um fato ainda pouco conhecido, mas, ao contrário do que virou rotina afirmar, nunca faltaram civilizações na África, e o continente jamais se manteve alheio aos fatos da história mundial. Excelentes livros reforçam essa noção com profundidade acadêmica, mas em termos acessíveis, e felizmente tornam bem mais complexa a nossa compreensão do passado e do presente da África.

The Golden Rhinoceros: Histories of the African Middle Ages, de François-Xavier Fauvelle, revela — a muitos leitores, certamente, pela primeira vez — a existência do que vem sendo definido pelos especialistas, com precisão cada vez maior, como a África medieval. Para o francês Fauvelle, um dos principais estudiosos do continente, essa Idade Média seria o período entre a Antiguidade em lugares como o Egito, a Núbia (hoje parte no Egito, parte no Sudão) e Aksum ou Axum (na Etiópia atual), onde se encontram magníficos legados arqueológicos, e mais ou menos o ano de 1500, quando a África adquire as profundas cicatrizes deixadas pelo tráfico de escravizados e o imperialismo ocidental.

Em capítulos curtos, Fauvelle demonstra que não foram poucas as realizações culturais da África medieval. Existem indícios, por exemplo, de relações comerciais de longa distância já no século IX, entre acampamentos e cidades de caravanas do norte da África, como Audagoste, no limite sul do Saara. Objetos manufaturados de cobre seguiam para o sul em troca de ouro em pó, que depois era fundido em lingotes utilizados para cunhar moedas, atividade cada vez mais intensa no mundo árabe. [2] Para ilustrar o quanto essas trocas comerciais já eram costumeiras em fins do século IX, Fauvelle descreve uma ordem de pagamento [3] — que poderia ser classificada como um cheque — enviada por um mercador subsaariano a um negociante da cidade de Sijilmassa, no Marrocos, no valor de 42 mil dinares.

Fauvelle também descreve uma diplomacia que já era sofisticada no século VII, entre o Egito recém-islamizado e a Núbia, sociedade cristã logo ao sul. Nas negociações, os egípcios se queixam do descumprimento dos termos do pacto entre os dois países, que previa a devolução de qualquer escravo egípcio que fugisse para a Núbia. Mil e duzentos anos mais tarde, queixas semelhantes, feitas pelos estados do sul contra os do norte dos Estados Unidos, estariam na origem da Guerra de Secessão americana (1861-65).

A história mais intrigante do livro de Fauvelle vem do reino do Mali, no início do século XIV. Mais de um século e meio antes das viagens de Colombo, um monarca malinês chamado Abu Bakr II equipou uma expedição com duzentos barcos para tentar descobrir “o outro limite do oceano Atlântico”. Da expedição, regressou um único barco, no qual um dos sobreviventes contava ter encontrado “no meio do mar aberto [como que] um rio com forte correnteza... Os [outros] barcos seguiram adiante, mas quando chegaram a esse ponto não regressaram, e não se soube mais deles”. A interpretação de alguns historiadores modernos (Michael Gomez, Toby Green e John Thornton, entre outros) é de que as embarcações malinesas teriam caído na chamada Corrente das Canárias, no Atlântico, mais ou menos na mesma latitude que o Mali, e que arrasta de leste para oeste tudo que nela cai.

A reação de Abu Bakr II não foi abandonar seus sonhos de exploração, mas equipar uma expedição ainda maior, agora com mil barcos sob seu comando pessoal. E nunca mais se teve notícia dele. Só sabemos da história porque o secretário da chancelaria da dinastia dos Mamelucos, que governava o Egito, perguntou ao sucessor de Abu Bakr, Mansa Musa, que estava no Cairo, em 1324-25, no caminho de sua peregrinação para Meca, como ele tinha chegado ao poder, e registrou a resposta. Não existem outros indícios do empreendimento de Abu Bakr.


Fauvelle parece dedicar uma energia excessiva para contestar os esforços amplamente desacreditados, de associar as expedições de Abu Bakr a afirmações não comprovadas sobre a presença africana no Novo Mundo, antes das viagens de Colombo. Em seguida, ele examina uma série de explicações alternativas para o extraordinário relato de Musa, tais como a disputa entre ramos rivais da família no poder em torno da sucessão, ou o empenho de Musa em provar a autenticidade da filiação malinesa ao Islã, apontando o governante anterior como um mártir da tentativa de expandir a religião até os confins desconhecidos do Atlântico. Hoje, a questão do que terá vitimado o obscuro Abu Bakr parece escapar ao alcance da pesquisa histórica moderna.

Mansa Musa, porém, tendo chegado ao poder em 1312, deixou uma marca tão forte em seu tempo que espanta constatar o quanto ainda é pouco conhecido na atualidade. Recentemente, afirmou-se que foi a pessoa mais rica que já viveu no planeta. A especulação em torno do tamanho de sua fortuna (“Mansa” significa rei ou governante) baseia-se apenas em sua estada no Cairo, por um período de três a doze meses, a caminho de Meca. As fontes em língua árabe divergem em boa parte dos detalhes, mas produzem a inconfundível impressão de uma exuberância raramente vista em qualquer outro ponto da Terra. Badr al-Din al-Halabi escreveu que Musa “entrou [no Cairo] a cavalo, magnificamente trajado em meio aos seus guardas”, com um séquito de mais de 10 mil acompanhantes. Outra fonte diz que “trazia consigo 14 mil escravas para seu serviço pessoal”. Uma terceira registrou a “grande pompa” da peregrinação, dizendo que Musa viajava acompanhado por “um exército de 60 mil homens que caminhavam à sua frente, enquanto ele próprio vinha montado. Havia [também] quinhentos escravos, e nas mãos de cada um deles um cajado feito de quinhentos mithqāls de ouro”.

Em African Dominion: A New History of Empire in Early and Medieval West Africa, Michael Gomez, historiador da Universidade de Nova York, argumenta que, embora nada se compare à atenção despertada pela prodigalidade de Musa com o seu ouro, a forte presença de escravizados em seu séquito pode ter consolidado a imagem da África sudanesa como uma fonte inesgotável de mão de obra negra, com efeitos nefastos e duradouros. [4] Já fazia um bom tempo que essa parte da África abastecia vários mercados de escravos no Oriente Médio; pouco mais de um século depois da peregrinação de Musa, passaria a fornecer igualmente escravizados para os portugueses e outros europeus.

Fontes da época avaliaram que o imperador do Mali levou, em sua viagem de quase 4.500 quilômetros até o Cairo, entre treze e dezoito toneladas de ouro puro. O ouro foi distribuído pelo caminho nas mesquitas e a funcionários de todas as camadas sociais, além de ter sido dado como esmola aos pobres. Musa em pessoa teria doado cerca de duzentos quilos de ouro ao governador mameluco do Cairo, al-Nasir Muhammad. Por causa dessa fartura e dos gastos extravagantes nos mercados da cidade, a cotação do ouro teve queda acentuada na região e, segundo alguns relatos, permaneceu bastante baixa por anos. Musa era tão esbanjador que precisou pedir um empréstimo para financiar a viagem de volta.

Gomez vai muito além do básico na história de Mansa Musa para buscar o seu significado mais profundo. O Mali vinha promovendo uma sofisticada ofensiva geopolítica, afirma ele, procurando ser reconhecido pela dinastia dos Mamelucos como um parceiro no mundo islâmico e tentando ainda obter, talvez, proteção contra o tipo de agressão que a África sudanesa vinha sofrendo por parte dos reinos islâmicos do povo Amazigh ou berbere, do norte da África, cujo Império Merínida se estendia até o interior da península Ibérica. Gomez identifica motivações semelhantes nos ambiciosos movimentos diplomáticos de Abu Bakr e Mansa Musa: nos dois casos, o objetivo seria permitir ao Mali escapar da ameaça de interferências políticas e do custoso controle econômico dos intermediários berberes do norte da África, cujo território o ouro precisava atravessar a caminho da Europa e de outras paragens.

Mas o que ocorreu foi muito diferente. Apenas dez anos depois da peregrinação de Musa, o Mali e seu rei começaram a figurar nos mapas europeus, sendo que o mais famoso foi o Atlas Catalão, de 1375, ajudando a estimular os caçadores de fortunas ibéricos a descer a costa da África à procura da fonte do ouro de Musa.

A figura de Mansa Musa está no centro de uma grande exposição, Caravanas de Ouro, Fragmentos no Tempo, que está no Block Museum of Art, em Evanston, Illinois. Tanto a capa do catálogo quanto uma das páginas internas trazem uma reprodução da expressiva ilustração do Atlas Catalão, que mostra Musa sentado num trono de ouro e usando uma pesada coroa do mesmo metal, à maneira dos monarcas europeus da época, com um cetro de ouro numa das mãos e uma grande esfera do mesmo metal na outra, saudando um berbere de roupa verde e turbante branco, montado num camelo. O catálogo frisa, a exemplo de muitos textos recentes sobre a África medieval, que é indevida a representação do Saara como uma barreira a separar uma suposta África negra de uma igualmente imaginária África branca ou árabe. Na realidade, diz ele, o deserto sempre foi não só permeável como também percorrido, tanto quanto o oceano, por um tráfego intenso, no qual um comércio considerável, junto com influências religiosas e culturais, cruzava as areias de um lado para o outro, produzindo efeitos de alcance mundial. Parte da dificuldade em enfatizar a importância da história dessa região é a escassez da documentação disponível. A exposição e seu catálogo procuram compensar isso, com grande sucesso, recorrendo à riqueza do legado de artefatos encontrados na área, de cacos de cerâmica a esculturas, pesos de ouro e moedas.


O livro African Kings and Black Slaves: Sovereignty and Dispossession in the Early Modern Atlantic, de Herman L. Bennett, dedica uma atenção especial a um tipo muito peculiar de diplomacia africana pré-colonial: as primeiras relações de Portugal com os reinos africanos. Bennett parte de um incidente descrito por ele como inaugural para o tráfico transatlântico de escravizados. Em 1441, uma expedição portuguesa, sob o comando de Antão Gonçalves, atraca perto de Cabo Branco, na Mauritânia de hoje, e, depois de entrar em conflito com um homem por causa de um camelo, transformam-no em seu primeiro cativo — que as crônicas chamam de “mouro” (significando, aqui, não uma designação racial, mas muçulmano). Horas mais tarde, ao cair da noite, os portugueses fazem uma segunda captura, desta vez de uma mulher, que descrevem como uma “moura negra”, revelando assim uma distinção entre as supostas raças que viria a ter imensos e duradouros efeitos sobre a atitude europeia em relação à escravidão e à África como um todo. Como Bennett assinala, nos primeiros encontros entre os europeus e a África havia grande fluidez e uma considerável confusão quanto aos rótulos que os recém-chegados aplicavam aos povos nativos que encontravam, com as novas terras na África ocidental sendo descritas como Guiné, Etiópia e até Índia. A negritude era essencializada desde o primeiro momento.

Bennett, professor de história na pós-graduação (o Graduate Center) da City University de Nova York, afirma que antes que o tráfico de escravizados atingisse a escala gigantesca do final do século XVII e dos cem anos seguintes, os portugueses viram-se às voltas com os detalhes da doutrina da Igreja que determinava quem entre os mouros e uma gama cada vez maior de africanos “pagãos” era ou não passível de conquista ou escravização. Numa península Ibérica dividida pela religião, muçulmanos e cristãos escravizavam uns aos outros desde muito antes, mas alguns ensinamentos católicos reafirmavam que, no mundo novo da África sub-saariana, só os chamados pagãos, ou seja, aqueles que não seguiam as religiões judaico-cristã-islâmicas, eram desprovidos de razão e, portanto, podiam ser vendidos como escravizados. O debate também foi muito influenciado pela maneira como os portugueses travaram contato com o continente: quando atravessaram o rio Senegal, rumo ao sul, ao longo da costa ocidental da África, os portugueses descobriram que não tinham meios de derrotar militarmente os eficientes e poderosos reinos africanos que encontraram. A partir daí, deram uma guinada pragmática que os levou a trocar os ataques-surpresa por outra abordagem, baseada no comércio e na diplomacia.

Em missão subsequente na mesma década, através de um intérprete, o vice-comandante de uma expedição portuguesa, ao deparar com um africano, mandou dizer “ao seu senhor [...] que somos súditos de um grande e poderoso príncipe [...] que vive nos confins do oeste, e por cujas ordens aqui viemos tratar em seu nome com o bom e poderoso rei desta terra”. Surgiu assim um padrão no qual os portugueses obtinham seus escravizados: não em territórios sem dono, habitados por sociedades desprovidas de Estado, mas por meio de reis africanos com legítima soberania sobre suas terras, da mesma forma que vendiam os cativos obtidos nas guerras contra seus vizinhos.

Depois de uma viagem que fez em 1455, Alvise Cadamosto, traficante de escravizados e cronista veneziano a serviço do infante dom Henrique, escreveu que a autoridade de um rei do oeste da África chamado Budomel, na área do rio Senegal, era tamanha que “mesmo Deus, se viesse à terra, não creio que seria tratado [por seus súditos] com maior honraria e reverência”. Sobre as interações mais amplas entre esses primeiros aventureiros portugueses e os soberanos locais, escreve Bennet: “Embora os dois lados procurassem o tempo todo impor suas tradições às formalidades comerciais, era a elite africana que normalmente ditava os termos dos negócios e da interação. Os súditos portugueses que violassem as leis africanas estavam sujeitos a pesadas e rápidas multas, ou tinham suas vidas postas em risco”.

Aqui, estamos claramente muito distantes da visão — comumente propagada no Ocidente depois do aumento dramático do tráfico de escravos e da implantação duradoura da colonização europeia e da agricultura de plantations no Novo Mundo — de que os africanos fossem meros selvagens, a subsistir praticamente em estado de natureza.

Bennett atribui grande importância a esses primeiros encontros. Diz ter escrito o livro para “tornar mais complexa a narrativa corrente sobre o Ocidente e sua ascensão”, um relato em que a história da África dos primeiros tempos da era moderna é tradicionalmente resumida como um salto direto “de selvagens a escravos”. Bennett questiona “o télos que há muito serve para dissolver o encontro entre África e Europa [...] na história da escravidão do Novo Mundo, descuidando assim do papel que a África e os africanos desempenharam na evolução da soberania ibérica e de sua expansão imperial anterior a 1492”.

Na época das viagens de Cadamosto, pouco havia sido ajustado entre Castela e Portugal, as principais potências cristãs da península na época, quanto ao futuro de seu imperialismo emergente ou ao destino da África ocidental e suas relações com o resto do mundo. Bennett conta que o rei João de Castela, em 1454, disse a seu sobrinho, o rei Afonso V de Portugal, que ficasse fora da África, que o espanhol se orgulhava de ser “conquista nossa”. Se essa ordem fosse ignorada, prometia “lançar-se à guerra [contra Portugal] com fogo e sangue, como se enfrentasse um inimigo”.

Àquela altura, Lisboa já vinha apregoando o seu avanço numa guerra justa contra os pagãos africanos, em nome da Igreja Católica. Bennett, com razão, desconsidera essa história como “uma ficção destinada a desestimular outros ‘príncipes’ cristãos que pudessem reivindicar algum dos territórios ‘descobertos’ pouco antes”. Embora Afonso de Portugal já fosse alcunhado “o Africano”, exagerava suas conquistas africanas na guerra em nome da Cristandade. E também procurava ganhar tempo, esperando que o conflito com Castela fosse atenuado pelo papa Nicolau V, alívio que chegaria em 1455, sob a forma de uma bula papal, a Romanus Pontifex. Nela, concedia-se a Portugal o domínio sobre a maior parte da África: foi a primeira de uma série de proclamações papais que acabariam por dividir o crescente mundo novo entre Portugal e Espanha.

No cerne do livro de Bennett, encontramos a ideia de que a feroz corrida entre Portugal e Espanha pela África ocidental, significativamente mediada pela Igreja, foi crucial para a criação do Estado-nação moderno e para o que viria a ser o nacionalismo europeu moderno. As primeiras identidades nacionais europeias foram forjadas, em grande parte, com base na disputa pelo comércio e pela influência na África. E isso, afirma Bennett, se perde totalmente nas histórias ocidentais que se apressam em saltar direto da conquista das ilhas Canárias para a chegada de Colombo às Américas. “Perdemos de vista a natureza mutuamente constitutiva das histórias europeia e africana do século XV [...] em que a África figura na formação do colonialismo ibérico e, assim, no surgimento das primeiras versões modernas de Portugal e Castela”, escreve ele.

Do ponto de vista cronológico, A Fistful of Shells: West Africa from the Rise of the Slave Trade to the Age of Revolution, de Toby Green, professor do King’s College de Londres, é de longe o mais abrangente dos livros tratados aqui: começa com a fundação do Mali, sob um governante chamado Sunjata, em torno de 1235, e chega até o século XIX. Extraordinários, a pesquisa de campo, o material de arquivo e o estudo das tradições orais africanas que o livro apresenta tornam difícil classificá-lo de forma sucinta.

Um de seus pontos fortes é revelar o sucesso muitas vezes surpreendente que os africanos tiveram ao longo dos primeiros quatrocentos anos de encontro com a Europa. No início do livro, Green faz uma observação de ordem geral sobre os efeitos que os europeus produziram na política africana quando começaram a negociar com a África ocidental no século XV. Estados vastos e sofisticados como Songhai, império que sucedeu ao Mali, foram enfraquecidos e acabaram se fragmentando, enquanto Estados menores, entre eles vários pequenos reinos, ganharam autonomia e viram-se fortalecidos pelas trocas econômicas com os recém-chegados.

De início, o interesse europeu na África era quase todo movido pelo ouro, mas com o desenvolvimento da agricultura de plantations no Novo Mundo, ao final do século XVI, a procura por escravizados africanos aumentou em escala dramática, e foram esses pequenos reinos, em guerra constante uns com os outros, com os povos sem Estado e com reinos maiores, que se tornaram a maior fonte de escravizados para a Europa. Que africanos tenham participado do tráfico de escravizados no Atlântico é amplamente sabido nos dias de hoje, e Green não economiza nem um pouco nos detalhes. O que menos se sabe sobre o que ele narra são as diversas maneiras como vários Estados africanos fizeram claramente o possível para se proteger do tráfico e resistir ao domínio crescente dos europeus.

Os exemplos dessa atitude podem ser encontrados em diversos reinos que hoje estão nos territórios de Gana, do Benin e do Congo, que desde o início se recusaram a vender pessoas escravizadas aos europeus (mas que, às vezes, os compravam), e por muito tempo resistiram às investidas dos recém-chegados para ter acesso e controle de outros recursos cobiçados, tais como metais. A história do reino do Congo (ou Kongo) é especialmente instrutiva. Já um Estado evoluído, governado por reis eleitos por ocasião da chegada dos portugueses na década de 1480, o reino do Congo adotou em pouco tempo um cristianismo fervoroso, que até então pouco prosperava na África ocidental. Em 1516, um viajante português escreveu sobre o segundo rei cristão do Congo, Afonso I: “Sua [devoção à] fé cristã é tamanha que ele me parece não um homem, mas um Anjo enviado por Deus ao seu reino para convertê-lo”.

O reino do Congo manteve embaixadores no Vaticano entre as décadas de 1530 e 1620, mas a sua relação com Portugal foi rompida em razão da questão da escravatura. Assim se queixa o rei Afonso em carta ao monarca português, em 1526: “Muitos do nosso povo, no ávido desejo que sentem por mercadorias e objetos dos [vossos] reinos que seus súditos trazem para cá, e de modo a satisfazer seu apetite cada vez maior, sequestram o povo livre sob a nossa proteção. E muitas vezes ocorre que sequestram nobres e filhos de nobres, e nossos parentes, e os levam para vender aos brancos que andam por nossos reinos; e os sequestram às escondidas e, outros, à noite, para não serem descobertos. E assim que caem nas mãos desses brancos são imediatamente marcados a ferro e sujeitados por correntes”.

Diante da resistência do reino do Congo à expansão do tráfico negreiro, em 1575 Portugal funda uma colônia adjacente ao reino, em Luanda (hoje capital de Angola), usada como base para uma feroz campanha de desestabilização contra seu antigo parceiro. O reino do Congo resistiu o quanto pôde aos portugueses e afinal procurou se aliar à Holanda, país que ainda não praticava o comércio de escravizados e era, na época, inimigo dos reinos então unificados de Espanha e Portugal. A carta de 1623 do rei Pedro II, dando início a uma aliança com a Holanda, requeria “quatro ou cinco naus de guerra, bem como quinhentos ou seiscentos soldados”, e prometia pagar “pelas naus e pelos salários dos soldados em ouro, prata e marfim”. A Holanda logo aceitou a aliança, esperando que, ao cortar o suprimento de escravizados dessa região — que respondia sozinha por mais da metade dos escravizados mandados para o Brasil e as Índias Ocidentais espanholas —, tornasse inviável o Brasil, principal fonte de riqueza de Portugal.


Em razão dessa aliança, a África passou a desempenhar um papel crucial na disputa pelo controle do Atlântico Sul durante a Guerra dos Trinta Anos (1618-48), com o envio de naus holandesas em 1624 e novamente em 1641 — desta vez tendo sucesso em ajudar o reino do Congo a expulsar os portugueses. Mais tarde, em 1648, negros do Brasil seriam enviados a Angola, do outro lado do Atlântico, para restaurar o domínio português sobre a colônia. Hegel pode não ter sabido de nada disso, mas aqui, sem a menor dúvida, trata-se tanto da história africana como da história mundial.

O que acabou por extinguir o reino do Congo — o deplorável esvaziamento demográfico causado pelo tráfico de escravizados a partir da derrota para Portugal em 1665 — foi uma vulnerabilidade que ele tinha em comum com alguns outros bastiões restantes da resistência à intrusão europeia, reinos poderosos e sofisticados como o império Ashanti e o Benin: a perda do controle sobre a sua oferta monetária. No reino do Congo, um tecido de alta qualidade de fabricação local era a principal referência de valor e o meio de troca tradicional, juntamente com um tipo de concha, o nzimbu (espécie de búzio), recolhido ao longo da costa. Os holandeses, descobrindo a fixação dos locais por tecidos, inundaram a região com os seus primeiros têxteis industriais, acabando com o mercado para a manufatura do Congo. Depois de retomarem o controle de Luanda, os portugueses, de forma similar, também inundaram a região com búzios tanto locais quanto importados do oceano Índico. Catástrofes monetárias semelhantes assolaram os raros grandes reinos sobreviventes da África ocidental — principalmente como consequência da queda do preço do ouro que se seguiu a novas descobertas de ouro e prata no Novo Mundo.

“A desigualdade entre a África ocidental e centro-ocidental e o resto do Ocidente se deveu às desigualdades nas trocas de valor econômico”, escreveu Green. “Por vários séculos, as sociedades da África ocidental exportaram o que podemos chamar de ‘moeda forte’, especialmente o ouro; uma riqueza que, em nível global, conservou seu valor ao longo do tempo.” Em troca, os africanos recebiam couro, cobre, tecidos e ferro, e todas essas mercadorias perderam valor com o passar dos anos. O tempo todo, a África foi sangrada de seus habitantes, à medida que o trabalho escravizado era empregado na produção em benefício do Ocidente.

Green encerra a sua vasta e nuançada visão do esvaziamento contínuo de um continente com um expressivo lamento pela falta de interesse acadêmico pelas eras pré-coloniais da África: “O foco se mantém no presente e nos problemas presentes, como ocorre no grande número de universidades em que se ensina a história africana, desde o Reino Unido e dos Estados Unidos até o Brasil. Nos lugares onde a história mais antiga da África é ensinada no Ocidente, é quase sempre só no que diz respeito à escravidão, repetindo os antigos tropos do primitivismo e da opressão. No entanto, a história da África é muito mais complexa do que isso abarca; e as causas fundamentais de seus problemas residem precisamente nesse passado mais distante”.

Notas:

[1] The image of the black as cannibal is one of the earliest stereotypes in the annals of the encounter between Europeans and Africans that began with the slave trade in the early fifteenth century. With no evidence, sea captains working for Portugal’s Prince Henry “the Navigator” lamented that Africans who fought back against their slaving raids ate any Europeans they captured. What few in the West have ever heard is that Africans in societies along the coast of their continent regarded the whites who came to their shores in search of slaves as themselves cannibals. How else, they wondered, to explain their persistent lust for human flesh?

[2] For the importance of sub­Saharan African gold to the rise of the Arab world, see Timothy F. Garrard’s authoritative “Myth and Metrology: The Early Trans­Saharan Gold Trade,” Journal of African History, Vol. 23, No. 4 (1982).

[3] The word “check” may come from the Arabic term sakk.

[4] The word “Sudan” means “land of the blacks” in Arabic and has been used historically to refer to a broad east–west belt of the continent just below the Sahara Desert.

Sobre o autor

Howard W. French is a Professor at the Columbia University Graduate School of Journalism. His latest book, Born in Blackness: Africa, Africans and the Making of the Modern World, 1471 to the Second World War, will be published in the fall. 
(October 2021)

25 de junho de 2019

A nova economia de esquerda: como uma rede de pensadores está transformando o capitalismo

Após décadas de domínio da direita, um movimento transatlântico de economistas de esquerda está construindo uma alternativa prática ao neoliberalismo.

Andy Beckett


Ilustração: Nathalie Lees/The Guardian

Tradução / Por quase meio século, algo vital tem faltado na política do campo da esquerda em países ocidentais. Desde os anos 1970, a esquerda mudou o modo de pensar de muitas pessoas sobre preconceito, identidade pessoal e liberdade. Ela expôs as crueldades do capitalismo. Algumas vezes ganhou eleições e às vezes governou de forma eficaz. Mas não tem sido capaz de mudar, em essência, as relações de riqueza e o trabalho em nossas sociedades – nem de oferecer uma visão convincente sobre como isso pode ser feito. A esquerda, em resumo, não teve uma política econômica.

A direita tem. Privatização, desregulamentação, impostos menores para as empresas e e os ricos, mais poder para empregadores e acionistas, menos poder aos trabalhadores. Articuladas, estas políticas recrudesceram o capitalismo e o tornaram mais onipresente que nunca. Imensos esforços foram feitos para tornar o capitalismo inevitável e para retratar como impossível qualquer alternativa.

Neste ambiente cada vez mais hostil, a abordagem econômica da esquerda tem sido reativa. Ela resiste a estas enormes mudanças, frequentemente em vão e muitas vezes voltando-se ao passado, nostálgica. Por muitas décadas os mesmos dois analistas críticos do capitalismo, Karl Marx e John Maynard Keynes, continuaram a dominar a imaginação econômica da esquerda. Marx morreu em 1883, Keynes em 1946. A última vez que suas ideias tiveram uma influência significativa em governos ocidentais ou eleitores foi há 40 anos, durante os turbulentos dias finais da social democracia pós-guerra. Desde então, direitistas e centristas rotulam qualquer argumento em favor de superar o capitalismo – ou mesmo de freá-lo, como um desejo de fazer o mundo “retroceder aos anos 70”. Alterar nosso sistema econômico tem sido apresentado como uma fantasia — tão possível quanto viagens no tempo.

No entanto, há anos o sistema começou a falhar. Em vez de uma prosperidade sustentável e compartilhada, produziu estagnação dos salários, cada vez mais trabalhadores na pobreza, desigualdade crescente, crises bancárias, convulsões de ultradireita e iminente catástrofe climática. Até mesmo políticos da direita reconhecem, por vezes, a seriedade da crise. Na conferência do Partido Conservador britânico do ano passado, o chanceler, Philip Hammond, admitiu que “uma lacuna se abriu” no Ocidente “entre o que uma economia de mercado proporciona, em teoria …e a realidade”. Ele continua: “Muitas pessoas sentem isso…o sistema não está funcionando para elas.”

Começa a surgir a noção de que um nova forma de economia é necessária: mais justa, mais inclusiva, menos exploradora, menos destruidora da sociedade e do planeta. “Estamos num momento em que as pessoas estão muito mais abertas à ideias econômicas radicais,” admite Michael Jacobs, um ex assessor do primeiro-ministro inglês Gordon Brown. “Os eleitores revoltaram-se contra o neoliberalismo.” A crise financeira de 2008 e as antes impensáveis intervenções dos governos que a detiveram desacreditaram duas ortodoxias centrais do neoliberalismo: a de que o capitalismo não tem como fracassar e a de que o governo não deve intervir para mudar o funcionamento da economia.

Um gigantesco espaço político se abriu. Uma rede emergente de intelectuais, ativistas e políticos começou a aproveitar a oportunidade. Eles estão tentando construir um novo tipo de economia de esquerda: que se reporte às falhas da economia do século XXI, mas que também explique, de forma prática, como futuros governos de esquerda podem criar um sistema melhor.

Christine Berry, uma jovem acadêmica britânica freelancer, é uma das figuras centrais da rede. “Estamos destrinchando a economia de volta ao básico,” ela diz. “Queremos que a economia pergunte: ‘Quem é dono dos recursos? Quem tem o poder nas empresas?’ O discurso convencional econômico ofusca estas questões, para beneficiar os poderosos.”

A nova economia de esquerda quer ver a redistribuição do poder econômico, para que todos o detenham — assim como o poder político é de todos, em uma democracia saudável. A redistribuição do poder poderia incluir a participação dos trabalhadores no controle das empresas, a reorganização das economias locais para favorecer arranjos éticos (em vez de grandes corporações), ou a cooperativas tornando-se normas.

Essa “economia democrática” não é uma fantasia idealista: partes dela já estão sendo construídas. Sem esta transformação, argumentam os novos economistas, a crescente desigualdade de poder econômico irá em breve tornar a democracia impraticável. “Se queremos viver em sociedades democráticas, então precisamos…permitir que as comunidades modelem suas economias locais,” escrevem Joe Guinan e Martin O’Neill, ambos prolíficos defensores da nova economia, em artigo recente para o Institute for Public Policy Research (IPPR). “Já não é mais o suficiente ver a economia como uma espécie de domínio tecnocrático à parte, no qual os valores centrais de uma sociedade democrática, de alguma forma, não se aplicam.” Além disso, Guinan e O’Neill afirmam, tornar a economia mais democrática ajudará a revitalizar a democracia: as pessoas são menos propensas a sentir raiva ou apatia quando incluídas em decisões econômicas que afetam fundamentalmente suas vidas.

O projeto ambicioso dos novos economistas significa transformar a relação entre capitalismo e o Estado, entre trabalhadores e patrões, entre economia local e global, entre aqueles com ativos econômicos e aqueles sem. “Poder e controle econômico devem ser mais igualitários”, sustenta um relatório do ano passado da New Economics Foundation (NEF) – um thinkthank radical de Londres que age como incubadora para muitas das novas idéias do novo movimento.

No passado, governos britânicos de centro-esquerda tentaram remodelar a economia por meio de impostos — geralmente focados em rendimentos em vez de outras formas de poder econômicos — e por nacionalização, o que significava substituir a elite do setor privado por outra, designada pelo Estado. Em vez de tais intervenções tão limitadas, os novos economistas querem ver mudanças muito mais sistêmicas e permanentes. Eles querem — no mínimo — mudar como o capitalismo funciona. Mas, crucialmente, querem que esta mudança seja apenas parcialmente iniciada e supervisionada pelo Estado, e não controlada por ele. Eles visualizam uma transformação que acontece de forma quase orgânica, dirigida por trabalhadores e consumidores – uma espécie de revolução não-violenta em câmera lenta.

O resultado, alegam os novos economistas, será uma economia adequada à sociedade, em vez de, como atualmente, uma sociedade subordinada à economia. A nova economia, sugere Berry, na verdade não é economia. É “uma nova visão de mundo”.

A chegada de um novo conjunto significativo de ideias tende a gerar certas reações. O tema lota eventos. Jovens pesquisadores gravitam em sua direção. Intelectuais mais velhos, porém inquietos, estão intrigados. Novas instituições são criadas ao seu redor. Jornalistas convencionais inicialmente o descartam.

Como todos novos economistas que conheço, Michael Jacobs fala bem rápido, em frases curtas, como se houvesse muito o que explicar no tempo disponível. Um ambientalista de longa data, ele descreve a rede emergente de novos economistas como “um ecossistema”. Há um contagiante senso de tabus políticos e econômicos sendo quebrados e de um possível novo consenso nascendo.

“Há sites britânicos e norte-americanos que publicam muito de nossas coisas, como o OpenDemocracy, a Jacobin e a Novara. Há pessoas produzindo coisas enquanto trabalham para thinkthanks — ou montando novos thinkthanks. E pelas redes sociais as ideias se espalham, colaborações acontecem, muito mais rápido do que quando a economia de esquerda era sobre reuniões e panfletos,” diz Jacob. “É um pouco incestuoso, mas bastante empolgante.”

Este fermento está começando a se solidificar em um movimento. A New Economy Organizers Network (Neon), uma cisão da NEF, localizada em Londres, oferece oficinas para ativistas de esquerda, para aprender como “construir apoio para uma nova economia” — por exemplo, construir narrativas efetivas a respeito na imprensa tradicional. Stir to Action, uma organização militante localizada em Dorset, publica uma “revista para a nova economia” quadrimestral e organiza sessões de orientação em cidades que tendem à esquerda, como Bristol e Oxford: Cooperativas de trabalhadores: como começar, ou Propriedade Comunitária: e se nós mesmo administrarmos?

“Há um impulso totalmente novo para ativismo relacionado a economia,” diz o editor da revista, Jonny Gordon-Farleigh, que anteriormente esteve envolvido em protestos anticapitalistas e ambientalistas. “O movimento passou do opor-se ao propor”.

O que aparece com essa movimentação é a possibilidade, pela primeira vez em décadas, de um governo do Partido Trabalhista receptivo às novas ideias econômicas de esquerda. "John MaDonnell, ministro do governo paralelo [shadow cabinet] de Jeremy Corbyn parece entender isso,” diz Gordon-Farleigh, cautelosamente. “Ele tem um pouco de história compartilhada com alguns de nossos movimentos. Fez comentários interessantes... sobre introduzir uma cooperativa proprietária das ferrovias, por exemplo.”

Outros no movimento são mais otimistas. No outono [nórdico] passado, um artigo com boa repercussão de Guinan e O’Neil no jornal de esquerda Renewal, alegou que McDonnell poderia estar planejando nada menos que uma “transformação da economia britânica… um programa radical para desmantelar e afastar o poder corporativo e financeiro”, em benefício dos menos privilegiados. Guinan me disse: “John McDonnell é extremamente curioso intelectualmente. Não vi outra figura política nesse nível de senioridade cujas portas estejam tão abertas a novos pensamentos.”

James Meadway, até recentemente um dos conselheiros chave de McDonnell, está agora escrevendo um livro sobre “uma economia para os muitos”. Entre 2010 e 2015, ele trabalhou no NEF, onde seus relatórios e artigos esboçaram muitos dos argumentos dos novos economistas. Diversos integrantes do NEF me disseram que desde que McDonnell tornou-se ministro-sombra, as costumeiras relações entre think-tanks de esquerda e o Partido Trabalhista foram invertidas: em vez de tentar desesperadamente chamar a atenção do partido para suas propostas, eles estavam lutando para acompanhar o apetite do partido por elas. “Estão basicamente perguntando, ‘Vocês tem mais alguma coisa aí atrás do armário?’” diz um satisfeito, mas levemente perplexo, veterano do NEF. “Nós rabiscamos algo e damos a eles qualquer coisa que consigamos inventar, o mais rápido que pudermos.”

Em julho passado, o NEF publicou um relatório em defesa de um aumento significativo do número de cooperativas britânicas. Em uma das páginas finais, quase sem nenhum alarde, o relatório também propôs que empresas convencionais tenham que dar ações a seus funcionários, para criar o que NEF chamou de um “fundo inclusivo de posse”. Em setembro, com algumas modificações, a proposta tornou-se política do Partido Trabalhista. “Eu nunca vi nada assim, de ideia do thinkthank para uma política adotada!” diz Mathew Lawrence, um dos autores do relatório. Este mês, uma versão da política também foi adotada pelo candidato presidencial dos EUA, Bernie Sanders.

E ainda assim, fora do círculo de McDonnell e da esquerda radical, a nova economia tem passado largamente despercebida – ou tem sido casualmente ridicularizada. Os buracos negros do Brexit e a disputa de liderança do Partido Conservador são parcialmente responsáveis, sugando a atenção de tudo o mais. Mas é também a natureza radical da própria nova economia. Transformar ou acabar com o capitalismo tal como o conhecemos — os novos economistas diferem sobre qual é o objetivo — é uma idéia difícil para a maioria dos políticos e jornalistas britânicos. Depois de meio século aceitando o status quo econômico, eles associaram qualquer alternativa de esquerda ou com a desatualizada social democracia do pós-guerra ou com autoritarismo de esquerda, com a atual Venezuela ou a União Soviética.

Não importa o quão frequentemente McDonnell diga em entrevistas que ele quer ver uma economia democrática, o adjetivo que mais lhe é aplicado ainda é “Marxista”. “O novo pensamento econômico é quase como uma frequência que não pode ser ouvida,” diz Guinan.

Mas com o neoliberalismo fraquejando, e a direita desprovida de outras ideias econômicas, a nova economia da esquerda pode ter um longo futuro – ainda que o Partido Trabalhista não volte ao governo. Parodiando uma fala de Thatcher, agora há uma alternativa.

O sonho de uma economia democrática oscilou nas margens da política de esquerda por pelo menos um século. Durante os anos 1920, os teóricos socialistas britânicos GDH Cole e RH Tawney escreveram livros frescos e provocativos, argumentando que trabalhadores deveriam administrar as empresas eles próprios, em vez de se submeterem a patrões e acionistas – ou ao Estado, como teóricos mais ortodoxos do Partido Trabalhista previam. Na vida econômica, como na política, argumentou Tawney em 1921, “os homens não devem ser governados por uma autoridade que não podem controlar”.

Este empoderamento de trabalhadores foi concebido para ser o primeiro passo de uma transformação mais ampla. “O real objetivo,” escreveu Cole em 1920, deve ser “arrancar o poder econômico das classes proprietárias, pedaço por pedaço”, para finalmente “tornar possível uma distribuição equitativa da renda nacional e uma reorganização razoável da sociedade como um todo”.

No entanto, Cole era vago sobre como aconteceria a inversão desta ordem tradicional. Ele descartava uma revolução, e uma greve geral, baseando-se no fato de que trabalhadores não tinham o acesso necessário a armamentos ou recursos econômicos para derrotar seus patrões em uma luta industrial prolongada. Um governo trabalhista ousado poderia, teoricamente, aprovar a legislação necessária; mas os governos trabalhistas dos anos 1920 e 1930 eram tímidos e não duraram muito.

Quando o Partido Trabalhista adquiriu a confiança e o tempo para reconfigurar a economia, durante os governos dos primeiros-ministros Clemente Attlee, na década de 1940 e de Harold Wilson, na década de 60, o partido escolheu fazê-lo por meio dos planos e burocracias de Whitehall [N.T.: centro administrativo do Reino Unido], tais como o Departamento de Assuntos Econômicos (DEA, na sigla em inglês) de Wilson, em vez de por meio da democratização da economia. Os resultados foram mistos: o DEA durou apenas cinco anos.

Somente nos anos 1970 um poderoso político trabalhista interessou-se em democratizar a economia. Tony Benn foi bastante atento ao aumento do individualismo durante a década. “Mais pessoas querem fazer mais para elas mesmas,” escreveu em 1970. “A tecnologia libera forças que permitem e encorajam descentralização... Deve ser um objetivo prioritário dos socialistas trabalhar pela redistribuição de poder.”


Em 1974, Wilson tornou Benn ministro da Indústria. A economia estava em dificuldades. Benn supervisionava e subsidiava cooperativas administradas por trabalhadores em três grandes negócios que estavam padecendo: o Scottish Daily News, um jornal de Glasgow, a Kirkby Manufacturing and Engineering, um produtor de radiadores em Liverpool e a Meriden, produtora de motocicletas em West Midlands. Os desafios que estas cooperativas encaravam — falta de investimento prévio e fortes rivais domésticos e estrangeiros — eram agravados por antipáticos funcionários, economicamente conservadores, no departamento de Benn. Um relatório imparcial de 1981 sobre as cooperativas, feito pela revista de esquerda New Internationalist, descreveu-as como condenadas desde o início – elas eram “gigantes incapazes”.

A cooperativa Scottish Daily News durou cinco meses. A cooperativa Kirby foi melhor. Eric Heffer, um ministro que trabalhou para Benn, encontrou lá administradores de centrais sindicais “transformados por suas experiências” de ajudar a administrar os negócios. Eles se tornaram “administradores-trabalhadores reais”. A cooperativa resistiu à recessão dos anos 70. Mas logo após a eleição de 1979, o governo de Margaret Thatcher terminou o experimento ao cancelar os subsídios da Kirby. A Meriden sobreviveu à mudança de governo e mais outra recessão no início dos anos 1980. Mas declarou falência em 1983.

O próprio Benn durou apenas um ano no ministério da Indústria, antes de ser removido por Wilson, que nunca aceitou completamente seu radicalismo. Benn nunca mais esteve à frente de algum posto econômico central. A saga “solapou a opção por cooperativas nos círculos de formulação de políticas do Partido Trabalhista nas décadas seguintes”, diz Gordon-Farleigh.

Da demissão de Benn em 1975 à eleição de Jeremy Corbyn como líder trabalhista, 40 anos depois, a hierarquia do partido aceitou amplamente que a economia deveria ser baseada em lucro, competição, e administração de cima para-baixo. As tentativas de Benn e outros na esquerda britânica, durante os anos 70, de estabelecer o que eles por vezes chamavam, provocativamente, de “controle dos trabalhadores” foram largamente esquecidas, ou lembradas como apenas mais uma das utopias fracassadas de uma década ridicularizada. A chance de uma economia democrática parecia ter passado.

Ainda assim, durante os anos magros que se seguiram para a esquerda britânica, outro experimento em democratização da economia começou – do outro lado do Atlântico, em um país menos associado com revoltas contra o capitalismo. Foi mais local, mas também mais profundo do que o apoio de Benn a cooperativas vulneráveis, e buscava mobilizar o poder dos consumidores, em vez dos produtores.

Gar Alperovitz é um economista e ativista norte-americano de 83 anos. Desde os anos 1960, tem persistentemente promovido inovações econômicas que colocam objetivos sociais antes de comerciais. Frequentemente, tem sido uma figura periférica, mas atraiu bastante atenção intermitentemente. Em 1983, apareceu com destaque em uma matéria de capa da Time sobre o futuro da economia. Em 2000, na Universidade de Maryland, co-fundou o Democracy Collaborative, um centro para pesquisa sobre como recuperar a vida política e econômica de regiões em declínio nos EUA – que por sua vez também se expandiu gradualmente em um corpo ativista.

“Cidades norte-americanas com problemas estão em um estágio mais avançado de declínio de que suas equivalentes britânicas,” diz Guinan, que trabalhou no Democracy Collaborative por uma década. “Mas o governo norte-americano local também tem maiores poderes. Por isso, é possível criar novos modelos radicais da base para cima.”

Em 2008, o Democracy Collaborative começou a trabalhar em Cleveland, uma das grandes cidades mais pobres dos EUA, que tem perdido empregos e moradores há décadas. Os ativistas seguiram uma estratégia de Alperovitz chamada “construção de riqueza comunitária”. Ela busca acabar com a dependência destas economias locais em dificuldade, de relações com corporações distantes, extratoras de riqueza – como as redes de varejistas. Em vez disso, tenta articular estas economias ao redor de negócios locais, mais socialmente conscientes.

Em Cleveland, o Democracy Collaborative ajudou a montar uma companhia de energia solar, uma lavanderia industrial, uma horta hidropônica no centro da cidade. Os três empreendimentos eram de propriedade de seus funcionários, e uma parte de seus lucros ia para uma espécie de companhia central, encarregada de estabelecer mais cooperativas na cidade. Os três empreendimentos tiveram sucesso, por enquanto. O objetivo do projeto foi resumido em termos francos, quase populistas, por um dos co-fundadores do Democracy Collaborative, Ted Howard, em 2017: “Parem com o vazamento de dinheiro para fora de nossa comunidade.” Mas a “construção de riqueza comunitária” também tem um propósito mais sutil: é uma demonstração concreta de que decisões econômicas podem ser baseadas em mais do que os limitados critérios do neoliberalismo.

Howard estava falando em uma conferência de nova economia na Inglaterra, que foi organizada por McDonnell. Os dois têm uma relação próxima. Ano passado, McDonnell introduziu Howard em outro evento do Partido Trabalhista, em Preston: “Nós o trazemos com alguma regularidade agora, para explicar o trabalho que fez.”

McDonnell interessa-se há muito tempo em descentralizar e democratizar a economia. Ele frequentemente cita Tawney, Cole e Benn em palestras. Durante os anos 80, era o representante líder e efetivamente o chanceler do Conselho da Grande Londres [GLC, na sigla em inglês], que buscava experimentos ao estilo de Benn, de cooperativas com apoio estatal, com resultados similarmente mistos, até que foi abolido por Thatcher em 1986.

Contrária à imagem que o retratam, como um monstro estatista, McDonnell acredita que há limites em até que ponto a esquerda consegue aumentar impostos e gastos públicos. Em sua perspectiva, muitos eleitores não estão dispostos, ou estão incapazes, de pagar mais impostos – especialmente quando os padrões de vida estão apertados. Ele também acredita que governos centrais perderam sua autoridade. São vistos simultaneamente como muito fracos, com pouco dinheiro devido à austeridade; e também como muito fortes, muito intrusivos e impositivos em relação à seus cidadãos. Em vez de depender do Estado para criar uma sociedade melhor, um dos aliados próximos de McDonnell, argumenta que governos de esquerda, em nível nacional ou municipal “têm de ousar mudar o funcionamento da economia”.

Nos anos recentes, com o estímulo de McDonnell e Jeremy Corbyn, e a orientação do Democracy Collaborative, muitos dos princípios do “modelo de Cleveland” foram adotados pelo Conselho administrado pelo Partido Trabalhista na pequena (e anteriormente industrial) cidade de Preston, em Lancashire. A regeneração tem sido promovida como o prenúncio da Grã-Bretanha sob um governo Corbyn.

A cidade de Preston, um centro urbano que declinou por décadas, agora tem um mercado renovado e movimentado, novos estúdios artísticos em antigos escritórios do Conselho, e café e cerveja artesanal sendo vendidas em containers marítimos modificados. Todos estes empreendimentos tem sido facilitados pelo Conselho. De forma menos visível, mas provavelmente mais importante, outras instituições públicas – um hospital, uma universidade, uma delegacia policial – foram persuadidas pelo Conselho a buscar bens e serviços locais sempre que possível, tornando-se o que o Democracy Collaborative chama de “instituições âncora”. Elas agora gastam quase quatro vezes mais de seus orçamentos em Preston do que faziam em 2013.

O líder do Conselho é Matthew Brown, um homem intenso, angular, de 46 anos, que foi parcialmente estimulado a entrar na política ao ver Benn na televisão quando era adolescente. “O que estamos fazendo em Preston é bom senso, mas é também ideológico,” me disse Brown, quando nos conhecemos em seu diminuto escritório. “Nós estamos vivendo uma crise sistêmica do capitalismo e temos que criar alternativas.” Ao fazê-lo – especialmente num momento em que Conselhos locais estão sendo altamente enfraquecidos pelos cortes governamentais – Preston está, de forma pequena mas visível, minando a autoridade do neoliberalismo, que depende do dogma segundo o qual outras opções econômicas não são possíveis.

O Conselho, continuou Brown orgulhosamente, estava “apoiando pequenos negócios locais em vez de grandes capitalistas”. Ele estava usando isso como alavanca para fazer as empresas se comportarem de forma mais ética: pagamento de salário mínimo, recrutamento de equipes mais diversas. E estava buscando tornar a cidade um lugar onde cooperativas são o mainstream e não nichos: “Minha intenção é levá-las a dirigir 30% ou 40% de nossa economia.

Perguntei se ele tinha dúvidas sobre a possibilidade de uma cidade com menos de 150 mil habitantes servir de modelo para reformular a toda a economia britânica – e por consequência, outras economias. “Não,” ele disse. “Eu sou bem determinado.”

Sente-se uma confiança nos novos economistas, o que surpreende depois de todas as derrotas da esquerda durante os anos 80 e 90. Mas com o capitalismo menos potente e popular do que antes, os novos economistas acreditam que agora estão engajados no que o teórico político Antonio Gramsci — uma grande referência para eles e McDonnell — chamou de “guerra de posição”. Trata-se da acumulação estável de alianças, ideias e credibilidade pública. Berry descreveu este processo como uma “transição” que pode levar a uma economia diferente. McDonnell me disse em 2017 que ele queria “uma transformação progressiva de nosso sistema econômico”.

Algumas horas depois de encontrar Brown em Preston, falei com McDonnell novamente sobre a nova vitalidade intelectual da esquerda. “Nós estamos começando a reconstruir o que tínhamos com Tony Benn nos anos 70,” ele disse. “Um conjunto de grupos de pesquisa — NEF e Class [outro thinkthank de esquerda em economia] – tem sido revitalizados. Michael Jacobs está cheio de idéias. Nós estamos argumentando efetivamente por uma economia mais democrática. Dobrar o número de cooperativas no Reino Unido” – algo que a NEF defendeu ano passado – “é relativamente tímido. Nós queremos ir além.”

Ele não deu mais detalhes. Mas a política do “fundo inclusivo de posse” adotada pelo Partido Trabalhista mostra o potencial das idéias da nova economia. A intenção dos fundos é que sejam cavalos de Tróia. Ou seja, inserirna estrutura de propriedade de uma companhia um grupo de acionistas – seus funcionários – que tendem a favorecer maiores salários e investimentos de longo-prazo. “Os fundos são para fazer pender a balança rumo a um tipo diferente de cultura corporativa, diz Lawrence.” Ou, como afirma a escritora e ativista Hilary Wainwright, uma das intelectuais mais perspicazes da esquerda do Partido Trabalhista desde os anos 70: “Transformações radicais, quando desestabilizam o status quo do jeito certo, cria outras oportunidades para mudança.”

Mas tornar a nova economia em política nacional será difícil, mesmo que o Partido Trabalhista conquiste poder. Último verão, a diretora do NEF, Miatta Fahnbulleh, foi convidada para uma conversa com servidores do Tesouro Civil, sobre a nova economia. “Quando cheguei lá,” ela me contou, “eu rapidamente me dei conta que, para o Tesouro, a nova economia significa apenas tecnologia. Quando eu comecei a falar, em vez disso, sobre como a economia poderia operar diferente, eles compraram minha premissa de que o status quo tem problemas. Eles são o Tesouro, têm os dados. Acharam que a nova economia era interessante, mas somente como uma espécie de plataforma de debate.”

Antes da NEF, Fahnbulleh trabalhou para o gabinete do governo e para a estratégia institucional do governo. Ela prevê que haverá resistência em à nova economia: “Whitehall odeia grandes mudanças — todas as vezes.” Jacobs, que tem uma experiência mais longa de governo, é levemente mais otimista. “Alguns jovens do Tesouro provavelmente irão ficar bem empolgados com uma nova abordagem econômica. Alguns dos mais velhos vão achar que está tudo errado. E outros irão apenas implementar qualquer coisa que o governo pedir.”

E há o establishment corporativo. Desde Margareth Thatcher, ele se habituou com governos dóceis, com ser capaz de se sobrepor a outros grupos de interesse e com os lucro e preços das ações superando outras medidas de valor econômico ou social de uma empresa. A intenção dos novos economistas em encerrar este desequilíbrio não foi bem aceita. “A Confederação da Indústria Britânica (CBI, na sigla em inglês) realmente odeia propriedade inclusiva,” diz um aliado de McDonnell. “Você consegue sentir os arrepios sempre que suscitamos o assunto.”

Quando indaquei à CBI suas perspectivas sobre a nova economia, houve um silêncio por uma semana. Então, depois que os persegui, uma sucinta declaração: “O Partido Trabalhista parece estar determinado em impor regras que demonstram uma deliberada falta de entendimento de negócios.”

Os novos economistas dizem não estar intimidados. “Nós precisamos ser absolutamente francos sobre isso,” diz Guinan. “Uma economia democrática e outra exploradora são fundamentalmente incompatíveis. Devemos montar um ataque direto, de esquerda populista, a estes interesses corporativos. Devemos dizer a eles: ‘Que vão para Singapura!’ A esquerda não deve temer um pouco de destruição criadora”, ele diz tomando emprestada, de modo atrevido, uma frase geralmente usada pelos defensores do “livre” mercado. Jacob concorda: “Que as corporações exploradoras vão à falência.”

Isso pode parecer uma imprudente fantasia de esquerda. Mas os novos economistas argumentam de forma convincente que transformações altamente disruptivas ocorrerão na economia britânica, de qualquer forma – devido ao Brexit, à automação e à crise climática. “O Brexit por si só irá requerer um Estado bem intervencionista” para ajudar a economia a se adaptar, diz Lawrence. “Ele irá tornar muito mais difícil para um servidor público dizer, ‘Você simplesmente não pode fazer isso.’”

Mas o que os novos economistas querem que venha depois do capitalismo neoliberal? Em Preston, depois que Brown me falou missionariamente acerca das virtudes de “negócios locais” e “empregos locais”, perguntei se seu conselho não estava, na verdade, salvando o capitalismo na cidade – ao torná-lo mais socialmente sensível – em vez de suplantá-lo. Pela primeira vez, ele pausou. “Nós temos que ser pragmáticos,” ele disse. “Ainda estamos em um ambiente de “livre” mercado. E de qualquer forma eu não vejo negócios locais como grandes capitalistas. A vasta maioria possui apenas um ou dois empregados. Quase não há ninguém para explorar. Não há acionistas estão envolvidos.” Nem todo mundo na esquerda veria pequenos empreendimentos — frequentemente grandes apoiadores de partidos de direita e de políticas de “austeridade” sociais e econômicas — em termos tão benévolos.

Posteriormente, perguntei também a McDonnell se sua abordagem não corria o risco de salvar – em vez de substituir – o capitalismo. Ele sorriu e acionou seu modo proverbial, que adota quando fala de questões complexas. “Quem incorpora quem…” ele disse. “Esse é o debate!” Então, seu sorriso ficou mais malicioso. Um governo Corbyn, ele disse, iria “receber” os negócios “em nosso terno abraço”.

O aliado de McDonnell com quem falei disse: sempre que a questão da trajetória de longo prazo da economia surgia, nas discussões do Partido Trabalhista, “nós evitamos esta conversa. Não há consenso no partido.” E adicionou: “Pessoalmente, eu ficaria bem feliz se a Grã-Bretanha terminasse como a Dinamarca.”

McDonnell frequentemente cita a Alemanha como outro país onde o capitalismo é mais benigno. Wainwright, que conhece McDonnell há décadas, tem uma previsão útil e flexível sobre o que deve acontecer com a cultura econômica britânica, se ele se tornar ministro. “Em rota rumo a uma sociedade socialista,” ela diz, “pode haver momentos em que um capitalismo diferente emerge”. Em outras palavras, um sistema menos selvagem.

Ainda assim, o problema da esquerda em se contentar com “um capitalismo diferente” (não importa se temporário) é que isso pode possibilitar que o capitalismo se reagrupe e então retome seu progresso darwiniano. Indiscutivelmente, isso é exatamente o que aconteceu na Grã-Bretanha durante o último século. Depois da recessão econômica politicamente explosiva nos anos 1930 – a precursora da crise atual do capitalismo – durante os anos pós-guerra muitas lideranças corporativas pareceram aceitar a necessidade de uma economia mais igualitária, e desenvolveram relações próximas com políticos trabalhistas. Mas assim que a economia e a sociedade se estabilizaram, e direitistas como Thatcher começaram a advogar sedutoramente por um retorno ao capitalismo tradicional, os empresários mudaram de lado.

Outra dificuldade dos novos economistas e de seus aliados políticos é persuadir eleitores – criados sob a ideia de que lucro e crescimento são os únicos critérios econômicos que importam – de que outros valores devem importar mais, daqui pra frente. Mesmo salvar o meio ambiente é difícil de vender. “O efeito do crescimento econômico no planeta não é uma questão discutida suficientemente pela esquerda,” admite Berry. “Sobre decrescimento” – o atual termo ecológico para abandonar o crescimento como um objetivo econômico – “o Partido Trabalhista não quer chegar perto.” concorda o aliado de McDonnell. “Decrescimento,” ele disse, “é uma terrível rotulação.” Guinan diz que o problema não é apenas de apresentação: “ainda não foi inventada uma política de decrescimento que convença o público.”

Em vez disso, o Partido Trabalhista recentemente começou a construir uma versão do Green New Deal: um sedutor esquema, mas ainda muito teórico, defendido mais constantemente por esquerdistas e ambientalistas na Grã-Bretanha e nos EUA na última década. Ele tem o objetivo de abordar a emergência climática e alguns dos problemas da economia de forma simultânea, por meio de um grande apoio governamental ao uso de tecnologias verdes e aos trabalhos qualificados e bem remunerados necessários.

Em uma palestra esta semana, McDonnell disse que este precisaria ser o maior projeto em tempos de paz em muitas décadas. Em abril, a ministra paralela de Negócios, Rebecca Long-Bailey, uma parceira de McDonnell, escreveu um artigo no The Guardian, defendendo uma “revolução ecológica industrial”, incluindo “turbinas em águas profundas no Mar do Norte”, que “poderiam fornecer quatro vezes a demanda de energia de toda a Europa. Era uma visão bem empolgante, mas as turbinas eram a única nova tecnologia potencial que o artigo mencionava.

Outra grande questão que os novos economistas frequentemente contornam é se muitos dos trabalhadores atuais de fato querem ter mais voz em seus espaços de trabalho. Quando a “democracia industrial” foi a última ideia popular à esquerda, nos anos 70, o trabalho era indiscutivelmente mais satisfatório e central na vida das pessoas. Empregos em escritórios estavam substituindo os empregos nas fábricas, o trabalho era um forte motor de mobilidade social, e a associação a sindicatos poderosos acostumara a maioria dos trabalhadores a ser consultados, a ter alguma agência em suas vidas profissionais. Mas em 2019, experiências de empoderamento no trabalho são menos comuns. Para cada vez mais pessoas, não importa quão qualificadas, emprego é de curto-prazo, de baixo status, ingrato – algo que mal faz parte de sua identidade.

Gordon-Farleigh passou anos tentando estimular as pessoas a formar cooperativas – e nem sempre teve sucesso. “O capitalismo contemporâneo produziu uma força de trabalho passiva,” ele diz. “Muitas pessoas até gostam de se sentir um pouco alienadas pelo capitalismo – e não realmente entender como ele funciona. Eles precisam ser requalificados, politicamente. Temos que olhar quais poderes econômicos eles de fato querem.”

Em abril, depois de esperar uma pausa no aparentemente infinito inverno de polêmicas sobre o Brexit, Mathew Lawrence lançou um think-thank da nova economia, Common Wealth, que busca delinear os eixos do movimento, em conjunto com um evento vespertino em Londres. Após um filme animador, mas levemente escorregadio sobre a missão do Common Wealth, ser exibido em uma grande tela – similar em tom e conteúdo a um recente canal político do Partido Trabalhista chamado Our Town – Lawrence foi introduzido para a audiência por Guinan. Na palestra que se seguiu, Lawrence avançou tanto que sua voz tornou-se um resmungo, rápido demais para qualquer um que não esteja familiarizado com a nova economia acompanhar. Durante este momento formal da tarde, o Common Wealth correu o risco de parecer um projeto para quem já é de dentro — apenas mais um think-tank londrino, com o ex líder do Trabalhista, Ed Miliband, na diretoria.

Mas o restante do lançamento pareceu diferente. O local alugado era em East End, longe do usual cinturão de think-tanks em Manchester. Estava lotado, o sotaque da região se ouvia alto. Quase todo mundo tinha entre 20 e 30 anos, muitos com sapatos desgastados e cortes de cabelos austeros e modernos – a agora familiar visão de millennials britânicos reunindo-se para discutir mudar o mundo. Duas horas depois do início do evento, as pessoas ainda chegavam e quase ninguém havia ido embora. Quando eu fui, pouco antes das 23h, as luzes nos prédios corporativos de Londres ainda estavam acesas. Mas ao me afastar da sala barulhenta, especialmente depois de uma garrafa de cerveja artesanal da Common Wealth, feita para a ocasião, foi possível acreditar que os grandes dias dos banqueiros podem estar contados, e que a nova economia irá nos dizer como.

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