30 de novembro de 2019

O laço da vergonha

A vergonha do país, e não o amor por ele, é a marca mais verdadeira de pertencimento? Lineamentos de uma emoção política, na interseção da biologia e da história, desde a invocação de Nestor no campo de batalha de Tróia até a lembrança do Exército Vermelho de Primo Levi. Como podemos imaginar os limites de uma comunidade baseada na vergonha?

Carlo Ginzburg


Angelica Kauffmann, Ariadne abandonada por Teseu

Tradução / Há muitos anos, percebi de repente que o país a que pertencemos não é, como quer a retórica mais corrente, o país que amamos, e sim aquele do qual nos envergonhamos. A vergonha pode ser um vínculo mais forte que o amor. Repetidas vezes testei minha descoberta com amigos de diferentes países: todos reagiram da mesma forma – com surpresa, seguida imediatamente de completa concordância, como se minha sugestão fosse uma verdade evidente por si só. Não estou afirmando que esse fardo de vergonha seja sempre o mesmo: na verdade, ele varia imensamente de um país para outro. Mas o vínculo da vergonha – a vergonha como um vínculo – está sempre lá, para um número maior ou menor de indivíduos. Aristóteles incluiu a “vergonha” (aidos) no rol das paixões, assinalando que ela “não é uma virtude” (Ética a Nicômaco 1108 a 30-31). A definição ainda faz sentido. A vergonha não é, em absoluto, uma questão de escolha: ela se abate sobre nós, ela nos invade – invade nossos corpos, nossos sentimentos, nossos pensamentos – como uma moléstia súbita. A vergonha é uma paixão na encruzilhada entre a biologia e a história: o domínio que Sigrid Weigel soube tornar tão distintamente seu.*

Mas será possível submeter uma paixão como a vergonha à análise histórica? Em seu famoso livro Os gregos e o irracional, Eric R. Dodds sugeriu, com base em fontes literárias, da Ilíada às tragédias, que a Grécia antiga assistira ao desenvolvimento de uma cultura da culpa a partir de uma prévia cultura da vergonha.[1] Dodds tomara essa dicotomia do livro de Ruth Benedict, O crisântemo e a espada, uma análise antropológica, muito influente e muito polêmica, do Japão como exemplo de uma cultura da vergonha.[2] Essa dicotomia era descrita nos seguintes termos: nas culturas da vergonha, o indivíduo se vê confrontado a uma sanção externa, corporificada na comunidade a que ele ou ela pertence; nas culturas da culpa, a sanção é introjetada.[3]

Mas Dodds e, até certo ponto, Benedict recusavam-se a considerar os dois tipos de cultura como incompatíveis, admitindo portanto a existência de estágios intermediários. Outros estudos, porém, deram nova forma à dicotomia numa perspectiva evolucionista, de conotações potencialmente racistas. Num artigo publicado em 1972 no The American Journal of Psychiatry, Harold W. Glidden postulava a existência de um “comportamento árabe” baseado numa cultura focada na vingança.5 As implicações eram óbvias: a alternativa às culturas da vergonha – arcaicas e atrasadas – eram as culturas da culpa, cujos traços distintivos são a interiorização e um código moral maduro – em outras palavras, a modernidade.

São óbvios os maus usos possíveis da dicotomia, mas seu potencial cognitivo merece um exame mais atento. Para os fins do meu teste, vou partir de dois livros, ambos de 1993 e de tema coincidente: as conferências Sather de Bernard Williams, publicadas sob o título de Vergonha e necessidade, e o estudo de Douglas L. Cairns, Aidos: a psicologia e a ética da honra e da vergonha na literatura grega antiga. Suas abordagens são muito diferentes entre si. Williams, filósofo, oferecia uma “descrição filosófica de uma realidade histórica” ao sugerir que as ideias gregas sobre a ação e a responsabilidade eram tão próximas quanto distintas das nossas, insistindo, ao mesmo tempo, que “o passado grego é o passado da modernidade”.[5] Cairns, o classicista, reunia e analisava em minúcia um dossiê volumoso de uma perspectiva quase etnográfica, enfatizando a distância entre a cultura grega e a nossa. [6]

“A experiência básica relacionada à vergonha”, escreveu Williams, “é a de ser visto, de modo constrangedor, pelas pessoas erradas na situação errada.”7 Essa hipótese inicial, oriunda do esforço introspectivo de um filósofo britânico do fim do século 20, é consistente com um método que explica fenômenos culturais a partir de um foco voltado para o indivíduo. Mas partir da mesma noção de individualismo que se busca demonstrar parece implicar uma petitio principii: o risco de anacronismo é evidente. Para evitá-lo, Williams alega “levantar-se pelos próprios cabelos” (a metáfora é inspirada numa famosa história do barão de Münchhausen), recorrendo a um processo cognitivo que se autoalimenta e procede sem auxílio externo.8 A hipótese inicial deve servir como um ponto de partida que novos dados enriquecerão ou transformarão. Até que ponto essa estratégia de pesquisa rendeu frutos?

Um teste crucial para a hipótese inicial de Williams tem a ver com o uso frequente, na Ilíada, do termo aidos a fim de inspirar coragem no campo de batalha. Aidos! (“Vergonha!”) é uma censura dirigida aos guerreiros, às vezes seguida de um argumento compacto: “Tende vergonha uns dos outros nos potentes combates!/ A maior parte dos homens com vergonha não morre, mas salva-se.” Em outras palavras, agir corajosamente é o melhor modo de sobreviver. Essa fórmula ocorre duas vezes no poema (v, 529-532 e xv, 561-564). Contudo, numa passagem famosa (xv, 661-666), a relação face a face ganha outra amplitude. Diz Nestor: Amigos, sede homens! Ponde nos corações a vergonha/ perante outros homens e lembrai-vos, cada um de vós,/ dos vossos filhos e mulheres, dos haveres e dos pais,/ independentemente de ainda serem vivos, ou já mortos./ Por aqueles que aqui não estão vos suplico que firmes/ permaneçais e que não vireis as costas em fuga![9]

Williams faz uma breve citação dessa passagem, e então a comenta: “É possível ver essa espécie de vergonha prospectiva como uma forma de medo”.[10] Mas essa sugestão leva o autor a um novo desdobramento, ensejado por uma palavra – nemesis – que a Ilíada muitas vezes associa a aidos e que evoca a raiva e a indignação:

Nemesis, como aidos, pode se dar dos dois lados de uma relação social. As pessoas têm ao mesmo tempo um sentido de honra pessoal e um respeito pela honra alheia; elas podem sentir indignação ou outras formas de raiva diante da violação da honra, tanto a própria como a de outrem. Esses são sentimentos compartilhados a propósito de objetos semelhantes, e servem para vincular as pessoas umas às outras numa comunidade de sentimentos.[11]

“As pessoas têm ao mesmo tempo um sentido [...]; elas podem sentir indignação ou outras formas de raiva [...]. Esses são sentimentos compartilhados a propósito de objetos semelhantes [...]” – sobre quais bases, pode-se bem indagar, Williams faz afirmações dessa ordem? Terá ele acesso aos sentimentos íntimos das “pessoas” com base em suas próprias experiências? A referência a “pessoas” implica que a conexão entre “vergonha” e “raiva” é um fenômeno transcultural? A cuidadosa formulação da passagem citada contrasta com a referência lacônica de Williams ao estudo de James M. Redfield sobre Natureza e cultura na Ilíada: a tragédia de Heitor.[12] Nesse livro, o autor tenta ganhar acesso às paixões e aos sentimentos vividos pelos gregos antigos não a partir de nossas próprias paixões e sentimentos (que podem apenas servir para que formulemos perguntas), e sim a partir da evidência linguística. Com efeito, a conexão entre aidos e nemesis já fora assinalada pelo grande linguista (e grande filósofo) Émile Benveniste, em seu estudo sobre Nomes de agente e nomes de ação em indo-europeu:

A partir desse ponto, a evolução do sentido [de nemesis] pode ser iluminada pela evolução do sentido de um termo associado na língua homérica, aidos (Ilíada, xiii, 122: aidos kai nemesis, “a vergonha e a indignação”): ambos se referem a representações coletivas. Aidos designa o sentido coletivo de honra e as obrigações decorrentes para o grupo. Mas esse sentimento é fortalecido e essas obrigações são sentidas de modo mais agudo quando a honra coletiva é ferida. Nesse momento, a “honra” ferida de todos torna-se a “vergonha” de cada um.12

Benveniste traduz a conexão entre aidos e nemesis na forma de um argumento acessível a nós. Estamos longe da suposta transparência do autoexame psicológico. Voltemos por um instante a Williams: “Esses são sentimentos compartilhados a propósito de objetos semelhantes, e servem para vincular as pessoas umas às outras numa comunidade de sentimentos”.

Mas a que se refere Williams – a sentimentos compartilhados ou a palavras compartilhadas? De nada valeria fugir à pergunta, respondendo “a ambos”. A relação entre o fluxo incessante de sentimentos e emoções, de um lado, e a taxonomia discreta criada pelas palavras, de outro, continua a nos escapar. Chegaremos um dia a captar o impacto da palavra aidos, gritada num campo de batalha, sobre o “efeito vinculante e interativo da vergonha”? 13 O que teria acontecido se aidos, esse termo poderosamente performativo, não existisse?

De resto, aidos é e não é idêntico a “vergonha”.14 Na língua homérica, como bem demonstrou Cairns em seu estudo minucioso, aidos e afins significam “medo”, “respeito”, “honra”, “veneração”, “modéstia”, “partes sexuais”. O substantivo latino verecundia cobre um campo semelhante, uma gama de sentidos que incluem “temor religioso”, “vergonha”, “veneração”, “partes sexuais” (verenda).17 Quando nos voltamos para outras línguas, logo nos damos conta de que substantivos como fear, Furcht, crainte, timore coincidem apenas em parte com a gama de sentidos associada a aidos. Mais uma vez, duas verdades se impõem a nós: traduções são sempre possíveis; traduções são sempre inadequadas.

Verdades singelas e desafios tremendos: as palavras que Nestor dirige aos soldados confrontam-nos com uma associação entre vergonha e honra, estranha às nossas intuições.18 Aidos é um sentimento (uma paixão) que envolve uma comunidade, visível e invisível, de vivos e de mortos: Amigos, sede homens! Ponde nos corações [thumos] a vergonha [aidos]/ perante outros homens e lembrai--vos, cada um de vós,/ dos vossos filhos e mulheres, dos haveres e dos pais,/ independentemente de ainda serem vivos, ou já mortos./ Por aqueles que aqui não estão vos suplico que firmes/ permaneçais e que não vireis as costas em fuga!

Essa passagem da Ilíada explica por que o vínculo suscitado pela vergonha pode ser estendido não apenas ao ato de ter vergonha de si mesmo, mas também ao ato de ter vergonha pelo comportamento de outrem, vivo ou morto. Numa nota de rodapé, Cairns trata explicitamente dessa extensão do sentido de aidos, citando um exemplo de Ésquines, o orador: os “homens de bem [...] cobriram seus olhos, sentindo vergonha pela cidade”, quando se viram diante do aspecto repugnante do corpo nu de Timarco.17 A fórmula patética e verbal, a Pathos- e Logosformel, que Homero associara a relações face a face ou a vínculos familiares (inclusive entre os vivos e os mortos) terminou por ser expandida de modo a incluir a cidade.

A vergonha encarna a relação entre o corpo individual e o corpo político. Como animal político, o homem não pode ser identificado exclusivamente a seu corpo físico: é por isso que as fronteiras do ego são sempre problemáticas. Fazendo eco a Ernst Kantorowicz, poderíamos falar dos “dois corpos” de todos nós.

2

Os gregos antigos não tinham uma palavra específica para “culpa”.20 Seria tentador presumir que essa ausência captura perfeitamente a diferença entre uma cultura da vergonha como a da Grécia antiga e uma cultura da culpa como a nossa, conformada pela ênfase judaica e cristã no pecado original e na Queda. Mas essa espécie de dicotomia nítida seria ilusória. As ideias de pecado original e de culpa primordial não circulavam apenas no Livro do Gênese: espalharam-se pelo Mediterrâneo e podiam ser encontradas em sociedades conformadas pela “comunidade da honra”.21 Como interagiam esses dois conjuntos de ideias tão distintas?

O estudo de um exemplo particular pode nos dar uma resposta. A escolha mais óbvia recairia sobre Santo Agostinho, o professor de retórica pagão que descreveu em detalhe o longo e doloroso percurso que o conduziu ao cristianismo. A começar pelo título – Confissões –, a culpa ocupa o centro de seu relato. Mas a linguagem que Santo Agostinho usa para se confessar a Deus é cheia de nuances. Ao falar de seus próprios pecados, ele insiste em distinguir facinora e flagitia. A mesma distinção reaparece, mais ou menos ao mesmo tempo, em seu escrito De doctrina christiana.22 Facinora são sempre crimes. Numa passagem famosa, Santo Agostinho contava como, aos 16 anos, ele roubou com seus amigos incontáveis frutos de uma pereira que havia em sua cidade natal: “Não para nosso banquete, mas para jogá-los aos porcos; ainda que tenhamos comido alguns, fizemos aquilo pelo prazer do proibido [dum tamen fieret a nobis quod eo liberet, quo non liceret]”.23 Recordando, consternado, Santo Agostinho tenta entender o que fez e por que o fez:

E eu, miserável, o que amava em ti, meu roubo, delito [facinus] meu noturno, no décimo sexto ano de minha idade? Não eras belo [pulchrum], porque eras um roubo. [...] Eram belos [pulchra] os frutos que roubamos, porque eram tuas criaturas, ó mais belo de todos, criador de tudo, Deus bom [...]. E agora, Senhor meu Deus, investigo o que me agradou no roubo [quid me in furto delectaverit], e não encontro nenhuma beleza. 

Alguns leitores modernos zombaram dessa passagem: quanto barulho por umas poucas peras! Não atinaram para o ponto essencial. Santo Agostinho estava sugerindo a seus leitores que o furto juvenil das peras repetia a cena do pecado original: “A mulher viu que a árvore era boa ao apetite e formosa à vista [pulchrum oculis aspectuque delectabile] […]. Tomou-lhe do fruto e comeu. Deu-o também a seu marido, que com ela estava, e ele comeu.” (Gênese 3, 6)

Santo Agostinho está dizendo que a propensão humana para o mal evidencia-se até num furto juvenil.  Depois da Queda, ninguém é inocente – nem mesmo os bebês: “E se fui concebido na iniquidade e minha mãe me alimentou no útero entre os pecados [Salmos 51, 5], onde, peço-te, meu Deus, onde, Senhor, eu, teu servo, onde ou quando fui inocente?” (Confissões, i, vii, 12).

Mas Santo Agostinho não deixava de traçar cuidadosamente uma distinção entre o criminoso facinus e o vergonhoso flagitium, na medida em que este último pertencia a um âmbito que devia ser avaliado segundo as circunstâncias.24 Em De doctrina christiana, Santo Agostinho escreveu: Desnudar-se num banquete, entre bêbados e dissolutos, é vergonhoso [flagitiose], mas nem por isso é vergonhoso [flagitium] desnudar-se nos banhos. […] É preciso, pois, considerar cuidadosamente o que é conveniente em relação aos momentos e aos lugares e às pessoas, para que não se acusem temerariamente os homens de pecados [flagitia].23

O antigo professor de retórica, conhecedor da noção de decoro ou conveniência (to prepon, em grego), estava implicitamente relendo o Livro do Gênese: “Ora, os dois estavam nus, o homem e sua mulher, e não se envergonhavam [et non erubescebant]” (Gênese 2, 25). Depois da Queda, a vergonha penetra no mundo: “Então abriram-se os olhos dos dois e perceberam que estavam nus [cumque cognovissent se esse nudos]; entrelaçaram folhas de figueira e cingiram-se” (Gênese 3, 7). O sentido da nudez agora é outro. Homem e mulher sentiram necessidade de cobrir suas partes sexuais, agora transformadas em vergonhas (pudenda). Doravante, a vergonha será associada à condição humana, ao lado do medo e da culpa, inextricavelmente vinculados na resposta de Adão ao chamado de Deus após a Queda: “‘Ouvi teu passo no jardim’, respondeu o homem; ‘tive medo porque estou nu, e me escondi’. Ele [Deus] retomou: ‘E quem te fez saber que estavas nu? Comeste, então, da árvore que te proibi de comer?’” (Gênese 3, 10-11)

A despeito de seu uso do Livro do Gênese como subtexto, Santo Agostinho quer sublinhar a dimensão social da nudez – assim como, de modo mais geral, do flagitium. Outra passagem de De doctrina christiana refere-se às roupas, em vez da nudez, a fim de assinalar que a percepção de um dado comportamento como vergonhoso ou deplorável pode mudar ao longo do tempo: Outrora, entre os antigos romanos, era considerado infame [flagitium] vestir uma túnica que chegasse até os tornozelos e tivesse mangas compridas, ao passo que hoje, entre as pessoas bem-nascidas, é uma vergonha [flagitium] não vestir túnicas: do mesmo modo, deve-se tentar evitar que a paixão se misture no uso que fazemos das coisas.24 O contexto da passagem – uma discussão da poligamia dos patriarcas bíblicos – torna a observação de Santo Agostinho ainda mais notável. Os costumes matrimoniais mudam, assim como mudam as roupas; nossa percepção a respeito varia de lugar para lugar, de ano para ano, o que pode lhes conferir um aspecto vergonhoso. Facinus não está submetido à mudança – ao contrário de flagitium. A vergonha é parte da história da humanidade.

As Confissões de Santo Agostinho apresentam--se como um solilóquio dirigido a Deus. Em seu ser mais íntimo, por meio de um autoexame sem quartel, Santo Agostinho descobriu um Deus que era um juiz eterno – ao mesmo tempo que não perdeu de vista que comunidades diversas julgam de forma diferente, seja para aprovar, seja para reprovar. Em sua experiência, a cultura da culpa e a cultura da vergonha estavam estreitamente entretecidas.

3

Partimos de uma experiência disseminada: o país a que pertencemos é o país do qual nos envergonhamos. Podemos testar o argumento tanto reduzindo a escala de referência (cidade, família) como ampliando-a. Surge então a seguinte questão: se a vergonha supõe proximidade, quais serão os limites plausíveis de uma comunidade baseada na vergonha? Talvez seja o caso de recordar, neste contexto, o começo de A trégua, de Primo Levi. A guerra acabou; junto a um grupo de sobreviventes de Auschwitz, Levi vai ao encontro de seus libertadores, quatro cavalarianos do Exército Vermelho:

Não acenavam, não sorriam; pareciam sufocados não apenas pela compaixão, mas também por uma confusa reserva, que selava suas bocas e prendia seus olhos ao cenário funesto. Era a mesma vergonha conhecida por nós, a que nos esmagava após as seleções e sempre que tínhamos de suportar ou assistir a um ultraje: a vergonha que os alemães desconheciam, aquela que o justo experimenta diante do crime alheio, afligindo-se que o crime exista, que tenha sido irrevogavelmente introduzido no mundo das coisas que existem, e que sua própria boa vontade tenha sido fraca ou nula e não lhe tenha servido de defesa.[25]

As vítimas e os libertadores, pensava Levi, estavam envergonhados e sentiam-se culpados por terem sido incapazes de evitar a injustiça; os algozes e seus cúmplices não sentiam vergonha. Essas palavras, escritas em 1947, foram publicadas em 1963. Em seu último livro, Os submersos e os salvos, publicado em 1986, Levi voltou ao tema num capítulo intitulado “Vergonha”, novamente associando vergonha e culpa: “A vergonha, que é um sentimento de culpa”, “um sentimento de vergonha ou culpa”.26 Em páginas de intolerável lucidez, Levi explorou seus sentimentos de culpa e falou dos que haviam sobrevivido aos campos de extermínio apenas para, pouco depois, cometerem suicídio. Mencionou então “uma vergonha mais vasta, a vergonha do mundo”: vergonha diante do mal cometido por outrem, vergonha de pertencer, como os algozes e os cúmplices, a uma mesma humanidade. “O mar de dor, passada e presente, circundava-nos, e seu nível foi subindo ano a ano, até quase nos afogar.”27 Levi suicidou-se um ano depois.

Só em casos extremos o mundo chega a viver essa espécie de vergonha. Mas sua mera possibilidade lança alguma luz sobre a questão geral que mencionei acima: as fronteiras do ego. Não basta dizer que cada ser humano é constituído por dois corpos (o físico e o social, o visível e o invisível). Talvez seja mais útil considerar o indivíduo como ponto de convergência de muitos conjuntos. Pertencemos simultaneamente a uma espécie (Homo sapiens), a um gênero sexual, a uma comunidade linguística, a uma comunidade política, a uma comunidade profissional, e assim por diante. Ao fim e ao cabo, chegaremos a um conjunto, definido por dez impressões digitais, em que só há um membro: cada um de nós. Definir um indivíduo com base em suas impressões digitais só faz sentido em alguns contextos. Mas um indivíduo não pode ser identificado a seus traços singulares. Se quisermos chegar a entender de maneira mais plena os atos e os pensamentos de um indivíduo, no passado ou no presente, devemos explorar a interação entre os conjuntos, específicos ou genéricos, a que ele ou ela pertence. A emoção da qual parti – a vergonha por alguém que é distinto de nós, a vergonha por algo em que não estamos envolvidos – é uma chave para que repensemos de um ângulo inesperado nossas múltiplas identidades, suas interações e sua unidade.

Notas:

* Este ensaio foi publicado originalmente em um volume em homenagem a Sigrid Weigel, Passionen. Objekte – Schauplätze – Denkstile (Munique, 2010), organizado por Corina Caduff, Anne-Kathrin Reulecke e Ulrike Vedder. Agradeço a Sam Gilbert pelos conselhos linguísticos e a Maria Luisa Catoni pelas sugestões.

1. Eric R. Dodds, The Greeks and the Irrational. Berkeley: University of California Press, 1951; edição italiana: I Greci e l’irrazionale. Introdução de Arnaldo Momigliano. Florença: La Nuova Italia, 1959, pp. 59 e seguintes. [Edição brasileira: Os gregos e o irracional. Trad. Paulo Domenech Oneto. São Paulo: Escuta, 2002.]

2. Ruth Benedict, The Chrysanthemum and the Sword. Patterns of Japanese Culture. Nova York: Houghton Mifflin, 1946; edição italiana: Il crisantemo e la spada. Introdução de Paolo Beonio Brocchieri. Milão: Rizzoli, 1991, cap. X; à p. 244, Benedict diz que a dicotomia é mencionada com frequência em pesquisas de antropologia cultural. [Edição brasileira: O crisântemo e a espada. Trad. Cesar Tozzi. São Paulo: Perspectiva, 1972.]

3. Há uma boa discussão a respeito em Douglas L. Cairns, Aidos. The Psychology and Ethics of Honour and Shame in Ancient Greek Literature. Oxford: Clarendon Press, 1993, pp. 27-47.

4. Harold W. Glidden, “The Arab World”. The American Journal of Psychiatry, v. 128, n. 8, fev. 1972, pp. 984-988. Atentei para esse artigo a partir da crítica severa a que o submeteu Edward W. Said em Orientalism (Nova York: Pantheon Books, 1978, pp. 48-49). [Edição brasileira: Orientalismo. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.]

5. Bernard Williams, Shame and Necessity. Berkeley: University of California Press, 1993, pp. 16 e 3.

6. Leia-se a conclusão: “Essas são categorias do nosso pensamento moral, não as dos gregos [...]”, in: Douglas L. Cairns, op. cit., p. 434.

7. Bernard Williams, op. cit., pp. 78 e seguintes, 219-223.

8. Ibidem, pp. 219 e seguintes (“Endnote I. Mechanisms of Shame and Guilt”).

9. Segundo a tradução de Frederico Lourenço. [N. do T.]

10. Bernard Williams, op. cit., p. 79.

11. Ibidem, p. 80.

12. Émile Benveniste, Noms d’agent et noms d’action en indo-européen. Paris: Adrien-Maisonneuve, 1948, p. 79. Ver também: Benveniste, Le Vocabulaire des institutions indo-européennes. I: Économie, parenté, société. Paris: Éditions de Minuit, 1969, pp. 340-341 (a propósito de philia e aidos). Esta obra é mencionada por Douglas L. Cairns, op. cit., a propósito de nemesis e aidos, pp. 51-54. Nem Williams nem Cairns recorreram a Noms d’agent et noms d’action.

13. Bernard Williams, op. cit., p. 83.

14. Douglas L. Cairns, op. cit., p. 14, entre outras passagens.

15. Jean-François Thomas, Déshonneur et honte en latin: étude sémantique. Louvain: Peeters, 2007, pp. 401-439 (a propósito de verecundia).

16. Douglas L. Cairns, op. cit., pp. 12-13.

17. Ibidem, p. 294, nota 100. Ver também Ésquines, Contra Timarco, I, 26.

18. Bernard Williams, op. cit., p. 88, entre outras passagens.

19. Douglas L. Cairns, op. cit., p. 70.

20. Santo Agostinho, On Christian Doctrine. Trad. J. F. Shaw. Chicago: University of Chicago Press, 1996, pp. 744-745 (correspondente a De doctrina christiana, III. X, 16). [Edição brasileira: A doutrina cristã. Trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 2002.] Eu analiso essa distinção, de outro ponto de vista, em meu ensaio “The Letter Kills: On Some Implications of 2 Cor. 3,6”. History and Theory, v. 49, n. 1, fev. 2010, pp. 71-89.

21. Santo Agostinho, Confessions and Enchiridion. Trad. Albert C. Outler. Londres: SCM Press, 1955, II, IV, 9 [citado aqui na tradução de Lorenzo Mammì: Confissões. São Paulo:
Companhia das Letras, 2017)].

22. Jean-François Thomas, op. cit., pp. 179-213 (a propósito de flagitium).

23. Santo Agostinho, op. cit., 1996, pp. 745-746 (De doctrina christiana, III. XII, 18-19).

24. Ibidem, p. 746 (De doctrina christiana, III. XIII, 20).

25. Primo Levi, La Tregua (1963), in: Opere. Edição de M. Belpoliti e introdução de D. Del Giudice. Turim: Einaudi, 1997, v. 1, p. 206. Sou grato a Pier Cesare Bori, que chamou a minha atenção para essa passagem muito tempo atrás.

26. Primo Levi, I sommersi e i salvati (1986), in: Opere, op. cit., v. II, p. 1047.

27. Ibidem, p. 1057: “Il mare di dolore, passato e presente, ci circondava, ed il suo livello è salito di anno in anno fino a quasi sommergerci”.

Um plano socialista para consertar a Internet

O que devemos fazer com o Google, Facebook e Amazon? Precisamos de um plano socialista-democrático para desmercadificar e democratizar a Internet.

Ben Tarnoff

Jacobin

Tomohiro Ohsumi / Getty Images

O que deveríamos fazer com o Google, Facebook e Amazon? Até agora, relativamente poucas respostas vieram da esquerda socialista. Pelo menos nos Estados Unidos, a vanguarda do debate sobre a regulamentação de plataformas tem sido dominada por liberais antitruste, talvez melhor representados pelo Open Markets Institute.

Eles têm boas idéias e falam sério sobre enfrentar o poder corporativo, mas eles vêm da tradição de reformismo brandeisiano. Seu horizonte é um capitalismo menos consolidado: mercados mais competitivos, empresas menores e propriedade amplamente dispersa.

Para aqueles entre nós que mantém o olhar em um horizonte diferente, para além do capitalismo, essa abordagem não é muito satisfatória. Existem elementos do kit de ferramentas antitruste que podem ser aplicados de maneira muito construtiva à tarefa de reduzir o poder da Big Tech e restaurar algum grau de controle democrático sobre nossas infraestruturas digitais. No entanto, os liberais antitruste querem que os mercados funcionem melhor. Em contraste, uma política de esquerda para a tecnologia deve ter como objetivo fazer com que os mercados tenham menos controle sobre nossas vidas – para torná-los menos centrais à nossa sobrevivência e prosperidade.

Isso geralmente é chamado de desmercadificação e está intimamente relacionado a outro princípio essencial, a democratização. O capitalismo é impulsionado pela acumulação contínua, e a acumulação contínua requer a mercadificação de tantas coisas e atividades quanto possível. A desmercadificação tenta reverter esse processo, retirando certas coisas e atividades para fora do mercado.

Isso nos permite fazer duas coisas: a primeira é fornecer a todos os recursos (materiais e de outros tipos) necessários para a sua sobrevivência e florescimento – por uma questão de direito, não como uma mercadoria: as pessoas conseguem o que precisam, não apenas aquilo que conseguem pagar. A segunda é oferecer a todos o poder de participar das decisões que os impactam. Quando removemos do mercado certas esferas da vida, podemos encontrar maneiras diferentes de determinar como os recursos associados a elas são alocados.

Esses princípios oferecem um ponto de partida útil para pensarmos uma política tecnológica de esquerda. Ainda assim, eles são muito abstratos. Qual poderia ser seu aspecto na prática?

Passo um: Tornar a internet acessível

Primeiramente, a parte fácil.

Uma boa parte da Internet é dedicada à transferência de pacotes de dados de um lugar para outro, e consiste em vários itens físicos: cabos de fibra ótica, switches, roteadores, pontos de troca de Internet e assim por diante. Também consiste em empresas grandes e pequenas (principalmente grandes) que gerenciam tudo isso, desde os provedores de banda larga que vendem o serviço de internet domiciliar que contratamos até os provedores de “espinha dorsal” (ou “backbone”) que lidam com o “encanamento” mais profundo da Internet.

Todo esse sistema é um bom candidato para a propriedade pública. Dependendo das circunstâncias, pode fazer sentido termos tipos diferentes de entidades públicas como responsáveis por partes diferentes do sistema: provedores de banda larga pertencentes ao município em coordenação com um backbone de propriedade nacional, por exemplo.

No entanto, a operação dos “canos” da Internet como uma empresa pública deve ser bastante direto, uma vez que a mecânica básica não é tão diferente do fornecimento de gás ou de água. Esse foi um dos pontos que apresentei em uma matéria que escrevi para o Tribune sobre o os plano do Partido Trabalhista (enquanto o partido ainda estava sob a liderança de Corbyn) para o lançamento de uma rede pública para oferecer banda larga gratuita a todos no Reino Unido. É uma medida politicamente boa e, melhor ainda, funciona.

Redes de propriedade pública podem fornecer um melhor serviço a um custo menor e também podem priorizar imperativos sociais, como melhorar o serviço para comunidades pobres e rurais com falta de cobertura de conexão. Para quem quiser se aprofundar em uma das experiências mais bem-sucedidas sobre banda larga municipal nos Estados Unidos, recomendo muito o artigo de Evan Malmgren, “Os novos socialistas dos esgotos“, na revista Logic.

Passo dois: Taxonomizar a internet

Mais acima na pilha de estruturas estão as chamadas plataformas. É aí que está a maior parte do poder e onde está centrada a maior parte da discussão pública; é também aí que encontramos mais dificuldades ao pensarmos sobre como desmercadificar e democratizar.

Parte do problema está no nome: “plataformas”. Nenhuma de nossas metáforas é perfeita, mas acho que talvez seja hora de desistir dessa. Não é apenas útil para elas – permitindo que um serviço como o Facebook projete uma impressão enganosa de abertura e neutralidade, como argumenta Tarleton Gillespie – mas também impreciso. Não existe uma coisa de significado único que possa ser chamada de plataforma. Não somos capazes de descobrir o que fazer com as plataformas porque não existem “plataformas”.

Antes de começarmos a montar uma política de esquerda para a tecnologia, portanto, precisamos criar uma taxonomia melhor para as coisas que estamos tentando desmercadificar e democratizar. Podemos começar analisando alguns dos serviços que atualmente são chamados de plataformas e tentando discernir as principais características que distinguem umas das outras:

  • Primeiro, o tamanho. Quantos usuários o serviço possui? Às vezes, essa é uma pergunta fácil de responder; outras vezes não, porque a maneira como definimos “usuário” varia e essas diferenças podem ser substanciais:
  • Às vezes, o que significa ser um usuário não é tão complicado. É fácil calcular o número de usuários ativos mensais do Facebook, do conjunto de produtos do Google ou do Amazon Web Services (AWS).
  • Mas e quanto a um serviço como Uber ou Instacart, onde você tem tanto funcionários (“motoristas”, “compradores”) quanto consumidores? Ambos são usuários, mas estão usando diferentes partes do serviço. Portanto, provavelmente faz sentido incluir ambos na contagem geral de usuários.
  • E quanto a um serviço que tem um público alvo que não é exatamente de usuários? Em uma newsletter de algum tempo atrás, falei sobre a plataforma de policiamento Axon, que permite às agências policiais conectar vários dispositivos e serviços – câmeras corporais, tasers, câmeras veiculares, um sistema de gerenciamento de evidências digitais, aplicativos para smartphone etc. – em um único portal integrado. Os usuários desta plataforma são policiais. O público são os indivíduos cujas informações estão sendo registradas e processadas pela plataforma. Eles devem ser incluídos na conta geral de usuários, mesmo que não sejam realmente usuários? Se nosso objetivo for medir o impacto geral do serviço, a resposta é sim.

  • A segunda linha divisória é a função. O que o serviço faz? Nick Srnicek, em seu inestimável livro “Capitalismo de Plataforma” (Platform Capitalism), usa essa abordagem para definir cinco tipos diferentes de “plataformas”, embora eu esteja mais inclinado a usar a palavra “serviços”:
  • Serviços de publicidade como Google e Facebook que acumulam dados pessoais e que os monetizam com a venda de anúncios direcionados.
  • Serviços em nuvem, como AWS e Salesforce, que vendem vários produtos baseados em nuvem em um modelo “como serviço” para clientes corporativos, desde infraestrutura como serviço (IaaS) a plataforma como serviço (PaaS) e gerenciamento de relacionamento com cliente (CRM).
  • Serviços industriais como o Predix, projetados para dar suporte a aplicativos de “internet industrial”, como conectar uma fábrica com dispositivos de Internet das Coisas (IoT) e usar os dados que fluem deles para otimizar a eficiência.
  • Serviços de produtos como a Rolls Royce e o Spotify, que “transformam um bem tradicional em um serviço”. A Rolls Royce agora está alugando motores a jato para as companhias aéreas, fazendo com que elas paguem pelo equipamento de uma vez na compra, e usando sensores e análise de dados para otimizar a manutenção. O Spotify está transformando álbuns em streams. O modelo de negócios é a taxa de assinatura.
  • Serviços “enxutos” (“lean”), como Uber e Airbnb, que combinam compradores e vendedores, minimizando a sua propriedade de ativos próprios. No entanto, essa combinação não é tudo o que eles fazem: serviços de trabalho como o Uber também estão no negócio de gerenciar e disciplinar algoritmicamente seus motoristas.

Pode-se pensar em mais tipos de plataformas, e posso achar discutíveis algumas das opções de categorias de Srnicek – será que faz sentido colocar o Uber e o Airbnb no mesmo saco? Porém, se quisermos diferenciar serviços por função, essa lista é um bom ponto de partida.

  • A terceira maneira de dividir os serviços é pelo tipo de poder que eles exercem. K. Sabeel Rahman escreveu um artigo interessante para a revista Logic chamado “O Novo Polvo”, que identifica três tipos de poder tecnológico:
  • Poder de transmissão, que é “a capacidade de uma empresa de controlar o fluxo de dados ou de bens”. Ele dá o exemplo da enorme infraestrutura de transporte e logística da Amazon que controla os “conduítes para o comércio”, bem como os provedores de serviços de Internet que controlam os “canais de transmissão de dados”. Também podemos adicionar a AWS e outros grandes provedores de nuvem. Um serviço como o AWS S3 é essencial para o fluxo de dados na Internet moderna.
  • Poder de “porteiro” (ou “gatekeeper”), onde a empresa “controla a entrada para uma paisagem que, de outra maneira, seria descentralizada e difusa”. Ele dá o exemplo do Feed de notícias do Facebook ou da Pesquisa do Google, que medeiam o acesso ao conteúdo online. Aqui, o poder é mantido no “ponto de entrada” e não em toda a infraestrutura de transmissão.
  • Poder de pontuação, que é “exercido por sistemas de classificação, índices e bancos de dados de classificação”. Isso inclui sistemas automatizados para triagem de candidatos a empregos, por exemplo, ou para informar sentenças e decisões de fiança.

Passo três: Coletivizar a internet

Poderíamos gastar muito mais tempo ajustando nossa taxonomia, mas vamos deixá-la como está e retornar à questão de como podemos desmercadificar e democratizar nossas infraestruturas digitais. Dada a ampla gama de serviços de que estamos falando, segue-se que os métodos que teremos de usar para desmercadificá-los e democratizá-los também vão variar. O objetivo em se desenvolver uma taxonomia razoavelmente precisa é ajudar a informar quais métodos poderemos usar para cada tipo de serviço.

Essa é a lógica por trás do argumento de Jason Prado em sua newsletter Venture Commune, “Taxonomizando as plataformas para escalar a regulação“. Prado defende que devemos diferenciar os serviços pelo número de usuários que possuem e, em seguida, implementar regulações diferentes para tamanhos diferentes. Entre 0 e 5 milhões de usuários, por exemplo, um serviço “deve estar sujeito apenas a regulações básicas sobre privacidade”. Entre 20 e 50 milhões, eles deveriam publicar “relatórios de transparência sobre quais dados são coletados e sobre como exatamente são usados”. Acima de 100 milhões, um serviço se torna “indistinguível do Estado” e, portanto, precisa ser governado democraticamente, talvez por um “conselho de administração composto por proprietários, representantes eleitos, desenvolvedores/trabalhadores da plataforma e usuários”.

Gosto dessa abordagem básica, mas eu a expandiria. O tamanho é uma consideração importante, mas não é a única. A função do serviço e o tipo de poder que exerce também são fatores significativos. Poderíamos mapear cada característica (tamanho, função e tipo de potência) em um eixo – x, y e z – e, em seguida, plotar cada serviço como um ponto em algum lugar ao longo desses três eixos. Então, dependendo de onde o serviço ficar em nosso espaço tridimensional (ou n-dimensional, se refinarmos nossa taxonomia e aumentarmos o número de características), poderemos selecionar um método de desmercadificação e democratização que seja especificamente adequado ao serviço.

Quais seriam alguns desses métodos possíveis? Aqui listo quatro:

Propriedade pública

Nesse caso, uma entidade estatal assume a responsabilidade pela operação de um serviço. Essas entidades podem ser estruturadas de muitas maneiras e existir em diferentes níveis, do municipal até o nacional. Os serviços que exercem poder de transmissão (Rahman) ou aqueles que envolvem a nuvem (Srnicek) são candidatos especialmente adequados para essa abordagem. Nesse sentido, Jimi Cullen escreveu uma proposta interessante para um provedor de nuvem de propriedade pública chamado “Precisamos de uma plataforma estatal para a Internet moderna“. Provavelmente a propriedade pública também seja a mais adequada para os serviços em uma certa escala. No maior tamanho, porém, a governança não pode mais ser alcançada no nível do Estado-nação – momento a partir do qual precisamos pensar em formas transnacionais de propriedade pública.

As entidades públicas também podem ficar no negócio de gerenciar ativos, ao invés da operação de um serviço. Por exemplo, elas podem assumir a forma de instituições de “guarda de dados” (“data trusts”) ou “bens comuns de dados” (“data commons”), mantendo um conjunto específico de dados e aplicando certos termos de acesso quando outras entidades desejam processar esses dados: exigir regras de privacidade, por exemplo, ou cobrar uma taxa . Rosie Collington escreveu uma reportagem interessante sobre como esse arranjo pode funcionar para dados já mantidos pelo setor público, chamado “Ativos públicos digitais: repensando o valor, o acesso e o controle dos dados do setor público na era da plataforma“.

Propriedade co-operativa

Esta opção envolve a operação de serviços de forma cooperativa, sob propriedade e gestão por alguma combinação de trabalhadores e usuários. A comunidade do cooperativismo de plataforma vem realizando experimentos nesse sentido há anos, com alguns resultados interessantes.

O que Srnicek chama de serviços “enxutos” se prestariam à cooperativização. Um Uber sob propriedade dos trabalhadores seria muito viável, por exemplo. E existem vários tipos de instrumentos de políticas públicas que os governos poderiam usar para incentivar a formação de tais cooperativas: subsídios, empréstimos, contratos públicos, tratamento tributário preferencial, códigos regulatórios municipais que apenas permitam o serviço compartilhamento de corridas por empresas pertencentes a trabalhadores. É possível, porém, que as cooperativas funcionem melhor em uma escala menor – talvez fosse melhor montar um monte de Ubers específicos das cidades em vez de um Uber nacional – nesse caso, o kit de ferramentas antitruste pode ser útil, pois precisaríamos dividir uma grande empresa antes de transformar em cooperativas as suas partes constituintes.

Também poderíamos pensar em guardas de dados ou em bens comuns de dados sob propriedade cooperativa, em vez de propriedade pública. É isso que Evan Malmgren recomenda em seu artigo “Mídia Socializada”: uma instituição de guarda de dados de propriedade cooperativa que emite quotas de voto para seus membros, que por sua vez elegem uma liderança com poderes para negociar os termos de uso dos dados com outras entidades.

Não-propriedade

Em alguns casos, os serviços simplesmente não precisam estar sob propriedade de ninguém. Em vez disso, suas funções podem ser executadas por software livre e de código aberto.

Há muitas razões para ser cético em relação ao código aberto como uma ideologia – “A Liberdade Não é Gratuita”, de Wendy Liu, é uma leitura essencial nessa frente – mas o software livre tem potencial para desmercadificação, mesmo que esse potencial esteja suprimido no momento por sua quase completa captura por interesses corporativos.

Esse é outro domínio no qual o kit de ferramentas antitruste pode ser útil. Em 1949, o Departamento de Justiça dos EUA entrou com uma ação antitruste contra a AT&T. Como parte do acordo, sete anos depois, a empresa foi forçada a abrir seu cofre de patentes e licenciá-las a “todas as partes interessadas”. Poderíamos imaginar algo semelhante com os gigantes da tecnologia, fazendo com que eles abrissem seu código-fonte para que as pessoas possam desenvolver alternativas gratuitas a esses serviços. Prado sugere que um serviço deveria ser forçado a abrir os repositórios de código dentro de seis meses após atingir entre 50 e 100 milhões de usuários.

Além de serviços maiores, eu também argumentaria que os serviços cujo modelo de negócios é baseado em publicidade (Srnicek) e aqueles que exercem poder de guarda (Rahman) seriam bons candidatos para o código aberto. Pode-se imaginar alternativas gratuitas e de código aberto à Pesquisa do Google, por exemplo, ou aos serviços de redes sociais existentes.

Outra idéia útil extraída do kit de ferramentas antitruste que poderia ajudar a promover o código aberto seria a interoperabilidade forçada. Matt Stoller e Barry Lynn, do Open Markets Institute, tem solicitado à Federal Trade Commission (FTC) que faça o Facebook adotar “padrões abertos e transparentes”. Isso possibilitaria que alternativas de código aberto funcionassem de forma interoperável com o Facebook. Isso não retiraria nossos dados dos servidores do Facebook, mas começaria a corroer o poder da empresa, oferecendo às pessoas vários clientes (sem anúncios) que poderiam acessar esses dados e apresentá-los de maneira diferente. Se essas interfaces funcionassem, o Facebook não seria mais capaz de vender anúncios e seus negócios acabariam colapsando. Nesse ponto, ele poderia ser remodelado em um guarda de dados de propriedade pública ou cooperativa fornecendo dados a uma variedade de serviços de redes sociais de código aberto, talvez eles mesmos federados no modelo da Mastodon.

Abolição

Certos serviços não devem ser desmercadificados e democratizados, mas abolidos por completo

Os governos implantam uma variedade de sistemas automatizados para fins de controle social. Isso inclui tecnologias carcerárias, como algoritmos de policiamento preditivo que intensificam o policiamento de bairros da classe trabalhadora negra. (Esse também é um exemplo do que Rahman chama de poder de pontuação). Pesquisadores como Ruha Benjamin e organizações comunitárias como a coalizão pelo fim da espionagem digital pela polícia de Los Angeles estão aplicando o ferramental abolicionista a esses tipos de tecnologias, exigindo sua eliminação total: em seu novo livro “A raça após a tecnologia” (Race After Technology), Benjamin fala sobre a necessidade de desenvolver “ferramentas abolicionistas para o Novo Código Jim” (“Jim Code”), em um trocadilho com as leis de segregação racial que ficaram conhecidas como “Jim Crow”.

Outro conjunto de sistemas dignos de eliminação são as formas de austeridade algorítmica documentadas por Virginia Eubanks em seu livro “Automatizando a desigualdade” (Automating Inequality). Nos Estados Unidos e por todo o mundo, funcionários públicos estão usando software para reduzir o estado de bem-estar social. Isso priva as pessoas de dignidade e autodeterminação de uma maneira que é fundamentalmente incompatível com os valores democráticos.

Há também o reconhecimento facial, que pode ser implantado por entidades públicas ou privadas. O crescente movimento pela proibição do reconhecimento facial, uma demanda promovida por várias organizações e agora abraçada por Bernie Sanders, é um bom exemplo da abolição em ação.

Uma observação final que vale a pena mencionar: embora o objetivo de uma política pública de esquerda para a tecnologia deva ser atingir a raiz do poder privado, por meio da transformação de como funciona a propriedade de nossas infraestruturas digitais, também precisaremos de regras legislativas e administrativas para governar como essas infraestruturas terão permissão para operar. Isso pode assumir a forma de marcos regulatórios sobre a coleta e processamento de dados, medidas destinadas a reduzir a radicalização de direita nas redes ou vários mandatos de transparência e prestação de contas via algoritmos. Essas regras deverão ser aplicadas em todos os setores, independentemente do tipo de propriedade ou organização de cada entidade.

Nossa hora vai chegar – e precisamos estar preparados

Oacima exposto é um apenas um esboço provisório, com muitos furos e arestas. A plotagem de todos os principais serviços em três eixos, de acordo com suas características, pode se revelar impossível – e, mesmo que seja possível, corre o risco de nos prender a um modelo excessivamente rígido para a formulação de políticas. De maneira mais ampla, existem limites severos para esse tipo de pensamento programático, que pode facilmente se inclinar em uma direção tecnocrática.

Ainda assim, espero que esses pensamentos possam ajudar no desenvolvimento de uma política pública de esquerda para a tecnologia que adote os princípios básicos de desmercadificação e democratização e que tente aplicá-los à nossa esfera digital realmente existente. Neste momento, há relativamente pouco espaço político para essa agenda na maioria dos países, mas pode chegar um momento em que mais espaço esteja disponível – seria bom estarmos preparados.

Sobre o autor

Ben Tarnoff é fundador e editor da revista Logic.

Um manifesto para o futebol

Os ousados planos do Partido Trabalhista britânico para reformar o futebol – redistribuindo riqueza dos clubes mais ricos e possibilitando que os torcedores possam comprar ações dos times e demitir dirigentes – poderiam salvar o esporte de mãos dos cartolas e oligarcas.

Will Magee

Tribune


Tradução / Os conservadores ingleses nunca entenderam de verdade o futebol. De David Cameron, esquecendo o time pela o qual torce, até Boris Johnson, trombando contra o ex-meio-campista alemão Maurizio Gaudino com um tackle de rugby durante uma partida beneficente, – um presságio deprimente das políticas futuras de seu partido para a relação com a Europa. Ou seja, o Partido Conservador não vai bem das pernas quando o assunto é um bom jogo. Se a gente volta até os anos 80, encontra Margaret Thatcher tentando forçar o uso de carteirinhas de identificação para os torcedores, junto com um policiamento implacável em sua resposta arrogante ao hooliganismo. A primeira política acabou sendo descartada após o desastre de Hillsborough, enquanto a segunda possui um legado desastroso que ressoa até os dias de hoje.

Nas últimas eleições gerais, não havia sequer uma única menção ao futebol no manifesto dos conservadores – o que faz com que soe como cinismo o que agora oferecem, num estilo “trabalhista-leve”. Sob Johnson, o pretenso futuro estadista – e não Johnson, o valentão do rugby na escola interna ultra-elitista de Eton – os Tories teriam três compromissos específicos para o futebol: criar um Fundo de Propriedade Comunitária de 150 milhões de libras para instituições como bares, correios e clubes de futebol locais “que estejam sob ameaça”; estabelecer uma revisão da gestão do futebol, liderada pelos torcedores e “que incluirá a consideração de testes para os proprietários e diretores”; e trabalhar para introduzir barras de apoio nas arquibancadas dos estádios de futebol.

Os Liberais Democratas, enquanto isso, têm uma menção ao futebol em seu manifesto de 2019, onde também prometem, como os Conservadores e os Trabalhistas, mais barras de apoio e segurança nas arquibancadas. (É preciso dizer que este é um enorme sucesso para aqueles que fizeram campanha para se colocar na agenda política a questão das barras de apoio – o debate agora está praticamente vencido, mesmo que o ritmo da mudança ainda possa ser glacial.) Embora seja improvável que o Partido Nacional Escocês, o Plaid Cymru/Partido do País de Gales e os partidos da Irlanda do Norte façam qualquer barulho sobre o futebol nessa eleição geral, o esporte e a cultura no Reino Unido são temas que foram rebaixados do debate público no nível parlamentar, e esses partidos podem ser perdoados por não se debruçarem sobre o triste estado do jogo na Inglaterra. Depois, há os Verdes, que não têm promessas específicas com relação ao futebol.

Isso deixa o Partido Trabalhista como o único partido que está oferecendo o empoderamento radical para os fãs de futebol; o único partido oferecendo aos torcedores a capacidade de nomear e remover dirigentes; o único partido oferecendo aos torcedores uma chance de comprar as ações de seus clubes, uma proposta com implicações radicais para a propriedade pelos fãs e a futura custódia do esporte.

É o único partido disposto a redistribuir a riqueza dos clubes mais ricos para os clubes menores por meio de uma taxa sobre o dinheiro da Premier League na TV, uma proposta que deve fortalecer o jogo em nível nacional em um momento em que muitos clubes e instituições comunitárias estão lutando pela sobrevivência. É também o único partido que demonstrou ter um entendimento estrutural do que deu errado no futebol inglês, e é por isso que deve ser o partido a reformá-lo.

Onde os conservadores oferecem um Fundo de Propriedade Comunitária para clubes de futebol “ameaçados” – um aceno de culpa ao capitalismo abutre que devastou o Bury Football Club, que quase pôs abaixo o Bolton Wanderers e que ainda ameaça muitos outros -, isso é o mais próximo que o seu manifesto chega de reconhecer que há um problema com o esporte nacional. Fundamentalmente, é um problema filosófico: Quem tem propriedade moral sobre nossos clubes de futebol e a quem eles devem beneficiar? São meros negócios e veículos para o lucro, apenas entidades privadas com as quais pessoas ricas podem fazer o que bem entenderem? Ou são instituições comunitárias que existem para servir aqueles que torcem por eles e os apoiam, tanto financeiramente quanto materialmente, desde o início de sua história?

Na parte sobre “Esporte”, o manifesto trabalhista diz: “No futebol, o jogo profissional se dividiu entre os extremos dos muito ricos e dos muito pobres, com clubes de Bury e Bolton enfrentando o colapso. Um governo trabalhista examinará o estado do esporte, sua gestão e regulamentação, suas regras de propriedade, o apoio e o financiamento dos clubes que são vitais para as comunidades locais. ”

Ao propor a redistribuição de dinheiro da Premier League para as ligas de base, os trabalhistas identificaram, com razão, vastas desigualdades financeiras como um dos principais fatores desestabilizadores do esporte. Além dos gastos imprudentes da Premier League sobrecarregarem todos os outros com transferências, salários e taxas de agentes hiperinflacionados – nem de longe mitigados pelos pagamentos de solidariedade aos clubes da Segunda Divisão -, mas a enorme riqueza oferecida no primeiro escalão, combinada com as avaliações irremediavelmente inadequadas sobre os proprietários e dirigentes, têm incentivado cartolas sem princípios a assumir enormes dívidas em uma escalada desesperada para chegar ao topo.

Tudo isso tem um efeito indireto que se propaga até as bases, onde muitos clubes lutam para pagar as contas de aquecimento e energia elétrica, quem dirá os salários. Redistribuir uma proporção da receita de transmissão para melhorar as instalações de base é um bom começo na tentativa de se consertar a economia quebrada do futebol, principalmente porque, sendo a base da pirâmide – os clubes cheios de lama e as linhas tortas dentro dos quais tantas crianças se apaixonam pela primeira vez pelo futebol – é ela que mantém de pé todo o resto do jogo.

Mais que tudo, os planos do Partido Trabalhista de colocar os torcedores em posições de poder representam uma mudança radical que deve transformar o futebol para melhor. Como os torcedores de Exeter City, AFC Wimbledon e Wycombe Wanderers têm mostrado nos últimos anos, clubes de propriedade dos fãs são capazes de alcançar um grande desempenho, ao mesmo tempo em que se mantêm responsáveis com suas finanças. Onde os benfeitores ricos costumam ficar cegos pela ganância e pela ambição irrealista, os torcedores são motivados tanto pelo bem-estar de seus clubes quanto pelo seu sucesso. Dar poder aos torcedores só pode beneficiar a saúde do jogo, enquanto proprietários sanguessugas como os de Bury e de Bolton fazem tanto mal a ele.

Embora dar aos torcedores a chance de comprar ações quando seus clubes mudam de mãos não seja uma porta imediata para a propriedade por parte da maioria dos torcedores, é um passo incremental na direção certa. Permitir que as Organizações de Torcedores credenciadas possam indicar e destituir diretores deve ajudar a democratizar as opacas salas de diretoria em todos os níveis, até a Premier League, dando aos fãs uma voz direta sobre como seus clubes são administrados. Enquanto os conservadores estão dispostos a reservar dinheiro para os clubes “ameaçados”, os trabalhistas veem que as coisas não precisam chegar a esse ponto e que devemos tratar a doença e não apenas os sintomas. A propriedade comunitária deveria ser encorajada de qualquer maneira, antes que algum desastre o exija.

Os torcedores já demonstraram que são os guardiões mais responsáveis dos clubes de futebol e que, ao contrário dos plutocratas, é possível confiar neles para que preservem suas instituições comunitárias para as gerações futuras. Nesse sentido, o futebol é uma janela para a sociedade inglesa: somente o Partido Trabalhista realmente entende do que se trata.

Sobre o autor

Will Magee é jornalista de futebol e já escreveu para a Vice e para o jornal i.

Maoísmo e seu complexo legado

Apesar de sua enorme extensão, Maoism: A Global History de Julia Lovell não nos oferece uma maneira clara de entender o maoísmo e seu legado.

Alex de Jong


A maior estátua de Mao Zedong do mundo em Orange Isle, Changsha, Hunan, China. Wikimedia Commons

Resenha de Julia Lovell, Maoism: A Global History (Penguin Random House, 2019).

Cinquenta anos atrás, uma região remota da China, o Condado de Dao, foi apanhada pela violência da Revolução Cultural. Em algumas semanas, milhares foram assassinados. A maioria das vítimas foi espancada até a morte, seus corpos jogados nos rios. Do outro lado do mundo, um grupo de jovens de rua asiático-americanos formou o Partido da Guarda Vermelha, exigiu uma vida digna para todos e declarou: "Percebemos que somente quando a opressão de todas as pessoas acabar poderemos ser realmente livres." Quando a líder do Partido dos Panteras Negras, Elaine Brown, visitou Pequim em 1970, ela observou com surpresa: "Velhos e jovens espontaneamente davam testemunhos emocionantes, como os batistas convertidos, das glórias do socialismo".

O novo livro de Julia Lovell, Maoism: A Global History, tenta explicar o movimento quixotesco que capturou a imaginação de milhões em todo o mundo. Apesar do título, o volume não é realmente uma “história global” - é mais uma série de vinhetas sobre aspectos do Maoísmo, a maioria delas concentrando-se em certas regiões ou países.

A estrutura um tanto desconexa resulta de como o livro circunscreve seu tópico. O primeiro capítulo tenta definir o que é o maoísmo - um trabalho difícil, dadas as contradições em Mao e no movimento que ele liderou. Considere a atitude deles em relação à libertação das mulheres: o jovem Mao lamentou a falta de direitos das mulheres e pediu a abolição dos casamentos arranjados. Uma das conquistas da revolução chinesa foi a lei do casamento de 1950, que permitiu às mulheres se divorciarem de seus maridos e possuírem terras. Em 1968, Mao declarou que “as mulheres sustentam metade do céu”. Lovell aponta que o suposto feminismo de Mao ajudou a popularizar suas ideias. No entanto, já nos anos 20, "as mulheres radicais pressionaram para que o controle da natalidade se tornasse a linha de frente", mas "suas contrapartes masculinas enterraram a questão", as mulheres continuavam um grupo desfavorecido na sociedade e o tratamento pessoal de Mao às mulheres era abusivo .

Lovell considera outros exemplos de elementos contraditórios reunidos sob a bandeira do maoísmo, como uma concepção do “partido de vanguarda” como portador da verdade, mas também convocando revoltas espontâneas a partir de baixo; tendências nacionalistas e, às vezes, xenófobas (especialmente durante a Revolução Cultural) versus internacionalismo e o apelo à revolução global; e assim por diante. Lovell cita o escritor francês Christophe Bourseiller: “O maoísmo não existe. Isso nunca aconteceu. Isso, sem dúvida, explica seu sucesso.” Em outras palavras, o maoísmo era o que as pessoas queriam que fosse.

Isso significa que o assunto do livro é muito amplo e Lovell vai ainda mais longe. Também estão incluídas no tópico as respostas ao maoísmo - um capítulo analisa a gênese do mito ocidental de “lavagem cerebral” durante a Guerra da Coréia. O livro termina com um capítulo sobre a China de hoje e as influências persistentes da ideologia maoísta no Estado e na sociedade.

O “Pensamento de Xi Jinping sobre o Socialismo com Características Chinesas para uma Nova Era”, por exemplo, foi reconhecido pelo Partido Comunista Chinês como parte de sua doutrina, tornando o atual presidente chinês o terceiro líder, depois de Mao Zedong e Deng Xiaoping, cujo nome aparece ali. Lovell inclui o culto em torno de Xi Jinping e suas pretensões teóricas entre os elementos “maoistas” da China atual.

Com uma compreensão tão ampla de assunto, o livro obviamente tem que deixar de fora muitas coisas que poderiam caber nele. Lovell escreve que escolheu se concentrar nos episódios mais relevantes, mas não está muito claro quais padrões ela usou. Há, por exemplo, apenas uma menção passageira às Filipinas — embora o Partido Comunista das Filipinas (“guiado pelo marxismo-leninismo-maoísmo”, como diz o livro) continue sendo uma força significativa lá – enquanto o comportamento pessoal de Mao é discutido repetidamente.

A influência de Mao?

No início do livro, Lovell se refere a turistas ocidentais na China comprando cópias do Pequeno Livro Vermelho ou isqueiros com brasão de Mao como lembranças, enquanto os visitantes da Alemanha “não sonhariam em comprar cópias de Mein Kampf” ou colecionar kitsch de estilo nazista. É claro que o autor deseja dissipar as ilusões remanescentes sobre a China maoísta e retratos positivos do próprio Mao. Mas isso geralmente é feito de maneira pouco convincente.

Por exemplo, Lovell se refere repetidamente à biografia Mao: The Unknown Story, de Jung Chang e Jon Halliday, bem como às memórias de seu médico pessoal, The Private Life of Chairman Mao. Ambos os livros não são relatos particularmente confiáveis, mas fornecem muitos contos sensacionalistas.

O apelo de tal sensacionalismo é aparente no tratamento de Aravindan Balakrishnan, o líder de culto abusivo do British Workers' Institute of Marxism-Leninism-Mao Zedong Thought. Várias páginas do livro são dedicadas a ele (ele até consegue uma foto) — mas ele dificilmente é uma figura influente ou particularmente representativo do movimento.

Às vezes, a ânsia de culpar o maoísmo por tudo de ruim supera a análise de Lovell. As guerras entre China, Vietnã e Camboja no final dos anos 70 são atribuídas à introdução do nacionalismo no marxismo-leninismo por influências maoístas e chinesas — mas essas dificilmente foram necessárias para isso. Já sob Stalin, centenas de milhares de poloneses, coreanos, iranianos, ucranianos, estonianos e outros foram alvo de deportação com base em sua nacionalidade. O chauvinismo de Pol Pot, que assinou alguns de seus primeiros artigos com o pseudônimo de “o Khmer original”, é anterior à divisão sino-soviética.

A tentativa de atribuir a destruição do Partido Comunista da Indonésia (PKI) às influências maoístas também é absurda. Lovell argumenta que o envolvimento de alguns de seus líderes no ataque à liderança do exército em 1965 (que então se tornou o pretexto para o assassinato em massa de mais de meio milhão de pessoas pelo exército indonésio) foi inspirado pelo voluntarismo maoísta e até mesmo pelo próprio Mao.

Lovell cita uma conversa entre o líder do PKI D. N. Aidit e Mao que ocorreu apenas algumas semanas antes do derramamento de sangue. Mas uma das fontes que ela cita vem dos militares indonésios. Como tal, não só não é confiável, mas, à luz da propaganda massiva e da campanha de desinformação do exército indonésio, não deve receber qualquer crédito. A outra citação é mais confiável e vem de Taomo Zhou, um acadêmico que conseguiu ver material classificado durante, como disse Zhou, “um breve período de acesso incomum aos arquivos”. Mas, na avaliação de Zhou, a liderança chinesa “permaneceu distante” dos planos de Aidit, enquanto “Mao pode ter feito uma sugestão oblíqua de que Aidit deveria estar preparado tanto para negociações de paz quanto para lutas armadas”.

Se o objetivo é contrariar ideias abertamente positivas sobre o maoísmo e o estado maoísta, há exemplos melhores e mais substanciais. Não há dúvida de que o próprio Mao foi o autor das atrocidades e do assassinato de membros do partido e outros. Lovell, por exemplo, discute expurgos partidários nas décadas de 1930 e 1940. De assassinatos em massa durante a Revolução Cultural a abusos em campos de reeducação como Jiabiangou, há muito mais condenações durante o governo de Mao.

Aspectos não familiares

Maoism: A Global History talvez seja melhor lido como uma coleção de ensaios vagamente relacionados sobre o impacto do maoísmo em diferentes regiões. Além da Indonésia e do Sul da Ásia, o livro discute a influência das ideias maoístas sobre os radicais ocidentais nas décadas de 1960 e 1970 (“Você está velho, nós somos jovens, Mao Zedong!”) e inclui capítulos sobre o Sendero Luminoso do Peru e a influência atual do maoísmo no Nepal — o único país onde um partido maoísta foi eleito para o governo nacional. Lovell é professor de história e literatura chinesa moderna no Birkbeck College, Universidade de Londres, e algumas das partes mais interessantes do livro - como na visão de mundo do neomaoísmo atual na China, ou nas memórias de apoio secreto do estado chinês aos revolucionários maoístas no exterior — são baseados em pesquisas originais.

O lado positivo da ampla rede que o livro lança é que às vezes leva Lovell a explorar aspectos interessantes e relativamente desconhecidos do maoísmo. Um dos primeiros capítulos explora a história da escrita de Red Star Over China pelo jornalista americano Edgar Snow. Publicado em 1937 durante a guerra civil na China, o livro fez muito para atrair a simpatia internacional pelos comunistas chineses.

Lovell conta a história de vida de Snow, um ex-garoto de fraternidade que se mudou para Nova York durante os loucos anos 20 com, como ele disse, “a firme intenção de ganhar cem mil dólares” em publicidade antes de completar trinta anos. No entanto, depois de alguns anos, ele fez a transição para o jornalismo, e o aventureiro Snow abriu caminho para o Japão antes de acabar na China. Lá, ele se misturou em círculos chiques radicais e se uniu aos comunistas com a ajuda de Soong Ching-ling, a rica viúva do líder nacionalista Sun Yat-sen (e membro secreto do partido).

O Partido Comunista Chinês apreciou a importância de boas relações públicas e providenciou para que Snow visitasse sua sede. Com a ajuda de um intérprete, Snow entrevistou membros importantes, incluindo o próprio Mao. Depois que Snow transcreveu as entrevistas, o texto em inglês foi traduzido para o chinês para ser verificado e revisado, e então traduzido de volta para o inglês. O resultado desse processo foi um livro que retratava Mao e seus seguidores como revolucionários democratas e patriotas defendendo seu país contra invasores e traidores. Os expurgos não foram mencionados - e Snow provavelmente não estava ciente deles.

Snow havia escrito um livro que era uma fonte valiosa de informações sobre um movimento rebelde até então pouco conhecido e uma obra-prima publicitária. Só na Grã-Bretanha, vendeu mais de 100.000 cópias e atrairia leitores que vão desde estudantes de esquerda alemães a guerrilheiros filipinos e até mesmo o líder sul-africano Nelson Mandela.

Outro aspecto menos conhecido do maoísmo que Lovell discute é a ajuda dada pelo estado chinês a grupos revolucionários no exterior. Durante a década de 1960, os chineses disputaram com a União Soviética a liderança dos movimentos revolucionários no Terceiro Mundo — não apenas em termos de influência ideológica, mas também por meio de ajuda material e treinamento. Essas operações foram mantidas em segredo na época e ainda permanecem ocultas.

Hoje, o governo chinês fala sobre a “ascensão pacífica da China” e exige “respeito ao princípio da não interferência”. A história da época em que o Estado chinês armava e financiava revolucionários para derrubar governos no exterior tornou-se uma vergonha. Mas, como mostra Lovell, especialmente em seu capítulo sobre as tentativas fracassadas de fomentar os movimentos maoístas na África, o Estado chinês fez esforços consideráveis nesse campo. Em 1975, a China gastava 5% de seu orçamento em ajuda externa. Entre 1950 e 1978, a China, ela própria um país subdesenvolvido, gastou cerca de US$ 24 bilhões em ajuda internacional, 13% a 15% dos quais foram para a África.

Vasculhando o passado

Para Lovell, o maoísmo é coisa do passado — com exceção parcial do Nepal. A influência das ideias maoístas na política chinesa de hoje é limitada. Muito mais importante, é claro, é a herança da estrutura de um estado de partido único. Desde o início, o maoísmo, como expressão da Revolução Chinesa, foi de fato contraditório. Foi uma revolução que resgatou a independência chinesa e trouxe verdadeiro progresso social ao país. Ao mesmo tempo, desde o início foi uma revolução sem democracia, e o regime de partido único que produziu jogou o país em períodos de morte e destruição.

No exterior, o maoísmo não foi apenas uma bandeira para movimentos como o Khmer Vermelho ou o Sendero Luminoso — também inspirou ativistas anti-apartheid na África do Sul, camponeses asiáticos lutando contra invasores estrangeiros e latifundiários exploradores e, para dar um exemplo não incluído no livro, o pioneiro francês da libertação gay Guy Hocquenghem.

É verdade que suas concepções do maoísmo muitas vezes tinham pouco a ver com as realidades chinesas: Lovell considera a interpretação internacional do maoísmo muitas vezes como “distorções”. O especialista alemão em China, Felix Wemheuer, certa vez sugeriu que a “falsa teoria” dos maoístas internacionais pode na verdade ser mais interessante do que o “verdadeiro Mao”. Ainda assim, ideias que podem ser atribuídas a uma ou outra versão do maoísmo tornaram-se parte da ideologia da esquerda.

Considere como a ideia de construção de base, originalmente um conceito militar, agora ajuda os esquerdistas a pensar em estratégias para reconstruir a esquerda em um momento em que grande parte da antiga infraestrutura de dissidência desapareceu. E não é por acaso que nos países subdesenvolvidos, onde muitas pessoas dependem não de um salário para ganhar dinheiro, mas do trabalho informal ou da agricultura para viver, as ideias maoístas sobre “o povo” que uniam todos aqueles que são explorados e oprimidos contra as classes exploradoras tiveram mais sucesso do que um foco central na classe trabalhadora.

No final, qualquer que seja sua intenção, há uma maneira de a esquerda usar o volume de Lovell como referência para entender melhor nossa história — até mesmo as partes feias.

Colaborador

Alex de Jong é editor do jornal socialista Grenzeloos e ativista na Holanda.

A grande recessão de 2014-16

É desonesto dizer que a recessão foi consequência só de erros de política econômica

Nelson Barbosa


Indústria brasileira fechou 2016 com queda de 6,6% na produção, terceiro ano seguido de perdas diante da fraqueza nos investimentos e da demanda interna frente à recessão no país. Juca Varella/Folhapress

Na semana passada cobrei da direita o que sempre cobram da esquerda: autocrítica. Como de costume, alguns próceres demo-tuca-novos fugiram do tema listando questões econômicas que, na sua visão, requerem penitência da esquerda. É diversionismo, mas vamos lá.

A recessão de 2014-16 teve quatro grandes causas.

Houve choques exógenos, com queda abrupta dos preços das commodities e os efeitos econômicos da seca no Sudeste. Quem mora em São Paulo se lembrará do “volume morto”.

Houve também erros de política econômica, sobretudo em 2012-14, vários dos quais já abordei em minhas colunas e textos. Escrevo isto com tranquilidade, pois deixei o governo em 2013, em parte, por discordar do rumo da política econômica daquela época.

Retornei em 2015, para ajudar a corrigir os problemas.

Para resumir uma história longa, quando a situação internacional virou, em 2012, o governo deveria ter diminuído formalmente seu resultado primário e iniciado reformas estruturais do gasto e da tributação, deixando os preços se ajustarem e lidando com os efeitos inflacionários desses ajustes via taxa de juro. Isso foi debatido, mas não aconteceu.

O governo optou por retomar a agenda de estímulos para combater a desaceleração, uma vez que isso tinha dado certo em 2009-10. Porém, diferentemente do final do governo Lula, a partir de 2012 houve mais ênfase em desonerações e incentivos financeiros do que em investimento público.

E o governo também decidiu represar o reajuste de alguns preços administrados, na expectativa de que as pressões inflacionárias seriam passageiras. Como as condições iniciais de 2012 eram bem diferentes das de 2008, a estratégia fracassou e começou a ser corrigida no fim de 2014.

A terceira causa da recessão foi o holocausto de empregos e empresas pelos efeitos de curto prazo da Operação Lava Jato, cujas consequências sofremos até hoje, com diminuição de investimentos. Já disse e repito: é perfeitamente possível combater a corrupção sem destruir a economia, desde que se tenha mais responsabilidade e menos busca por holofotes.

Em quarto lugar houve o “quanto pior, melhor” de 2015-16. Seja por revolta do PSDB ao perder a quarta eleição seguida, seja pela retaliação do PMDB ao PT pelo espaço dado à Polícia Federal e ao Ministério Público para conduzir suas investigações, o fato é que a agenda de política econômica do governo Dilma foi bloqueada justamente quando era necessário fazer correções de rumo, e isso aprofundou a recessão.

Também houve erros em 2015-16. Por exemplo, o reajuste abrupto dos preços de energia e a parada súbita de crédito pelo BNDES empurraram a economia mais para baixo no exato momento em que o Brasil sofria os efeitos adversos dos choques internacionais e da Lava Jato. Quando isso ficou claro, em meados de 2015, o “quanto pior, melhor” impediu correções de rumo.

Assim, dizer que a recessão de 2014-16 foi consequência somente de erros de política econômica é uma desonestidade equivalente a dizer que ela foi consequência somente de choques exógenos. Os dois fatores contribuíram, juntamente com a deterioração do quadro político, que é meu último ponto.

Devemos debater economia, mas, adaptando o slogan de James Carville, hoje nosso maior problema é a política... vocês sabem o resto. A direita errou ao apoiar a utilização de dois pesos e duas medidas para perseguir seus adversários de esquerda.

Não basta repudiar o AI-5. Também é necessário reconhecer todos os outros ataques à democracia feitos em nome da “boa política econômica” e do combate à corrupção.

Sobre o autor

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

O renascimento socialista de hoje começou nas ruas de Seattle há 20 anos

O movimento pela justiça global explodiu na cena com enormes protestos contra as reuniões da OMC. O movimento estava longe de ser perfeito, mas sua política anarquista, direta e orientada pela ação direta foram experiências cruciais de aprendizado para uma esquerda que hoje finalmente encontrou o seu rumo radical.

Daniel Denvir


Polícia lança spray de pimenta contra manifestantes da Organização Mundial do Comércio de Seattle em 1999. Steve Kaiser / Wikimedia Commons

Tradução / Em 30 de novembro de 1999, apenas algumas semanas após completar dezessete anos, testemunhei outro mundo possível tomando forma em Seattle, quando dezenas de milhares de manifestantes pegaram a Organização Mundial do Comércio (OMC) de surpresa. Eu não estava perto da costa oeste, mas participava do Indymedia. O site foi ao ar pela primeira vez para documentar a Batalha em Seattle, agregando histórias, fotografias e vídeos gerados por ativistas para a esquerda radical na virada do século e recebeu 1,5 milhão de visitantes únicos apenas na primeira semana.

Era o início do movimento antiglobalização. Ou o movimento Justiça Global. Ou, talvez, o movimento alter-mundista. Como quer que você chamasse esse movimento, ficou subitamente claro que uma aliança entre trabalhadores, juventude radical, ambientalistas (centenas de pessoas marcharam em trajes de tartarugas marinhas) e inúmeros outros ativistas continha um poder incrível que não sabíamos que possuíamos.

Nós sabíamos o que éramos contra e, em termos gerais, o que éramos a favor. Acima de tudo, afirmamos que o mundo poderia ser muito diferente. Tudo isso parecia extremamente radical depois de anos de encarcerado no neoliberalismo de Bill Clinton – insistindo que era a ala da esquerda possível eleitoralmente.

Dizem que Margaret Thatcher observou que Tony Blair e o “novo” Partido Trabalhista britânico foram suas maiores conquistas. Bill Clinton era o mesmo para Reagan, consolidando o poder do neoliberalismo ao alinhar o Partido Democrata por trás dele. O fim da Guerra Fria prometeu um novo mundo unido pelo comércio sob a orientação benevolente de Washington. Em vez disso, o consenso bipartidário gerou a demonização de imigrantes, encarceramento em massa e um ataque anti-sindical, pois, o poder das empresas, com um alcance cada vez mais global, estava dizimando o poder dos trabalhadores.

As vozes mais altas da dissidência antes de Seattle foram os fracassados candidatos presidenciais Pat Buchanan, de extrema direita, e Ross Perot, um fanático ideológico incoerente contra a corrupção. O movimento Justiça Global finalmente nos deu uma alternativa. Foi uma refutação incipiente da esquerda à ideia de que estávamos vivendo no melhor de todos os mundos possíveis.

Vimos que um capitalismo cruel, que destruía o meio ambiente e explorava trabalhadores em toda parte, só podia ser confrontado por pessoas em toda parte. Mas, apesar de acreditássemos que essa luta seria o movimento de nossas vidas, ela logo desapareceu. Vinte anos depois, no entanto, podemos ver que estávamos certos. O renascimento da esquerda de hoje nos Estados Unidos, por exemplo, começou naquela manhã de terça-feira, quando manifestantes radicais – organizados pela Rede de Ação Direta e treinados pelas táticas do estilo Ruckus Society in Earth First! – uniram-se estrategicamente e impediram os delegados de entrar na OMC.

“Aqueles que diziam que iriam fechar a OMC tiveram sucesso hoje”, lamentou o chefe de polícia de Seattle, Norm Stamper.

As reuniões da OMC finalmente começaram graças, apenas, à feroz repressão policial: gás lacrimogêneo, spray de pimenta, balas de borracha, granadas, um bloco de 25 metros quadrados “sem zona de protesto” e centenas de prisões. “Vamos limpar as ruas”, disse um policial de Seattle, capturado no clássico documentário produzido por ativistas, This is What Democracy Looks Like, ao grupo que a bloqueou. “Vamos esclarecer com conformidade química e dor. Se você não se mexer, será objeto de dor”. O Presidente dos Metalúrgicos, George Becker, disse aos “jovens que demonstravam pacificamente que não estavam fazendo nada para machucar ninguém”, que ele viu virado de ponta cabeça pelas botas dos policiais:”É aqui que vocês pertencem, bem aqui com o movimento trabalhista”.

E então, por dentro, as negociações chegaram a um impasse e a cúpula entrou em colapso. A dramática coincidência de protesto externo e dissenso interno sugeriu que a globalização neoliberal não era um fato consumado.

A ação direta que encerrou as reuniões da OMC foi liderada por jovens. Mas foi a presença dos trabalhadores organizado de todo o mundo – “um feito logístico que nunca se repetiu desde então”, nas palavras do jornalista trabalhista do Oregon Don McIntosh – que preparou o terreno para um confronto histórico contra o capital global. Como McIntosh escreveu: “O AFL-CIO do Oregon mobilizou cerca de 1.600 membros do sindicato, incluindo quinze ônibus e um trem Amtrak de 350 lugares fretado especialmente para a manifestação. Em Washington, todo conselho central do trabalho enviou pelo menos três ônibus, e Tacoma enviou mais de trinta. Quarenta e dois ônibus cruzaram a fronteira da Colúmbia Britânica”.

Vinte e cinco mil pessoas se reuniram em um comício da AFL-CIO no Memorial Stadium, incluindo representantes do exterior, como Leroy Trotman, chefe do sindicato dos trabalhadores de Barbados. “Irmãos e irmãs, continuem a luta. Certifique-se de que os líderes dos governos de todo o mundo nunca esqueçam esse dia ”, disse Trotman. “Esta manifestação não é uma manifestação dos norte-americanos, é uma manifestação de todas as pessoas da classe trabalhadora de todo o mundo.”

Muitos se separaram da marcha permitida pela AFL-CIO para apoiar ações diretas nas ruas. Os membros da União Internacional de Longshore e Armazém, um bastião do trabalho organizado radical que sobreviveu ao Red Scare, fecharam os portos ao longo da costa oeste.

A participação nos protestos não se limitou aos trabalhadores de esquerda. Os sindicatos pareciam prontos para montar uma contra-ofensiva depois de décadas sendo derrotados e perdendo membros sob o neoliberalismo. Após longos anos lutando contra o livre comércio por conta própria e perdendo, o AFL-CIO, sob liderança recentemente progressista, viu o poder das coalizões. Até o presidente do Teamsters, Jimmy Hoffa Jr, fez.

“Vamos manter a pressão”, disse Hoffa. “Queremos que seja divulgada a mensagem de que a OMC está com problemas; os cidadãos estão revoltando-se”. Um manifestante segurou uma placa que se tornou uma abreviação para esse novo sentimento – Teamsters and Turtles United at Last – e a emocionante possibilidade de uma união sindical e ambientalista.

A mídia, estonteada, se fixou em um grupo de anarquistas que quebraram as vitrines das lojas, com o CEO da Starbucks, Howard Schultz, reclamando que “para termos de fechar nossas lojas durante a alta temporada, o feriado de Natal apenas começando, é realmente uma injustiça”. O movimento estava obcecados também, participando de um debate sem fim sobre o que chamamos de “diversidade de táticas”. Denunciamos a repressão policial e também a cortejamos com entusiasmo. O confronto físico, embora inegavelmente eficaz em Seattle, tornou-se um fim em si mesmo. Assim como as evidências fotográficas e audiovisuais, cuja circulação entre ativistas foi criticada como “motim pornográfico”.

Estávamos desenvolvendo uma análise sofisticada, mas nossa estratégia política havia se tornado um espetáculo, operando no mesmo nível superficial de imagens dominadas pelas marcas corporativas que odiávamos. A falha foi compreensível, no entanto, Seattle havia sido a primeira coisa que funcionava para a esquerda há muito tempo e parecia necessário cumpri-la.

Camaradas em todos os lugares

Era um momento inebriante para ser um esquerdista radical adolescente; parecia que eu tinha camaradas em todos os lugares. Entrei para um circuito de protesto em massa, viajando para a Cúpula das Américas na cidade de Quebec, para combater a proposta de Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), para Washington DC para as reuniões do FMI-Banco Mundial em abril de 2000 (“A16” em inglês na linguagem do movimento) e a Los Angeles para denunciar os procedimentos da Convenção Nacional Democrata e a nomeação de Al Gore. O livro Al Gore: A User’s Manual de Alexander Cockburn e Jeffrey St. Clair foi minha fonte de referência; minhas lembranças eram uma costela quebrada pela polícia de Los Angeles e lembranças de se esconder de balas de borracha depois que a polícia encerrou um show de protesto do Rage Against the Machine.

Consumimos muitos documentários, ensinamentos, revistas e livros que detalhavam os problemas. Um dos meus favoritos era Whose Trade Organization? A Comprehensive Guide to the WTO, escrito pelo Public Citizen, órgão de fiscalização do consumidor, que desempenhou um papel de liderança na organização dos protestos de Seattle.

No auge da hegemonia neoliberal, a própria possibilidade de oposição de esquerda coordenada ao regime corporativo foi chocante para nós e nossos críticos. “Existe algo mais ridículo nas notícias hoje do que os protestos contra a Organização Mundial do Comércio em Seattle? Duvido!”, escreveu Thomas Friedman no New York Times. “Esses manifestantes anti-OMC – que são uma barca de defensores da terra plana de Noé, sindicatos protecionistas e yuppies que procuram a solução dos anos 1960 – estão protestando contra o alvo errado com as ferramentas erradas”.

Tivemos um problema com nossos objetivos e ferramentas, mas não aqueles que Friedman tinha em mente. Lutamos para passar da oposição à ofensiva e rapidamente zombamos de nossa própria dedicação ao “salto de cúpula”. Fizemos protestos em massa no Fórum Econômico Mundial em Davos, no FMI e no Banco Mundial em Praga, no G8 em Gênova, Itália, e na Convenção Nacional Republicana na Filadélfia entre outros.

Queríamos repetir o milagre de Seattle. Mas sempre falhava, porque os policiais não seriam enganados novamente. “As ações foram poderosas, mas parecia que um slogan – shut it down – ditou nossa estratégia e definiu nosso sucesso”, lembrou o ativista e escritor L.A. Kauffman.

A OMC e outras instituições financeiras internacionais simbolizavam um sistema de globalização corporativo que protegia a economia do controle democrático. O canto popular “é assim que a democracia se parece!” tratava da desconexão entre pessoas comuns nas ruas e da tomada de decisões da elite a portas fechadas. Mas o movimento não conseguiu entender como seria o governo democrático, muito menos assumir o poder para torná-lo realidade. Isso se deveu em parte à difusão do anarquismo. Também não entendemos como fazer da nossa oposição aos pactos comerciais globais e às instituições financeiras internacionais parte de uma luta mais ampla contra o neoliberalismo – e talvez até o capitalismo – em vez da luta em si mesma.

Os protestos da cúpula foram, com algumas exceções, concentrados no hemisfério norte. Mas o movimento tinha alcance global e se considerava com base mundial. Procuramos os povos indígenas de Chiapas, onde a revolta zapatista de 1994 contra o NAFTA e o Estado mexicano se tornou um ponto de referência importante. No livro No Logo, Naomi Klein nos apresentou como uma maioria global em luta em que tentamos nos conectar através de grupos como United Students Against Sweatshops. E Noam Chomsky e Howard Zinn descreveram os contornos do império americano.

O Fórum Social Mundial, realizado pela primeira vez em Porto Alegre, Brasil, em 2002, sinalizou as ligações globais do movimento e, não por coincidência, uma nova ênfase em alternativas concretas. No final daquele ano, o candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), Luiz Inácio Lula da Silva, conquistou a presidência no país. A Maré Rosa dos governos de esquerda da América Latina e os movimentos sociais que os levaram ao poder fizeram parecer que outro mundo não era apenas possível, mas, na verdade, já estava sendo construído.

O protesto em Seattle e suas reverberações constituíram o movimento de rua massivo mais militante nos Estados Unidos desde os anos 1960. Como afirmou o subcomandante Marcos dos zapatistas: “Depois da Guerra Fria, a quarta guerra mundial começou.” Essa guerra, no entanto, mal havia começado antes dos ataques de 11 de setembro de 2001 e terminou com declaração de George W. Bush da “Guerra ao Terror” que esmagou o que restava ao ativismo anti-guerra. Como escreve Kauffman, “as poucas ações de rua consideráveis contra a globalização corporativa que ocorreram nos anos seguintes foram desanimadoras, notáveis principalmente pela repressão policial”.

Em vez de uma insurgência global vinda de baixo, tivemos um choque de civilizações que nos foram impostas de cima. Foi uma saída para a crescente crise de legitimidade do neoliberalismo nos Estados Unidos, mesmo que, retrospectivamente, fosse provisória.

Após o fluxo, o refluxo

O movimento anti-guerra não conseguiu impedir a invasão do Afeganistão, que foi protestada por um número deprimente de pessoas. Fracassamos então em impedir a invasão do Iraque, que foi contestada pelos maiores protestos mundiais de todos os tempos. As manifestações contra a guerra continuaram, mas foram menores e diminuíram, mesmo quando as guerras continuaram e o apoio público a elas caiu.

A oposição contribuiu para a vitória eleitorais dos democratas em 2006 e, em 2008, a candidatura anti-guerra de Barack Obama. Nem a vitória democrata, é claro, interrompeu as guerras eternas que continuam até hoje.

A única tentativa eleitoral do movimento Justiça Global foi a campanha presidencial de 2000 do Partido Verde de Ralph Nader. Pessoas atraídas pela plataforma social-democrata de Nader lotaram “super comícios” em arenas como o Madison Square Gardens. Eu me dediquei ao voluntariado, embora fosse jovem demais para votar. Nós diagnosticamos corretamente o problema de como democratas neoliberais usavam o sistema de dois partidos para capturar votos à esquerda enquanto aderiam à política corporativa de direita. Mas nosso melhor palpite para uma solução era conquistar para Nader 5% dos votos para que o Partido Verde pudesse obter fundos federais para as campanhas.

À medida que a corrida entre Bush e Gore se aproximava do dia das eleições, no entanto, liberais nervosos fugiram para Gore e fracassamos. Duas décadas depois, o que mais se destaca nessa campanha é que nunca nos divertimos tanto em ganhar a presidência como um objetivo, porque parecia – e provavelmente era – inteiramente impossível.

O governo Bush foi um ponto baixo para a esquerda. Era a época do Daily Kos e da blogosfera liberal, uma situação tão terrível que até Howard Dean, inteiramente normal, exceto por sua oposição vocal à Guerra do Iraque, era considerado um insurgente. Uma exceção muito notável foram os protestos em massa pelos direitos dos imigrantes de 2006, que, entre outras coisas, reivindicaram o primeiro de maio como feriado dos trabalhadores.

Mas, mesmo desafiando o sistema em Seattle e perdendo credibilidade, nenhuma oposição significativa à esquerda surgiu para enfrentá-lo – mesmo após a crise financeira de 2008.

A resposta às guerras de Bush e à crise de Wall Street foi Obama, cuja candidatura e eleição foram recebidas com uma alegria messiânica que parece bizarra e incompreensível quando olhamos para trás a partir de 2019. Obama prometeu curar uma nação dividida. Os eleitores não queriam revolução, mas redenção. O que passou para a política de classe nessa eleição foi a declaração de John Edwards de que havia “duas Américas” ou, um registro mais reacionário, o comentário de Hillary Clinton de que Obama não tinha apoio entre “americanos trabalhadores e americanos brancos”. O que existia era dedicado, principalmente, ao trabalho não eleitoral, cautelosamente satisfeito por Obama ter derrotado Clinton, que representava tudo o que odiava no Partido Democrata.

A presidência de Obama prometeu reconciliar as contradições, mas é hoje ficou claro que apenas acelerou-as. Quando as execuções hipotecárias aumentaram e o governo salvou os bancos, a esquerda organizada não estava em lugar nenhum, mesmo quando o Tea Party estourou em 2010. A erupção do Occupy Wall Street’s em setembro de 2011 proporcionou uma pausa bem-vinda: primeiro no parque Zuccotti e depois nas cidades de todos os lugares , as pessoas se organizaram para declarar sua oposição ao governo financeiro. Foi inspirado por, entre todas as coisas, um grampo do ativismo deixado no final dos anos 90 que eu não sabia que ainda existia: a revista Adbusters. Para se comunicar, os manifestantes usaram o microfone humano – outro resgate de Seattle.

Mas o Occupy também sofreu com a mesma falta da eEra de Seattle de definir a política à esquerda por uma única tática. Depois de Seattle, tentamos fechar uma grande cúpula após a outra. Da mesma forma, Occupy foi ocupado.

Quando as despejos policiais esvaziaram o Occupy, no entanto, um movimento anti-deportação liderado por jovens imigrantes radicalizados continuou. Então, em 2013, o Black Lives Matter decolou, denunciando a repressão estatal e a ordem social desigual que a mantinha unida. Os militantes que deixaram a política estavam de volta e, ao contrário dos anos que se seguiram à OMC, mantiveram uma ferocidade consistente. Mas ainda assim, a ideia de que poderíamos e devemos conquistar o poder do Estado não ficou clara até o desafio principal vindo com Bernie Sanders em 2016. Esse novo movimento destruiu a presunção de décadas de que a esquerda seria um movimento de protesto e não uma força governante e, com isso, nossa própria justiça na crença de que nossa própria marginalidade sinalizava nossa correção.

Lembro-me de ler sobre o anúncio de Sanders em maio de 2015, enterrado em uma notinha do jornal. Soube imediatamente que votaria nele, embora com a clara presunção de que ele perderia para Clinton. Aos 18 anos, eu nunca teria votado em um candidato democrata à presidência. Duas décadas atrás, porém, tal candidatura como a de Sanders não era possível. Com Nader, descobrimos que o sistema de bipartidário era bem defendido contra ataques de terceiros de fora; com Bernie, descobrimos que era vulnerável por dentro.

Vinte anos depois, sou resistente a críticas sobre as falhas do movimento pela Justiça Global. Não os vejo como deficientes, mas como inevitáveis experiências de aprendizado, pois, nós, nos EUA, saímos lentamente lutando para romper os vínculos imaginativos do neoliberalismo e expandir nossos horizontes políticos. Em Seattle, vimos a política do Green New Deal de forma rudimentar: que trabalho e meio ambiente unidos eram o único caminho a seguir. Occupy denunciou o Wall Street; ativistas de direitos de imigrantes e Black Lives denunciaram a repressão estatal dentro e na fronteira.

O crescimento massivo dos Socialistas Democratas da América (DSA) como organização nunca teria acontecido sem tantas experiências no horizontalismo radical. Como resultado, a DSA permanece notável na história do socialismo norte-americano por sua descentralização e estrutura de poder relativamente plana (uma questão, é claro, de contenção significativa).

Em Seattle, dezenas de milhares de manifestantes militantes nos lembraram que outro mundo era possível. Nos anos seguintes, a esquerda esboçou como isso poderia ser, aos trancos e barrancos e sob condições extraordinariamente difíceis. Hoje, podemos nomear claramente nossa política: estamos lutando pelo socialismo e sabemos que o objetivo é vencer.

Sobre os autores

Daniel Denvir é o autor de All-American Nativism (a ser lançado em breve pela Verso Books), um escritor residente no The Appeal, e anfitrião do "The Dig" na Jacobin Radio.

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