30 de novembro de 2022

Marés agridoces

Chile, Brasil e o futuro da esquerda latino-americana

Claudia Heiss

André Singer

Phenomenal World


As recentes vitórias dos partidos de esquerda em toda a América Latina – mais recentemente a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil – levaram a comparações com a Maré Rosa do início dos anos 2000. Mas com margens estreitas de vitória contra oponentes de extrema direita, coalizões frágeis e os efeitos da ruptura econômica global alimentando o descontentamento, o momento atual parece muito diferente do anterior.

Em recente evento convocado pelo Ralph Miliband Program e pelo Latin America and Caribbean Center da London School of Economics, Claudia Heiss e André Vitor Singer refletem sobre as trajetórias de partidos de esquerda no Chile e no Brasil e discutem o futuro da esquerda latino-americana. O evento foi moderado por Robin Archer, e uma gravação pode ser vista aqui. Esta transcrição foi editada para maior clareza e tamanho.

Uma conversa com Claudia Heiss e André Singer

Robin Archer: Acabamos de ver a reeleição, ainda que por pouco, do presidente Lula no Brasil. Alguns meses antes, vimos a rejeição das reformas constitucionais que o novo governo progressista do Chile havia proposto apenas recentemente.

Para falar sobre esses e outros desenvolvimentos, estou acompanhado por um painel absolutamente de primeira linha. A professora Claudia Heiss é diretora de Ciência Política da Faculdade de Governo da Universidade do Chile. Ela é especialista na constituição chilena e na política das constituições de forma mais ampla - contei trinta e dois artigos sobre esses assuntos apenas na última década. Ela também fez parte da comissão técnica que assessorou a nova constituição, então ela tem uma visão privilegiada além da acadêmica.

Juntando-se a nós, vindo de São Paulo, está o professor André Singer, professor de Ciência Política da Universidade de São Paulo. Ele também escreveu um número significativo de livros importantes sobre mudanças políticas e sociais no Brasil, e sobre o fenômeno da presidência de Lula em particular. Ele também foi o editor-chefe do maior jornal do Brasil, Folha de S.Paulo. E não menos importante, foi porta-voz de Lula durante sua primeira presidência.

Claudia, gostaria de começar com algumas observações introdutórias?

Claudia Heiss: Eu gostaria de enfatizar dois grandes pontos e alguns pontos menores para começar. O primeiro grande ponto é que esta Maré Rosa carrega um sentimento agridoce - não é cheio de esperança como o que tínhamos no início dos anos 2000. Claro, estou feliz que Bolsonaro e José Antonio Kast perderam a eleição presidencial – não apenas porque eram de direita, mas também porque acho que representam ameaças aos direitos humanos, à preservação do planeta e ao pluralismo e à democracia.

No entanto, a Maré Rosa anterior coincidiu com um boom de commodities que permitiu a alguns governos de esquerda na América Latina mudar fundamentalmente a vida das pessoas por meio de políticas redistributivas. Esse foi claramente o caso do Brasil, enquanto o Chile foi um pouco diferente. Não construímos nada parecido com um estado de bem-estar, mas tivemos transferências diretas que melhoraram o padrão de vida das pessoas.

Hoje, algumas das maiores economias da América Latina são mais uma vez governadas pela esquerda – Argentina, Brasil, Chile, Colômbia e México têm governos de esquerda. Também temos governos de esquerda no Peru e em Honduras, embora nesses casos não haja um partido político de esquerda claro para sustentar os governos. Também temos governos de esquerda não pluralistas em Cuba, Nicarágua e Venezuela. As preocupações em torno dessa onda começam a surgir quando olhamos para os eleitores, e não para os partidos eleitos. É claro que há uma grande variação, mas, no geral, não estamos vendo muita mobilização cidadã ativa por trás desses partidos. Pelo contrário, a sua adesão está a desaparecer, ao mesmo tempo que os sindicatos estão a enfraquecer. Podemos analisar essa tendência de quatro maneiras. Primeiro, vemos um voto anti-incumbente muito forte. A eleição da esquerda, neste caso, foi em grande parte o resultado de um efeito oscilante – as pessoas simplesmente rejeitaram o que tinham antes. Nesse sentido, as eleições representam uma punição de todos os partidos no poder, ao invés de um movimento positivo em favor da alternativa de esquerda. A constituição chilena é um exemplo interessante disso: em outubro de 2020, 78% dos eleitores rejeitaram a constituição existente, mas no referendo recente 62% dos eleitores rejeitaram a proposta revisada. Em última análise, os eleitores estão apenas rejeitando o que consideram ser o establishment.

A segunda tendência que vemos é uma aceleração do tempo político. Vemos luas-de-mel cada vez mais curtas para os novos governantes; Boric, o atual presidente esquerdista do Chile, foi eleito com 56% dos votos e, em menos de um ano, seu apoio caiu para cerca de 30%. O mesmo aconteceu com Pedro Castillo, no Peru, e com o governo argentino, que teve um péssimo desempenho nas eleições legislativas de novembro de 2021.

O terceiro é o papel do mal menor na formação da coalizão. Lula e Boric não foram eleitos com apoio forte e estável, foram eleitos por quem não queria que a extrema-direita chegasse ao poder. É preciso se perguntar qual teria sido o resultado se o adversário fosse um centrista. Fundamentalmente, não devemos ler os resultados das eleições brasileiras como uma demonstração de amplo apoio a Lula, porque ele estava em uma coalizão com seus ex-rivais de centro.

Finalmente, acho que devemos ser um pouco cautelosos ao celebrar esta Maré Rosa por causa da tendência avassaladora de fragmentação e polarização política. No Chile tínhamos um sistema partidário muito estável, que hoje é composto por vinte partidos na Câmara dos Deputados e novos partidos se formando enquanto falamos - o antigo Partido Democrata Cristão, que quase não tinha eleitores, agora está dividido em três partes separadas. E as elites são mais polarizadas que o eleitorado.

Esta Maré Rosa agridoce significa que temos governos que carecem do apoio político e parlamentar necessário para produzir transformações estruturais. No Chile, por exemplo, vemos enormes entraves ao processo constitucional e enorme dificuldade legislativa para aprovar a reforma tributária porque a direita tem maioria no Congresso. Esse governo dividido e a impossibilidade de atuar provavelmente gerarão decepção, o que pode significar uma futura guinada à direita.

O segundo grande ponto que gostaria de destacar é sobre os problemas que vimos com os mecanismos de mediação política e a capacidade de representação pública em nossas instituições democráticas. Enfrentamos claramente profundos sentimentos antipolíticos e antipartidários. A ação coletiva que está ocorrendo é organizada em torno de questões específicas como educação e pensões, ao invés de uma ampla visão política ou plataforma programática.

No Chile, as explosões sociais de 2019 não surgiram do nada, elas começaram em 2006 com os protestos dos estudantes do ensino médio. Como a participação eleitoral diminuiu, vimos uma mobilização muito forte nas ruas. As pessoas pararam de votar e começaram a marchar. Esses movimentos sociais representaram em alguns casos uma reação ao neoliberalismo por motivos ideológicos, e em outros uma resistência contra o peso da dívida privada (no Chile temos uma dívida pública muito baixa, então quase toda a dívida é absorvida pelas famílias que pagam 75 por cento de seus salários em dívidas com educação, saúde, alimentação, vestuário e assim por diante). Em 2019, no Chile, a discussão girou em torno da dignidade. Mas o que significa dignidade? O problema da mediação é traduzir expressões de descontentamento em um programa político positivo. Podemos ter um porta-voz da raiva das pessoas que não têm capacidade de construir um futuro melhor. Isso é o que Pierre Rosanvallon chamou de "contra-democracia", as pessoas querem controlar o poder, mas não construir seu próprio destino. Então, novamente, temos 78% dos eleitores rejeitando a constituição existente, mas faltou a mesma força para recriar a constituição – o comparecimento dos eleitores passou de 51% para 43%.

Assim, as perguntas que nos restam são: Quem são as pessoas? Contra o que eles estão se rebelando? O que eles querem? Eu tenho algumas respostas possíveis. Em primeiro lugar, por mais difícil que seja dizer aos políticos, não existe uma voz única do povo. Algumas pessoas marcham porque querem o socialismo, outras marcham porque querem mais acesso ao consumo. Entre estes, há uma convergência de demanda em torno do bem-estar. A demanda por dignidade claramente tem algo a ver com uma demanda por redistribuição. Em segundo lugar, as pessoas estão se rebelando contra instituições e elites. Isso cria o terreno para respostas simples que podem ser prejudiciais à nossa cultura política. Em terceiro lugar, as pessoas claramente querem algumas limitações aos abusos do mercado. A desigualdade não é novidade no Chile – somos um dos países mais desiguais do mundo. Mas nos últimos anos, a desigualdade se politizou e as pessoas não querem mais tolerá-la. As pessoas também querem claramente um maior reconhecimento dos povos excluídos, incluindo povos indígenas e minorias de gênero. O Congresso chileno era composto por 13% de mulheres, então a paridade de gênero na Convenção Constitucional foi histórica para nós (só legalizamos o divórcio em 2004 e o aborto era ilegal em qualquer circunstância até 2017).

Mas a dificuldade de interpretação política continua apesar dessas intuições: a direita interpreta a rejeição da constituição como um sinal de que a população a apoia. A esquerda está citando os protestos sociais e a voz do povo nas ruas. Os cientistas políticos que analisam os resultados do plebiscito naturalmente tendem a se concentrar no mítico eleitor mediano. A verdade é que não podemos simplificar o que as pessoas querem, e decisões políticas legítimas só podem ser obtidas por meio da deliberação pluralista e democrática dos cidadãos. Infelizmente, acho que temos que nos ater à política como sempre e tentar ver o que podemos fazer para aumentar o envolvimento dos cidadãos no processo político.

Robin Archer: Você enfatizou que as forças eleitorais que trouxeram esses resultados presidenciais são compostas por coalizões democráticas extremamente amplas que se estenderam muito além do centro e de fato para a direita. Nem parecem a Frente Popular Francesa dos anos 1930. É claro que existe uma figura de proa de esquerda, mas os movimentos em si não parecem de esquerda em nenhum sentido claro. Até que ponto a "Maré Rosa" é uma descrição relevante do que estamos vendo?

André Singer: Acho que Claudia e eu concordamos no ponto mais importante dessa questão. Se você olhar os resultados do Chile, da Colômbia e do Brasil, há uma Maré Rosa: a esquerda venceu. Eles venceram por uma pequena margem, mas ainda assim venceram. Mas o contexto em que estamos hoje é totalmente diferente daquele da Maré Rosa anterior. Na Maré Rosa, estávamos muito otimistas. No Brasil, era a primeira vez que um partido de esquerda havoa sido eleito. Estávamos entusiasmados com todas as melhorias sociais que poderíamos fazer. Algumas delas foram alcançadas, outras não. Mas a pergunta era: como é um programa de esquerda (reformista)?

Hoje, estamos muito assustados com o que chamo de autoritarismo com viés fascista. Trata-se de uma situação defensiva em que a esquerda – tanto no Brasil quanto no Chile – foi colocada no olho do furacão. Claro, temos que nos perguntar o que esses governos são capazes de fazer. Mas precisamos reconhecer que este é principalmente um movimento defensivo.

Do lado econômico, temos desafios significativos. Há uma pressão global por austeridade, ao mesmo tempo em que a situação social deve ser melhorada. E essas melhorias demandam dinheiro. Estamos em uma situação difícil porque as pessoas esperam ver resultados, e a situação econômica do Brasil está ruim há pelo menos uma década.

Claudia Heiss: Boric não ganhou com o apoio de uma ampla coalizão, mas construiu uma ampla coalizão com o que hoje é chamado de Socialismo Democrático. Acho importante entender que a resistência que vemos agora é produto de muitos anos de governos de centro-esquerda. O primeiro presidente que tivemos após o retorno à democracia na década de 1990 foi um democrata-cristão aliado à esquerda, Patricio Aylwin. Depois tivemos Eduardo Frei Ruiz-Tagle, Ricardo Froilán Lagos e Michelle Bachelet. Tivemos quatro governos de esquerda que não fizeram reformas estruturais importantes no modelo econômico. Porque? Em parte porque eram uma coalizão ampla, mas também em parte por causa da Constituição.

A Constituição chilena foi construída de várias maneiras para preservar o que a ditadura chamava de “estado subsidiário”. Na Europa, esse termo é usado para descrever instituições destinadas a proteger a sociedade civil do Estado. No Chile, entende-se que essas instituições protegem o mercado do Estado. Nossa constituição enfatiza a primazia do mercado – canalizamos o financiamento público para setores lucrativos de saúde e educação, uma enorme transferência dos pobres para os ricos. Esse modelo é o que muitos alunos e professores têm resistido desde os protestos dos “pingüins” de 2006. Essas políticas estão todas associadas a governos de centro-esquerda e, como escreveu Jennifer Pribble, o fato de os governos de centro-esquerda não terem conseguido implementar políticas de centro-esquerda enfraqueceu a fé das pessoas na política e as mandou para as ruas.

E não se trata apenas da amplitude e fragilidade das coalizões políticas, trata-se de enclaves ditatoriais profundamente enraizados. Não terminamos de democratizar em 1990. Tínhamos nomeado senadores até 2005, tínhamos um sistema eleitoral que distorcia completamente as preferências até 2015. A direita concordou que esta era uma má constituição, mas também rejeitou a nova proposta. Agora que as negociações estão acontecendo, e os fundos de pensão e as empresas privadas de saúde estão fazendo campanhas políticas abertas, começamos a ver os reais interesses econômicos em jogo.

Robin Archer: A última pergunta que gostaria de fazer é sobre o papel da mudança geracional. Para as gerações mais velhas em cada um desses países, há uma memória viva da ditadura e do profundo regime autoritário. No entanto, muitos cidadãos mais jovens não devem ter nenhuma lembrança disso. Sabemos que a mudança geracional em muitos casos tem consequências políticas – como isso afeta a política atual no Brasil e no Chile?

André Singer: Acho que o Brasil é um país com uma memória muito curta de si mesmo. O que passou, passou, é muito diferente do Chile nesse aspecto. Então os problemas que vivemos no Brasil são entendidos como problemas mais iminentes, e o eleitorado vota com base no presente. Mas há um sintoma preocupante em relação a esse elemento da política geracional, que é que Bolsonaro pretende voltar à ditadura. Não se fala em termos explícitos, mas é fato: Bolsonaro é um ex-capitão militar formado pela ditadura. Ele fala bem da ditadura o tempo todo. Seu movimento tem aspectos novos que o aproximam do trumpismo, que nada tem a ver com os antigos movimentos militares. Mesmo assim, ele pretende reviver essa estrutura política anterior a 1964. A relação entre a nova direita e o antigo regime militar pode não ser diretamente relevante para as decisões do eleitorado, mas interessa aos estudiosos do momento político.

Claudia Heiss: Testemunhamos a importância da mudança geracional na onda de protestos das últimas duas décadas. A primeira grande onda foi, como mencionei, com estudantes do ensino médio em 2006. Esses alunos do ensino médio acabaram se tornando estudantes universitários e formaram a base para a onda de 2011. Alguns desses estudantes universitários então entraram no governo, alguns se tornaram membros do Congresso (um tornou-se presidente!).

Ao mesmo tempo, acho importante não exagerar essa memória geracional. Quando meus alunos foram protestar em 2019 e 2020, fiquei apavorado por eles terem violado o toque de recolher. Como alguém que viveu sob uma ditadura, quebrar o toque de recolher para mim significava que você poderia ser morto. Mas meus alunos não tiveram medo, eles saíram e marcharam enquanto eu ficava acordada ligando para o grêmio estudantil para saber se eles estavam bem. Muitos deles ficaram feridos, na verdade. A polícia cometeu violações gravíssimas dos direitos humanos em 2019 – mais de trinta pessoas morreram e mais de 400 perderam os olhos após serem baleadas pela tropa de choque. No entanto, esses alunos não ficaram tão assustados quanto a geração mais velha. E parte de seu apelo político é que eles são vistos como recém-chegados ao cenário político. Seus pontos de vista se assemelham a alguns dos programas políticos centralizados mais antigos, mas não são partidos tradicionais de trabalhadores. O jeito deles de fazer política é diferente, mas eles são mobilizados. Ainda assim, uma coisa que está clara no Chile é a noção de que os pobres, os jovens e os menos instruídos votam automaticamente na esquerda não é mais um dado adquirido.

"Quero ser um rebelde"

Depois da temporada no inferno - com prisão e insultos nas ruas -, José Genoino volta à vida política mais socialista do que antes 

Luigi Mazza


Genoino, no escritório de sua casa, onde uma imagem de Nossa Senhora Aparecida convive com um busto de Karl Marx: "Ele foi escolhido como bode expiatório da esquerda", diz Tarso Genro Crédito: Egberto Nogueira/Ímã Foto Galeria

Como ainda faltavam alguns minutos para as nove da manhã, horário em que o evento começaria, havia menos de cem pessoas num espaço que comporta 1,5 mil. Na entrada do auditório, Genoino parou diante de uma banca de livros montada pelo Partido Operário Revolucionário (POR), que disputa a política do sindicato. Folheou O Socialismo e a Guerra, escrito por Vladimir Lênin há 107 anos, mas não levou. Papeou com o jovem militante que cuidava da banca e aceitou um jornalzinho gratuito do partido.

Um admirador interpelou Genoino para pedir uma selfie. Em seguida vieram duas moças. Depois outros e outros. Até a hora em que o congresso começou, vinte pessoas haviam tirado fotos com o ex-deputado. Ele, que de início parecia desconfortável, foi se soltando aos poucos. Cumprimentava amigavelmente todos que passavam por ele. Depois, se aproximou de Virgínia Fontes e Valerio Arcary, historiadores que também haviam sido convidados para o debate, e os três engataram uma conversa animada à beira do palco.

Quando já havia em torno de quinhentos sindicalistas acomodados no auditório, iniciou-se o congresso. Virgínia Fontes, a primeira a discursar, falou sobre a guerra na Ucrânia e como o Brasil se situa na crise global do capitalismo. Genoino foi convidado a falar em seguida. Subiu até o púlpito levando na mão um caderno azul cheio de garranchos. Tirou a máscara, deixando o cavanhaque à mostra. Começou a discursar. Quem ali esperava ouvir um moderado ex-parlamentar do PT, alquebrado pela experiência dolorosa da prisão e abatido pelo isolamento da vida pública, teve uma surpresa: Genoino falou como um bolchevique.

“Há uma crise estrutural sistêmica do capitalismo monopolista, dependente, financeirizado na sua organização neoliberal”, decretou Genoino, já na largada. Falava pausadamente e marcava cada palavra com um gesto do braço direito. Entre uma frase e outra, espiava o caderno. Afirmou que 2022 estava destinado a ser “um dos anos mais longos da história política da luta de classes no Brasil” e disse que nem a vitória eleitoral contra “o inominável” – como se refere ao presidente Jair Bolsonaro – estancaria a crise.

Deteve-se, então, numa espécie de mea-culpa. “Digo claramente a vocês: essa foi uma das grandes lições que aprendi na minha vida. Eu achava que o programa de transformação do Brasil passaria pela institucionalidade. Mas, mesmo me especializando nisso, chegou o momento em que ela se mostrou limitada. As ruas, os direitos, o conflito, a contradição, as [nossas] exigências não cabem numa burguesia que tem por natureza o autoritarismo, o escravismo, o patriarcalismo e a violência.”

Então, como diz o título da obra seminal do revolucionário Lênin, o que fazer? “Se depender de nós é preparar as rupturas”, respondeu Genoino. “Preparar aquilo que, para nós, é a razão de ser das nossas vidas: a luta contra o capitalismo, a luta pelo socialismo.” Arrematou em tons dramáticos: “A crise é profunda e não adianta esparadrapo e band-aid. A sangria é muito grande. Vamos resgatar a esperança, a paixão, o ânimo, o direito de sonhar!”

A plateia aplaudiu e logo se formou um coro: “Olê, olê, olê, olá, Lula! Lula!”, que em seguida se transformou em “Fora, Bolsonaro!”. Genoino sorriu satisfeito, recolheu o caderno, sentouse ao lado dos colegas e recolocou a máscara no rosto.


A nova fase de José Genoino, hoje com 76 anos, surpreendeu velhos amigos. “O Genoino de hoje é mais marxista do que o dos anos 1980”, diz Valerio Arcary. O historiador, dez anos mais novo, conheceu Genoino nos estertores da ditadura militar, quando o petista dava aulas no cursinho prévestibular do Colégio Equipe, em São Paulo, depois de ter passado pela Guerrilha do Araguaia (1966-74), pela prisão, pela tortura e pela anistia. 

O Colégio Equipe, na época, funcionava como ponto de encontro da esquerda paulista, e Arcary, um militante do movimento universitário, estava sempre por lá. Embora o historiador tenha se desfiliado do PT anos mais tarde (hoje está no Psol), os dois mantiveram contato. Ao assumir o microfone depois de Genoino, no evento em Brasília, Arcary saudou o amigo. “É emocionante nós estarmos aqui hoje, juntos, vendo o Genoino voltar àquela paixão do final dos anos 1970, quando eu o conheci, fazendo um chamado à luta revolucionária contra o capitalismo. Obrigado pelas palavras.” 

Fazia quase uma década que Genoino não aparecia publicamente em Brasília. A última vez fora em 17 de julho de 2013, quando estava em seu sétimo mandato de deputado federal. Era véspera do recesso parlamentar e o dia correu como qualquer outro: Genoino votou projetos e falou no plenário. Depois, entrou de férias e nunca mais pisou na Câmara. Durante aquele recesso, enquanto passeava com os netos em Ubatuba, no litoral de São Paulo, sofreu uma crise de dissecção da aorta, artéria que irriga todo o corpo. Teve de passar por uma cirurgia de emergência que durou oito horas e na qual, segundo os médicos disseram à família, ele tinha 10% de chances de sobreviver. Foi só o começo de uma temporada no inferno. 

No mês seguinte, enquanto Genoino convalescia, o Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou sua condenação no caso do mensalão: seis anos e onze meses de prisão, mais pagamento de 468 mil reais de multa. No dia 15 de novembro, feriado da Proclamação da República, foi expedida a ordem de prisão de Genoino e outros onze condenados. 

Àquela altura, o sobrado onde o petista mora desde 1984 no bairro do Butantã, em São Paulo, já era acompanhado dia e noite por repórteres e cinegrafistas. Como não havia portão protegendo a casa, a família passou a viver com as janelas e cortinas fechadas – para não ser vista, nem ouvida. “A gente não conseguia sair para comprar uma Coca-Cola para o meu pai. Ele adora Coca”, conta Miruna, de 41 anos, filha mais velha de Genoino. Os dois filhos de Miruna, que na época tinham 6 e 5 anos, não processaram bem a situação. O caçula, o mais afetado, precisou de acompanhamento psicológico. “A principal coisa que ele precisava elaborar era sobre meu pai. Entender por que aquilo tinha acontecido, por que o juiz podia definir o que era certo ou errado.” 

Na noite da prisão, Genoino estava em casa com a mulher e os filhos. Para não ser algemado, decidiu se entregar na Polícia Federal em São Paulo. Fez uma muda de roupas e partiu no carro do advogado. Dormiu na PF e, no dia seguinte, foi transferido para o Complexo Penitenciário da Papuda, em Brasília. Logo ao chegar no presídio, na capital federal, Genoino passou mal e teve de ser internado no Hospital das Forças Armadas. A família se desesperou. “Ele vai matar o meu pai!”, gritava Miruna no hospital, referindo-se ao então ministro Joaquim Barbosa, relator do mensalão no STF. Depois de quatro dias hospitalizado, o petista foi transferido provisoriamente para a prisão domiciliar, mas teve que ficar em Brasília, onde se deu a condenação. Sua filha caçula, Mariana, mora na capital federal, mas vivia num quarto e sala apertado com o marido e a filha. Não podia receber o pai. Genoino então passou pouco mais de um mês vivendo na casa do sogro de Mariana. (A caçula nasceu de um caso extraconjugal de Genoino, mas sua mulher, Rioco Kayano, e seus dois filhos mais velhos têm uma relação harmoniosa com ela.) 

Depois, conseguiu arrumar uma casa próxima à Papuda. “Tivemos que alugar uma casa para ele ser preso. Nunca vi uma situação dessas”, relembra Kayano, de 73 anos. A família montou uma operação para impedir que o endereço fosse descoberto pela imprensa. De uma casa para a outra, Genoino foi transportado escondido na caçamba do carro de seu genro, Pedro, deitado e coberto por uma lona para não ser visto. 

Meses depois, no entanto, uma junta médica escalada pelo STF concluiu que a cardiopatia de Genoino não era grave. No feriado de 1º de maio de 2014, dois dias antes de seu aniversário de 68 anos, o petista retornou à Papuda. Viveu em regime fechado até agosto, quando concluiu um sexto da pena e pôde então voltar à prisão domiciliar, ainda em Brasília. No final do ano, foi beneficiado pelo indulto natalino assinado pela então presidente Dilma Rousseff. Em março seguinte, o STF extinguiu sua pena. Genoino voltou a ser um homem livre depois de um ano e quatro meses preso. Estava prostrado, desapareceu do noticiário e trancou-se em casa.


Genoino assumiu a presidência do PT em 2002, depois de ter perdido a disputa pelo governo de São Paulo para Geraldo Alckmin. Nunca foi uma figura da burocracia petista. Gostava mesmo era da vida no Congresso, onde cumprira cinco mandatos consecutivos de deputado federal. Mas, como soldado do partido, abdicou de concorrer à reeleição para deputado e disputou o governo paulista com o objetivo de dar um palanque forte para Lula – então candidato à Presidência – no principal colégio eleitoral do país.

Com a vitória do novo presidente, Genoino tinha a expectativa de ser nomeado ministro da Defesa, já que era estudado em assuntos militares e tinha boa relação com as Forças Armadas. Foi preterido pelo diplomata José Viegas Filho. Depois, foi cotado para a Secretaria-Geral da Presidência, responsável pelas relações com o Congresso. Quando seu nome saiu na imprensa, no entanto, houve gritaria entre os petistas porque só haveria paulistas à frente de ministérios importantes. Genoino, embora cearense, fizera sua carreira política em São Paulo. Era um “paulistério”, dizia-se. Quem acabou assumindo o cargo foi o mineiro Luiz Dulci. Sobrou para Genoino o comando interino do PT, vago desde que José Dirceu assumira a Casa Civil. 

Até então, Genoino era o mais proeminente deputado petista e tinha uma trajetória respeitada na esquerda. Nascido numa família pobre do sertão do Ceará, virou líder estudantil e integrou a Guerrilha do Araguaia promovida pelo seu partido na época, o PCdoB. Foi preso e torturado. Fez a autocrítica da experiência da guerrilha e rompeu com o PCdoB. Em 1982, anistiado, elegeu-se deputado pela primeira vez. Dentro do PT, liderava uma tendência marxistaleninista que agia como um partido autônomo: o PRC, Partido Revolucionário Comunista. 

Genoino encantou-se com o Congresso logo na largada e elegeu-se deputado constituinte no pleito seguinte, em 1986. Revelou-se um negociador hábil e até hoje se orgulha da relação que construiu com Ulysses Guimarães, o respeitado líder da Constituinte. Guarda bilhetes que o emedebista lhe deixou. Dali em diante, dedicou sua vida a se tornar um parlamentar profissional. Conhecia o regimento da Câmara melhor do que os burocratas mais especializados. Com isso, tornou-se fonte indispensável para a imprensa. “O projeto tal precisa de maioria simples ou de dois terços dos votos para ser aprovado?”, indagavam os jornalistas. Era sempre Genoino quem sabia as respostas. 

Como não tinha uma base eleitoral cativa – não era vinculado diretamente a um sindicato ou movimento social –, Genoino fazia o que podia para aparecer na imprensa. Considerava-se um deputado formador de opinião e assinava uma coluna quinzenal no jornal O Estado de S. Paulo. “Às vezes, ele adiava viagens da família para atender jornalistas”, lembra Miruna. Quando criança, nas visitas ao pai em Brasília, Miruna era sempre levada por Genoino até o comitê de imprensa da Câmara para ser apresentada aos repórteres. 

Em 1989, diante da queda do Muro de Berlim e da posterior dissolução da União Soviética, Genoino “quebrou”, como se diz no jargão da esquerda. “Ele fazia parte de uma corrente campista que ainda refletia a tradição stalinista de ver o mundo dividido entre o campo socialista e o campo capitalista. A luta, para eles, era entre esses campos, mais do que entre classes”, diz o historiador Arcary. “Para quem pensava assim, o fim da União Soviética foi um pesadelo.” O ex-governador Tarso Genro, que também fazia parte do PRC, prefere dizer que ele e Genoino viveram um momento de “solidão histórica” 

O PRC se dissolveu com o fim do Muro e da União Soviética. Dali em diante, Genoino pouco a pouco se integrou à ala moderada do PT. Com o então petista Eduardo Jorge, fundou a corrente Democracia Radical, apelidada pelos adversários de “direita do PT”. Trocou a defesa da ditadura do proletariado pela defesa da social-democracia e aproximou-se de quadros do PSDB. Em 2001, advogou que a palavra “socialismo” não fosse usada nas teses do Segundo Congresso Nacional do PT. Passou a defender que se discutissem temas como a descriminalização do aborto e da maconha e, numa época em que poucos deputados faziam isso, prestigiava a Parada do Orgulho Gay em São Paulo, antes que a sigla LGBT fosse popularizada. Foi o deputado federal mais votado do Brasil na eleição de 1998, com 307 mil votos. 

Vivia, em suas próprias palavras, “em estado de poesia”. Parecia sentir-se confortável no convívio com os moderados dentro e fora do PT. Frequentava os jantares dos tucanos em Brasília, era tido como o menos petista dos petistas, tal a facilidade com que transitava entre os centristas, e a esquerda o acusava de “reformista”, palavra ofensiva para os revolucionários. Aos poucos, se acostumou também à vida de presidente do PT. Aproximou-se de Lula a ponto de as duas famílias se tornarem amigas. Acompanhava de perto todas as decisões do governo e, em 2005, pretendia concorrer a mais um mandato de presidente do partido. Só que, antes disso, o céu desabou sobre sua cabeça.


Em junho de 2005, em entrevista à Folha de S.Paulo, o então deputado federal Roberto Jefferson denunciou que o governo vinha comprando votos no Congresso em troca de uma mesada – o mensalão, como ficou conhecido. Hoje em dia, com um orçamento secreto distribuindo bilhões de reais anonimamente em troca de votos, o mensalão parece coisa de batedor de carteira, mas, naquela época, foi tratado como um grande escândalo. Abriu-se uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) e o governo entrou em convulsão. José Dirceu, apontado como arquiteto do esquema, renunciou à Casa Civil. Delúbio Soares, acusado de distribuir a propina, licenciou-se do cargo de tesoureiro do PT. 

Dias depois, chegou a vez de Genoino. Uma reportagem da revista Veja mostrou que o publicitário Marcos Valério de Souza, na época suspeito de ser o operador do mensalão, havia assinado como avalista de um empréstimo bancário de 2,4 milhões de reais em nome do PT. Até então, Marcos Valério dizia que não tinha nenhuma relação com o partido, apenas uma relação pessoal com o tesoureiro Delúbio Soares. O documento do empréstimo, publicado pela revista, trazia também a assinatura de Genoino, na condição de presidente do partido. A relação entre o PT e o operador da propina estava comprovada. Mais tarde, apareceu um novo empréstimo, também assinado pelo publicitário e por Genoino. Sua assinatura, aposta nos dois empréstimos, fez com que a maioria dos ministros do STF concluísse que Genoino sabia do esquema do mensalão. 

Para piorar, na mesma semana em que veio a público o primeiro empréstimo, um assessor do deputado federal José Guimarães (PT-CE) – irmão mais novo de Genoino – foi preso pela Polícia Federal carregando 100 mil dólares na cueca. O episódio rendeu manchetes e piadas durante dias e, embora não tivesse relação com Genoino, ajudou a entornar o caldo. No dia seguinte à publicação dessa notícia, ele renunciou à presidência do PT. 

Miruna estava na Espanha no auge da crise. Foi pedida em casamento no dia em que Genoino deixou o comando do partido. De volta ao Brasil pouco depois, levou um susto com o que viu. “Encontrei meu pai de pijama em casa. Nunca tinha visto ele assim. Estava absolutamente deprimido.” Na época, Genoino ajudou a filha a obter o visto, já que ela voltaria à Espanha dali a alguns meses para o casamento. Quando os dois estavam na fila do consulado, um homem se aproximou dele e perguntou: “Você veio aqui fazer o quê? Veio roubar?” 

Aconteceram coisas piores. Em setembro, dois meses depois de deixar a presidência do PT, Genoino foi convocado para depor na CPI do Mensalão. No dia do seu depoimento, o então deputado federal Jair Bolsonaro levou para a sessão o coronel Lício Maciel, que torturou o petista depois de sua captura no Araguaia. A intenção de Bolsonaro era constranger Genoino diante do seu torturador. Mas eram outros tempos: os parlamentares, do governo e da oposição, ficaram indignados com o gesto repulsivo de Bolsonaro e forçaram a retirada do torturador da sala. 


Em São Paulo, os repórteres passaram a bater ponto na casa do petista. Um episódio em especial marcou a família, quando o programa Pânico na TV foi até o bairro do Butantã gravar uma reportagem em que fazia chacota de Genoino. Pouco depois de a equipe de tevê estacionar em frente ao sobrado, uma pequena multidão já se aglomerava no local. Miruna, que soube do ajuntamento enquanto estava numa festa de aniversário, pegou o carro e foi até lá para ficar com o pai. “Na hora que desci do carro, ouvi de tudo, desde ‘ô gostosa, deixa eu te comer’ até ‘seu pai é um ladrão’. Quando entrei em casa, eu caí no chão, quase desmaiei. Nessa hora meu pai teve um rompante e quis sair na rua para acabar com aquilo, mas meu irmão não deixou. Teria sido muito pior.” Magoou a família o fato de que um vizinho da frente, de quem sempre foram amigos, cedeu espaço de sua casa para que o Pânico instalasse um equipamento de luz. 

Em vez de três, Genoino passou a fumar quatro maços de cigarro por dia (só largou o vício anos mais tarde, quando sofreu o aneurisma na aorta). No auge da crise, tomava remédios para dormir. Uma vez por semana – às vezes mais –, ia até a casa de uma psicóloga amiga da família que também morava no Butantã. Num depoimento que deu em 2006 à jornalista Denise Paraná – e que resultou no livro Entre o Sonho e o Poder –, o petista registrou seu estado de espírito naquele momento: “Ainda conviverei com esse turbilhão por certo tempo. Espero que possa resistir sem ser tragado e devorado por ele. Em alguns momentos desse processo, cheguei a ter pensamentos extremos. Agora estou na fase de me defender, de resgatar a minha história de militância política.” 

Assim como o governo Lula, Genoino sobreviveu ao baque. Em 2006, reelegeu-se deputado federal, ainda que tenha obtido apenas um terço dos votos de sua última eleição vitoriosa. Tornouse uma figura reservada. Desapareceu o parlamentar expansivo e falante. Tinha pouco contato com os jornalistas. Em 2010, candidatou-se novamente e amargou uma suplência. Quando abriu uma vaga, em janeiro de 2013, voltou à Câmara. Pela primeira vez na vida, contratou uma assessora de imprensa. Já havia sido condenado pelo mensalão, mas ainda cabia recurso. Durante seis meses, exerceu o mandato. Foi seu último. Em dezembro, já preso em Brasília, renunciou ao cargo para evitar a cassação iminente. Na carta de renúncia, defendeu sua inocência e escreveu: “Entre a humilhação e a ilegalidade, prefiro o risco da luta.” 

Nos meses de 2013 que antecederam a prisão, entre o recesso e a convalescência do aneurisma, Genoino ficou enfurnado no quarto de empregada que transformou em escritório, nos fundos da casa. “O momento mais angustiante para mim foi um dia em que olhei pela janela de um dos quartos, para fora da casa, e vi o Genoino paradão no escritório. Ele estava quase catatônico, olhando para o nada”, conta Rioco Kayano, sua mulher. Os dois se conheceram na prisão, durante a ditadura, e estão juntos até hoje, mais de quarenta anos depois. “Fui até ele e falei assim: ‘Gê, você já percebeu que as plantas do quintal estão meio murchas? Você não quer ir lá regar?’ Ele adora cuidar das plantas, e eu tive uma visão, na hora, de que elas estavam tristes iguais a ele. No momento em que falei isso, foi como se ele tivesse acordado. Levantou, pegou o regador e começou a molhar as plantinhas. Ele foi melhorando junto com elas.”

Quando o STF extinguiu sua pena, em 2015, Genoino deixou a prisão domiciliar em Brasília e pôde voltar para São Paulo. Seu filho, Ronan, e seu genro Juan Miguel, marido de Miruna, foram buscá-lo de carro na capital federal. A família temia que ele pudesse ser hostilizado caso embarcasse num avião. Ao chegar no Butantã, o ex-deputado viu pela primeira vez o portão azul de ferro que sua família, traumatizada com o assédio da imprensa, havia instalado na entrada da casa. Assim como o sobrado, Genoino se fechou para o mundo. Convivia com algum grau de depressão, assunto sobre o qual evita falar até hoje. Pouco saía à rua. Falava com os amigos principalmente por telefone e passava seus dias em casa, entre o quarto de dormir e o pequeno escritório nos fundos do quintal. Nunca mais deu entrevistas. Sentiase traído sobretudo pela imprensa. 

“Quando eu saí da prisão na ditadura, em 1977, eu ficava assustado quando via um carro de polícia. Quando saí da prisão em 2015, ficava assustado quando via um carro de televisão”, disse Genoino em conversa com a piauí em sua casa, no final de abril. Ele frequentemente traça comparações entre as duas vezes em que foi preso. “Vivi duas guerras. A guerra da tortura começou no corpo e chegou na alma. A guerra do mensalão começou na alma e chegou no corpo.” Atribui ao estresse o aneurisma que sofreu em 2013. “Na ditadura, matavam a pessoa na tortura ou no desaparecimento. Na Justiça de exceção, matam pela reputação.” Ele guarda, numa mesma pasta, os alvarás de soltura de 1977 e 2015. 

Genoino é econômico ao falar dos traumas pessoais. “Talvez ele só se abra mesmo com a Rioco. E pus um talvez aí”, diz o jornalista Roberto Benevides, o Bené, seu amigo de infância do interior do Ceará que, como ele, se mudou para São Paulo ainda jovem. Genoino diz que viveu uma “situação-limite”, mas que nunca sucumbiu à depressão. Conta que, nos piores momentos da crise, teve pesadelos sobre a vida no Parlamento. Cenas desconexas, angustiantes. Ao ser indagado se os “pensamentos extremos” que relatou em 2006 eram suicidas, responde: “Não, não. O que eu pensava era sumir do mundo, me mudar pro interior do Ceará, do Brasil, me tornar um anônimo.” 

Miruna diz que os tempos de prisão domiciliar foram os mais duros para o pai. Foi o único momento em que o viu chorando. Genoino vivia aflito com a multa de 468 mil reais que tinha de pagar e não sabia como. Tinha medo de que tomassem a casa da família em São Paulo ou o apartamento de Ronan, seu filho, que ele ajudara a comprar. Miruna abriu uma vaquinha online para arrecadar recursos, e assim conseguiram pagar a fatura. Genoino foi contra a ideia. Temia que pudessem acusá-lo de alguma falcatrua. 

Vivia à beira da paranoia. No aniversário de 7 anos de sua neta Paula, Genoino não quis que a família pusesse balões e cama elástica na casa onde cumpria prisão domiciliar. “E se a imprensa vir isso? Meu Deus, se virem isso...”, dizia, preocupado que o acusassem de levar uma vida de farras. Estava sempre em estado de alerta, esperando que a qualquer momento aparecesse um jornalista ou um oficial de Justiça para “dar uma incerta” – isto é, conferir se ele estava cumprindo a prisão domiciliar. A aflição era tanta que ele conta ter ficado aliviado quando retornou à Papuda, em maio de 2014. “Não tem nada pior do que se sentir perseguido. Na prisão eu ficava mais tranquilo.” 

Parte dessa paranoia persiste até hoje. Genoino não usa cartão de crédito com receio de que seja clonado. Não se sente seguro para fazer compras online. “Quando ele recebe algum spam, fica desnorteado. Na hora já quer ligar para saber o que é, morre de medo”, conta Miruna. Nessas horas, Ronan, que cuida das finanças do pai, trata de acalmá-lo.


Ao receber a piauí em sua casa, uma das primeiras coisas que Genoino fez foi exibir uma pilha de papéis que havia colocado na mesinha de centro. “Aqui estão as minhas declarações de imposto de renda”, anunciou. “Não tenho fortuna, não tenho bens, não me formei e moro aqui desde 1984. Tenho um carro de 2009.” Depois do aneurisma em 2013, ele pediu aposentadoria por invalidez à Câmara dos Deputados, mas seu pedido foi negado após uma junta médica ter avaliado que sua saúde não o impedia de trabalhar. Por isso, em vez de receber a aposentadoria integral de deputado, hoje de 33,7 mil reais, Genoino aposentou-se por tempo de serviço. Recebe 25,2 mil reais brutos. 

Em seguida, Genoino pegou outra pilha sobre a mesa. “Aqui, os dois empréstimos bancários que assinei, do BMG e do Banco Rural, e que foram as únicas denúncias que me envolveram no mensalão.” Desde o início, o petista disse que assinou os empréstimos “em confiança de Delúbio”, o então tesoureiro do PT, e que nada sabia do esquema. Na época, a ideia do “eu não sabia” já nascia desmoralizada, mas, no caso de Genoino, não eram poucos os que, de fato, acreditavam que o petista assinara os documentos sem conhecimento do que se tratava. “Eu cuidava da parte política, das alianças, viajava pelos estados. Nunca tratei das finanças.” Delúbio Soares confirmou à Justiça que Genoino efetivamente não sabia de nada. “Fui condenado pelo que eu era, não pelo que eu fiz. Precisavam incluir o presidente do PT no processo pra dizer que era formação de quadrilha”, argumenta o ex-deputado. 

No STF, os réus do mensalão – Genoino entre eles – alegaram que o dinheiro operado por Marcos Valério era um mero caixa dois. Era um crime, mas já prescrito àquela altura. A tese, porém, não foi aceita pela maioria dos ministros. Para eles, assim como para a Procuradoria-Geral da República, tratava-se de uma organização criminosa que praticou atos de corrupção e lavagem de dinheiro. Genoino foi condenado pelos crimes de corrupção ativa e formação de quadrilha (deste último, foi inocentado pouco depois pelo STF). Na Justiça Federal de Minas Gerais, onde correu o processo do caso do empréstimo ao BMG, ele foi condenado por falsidade ideológica. Hoje, todos os processos contra o ex-deputado foram encerrados. 

Genoino sempre afirmou ser um preso político e comportou-se como tal. Ao sair de casa rumo à Polícia Federal, em 2013, manteve o punho em riste. Na Papuda, onde dividiu cela com Dirceu, Delúbio e Valdemar Costa Neto, combinou com os colegas de não colocarem as mãos para trás ao passarem pelo carcereiro ou por pessoas de fora. Um hábito dos tempos da ditadura. “Você tem que estabelecer um limite”, ele diz. “Porque quando você se humilha, você morre.” 

Assim como faz com Bolsonaro, Genoino se recusa a falar o nome de Joaquim Barbosa, o ex-ministro do STF. “Já tive a oportunidade de cruzar por aí com pessoas que me condenaram. Dei meiavolta pra não ter que cumprimentar”, diz ele. “Tu acha que vou cumprimentar quem fez isso comigo?” Não mudou de posição mesmo depois de Joaquim Barbosa ter anunciado que seu voto na eleição presidencial era para Lula.


No escritório nos fundos da casa, Genoino montou um museu da própria vida. As paredes são tomadas por molduras – algumas com fotos do ex-deputado discursando na Câmara ou fazendo campanha de rua, outras mostram caricaturas e charges acumuladas durante décadas de vida parlamentar. Nas prateleiras de livros, há fotos de família e pequenas esculturas. Uma imagem de Nossa Senhora Aparecida convive com um busto de Karl Marx. Em frente à janela, uma escrivaninha branca com uma luminária e um laptop. Numa gaveta, estão todas as cartas de solidariedade que recebeu nos últimos anos. 

Ali, encastelado, Genoino assistiu à derrocada do governo Dilma. Não participou dos atos em defesa da presidente. Discutia política apenas com um restrito grupo de amigos, quando o visitavam ou era convidado para a casa deles. De pouco em pouco, foi empreendendo aventuras maiores. “Ele participava de reuniões no diretório estadual do PT, mas pedia para não gravarem. Depois foi saindo da ‘semiclandestinidade’”, brincou o deputado federal Rui Falcão (PT-SP), numa conversa em seu gabinete, em julho. 

Os dois se aproximaram desde que Genoino retornou a São Paulo. Falcão considera que o colega foi “o mais injustiçado de todos” no escândalo do mensalão. “Ele não é organizador. É um propagandista e agitador incomparável. Mas presidente de partido tem que cuidar de burocracia, e ele não deu muita atenção a isso”, diz. É difícil achar quem hoje, no PT, não pense da mesma forma. “Ele foi escolhido como bode expiatório da esquerda”, opina Tarso Genro. “Aquela fantasia que a Globo criou em torno dele, como se ele fosse um repassador de cheques da corrupção, foi uma infâmia.” 

Antes de começar a campanha eleitoral, quando tinha uma rotina mais folgada, Falcão conversava com Genoino quase toda semana, e os dois trocavam dicas de leitura. Sempre se falam por telefone ou e-mail, já que Genoino não tem WhatsApp. “Sou ruim com isso. E olha que na Papuda fiz curso de informática como remissão de pena.” Falcão recomendou, e Genoino leu, O Alfaiate de Ulm, em que Lucio Magri analisa as razões que levaram à dissolução do Partido Comunista Italiano, do qual foi dirigente. 

Desde a prisão, Genoino se voltou para os livros. Tornou-se um estudante aplicado. Releu obras de Karl Marx, Rosa Luxemburgo, Nicos Poulantzas, Palmiro Togliatti e Antonio Gramsci. “Gramsci foi o mais importante para mim, porque ele inovou o pensamento da esquerda”, diz. Conheceu autores que nunca tinha lido, como Chantal Mouffe, Ernesto Laclau, Alysson Mascaro e David Harvey. À luz dessas leituras, passou a fazer uma análise crítica de sua trajetória. No fim das contas, acredita ter finalmente encontrado o equilíbrio no marxismo: “Compreendi que o caminho não é nem o dogmatismo, nem a diluição.” Em outras palavras: não é nem a guerrilha maoista, à qual aderiu sob a ditadura, nem a defesa ingênua da social-democracia, papel que assumiu como parlamentar por duas décadas. Sua bandeira é radicalizar a luta, com ampla mobilização de massas pelo triunfo do socialismo. 

A desilusão com a política institucional vinha fermentando na cabeça de Genoino desde 2005, em função do mensalão. Num primeiro momento, voltou suas energias contra o Judiciário. Firmou posição contrária à indicação do primeiro colocado na lista tríplice para a Procuradoria-Geral da República, coisa que o PT fez em todos os seus governos. “É uma mistura de ingenuidade e republicanismo achar que as instituições são neutras”, dizia. Mantém a mesma posição até hoje. Foi um dos únicos deputados a se posicionar contra a Lei da Ficha Limpa, que considerava ser “o suicídio da política e da democracia”. Foi voto vencido até no PT. O projeto foi sancionado por Lula em 2010. Na contramão da opinião pública, em pleno ano eleitoral de 2010, Genoino sofreu nova bateria de ataques por ter votado contra a Ficha Limpa. Atribui a isso o fato de não ter sido reeleito. 

O julgamento do mensalão e a prisão aceleraram a guinada à esquerda. “A primeira atitude do revolucionário é com preender. Como é que eu visitava a casa dos Marinho, do Bracher, e de uma hora pra outra virei o inimigo?”, diz ele, referindo-se à família dona da Globo e ao banqueiro Fernão Bracher, falecido em 2019. “Isso é expressão da luta de classes, pô!” Pouco tempo depois, Dilma talvez tenha se feito a mesma pergunta. “O jeito que o PSDB tratava a Dilma naquela época... eu era amigo do [José] Serra, pô. Era amigo do Aloysio Nunes. O que é isso? Fui tentar entender”, explica Genoino. 

A crise que culminou na derrubada do PT e, mais tarde, na prisão de Lula, era o empurrão que faltava para a radicalização de Genoino. “Ele teve uma inflexão grande”, atesta Falcão, que sempre militou à esquerda do PT e presidiu o partido de 2011 a 2017. O deputado atribui essa guinada, em parte, ao Sexto Congresso Nacional do PT, realizado em 2017 – o primeiro pós-impeachment. Na época, o partido fez um balanço crítico da experiência dos governos Lula e Dilma e recolocou o socialismo no horizonte político. 

Genoino explica da seguinte forma a sua nova posição política: “Por incrível que pareça, tirei uma lição em comum da experiência da guerrilha e do Parlamento: ou a gente organiza e mobiliza uma resistência popular, com enfrentamento, pressionando a burguesia, ou não vamos mudar esse país – nem através da ação armada, nem através da mera institucionalidade. Se o povo não entra na história, se você não aposta no enfrentamento, por mais maleável que você seja, na hora H os caras te cortam – como fizeram conosco. Eu acreditava que, por meio do diálogo, a classe dominante ia ceder, e o PT conseguiria fazer seu projeto de transformação. Foi uma visão equivocada.” 

Isso não significa que ele tenha perdido a fé no PT ou em Lula. “Não passa pela minha cabeça imaginar um processo de transformação do Brasil que não seja através do PT”, diz, categórico. Mas defende que o partido radicalize. Nas conversas recentes que teve com Lula, antes da eleição presidencial, Genoino diz ter dito ao ex-presidente o seguinte: “Lula, o Nelson Mandela entrou na cadeia como radical e saiu como grande negociador. No seu caso, tem que ser o contrário: você entrou na cadeia como grande negociador, tem que sair como radical.” Lula, sendo Lula, achou graça e desconversou.


A partir de 2016, Genoino começou a gravar conversas suas com Roberto Benevides, o Bené, e Sérgio Carvalho, seu assessor parlamentar por mais de vinte anos. Os dois conduziam durante horas uma espécie de entrevista informal, em que o petista refletia sobre suas escolhas políticas e os erros e acertos do PT. Foram vários encontros. Como Genoino não é dado à escrita, essa foi a forma que encontrou de registrar seus pensamentos. “Meu processo de elaboração é dialógico”, diz. As conversas estão sendo transformadas em livro por Bené, que assumiu o papel de ghost-writer do amigo. 

O título já foi definido: Do Encantado Eu Vim. Encantado é o nome do povoado onde Genoino nasceu, na zona rural de Quixeramobim, no semiárido do Ceará. O formato do livro foi inspirado nas obras do historiador britânico Tony Judt, em especial os livros Pensando o Século XX e O Século XX Esquecido, que Genoino leu durante a prisão domiciliar em Brasília. “Gostei porque ele narra a vida dele, mas não é exatamente uma autobiografia. Ele faz uma análise política e histórica”, diz. O novo livro não tem previsão de publicação. Certo é que ficará para o ano que vem, quando a situação política deverá estar mais nítida e ele então terá condições de amarrar melhor suas ideias. Bené é acionado toda hora para atualizar o texto. “O Genoino é um animal em ebulição”, comentou. 

Genoino formou um círculo de contatos com quem discute política. Além de Falcão e dos dois amigos, fazem parte dele os historiadores Valerio Arcary e Valter Pomar, líder da Articulação de Esquerda, tendência marxista do PT, os jornalistas Breno Altman e Celso Marcondes, a militante do Psol Andrea Caldas e o engenheiro Joaquim Soriano, líder da corrente Democracia Socialista, do PT. Genoino costuma falar com cada um deles ao menos uma vez por semana. “O homem é forte no telefone”, diz Arcary. 

A convite de Gustavo Codas, militante da Democracia Socialista que morreu de infarto em 2019, Genoino passou a frequentar uma roda de conversas sobre Estado e Forças Armadas na Fundação Perseu Abramo. “A gente chegava cedo e às vezes ficava duas, três horas conversando direto”, conta Soriano. Vizinho de Genoino, ele dava carona ao petista do Butantã até a sede da fundação, na Vila Mariana. No trajeto, que durava cerca de uma hora, o exdeputado se abria. “Ele falava com lágrimas nos olhos sobre o fim do PRC. Das pessoas que faziam parte do núcleo do partido, ele é o único que continua defendendo essas posições mais à esquerda. Ele viveu um processo de reflexão muito solitário.” 

Genoino também retomou paulatinamente a vida civil. Dizia para a família que queria se reconciliar com São Paulo, cidade que sempre adorou. “Lembro de os meus pais me contarem da primeira vez que foram ao cinema desde a prisão”, conta Miruna. Foi em 2016. Depois de algum tempo, Genoino tomou coragem de voltar a frequentar o Shopping Eldorado, em Pinheiros, onde há uma loja da qual ele é fã, especializada em canetas. Ele é um colecionador. Na mesma época, se matriculou numa academia. Passou a ser chamado para eventos, como um lanche coletivo com a turma da hidroginástica. 

Desde que saiu da prisão domiciliar, foram poucas as vezes em que foi hostilizado na rua. O único episódio do qual ele se lembra foi quando voltava de uma reunião com advogados de esquerda no Rio de Janeiro, em 2016, e foi xingado agressivamente por um homem no Aeroporto de Congonhas. Fazia poucos dias que Fernando Haddad (PT-SP) havia perdido a Prefeitura de São Paulo para João Doria (PSDB-SP), e o homem gritou: “Já derrubamos um, agora vamos derrubar os outros!” Kayano, sua mulher, recorda como esse tipo de hostilidade foi diminuindo. “Às vezes eu saía com o Genoino para fazer compras e, quando andava um pouco atrás dele, ouvia as pessoas fazerem comentários. Não tinham coragem de falar abertamente”, diz. “Às vezes revidei, às vezes deixei quieto. Mas isso foi parando de acontecer.”


A primeira vez que José Genoino apareceu diante de um grande público desde a prisão foi em novembro de 2019, no Sétimo Congresso Nacional do PT. Petistas de vários estados se reuniram na Casa de Portugal, no bairro da Liberdade, em São Paulo, e reelegeram Gleisi Hoffmann para a presidência do partido. Ela teve o apoio do ex-presidente Lula, de José Dirceu, de Aloizio Mercadante, de Tarso Genro e outros petistas históricos. De Genoino, não. 

No último dos três dias do evento, um domingo, Genoino pediu o microfone para falar. Subiu à tribuna e surpreendeu os presentes ao sair em defesa da candidatura do historiador Valter Pomar ao comando do PT. Filho de Wladimir Pomar, um dos fundadores do PT, e neto de Pedro Pomar, um dos fundadores do PCdoB, assassinado na ditadura, Valter vem de uma linhagem respeitada no partido. Mas, ali, ele representava um setor mais à esquerda que estava isolado e enfraquecido dentro do PT. 

“Em muitos momentos eu divergi do companheiro Valter Pomar”, introduziu Genoino. “Mas sempre tivemos uma relação de camaradagem e profundo respeito, porque o que nos unia era o objetivo do socialismo e da revolução.” Aplausos e gritos de apoio. Falou por catorze minutos. Disse que o país vivia uma “nova época histórica”, que o PT foi golpeado pelos seus acertos e, autocrítico, completou: “Mas temos que criar coragem de dizer que alguns erros contribuíram para a nossa derrota.” A fala provocou um mal-estar na cúpula do partido. Mercadante se viu obrigado a pedir a palavra em seguida e fazer a defesa de Gleisi Hoffmann. Valter recebeu apenas 11,67% dos votos dos delegados do partido. 

Para ele, era de se esperar que o alto escalão do PT ficasse desconfortável. “O Genoino fez a mesma opção que eles entre 1990 e 2005, sofreu o pão que o diabo amassou, teve a máxima dignidade, fez um balanço político e teórico a respeito, tirou as devidas consequências e passou a defender outra linha política. Já esse pessoal não tirou as devidas consequências e insiste desde então na mesma estratégia”, argumenta Valter. “Se você comparar o Dirceu com o Genoino, ficam claras as diferenças”, completa ele, referindo-se ao fato de que um reviu suas posições e o outro não. 

Genoino planejou a cena com antecedência. Em julho daquele ano de 2019, num evento menor do PT, afirmou que o Sétimo Congresso do partido seria “o mais importante” da história e deveria ser um congresso “do combate”. Elaborou com esmero o que falaria na tribuna. “Quando ele comentou que ia se pronunciar, eu perguntei: ‘Precisa mesmo?’”, conta Miruna, sua filha. “Porque com isso ele se expõe, acaba ficando mal na fita com a Gleisi e com outros nomes. Entendo a importância do gesto, mas às vezes é cansativo ser filha do mártir.” 

Miruna cita o fato de que, embora Genoino mantenha relação de amizade com Lula, não foi chamado para o casamento do ex-presidente, em maio. “Foi chato ver que o Alckmin foi convidado, ex-BBBs foram convidados, e meu pai não.” Indagado se isso havia lhe incomodado, Genoino respondeu: “De jeito nenhum. O Lula sabe que essas coisas sociais não são o meu forte.” 

Em dezembro do ano passado, o exdeputado foi convidado para o jantar que o Prerrogativas, grupo formado por juristas de inclinação progressista, promoveu no restaurante Figueira Rubaiyat, em São Paulo, para sedimentar a aliança Lula-Alckmin. Genoino não podia ir porque tinha uma viagem marcada, mas deixou claro que, mesmo que pudesse, não iria. Ele foi contrário à união com Alckmin desde o início. “Não me oponho a fazer aliança ao centro, mas isso tem que ser ponto de chegada, não ponto de partida”, diz. “Qual o programa da frente ampla? Ninguém sabe. O acordo tem que começar pelo programa de governo. A gente chegar e apontar: isso aqui para nós é inegociável. Vocês aceitam? Aí a gente conversa. Porque senão dá problema lá na frente.” 

Mas e do ponto de vista eleitoral? Alckmin não foi uma escolha estratégica? “Sempre defendi que a gente não fizesse uma campanha água com açúcar. Para não perder o discurso antissistema. O desencanto pela política você só enfrenta se transformar a política em algo apaixonante”, responde Genoino. “Não estou fazendo um desabafo juvenil. Vivi isso intensamente, porra. A direita esfola, oprime a gente, e a gente tem que pedir desculpa por existir? Ah, não dá, né, meu!”, disse, soltando uma risada. Parou um pouco e retomou o raciocínio. “O Lula falou esses dias uma palavra: harmonia. Eu quero conflito. É isso que eu quero.” Bateu na mesa. “Sem conflito, os caras não cedem.”


Todo dia útil, às seis da manhã, Genoino tira o Sandero 2009 da garagem para levar o neto Luiz Miguel, de 14 anos, para a escola. Uma vez por semana, leva-o também para o treino de handebol. Quando a neta Paula, de 15, vai à casa de uma amiga assistir a seriados como Stranger Things, é o avô quem a transporta. A avó, Rioco Kayano, não sabe dirigir. “Outro dia ele não pôde levar meu filho no handebol e ficou superpreocupado”, diz Miruna. “Ele está fazendo por eles as coisas que não conseguiu fazer por mim e pelo meu irmão.” 

Desde que manifestou publicamente sua nova posição política, mais à esquerda e mais radical, Genoino tem sido requisitado. Na primeira semana de setembro, sua rotina foi a seguinte: de quinta a sábado, corpo a corpo em Curitiba pedindo votos para sua amiga Andrea Caldas, candidata a deputada federal pelo Psol, e para o petista Roberto Requião, candidato ao governo do Paraná (nenhum dos dois se elegeu); domingo, live comentando o noticiário com jornalistas do Diário do Centro do Mundo; segunda-feira, debate online com um professor de economia sobre as Forças Armadas e o risco de golpe; terça-feira, live sobre o cenário eleitoral no canal de YouTube da revista Fórum; quarta-feira, live comentando o Sete de Setembro com o advogado Marco Aurélio de Carvalho, do Grupo Prerrogativas. Antes da eleição, sempre que estava na rua em São Paulo, distribuía a quem encontrasse panfletos das campanhas de Lula e de Rui Falcão (que se elegeu deputado federal). 

Na pandemia, em que viveu completamente isolado – por ser idoso e cardíaco, é do grupo de alto risco –, Genoino mergulhou de cabeça nas lives. Com Rui Falcão, Valter Pomar e outros correligionários, participou da criação do Manifesto Petista, um grupo de debates em defesa do socialismo que faz duas transmissões semanais de análise da conjuntura. Dentro do PT, além da campanha de Falcão e de Requião, Genoino contribuiu com a candidatura a deputado de Wadih Damous (que conseguiu uma suplência). Segundo Falcão, Genoino ajudava “do jeito dele”. “Se eu pedir metade da aposentadoria dele pra campanha, ele me dá. Mas não peça pra organizar um evento.” 

Numa chamada de vídeo meses atrás, o ex-presidente Lula perguntou informalmente a Genoino se não gostaria ele próprio de se candidatar a deputado. “Estou sem instinto político, e quero experimentar fazer política sem mandato”, respondeu Genoino, segundo ele próprio se recorda. Disse, além disso, que não sabia se poderia ser candidato, devido ao fato de ter sido condenado pelo STF, e não estava interessado em comprar essa briga jurídica. Pela Lei da Ficha Limpa, condenados que transitaram em julgado ficam inelegíveis por oito anos após o cumprimento da pena – no caso de Genoino, esse prazo termina em março de 2023. 

Bené acha que, por trás da decisão, está uma mágoa que Genoino guarda em relação ao PT e a Lula desde o mensalão. “Ele acha que deveria ter sido defendido pelo partido, e sente que não foi.” Genoino desconversa. “Eu tenho memória, sim. Mágoa, não.” Sobre a possibilidade de se candidatar numa eleição futura, quando terá expirado o prazo da Ficha Limpa, ele diz: “Com a visão que tenho hoje, não está nos meus planos participar da disputa institucional. Mas não vou decretar nada agora.” 

O petista evoca sempre uma lição que aprendeu com a amiga psicóloga que o ajudou em 2005, no auge da crise do mensalão: “Ela me disse: ‘Genoino, você tá no fio da navalha. Você não pode viver sem a política, mas tem que encontrar novos caminhos dentro dela. Se livre dos adereços, da formalidade, do paramento, e viva como o José Genoino militante de esquerda, com seus ideais.’ É isso que estou fazendo agora. Não quero disputar a institucionalidade, nem ter cargo. Quero ser um propagador de causas”, diz. “Cheguei à seguinte conclusão: o capitalismo não me cabe. O lucro, a competição, a selvageria não me cabem. Quero ser um rebelde desse sistema.”

Em dezembro do ano passado, Genoino passou dez dias na casa da mãe, no vilarejo de Encantado, em Quixeramobim. Desde que saiu de lá, no começo dos anos 1960, foi a primeira vez que voltou sozinho, sem mulher, sem filhos, sem assessores. Reencontrou-se com os irmãos que não via há anos. Genoino é o mais velho de onze filhos – três moram em Encantado, quatro em Fortaleza, dois em São Paulo, e um já morreu. A mãe, que fez 97 anos em setembro, por vezes reconhece o primogênito, por vezes não. 

Genoino sempre teve uma relação mal resolvida com suas origens. Não gostava de Encantado e da vida rural, que considerava limitante. Dizia se sentir oprimido por aquele ambiente. Mais tarde, como político, passou a se sentir constrangido. Percebia na família uma pressão para que ajudasse financeiramente os irmãos e arrumasse emprego para parentes. Ele sempre recorda uma das últimas conversas que teve com o pai, pouco depois de ter renunciado à presidência do PT, em 2005: “Ele disse assim: ‘Meu filho, tem quatro coisas que não entendi até agora. Primeiro, você queria ser doutor e a política o tirou da universidade. Segundo, você não queria trabalhar na roça, mas depois voltou pra roça pra fazer essa tal de guerrilha. Terceiro, você foi preso, achei que ia morrer, saiu da cadeia, virou deputado famoso e não ficou rico. Quarto, vocês ganharam a questão contra o governo [ou seja: venceram uma eleição e viraram governo] e você tá nessa situação?’” 

O pai, um camponês analfabeto, morreu em 2016, aos 96 anos. Genoino o visitou alguns meses antes, mas o pai já estava bastante mal de saúde. “A morte dele me marcou muito. Ele me reconheceu, mas já não estava consciente. Eu queria muito ter conversado com ele.” A viagem dessa vez foi uma espécie de reconciliação. “Fui sozinho, sem adereço, sem farda, sem paletó. Bicho, não sou autoridade, não sou personalidade, não quero mais isso. Fui como José Genoino e ponto. Eles entenderam. Dormi na casa onde nasci, comi as comidas de lá. Ouvi as músicas deles, encontrei um primo da minha idade que trabalha na roça”, diz Genoino. “Fiz a viagem como se estivesse lendo Cem Anos de Solidão.” 

Ao retornar para São Paulo, estava contentíssimo. Contou histórias da infância que nunca tinha contado. Falou sobre cantorias em torno de uma fogueira e as sobrinhas que conheceu. “Aquilo reverberou na cabeça dele durante muito tempo”, diz Kayano. “Essa volta para a terra dele, a convivência com a família, completou o processo de reconciliação que ele viveu. Eu vejo assim. O Gê retomou a identidade originária dele.”

29 de novembro de 2022

Lula articula base no Congresso com MDB, União Brasil e PSD

Presidente eleito tem reuniões com líderes dos três partidos em meio a negociações da PEC da Transição

Julia Chaib, Catia Seabra, Renato Machado, Marianna Holanda, Thaísa Oliveira

Folha de S.Paulo

O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) entrou de vez em campo para articular a formação da base de partidos que dará sustentação ao seu governo na Câmara e no Senado.

Na noite de segunda-feira (28), o petista se reuniu com representantes do MDB e, nesta terça (29), com líderes da União Brasil. Nos encontros, Lula convidou ambas as siglas para fazerem parte de sua base no Congresso. Ele também acrescentou que quer que o PSD faça parte do grupo.

O presidente eleito deve se reunir com o PSD ainda nesta terça para tratar do tema. Se confirmada a aliança, esses partidos se somariam às principais legendas que integraram a coligação de Lula nas eleições: Rede, PV, PSB e PC do B.

Segundo aliados, a prioridade número um do presidente eleito é articular a formação de blocos no Congresso e garantir a aprovação da PEC da Transição em ambas as casas em dezembro. Em outra frente, o presidente eleito já arma o time que defenderá suas propostas no Parlamento.

O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e seu vice, Geraldo Alckmin (PSB), visitam o presidente da Câmara, Arthur Lira - Pedro Ladeira-9.nov.22/Folhapress

Senadores, sobretudo, esperavam esse gesto por parte do presidente eleito para destravar a negociação da PEC. Num analogia, diziam que era preciso que o dono da bola a colocasse em campo para conseguir negociar, numa referência à necessidade de Lula chamá-los a contribuir e fazer parte do governo.

Nas reuniões desta semana não foram discutidos espaços em ministérios, mas a expectativa de integrantes dos partidos cobiçados é que esse seja um dos temas dos próximos encontros.

Lula deverá ter ainda esta semana encontros com os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

Pessoas próximas de Lula dizem que é importante para o governo eleito conseguir garantir a aprovação de uma proposta que abra espaço robusto para investimentos, além de assegurar a manutenção do pagamento de R$ 600 do Auxílio Brasil —que voltará a se chamar Bolsa Família— e outros programas.

Caso consiga a aprovação da PEC, o petista largaria numa situação orçamentária mais confortável, o que o tornaria menos refém do Congresso.

Do lado petista, têm participado dos encontros o senador Jaques Wagner (PT-BA), a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, o deputado José Guimarães (PT-CE), além do ex-prefeito Fernando Haddad (PT-SP), cotado para chefiar o Ministério da Fazenda.

Para formar a base, Lula quer que os partidos integrem blocos formais no Senado e na Câmara. No Senado, o cenário é mais fácil de se concretizar, já que Rodrigo Pacheco tem dialogado bem com o PT desde antes da eleição e não se opõe a essa configuração.

Além disso, o senador Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), presidente da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), tem sinalizado querer ocupar a liderança do governo no Senado ou pavimentar o caminho para suceder Pacheco no comando da Casa legislativa.

Já o MDB tende a ser o partido mais próximo de Lula entre os três que estão sendo cobiçados. Terceira colocada na eleição presidencial, a senadora Simone Tebet (MDB-MS) teve papel central no segundo turno do pleito e é cotada para assumir um ministério.

Na Câmara, a perspectiva é mais nebulosa. PSD, União Brasil e MDB vão apoiar a reeleição de Arthur Lira (PP-AL) na presidência da Casa, assim como o PT. Os três partidos, no entanto, têm negociado ingressar no bloco de Lira para angariar espaços na mesa diretora.

Até agora, o MDB foi o único que sinalizou topar ingressar agora num bloco com o PT voltado a formar a base, mas também voltado a eleger Lira. As outras duas legendas têm resistências a se juntar ao PT neste momento.

De acordo com pessoas que acompanham as negociações, Gleisi convidou a União Brasil a integrar o bloco na Câmara durante uma reunião com Alcolumbre e o líder do partido na Casa, deputado Elmar Nascimento (União Brasil-BA) —mas abriu a possibilidade de isso ocorrer formalmente somente após a eleição de Lira.

A avaliação tanto de petistas como de integrantes de partidos aliados é que houve erros na condução da articulação da PEC da Transição, que acabaram por fortalecer Lira e Pacheco antes mesmo de Lula tomar posse.

A leitura é que houve uma antecipação no processo de escolha dos presidentes das Casas, algo que só deveria ocorrer após a formação do bloco da base do governo —que está sendo costurada agora.

Diego Maradona amava Nápoles - e ela o amava de volta

Nos bairros operários de Nápoles, Diego Maradona era mais do que a estrela do time local. Ele era um filho da favela que queria "colocar seis gols no chefe" - e defendia a dignidade de sua cidade.

Maurizio Coppola e Giuliano Granato

Jacobin

Diego Maradona em ação durante uma partida de eliminaórias para a Copa do Mundo da FIFA de 1986 contra o Peru em 23 de junho de 1985 em Lima. (David Cannon / Getty Images)

Tradução / 16 de setembro de 1984 foi o dia em que Diego Armando Maradona descobriu como algumas partes da população italiana se sentiam em relação a Nápoles. Neste primeiro dia de jogo da temporada 1984-85, seu novo clube Napoli jogava fora de casa em Verona – lar de Romeu e Julieta, mas também um centro do “milagre econômico” do pós-guerra da Itália.

Fazendo sua estreia na Série A, Diego imediatamente percebeu no que tinha se metido: “Eles nos saudaram com uma faixa que me ajudou a entender imediatamente que a batalha que o Napoli enfrentou não era apenas sobre futebol; ‘Bem-vindo à Itália’, dizia ele. Era Norte contra Sul – os racistas contra os pobres”.

A Lega Nord – o partido hoje liderado por Matteo Salvini, que fez seu nome com seu racismo contra o Sul – surgiria apenas alguns anos mais tarde. Mas nos estádios do Norte da Itália, era uma tradição estabelecida receber o maior clube do Sul com bandeiras elogiando o Monte Vesúvio – e cantos chamando Nápoles de cidade de “cólera” cujos moradores “precisavam de um banho”.

Nápoles, anos 1980

Na verdade, para muitos italianos, Nápoles era o lar de doenças e desastres naturais. A cidade ainda não havia se livrado da imagem que tinha vindo com um surto de cólera em 1973, e depois de um terremoto em 1980. Esta epidemia havia matado dezenas de pessoas – não exatamente um número catastrófico de mortos. No entanto, esta permaneceria uma página essencial tanto na história napolitana quanto na italiana.

O surto que atingiu a cidade foi um pesadelo impensável que havia se tornado realidade. Uma doença que a maioria imaginava ter sido relegada aos cantos mais pobres e atrasados da Terra estava se espalhando no coração do próspero Ocidente – de fato, em uma de suas cidades mais densamente povoadas. Isto mostrava as contradições do crescimento econômico italiano do pós-guerra, dificilmente uma única história nacional.

Mas também lançou luz sobre as vielas de Nápoles e seus vilarejos – as minúsculas habitações urbanas onde famílias inteiras estavam reunidas na mesma sala. Nos anos 2000, tudo isso seria vendido aos turistas como parte do charme da cidade; mas naquela época, simbolizava as condições pouco higiênicas em que vivia a maioria dos napolitanos. Estas ruas se assemelhavam menos a uma metrópole ocidental rica do que às misérias das favelas da Argentina – um pouco como a Villa Fiorita onde Diego havia nascido em 30 de outubro de 1960.

Nápoles tinha alguma indústria – mas quando Maradona chegou em 1984, estas também estavam mostrando sinais de crise. Era o caso da siderúrgica Italsider no distrito de Bagnoli, na periferia oeste da cidade. Esta grande fábrica estabelecida no início do século XX fecharia seus portões para sempre apenas alguns anos após a partida do número 10.

Em suma, Nápoles era uma cidade assolada pelo desemprego, pelo comércio ilícito de cigarros, mas também pela crescente disseminação de heroína e seringas espalhadas por suas calçadas. Uma cidade onde a maior parte dos jornalistas mortos pela camorra noticiaram as intrigas entre mafiosos, políticos e empresários; uma cidade de guerra de clãs e assassinatos nas ruas. Uma cidade que mais foi descrita como um inferno sem esperança; uma cidade que milhares de migrantes saem todos os anos, para procurar trabalho nas fábricas do norte da Itália, França ou Alemanha.

Diego, o redentor

AAlemanha também seria, como aconteceu, anfitriã do único triunfo internacional do Napoli. Em 17 de maio de 1989, o time estava em Stuttgart para a partida de volta da final da Copa da UEFA. O Azzurri havia vencido a partida em casa no Stadio San Paolo por 2×1, com gols de Maradona e Careca. O artilheiro adversário, Maurizio Gaudino, era natural de Brühl, na Alemanha Ocidental, mas também filho de dois imigrantes da Campânia (região em torno de Nápoles) que tinham ido para lá para trabalhar.

Cerca de 30.000 dos 67.000 presentes no Neckarstadion para a segunda etapa eram italianos. Trabalhadores de colarinho azul na Porsche, Daimler, Bosch ou IBM, eles também tinham deixado para trás a pobreza e a absoluta falta de futuro do sul da Itália – partido ao longo de um verdadeiro “caminho de esperança”, assim como os pais de Gaudino haviam feito.

Seus pais eram provavelmente os únicos dois italianos no estádio torcendo pela VfB Stuttgart naquela noite. Quando o apito final soou – encerrando em 3-3, e assim uma vitória agregada para Napoli – todos os outros estavam comemorando. Não se tratava apenas de um jogo. Era também orgulho – e a certeza que no dia seguinte eles podiam passar pelos portões da fábrica de cabeça erguida.

Este orgulho veio com o riscatto – redenção, mas também libertação. Se você perguntar à maioria dos sulistas de hoje o que o número 10 representou para eles, essa é a palavra que eles usariam. Os napolitanos diriam ci ha levato gli schiaffi da faccia – ao pé da letra, “ele tirou os tapas do nosso rosto”. Algo fisicamente impossível, mas que devemos levar em conta figurativamente: ele nos libertou dos insultos que enfrentamos, nos redimiu, conseguiu nossa vingança sobre aqueles que nos fizeram mal.

Um mural de Maradona em Nápoles. (Wikimedia Commons)

Colocando o chefe para trás

Se quiséssemos fazer isso, então não haveria rival maior que a Juventus – e não apenas porque é o clube italiano que possui mais dinheiro. Juve é propriedade dos Agnellis, a família mais importante do capitalismo do norte da Itália e os proprietários da FIAT de Turim (hoje, Fiat Chrysler Automobiles). A partir dos anos 1950, milhares e milhares de calabrianos, sicilianos e napolitanos trabalharam nas fábricas da FIAT em Mirafiori.

Em 3 de novembro de 1985, a Juve chegou a San Paolo, em Nápoles. Recebeu um pontapé livre na caixa, com a parede do clube de Turim a apenas cinco metros de distância. Os jogadores do Napoli protestaram contra o árbitro, mas ele não os fez recuar. Maradona disse a um colega do time: “Eu vou chutar de qualquer maneira, ainda vou marcar”. Ele fez.

No Napoli, Diego venceu muitas vezes a Juve. Ele mesmo disse ao cineasta Emir Kusturica o que isso significava para Nápoles: “Havia a sensação de que o Sul não conseguia vencer o Norte. Nós jogamos contra o Juventus em Turim e marcamos seis. Você sabe o que significa quando um clube do Sul põe seis para além de Agnelli!”

Para muitos napolitanos – e para muitos sulistas – vencer a Juventus significava vencer o Norte, que por sua vez significava vencer os ricos. Como quando o Napoli ganhou o título da Série A em 1989-1990, derrotando o AC Milan, o clube de propriedade de uma estrela em ascensão do capitalismo italiano chamado Silvio Berlusconi. Logo em seguida, uma bandeira muito significativa apareceu em Nápoles: “O rico Berlusconi agora chora também”.

Qualquer um que tente captar a reação dos últimos dias, totalizando metas e títulos como um contador, não entendeu nada sobre a relação de Diego com os napolitanos. A contabilidade foi, no entanto, o que inspirou Corrado Ferlaino, presidente do clube na era Maradona. Quando o jogador conhecido como o pibe de oro (“menino de ouro”) procurou organizar uma partida beneficente para apoiar um menino cuja família não podia pagar por uma operação médica, Ferlaino rejeitou a ideia com raiva.

Diego desafiou a oposição de Ferlaino – ele pagou do próprio bolso e convenceu seus companheiros de equipe a ajudarem. Isto fazia sentido: afinal, quando ele chegou ao clube em julho de 1984, Maradona havia dito: “Eu quero me tornar o ideal para as crianças pobres de Nápoles, porque elas são exatamente como eu era em Buenos Aires”. A partida foi jogada em um campo lamacento; Maradona e seus companheiros se aqueceram no estacionamento entre os carros e os ciclomotores. Vinte milhões de liras foram levantadas, permitindo que a partida fosse adiante.

Este é um episódio mínimo na carreira de um esportista – mas não na vida de um homem. E em Nápoles, o cebollita da Villa Fiorita não era apenas Maradona, o maior jogador de futebol da história. Ele também era Diego, o ser humano – frágil, sorridente, inconstante, um viciado em cocaína, um mulherengo, um altruísta.

Diego é o povo

Diego Armando Maradona, como atleta e como homem, era fundamentalmente de dois lados, uma contradição ambulante. E o povo de Nápoles se identificou com ele como nenhum outro na história recente. Nenhum atleta ou político foi capaz de construir tal conexão com o povo como Diego o fez.

O notável, no entanto, é que esta identificação não se baseia apenas em vê-lo em ação. Em 1991, os vestígios de cocaína encontrados em sua amostra de urina para um teste de drogas o forçaram a fugir do país. Mas a identificação com Diego se manteve firme, mesmo nos napolitanos nascidos após essa data.

Sem dúvida, alguns testemunharam mais tarde suas façanhas em vídeo ou, mais recentemente, online. Mas mesmo os napolitanos que nunca o viram jogar, seu “gol do século”, a bola sob seus pés ou a “mão de Deus” – na verdade, mesmo aqueles que não entendem ou gostam de futebol – reconhecem Diego como um dos seus, um símbolo.

Em sua pessoa viva, como um humano imperfeito, irregular e áspero, Diego encarnou seu povo sem nunca procurar “representá-lo”. Mas nisto, ele também se livrou de seu caráter estritamente “nacional”. Vimos isso durante a Copa do Mundo de 1990, realizada na Itália. Em uma ironia da história, a semifinal contra a Itália foi disputada no San Paolo – “sua” terra natal, diante da “sua” multidão.

Milhares de napolitanos ficaram arrasados – que país eles deveriam apoiar? A maioria escolheu a nacionalidade em seus passaportes. Mas muitos escolheram o outro lado e Diego – quer eles mantivessem o silêncio, quer se vangloriassem disso. Ele havia dito antes do jogo: “Acho de mau gosto exigir que os napolitanos sejam italianos por uma noite após 364 dias por ano são tratados como terroni” – a palavra desdenhosa para os sulistas atrasados e rústicos. Para muitos, seu amor pelo homem que tinha trazido dignidade, orgulho e vitória a Nápoles veio primeiro.

Não só Nápoles

Hoje, as pessoas em toda a Pátria Grande – uma América Latina que ele defendeu e ganhou respeito em campo – estão de luto por Maradona. 48 horas após sua morte, um mural retratando-o até mesmo apareceu em meio às ruínas do Idlib, em uma Síria devastada por anos de guerra. Ao redor do mundo, as pessoas podiam falar umas com as outras na língua franca de seu nome: uma língua que abraçava seu esporte, seu espírito de rebelião e, de fato, a aspereza com que ele falava aos jornalistas e aos poderosos – algo que grande parte da humanidade silenciosamente deseja que eles também pudessem fazer.

Mas a efusão de emoções nos últimos dias também provoca um grande perigo, justamente por ser tão unânime. Há sinais de uma espécie de “polimento” da imagem de Maradona, idolatrada até mesmo por aqueles que eram de fato seus inimigos constantes. O aparente “respeito” pelos recém falecidos também corre o risco de se esgueirar em uma tentativa de neutralizar, tirando dele os elementos que os círculos mais “íntegros” consideram prejudiciais. Ao marginalizar e estigmatizar essas partes da história, o que corre o risco de desaparecer é o Diego “do povo” com todas as contradições que ele encarna – ao invés disso, tornando-o uma espécie de figura santa, mais útil para a comercialização e venda de produtos.

Como disse ao jornalista Gianni Minà em uma maravilhosa entrevista de 1988, isto foi algo que ele lutou desde o início de sua carreira no futebol: abrir mão de seus elementos imperfeitos mataria sua alma. E sua alma era a de um homem do povo, poderoso mas falível, como os gregos. Transformá-lo em apenas mais uma estátua só o vai neutralizar o que ele representava. Mas o que devemos manter vivo é a dialética que se moveu nele – sua chama ardente de humanidade.

Colaboradores

Maurizio Coppola trabalha como jornalista freelancer, tradutor e intérprete. Ele é membro do Potere al Popolo e mora em Nápoles.

Giuliano Granato é um trabalhador de Nápoles, demitido por seu ativismo sindical. Ele é o coordenador nacional do Potere al Popolo.

Lula tenta driblar insubordinação de chefes militares

Decisão de adiantar mudança de comando obriga petista a acelerar transição na Defesa

Igor Gielow

Folha de S.Paulo

A decisão conjunta dos comandantes das Forças Armadas de deixar o cargo antes do fim do ano obrigou o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a acelerar a indicação de um novo ministro da Defesa para driblar uma crise militar logo no começo de seu governo.

Nas avaliação de dois ex-ministros da pasta, o anúncio extraoficial de que Marco Antônio Freire Gomes (Exército), Carlos de Almeida Baptista Junior (Força Aérea) e Almir Garnier (Marinha) vão deixar seus comandos na última quinzena de dezembro equivale a uma declaração de insubordinação.

O comandante do Exército, Feire Gomes, presta continência a Bolsonaro em evento na Academia Militar das Agulhas Negras, no Rio - Tércio Teixeira - 26.nov.2022/AFP

A intenção foi revelada na semana passada pelo jornal O Estado de S. Paulo, e confirmada pela Folha. A decisão foi combinada com Jair Bolsonaro (PL), durante um dos encontros dos comandantes com o presidente, que só deixou a depressão pós-derrota para ir a um evento militar no qual entrou mudo e saiu calado, no sábado (26).

Para os dois ocupantes da Defesa, de governos diferentes, os chefes militares sinalizaram para a tropa que não aceitam integralmente a autoridade de Lula. Por óbvio, isso não é um golpe, mas abre um precedente perigoso nos escalões inferiores.

Um oficial-general da cúpula militar relativiza a situação, dizendo que na verdade o gesto dos comandantes visou facilitar a transição: os novos chefes seriam indicados por Lula, ainda que a caneta de sua nomeação fosse a de Bolsonaro.

É a essa visão que o time petista se agarrou. Não bastassem as dificuldades no relacionamento com o mercado, agitado pelas declarações pouco responsáveis do ponto de vista fiscal de Lula e a pela perspectiva de ver Fernando Haddad (PT) liderando a economia, o eleito se viu obrigado a manobrar no espinhoso campo fardado.

A indicação do ex-deputado e ex-ministro do Tribunal de Contas da União José Múcio Monteiro para a Defesa é dada como certa nos meios militares. O político foi incluído no time de transição e participou de uma primeira reunião nesta segunda (28).

Múcio é visto como habilidoso por oficiais-generais, ainda que sem experiência nas especificidades da pasta. O mais importante, na visão desses fardados, é que ele não é um petista raiz como Jaques Wagner, ex-titular da Defesa que era o preferido no PT para o posto.

Se ele for mesmo anunciado na semana que vem, deverá escolher os novos comandantes e trazer para si a paternidade da indicação. Os favoritos, na linha de evitar marola política, são os mais antigos oficiais-generais de cada Força: Julio César de Arruda no Exército, Marcelo Kanitz Damasceno na FAB e Aguiar Freire, na Marinha.

Ainda que a saída Múcio evite um agravamento do mal-estar entre militares e Lula, ele permanecerá. Como escreveu em livro-depoimento o mais influente comandante militar desde a redemocratização, o ex-chefe do Exército Eduardo Villas Bôas, o PT virou o alvo preferencial de boa parte do estamento fardado.

Contribuíram para isso tanto as revelações de corrupção da Operação Lava Jato quanto a insatisfação institucional com o governo Dilma Rousseff (PT), que promoveu a Comissão da Verdade para apurar os crimes da ditadura de 1964 sem incluir o que os militares chamam de "outro lado" —as ações da luta armada contra o regime.

Houve também a cooptação promovida por Bolsonaro, visto como um militar medíocre e manipulável por importantes generais da reserva que aderiram à sua candidatura.

No poder, o segundo aspecto mostrou-se um erro de avaliação, compensado por uma série de benesses: a integração de oficiais-generais à administração, a implantação de um protelado plano de carreira e a criação de uma reforma previdenciária favorável. A militarização da Esplanada está com os dias contados.

Há também o fator político puro, encarnado nos protestos de bolsonaristas pedindo um golpe militar para evitar a posse de Lula na frente de quartéis pelo Brasil. Se reclamar da derrota é do jogo, incitar crime tipificado não é, mas ainda assim os três comandantes militares divulgaram uma nota conjunta no dia 11 defendendo o que seria o caráter pacífico dos atos e criticando indiretamente o Judiciário.

Além do antipetismo, outro traço que a cúpula fardada compartilha com o bolsonarismo é a desconfiança das altas cortes, vistas como ativistas, Tribunal Superior Eleitoral à frente. A nota foi criticada pela presidente do PT, Gleisi Hoffmann, o que ajudou a azedar o clima.

Ele nunca foi bom nos anos recentes: desde que Villas Bôas, pai da doutrina que normalizou a volta dos militares à política, ameaçou o Supremo na véspera da votação de um habeas corpus que poderia ter evitado os 580 dias de prisão de Lula, em 2018, não há interlocução decente entre o petista e os militares.

No ano passado, quando recuperou seus direitos políticos, Lula até enviou emissários para tentar estabelecer um diálogo por meio de generais da reserva. Deu com a cara na porta, até porque Bolsonaro proibiu qualquer conversa de setores da ativa com o petista.

A cúpula atual, herdeira da crise militar em que o presidente demitiu ministro da Defesa e os três comandantes em 2021, até sinalizou a normalidade institucional para Lula no começo deste ano: o chefe da FAB, em entrevista à Folha, até reforçou a obviedade de que prestaria continência ao petista, se eleito.

Só que o acirramento dos ânimos, ampliado com o apoio da Defesa à campanha golpista contra as urnas eletrônicas de Bolsonaro, não abriu canais. Tanto é assim que não haverá grupo do setor de fato na transição de governo. Lula sacou dois ex-comandantes de sua gestão, Enzo Peri (Exército) e Juniti Saito (FAB), além do general Gonçalves Dias, que foi seu chefe de segurança no Planalto e segue na função fora dele, apenas para lustrar as conversas.

28 de novembro de 2022

PEC da Transição é protocolada com Bolsa Família fora do teto por 4 anos, mas PT admite negociar

Marcelo Castro disse que proposta inicial, que previa tempo indeterminado, foi revista devido a "muitas reações"

Idiana Tomazelli, Thaísa Oliveira, Danielle Brant e Marianna Holanda

Folha de S.Paulo

O senador Marcelo Castro (MDB-PI) protocolou nesta segunda-feira (28) o texto da PEC (proposta de Emenda à Constituição) da Transição, que autoriza o governo do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a excluir as despesas com o programa Bolsa Família do teto de gastos por um período de quatro anos.

O texto também prevê a realização de investimentos fora do limite em caso de arrecadação de receitas extraordinárias. Na prática, a proposta não tem um valor específico para essas despesas, mas estimativas do próprio PT apontam para um gasto extrateto de até R$ 198 bilhões com a PEC.

A medida é negociada pelo governo eleito para conseguir manter o benefício mínimo de R$ 600 do Bolsa Família a partir de 1º de janeiro, instituir o pagamento adicional de R$ 150 por criança de até seis anos e honrar outros compromissos de campanha do petista, como a valorização do salário mínimo e a retomada de investimentos.

Senador Marcelo Castro e vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, em reunião no Congresso - Adriano Machado - 16.nov.2022/Reuters

Apesar de o texto apresentado prever a retirada do Bolsa Família do teto de gastos por quatro anos, integrantes da equipe de transição já admitem negociar uma série de pontos para chegar a uma proposta de maior consenso no Parlamento.

Como mostrou a Folha, o PT discute fixar no texto da PEC da Transição o limite exato para gastos extras no ano de 2023 para ampliar o Bolsa Família e recompor o Orçamento do ano que vem. O formato é defendido por alguns parlamentares e também tem a simpatia do grupo de economia na transição.

A referência atual para esse valor é o cálculo de R$ 150 bilhões feito pelo time da transição como indicativo da margem de expansão das despesas para igualar o que deve ser gasto em 2022, último ano da administração de Jair Bolsonaro (PL).

Um gasto adicional de R$ 150 bilhões manteria constante a relação entre despesa e PIB (Produto Interno Bruto), medida usada para avaliar a dimensão das políticas públicas em comparação ao tamanho da economia. A conta atual é de que a relação despesa/PIB deve ficar em 19% neste ano, enquanto o Orçamento de 2023 foi enviado originalmente com 17,6%.

Outro ponto em negociação é o prazo de duração das medidas excepcionais. Como mostrou a Folha, a cúpula do Congresso indicou que a PEC só tem chances de ser aprovada com validade de dois anos, e interlocutores do governo eleito também admitem ceder nesse ponto.

Castro, que também é relator do Orçamento de 2023, afirmou nesta segunda que "tudo isso vai ser fruto de intensas negociações" e que a proposta inicial, que não estipulava prazo para a exclusão de despesas do teto, foi revista "devido a muitas reações" do Congresso.

"O que está sendo proposto é o prazo de quatro anos. Inicialmente havia a ideia de ser perene a excepcionalização do teto de gastos do Bolsa Família, mas, devido a muitas reações que houve, chegou-se à proposta de quatro anos", declarou na chegada ao CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil), sede da transição.

"É claro que tudo isso vai ser fruto de intensas negociações, e quem cobre o Congresso Nacional sabe que dificilmente uma matéria entra no Congresso e sai da mesma maneira", disse. "Nós combinamos com líderes que nós daríamos entrada e, à medida que a PEC for tramitando na Comissão de Constituição e Justiça, nós vamos então buscando um texto comum."

O líder do PT no Senado, Paulo Rocha (PT-PA), também disse nesta segunda que o PT está "disposto a conversar". "A PEC vem com a proposta de quatro anos, e nós estamos dispostos a buscar a mediação. O Lula está tomando essas iniciativas, inclusive de vir conversar, para valorizar a boa política e o Parlamento brasileiro", afirmou.

"Fato é que nós dissemos com todas as letras que um ano não era possível, que isso inviabilizava o funcionamento. Porque, na prática, um ano é seis meses, já que o governo tem que mandar a nova LDO [Lei de Diretrizes Orçamentárias] em abril para o Congresso Nacional", afirmou.

A minuta inicial da PEC, apresentada pelo vice-presidente eleito Geraldo Alckmin (PSB) em 16 de novembro, previa a retirada do Auxílio Brasil —que voltará a ser chamado de Bolsa Família— da regra fiscal por tempo indeterminado. No texto protocolado nesta segunda, a lógica foi mantida, mas o prazo foi ajustado para quatro anos.

Outros pontos apresentados no dia 16 foram mantidos. O texto da PEC permite, por exemplo, a destinação de uma parcela das receitas extraordinárias (obtidas, por exemplo, com bônus de assinatura de leilões de petróleo) para custear investimentos públicos fora do teto de gastos. O argumento é que essa despesa teria uma espécie de lastro fiscal, ou seja, só seria realizada mediante o excesso de arrecadação.

A proposta, porém, estipula um limite para essa parcela, equivalente a 6,5% do excesso de arrecadação verificado em 2021 —o que resulta em um valor seja de até R$ 23 bilhões.

A PEC também inclui um dispositivo que permite ao governo usar recursos obtidos por meio de doações na execução de projetos ambientais. A articulação foi feita no dia em que Lula discursou na COP27, a conferência do clima das Nações Unidas, cobrando recursos dos países ricos e colocando o combate à crise climática como prioridade em seu novo governo.

A avaliação é que não faz sentido limitar essas despesas, uma vez que retirá-las do teto estimula parcerias e até mesmo viabiliza novas fontes de financiamento para gastos estratégicos. O Fundo Amazônia, por exemplo, hoje tem dificuldade para estabelecer parcerias com a União diante da falta de espaço no Orçamento.

A mesma lógica seria aplicada às universidades federais, que teriam autorização para executar despesas fora do teto caso elas sejam bancadas com receitas próprias, como doações ou captações. Hoje, esse tipo de gasto fica sujeito ao limite, o que gera reclamações das instituições e engessa projetos de pesquisa.

Sem compensação por elevação de receitas ou corte de outros gastos, a ampliação de despesas na magnitude pretendida pelo PT elevaria o déficit das contas em 2023. O Orçamento projeta oficialmente um rombo de R$ 63,5 bilhões, mas o governo atual atualizou essa estimativa para um número menor, embora ainda negativo em R$ 40,4 bilhões.

A existência de déficits públicos indica que o governo está financiando despesas por meio de emissão de um volume maior da dívida brasileira. O custo fica próximo da taxa básica de juros da economia, a Selic, hoje em 13,75% ao ano.

Com a PEC, o PT pretende resolver o imbróglio da falta de verbas em 2023 e ganhar tempo para discutir a nova regra fiscal que substituirá o teto de gastos. Como o debate sobre o tema é visto como complexo, pode não haver tempo suficiente para aprovar a nova legislação que limita despesas antes da discussão do Orçamento de 2024 –o projeto de lei de diretrizes orçamentárias de 2024, por exemplo, precisa ser entregue ao Congresso em abril de 2023 (em menos de cinco meses).

Uma PEC precisa da assinatura de 27 senadores, um terço da Casa, para começar a tramitar. Castro afirmou que as assinaturas serão apresentadas até esta terça (29).

Integrantes do governo eleito avaliam que é preciso iniciar as discussões na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado até o final desta semana para haver tempo hábil para a votação. Castro ressaltou nesta segunda que a PEC deve ser aprovada no Senado e na Câmara até o dia 16 de dezembro, a tempo de fazer os ajustes no Orçamento de 2023.

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