31 de outubro de 2018

Bruxas e luta de classes

Na Europa do século XVI, a caça às bruxas era uma guerra de classes imposta pela elite.

Silvia Federici


A Cozinha das Bruxas por Frans Francken, o Jovem, 1606. Museu Hermitage / Wikimedia

Excerto de Caliban and the Witch (2004).

Tradução / A caça às bruxas aparece raramente na história do proletariado. Até hoje, continua sendo um dos fenômenos menos estudados na história da Europa ou, talvez, da história mundial, se consideramos que a acusação de adoração ao demônio foi levada ao Novo Mundo pelos missionários e conquistadores como uma ferramenta para a subjugação das populações locais.

O fato de que a maior parte das vítimas na Europa tenham sido mulheres camponesas talvez possa explicar o motivo da indiferença dos historiadores com relação a tal genocídio; uma indiferença que beira a cumplicidade, já que a eliminação das bruxas das páginas da história contribuiu para banalizar sua eliminação física na fogueira, sugerindo que foi um fenômeno com um significado menor, quando não uma questão de folclore.

Inclusive, os estudiosos da caça às bruxas (no passado eram quase exclusivamente homens) foram frequentemente dignos herdeiros dos demonólogos do século XVI. Ainda que deplorassem o extermínio das bruxas, muitos insistiram em retratá-las como tolas miseráveis que sofriam com alucinações. Desta maneira, sua perseguição poderia ser explicada como um processo de “terapia social” que serviu para reforçar a coesão amistosa, ou poderia ser descrita em termos médicos como um “pânico”, uma “loucura”, uma “epidemia”, todas caracterizações que tiram a culpa dos caçadores das bruxas e despolitizam seus crimes.

As feministas reconheceram rapidamente que centenas de milhares de mulheres não poderiam ter sido massacradas e submetidas às torturas mais cruéis se não tivessem proposto um desafio à estrutura de poder. Também se deram conta de que essa guerra contra as mulheres, que se manteve durante um período de pelo menos dois séculos, constituiu um ponto decisivo na história das mulheres na Europa, o “pecado original” no processo de degradação social que as mulheres sofreram com a chegada do capitalismo, o que o conforma, portanto, como um fenômeno ao qual devemos retornar de forma reiterada se quisermos compreender a misoginia que ainda caracteriza a prática institucional e as relações entre homens e mulheres.

Ao contrário das feministas, os historiadores marxistas, salvo raras exceções — inclusive quando se dedicaram ao estudo da “transição ao capitalismo” —, relegaram a caça às bruxas ao esquecimento, como se carecesse de relevância para a história da luta de classes. As dimensões do massacre deveriam, entretanto, ter levantado algumas suspeitas: em menos de dois séculos, centenas de milhares de mulheres foram queimadas, enforcadas e torturadas.

Deveria parecer significativo o fato de a caça às bruxas ter sido contemporânea ao processo de colonização e extermínio das populações do Novo Mundo, aos cercamentos ingleses, ao começo do tráfico de escravos, à promulgação das Leis Sangrentas contra vagabundos e mendigos, e de ter chegado a seu ponto culminante no interregno entre o fim do feudalismo e a “guinada” capitalista, quando os camponeses na Europa alcançaram o ponto máximo do seu poder, ao mesmo tempo que sofreram a maior derrota da sua história. Até agora, no entanto, este aspecto da acumulação primitiva tem permanecido como um verdadeiro mistério.

A época de queima de bruxas e a iniciativa estatal


O que ainda não foi reconhecido é que a caça às bruxas constituiu um dos acontecimentos mais importantes do desenvolvimento da sociedade capitalista e da formação do proletariado moderno. Isso porque o desencadeamento de uma campanha de terror contra as mulheres, não igualada por nenhuma outra perseguição, debilitou a capacidade de resistência do campesinato europeu frente ao ataque lançado pela aristocracia latifundiária e pelo Estado, em uma época na qual a comunidade camponesa já começava a se desintegrar sob o impacto combinado da privatização da terra, do aumento dos impostos e da extensão do controle estatal sobre todos os aspectos da vida social.

Foi depois de meados do século XVI, nas mesmas décadas em que os conquistadores espanhóis subjugaram as populações americanas, que começou a aumentar a quantidade de mulheres julgadas como bruxas. Além disso, a iniciativa da perseguição passou da Inquisição às cortes seculares. A caça às bruxas alcançou seu ápice entre 1580 e 1630, ou seja, numa época em que as relações feudais já estavam dando lugar às instituições econômicas e políticas típicas do capitalismo mercantil. Foi neste longo Século de Ferro que, praticamente por meio de um acordo tácito entre países que a princípio estavam em guerra, se multiplicaram as fogueiras, ao passo que o Estado começou a denunciar a existência de bruxas e a tomar a iniciativa de persegui-las.

Antes que os vizinhos se acusassem entre si ou que comunidades inteiras fossem presas do “pânico”, teve lugar um firme doutrinamento, no qual as autoridades expressaram publicamente sua preocupação com a propagação das bruxas e viajaram de aldeia em aldeia para ensinar as pessoas a reconhecê-las, em alguns casos levando consigo listas de mulheres suspeitas de serem bruxas e ameaçando castigar aqueles que as dessem asilo ou lhes oferecessem ajuda.

Mas foram os juristas, os magistrados e os demonólogos, frequentemente encarnados na mesma pessoa, os que mais contribuíram na perseguição: eles sistematizaram os argumentos, responderam aos críticos e aperfeiçoaram a maquinaria legal que, por volta do final do século XVI, deu um formato padronizado, quase burocrático, aos julgamentos, o que explica as semelhanças entre as confissões para além das fronteiras nacionais. No seu trabalho, os homens da lei contaram com a cooperação dos intelectuais de maior prestígio da época, incluindo filósofos e cientistas que ainda hoje são elogiados como os pais do racionalismo moderno.

Não pode haver dúvida, então, de que a caça às bruxas foi uma iniciativa política de grande importância. A natureza política da caça às bruxas também fica demonstrada pelo fato de que tanto as nações católicas quanto as protestantes, em guerra entre si quanto a todas as outras temáticas, se uniram e compartilharam argumentos para perseguir as bruxas. Assim, não é um exagero dizer que a caça às bruxas foi o primeiro terreno de unidade na política dos novos Estados-nação europeus, o primeiro exemplo de unificação europeia depois do cisma provocado pela Reforma.

Crenças diabólicas e mudanças no modo de produção


Uma primeira ideia sobre o significado da caça às bruxas na Europa pode ser encontrada na tese proposta por Michael Taussig em seu clássico trabalho O demônio e o fetichismo da mercadoria na América do Sul (1980). Neste livro, o autor sustenta que as crenças diabólicas surgem em períodos históricos em que um modo de produção é substituído por outro. Em tais períodos, não somente as condições materiais de vida são transformadas radicalmente, mas também o são os fundamentos metafísicos da ordem social — por exemplo, a concepção de como se cria o valor, do que gera vida e crescimento, do que é “natural” e do que é antagônico aos costumes estabelecidos e às relações sociais.

Taussig desenvolveu sua teoria a partir do estudo das crenças de trabalhadores rurais colombianos e mineiros de estanho bolivianos numa época em que, em ambos os países, estavam surgindo certas relações monetárias que, aos olhos do povo, se associavam com a morte e inclusive com o diabólico, ainda mais se comparadas com as formas de produção mais antigas, que ainda persistiam, orientadas à subsistência. Desse modo, nos casos analisados por Taussig, eram os pobres que suspeitavam da adoração ao demônio por parte dos mais ricos. Ainda assim, sua associação entre o diabo e a forma- mercadoria nos faz lembrar também que, por detrás da caça às bruxas, esteve a expansão do capitalismo rural, que incluiu a abolição de direitos consuetudinários e a primeira onda de inflação na Europa moderna.

Estes fenômenos não somente levaram ao crescimento da pobreza, da fome e do deslocamento social, mas também transferiram o poder para as mãos de uma nova classe de “modernizadores” que viram com medo e repulsa as formas de vida comunais que haviam sido típicas da Europa pré-capitalista. Foi graças à iniciativa desta classe protocapitalista que a caça às bruxas alçou voo, como uma arma com a qual se podia derrotar a resistência à reestruturação social e econômica.

Que a difusão do capitalismo rural, com todas as suas consequências (expropriação da terra, aprofundamento das diferenças sociais, deterioração das relações coletivas), tenha sido um fator decisivo no contexto de caça às bruxas é algo que também se pode provar pelo fato de que a maioria dos acusados eram mulheres camponesas pobres — cottars, trabalhadoras assalariadas —, enquanto os que as acusavam eram abastados e prestigiosos membros da comunidade, muitas vezes seus próprios empregadores ou senhores de terra, ou seja, indivíduos que formavam parte das estruturas locais de poder e que, com frequência, tinham laços estreitos com o Estado central.

Na Inglaterra, as bruxas eram normalmente mulheres velhas que viviam da assistência pública, ou mulheres que sobreviviam indo de casa em casa mendigando pedaços de comida, um jarro de vinho ou de leite; se estavam casadas, seus maridos eram trabalhadores diaristas, mas, na maioria das vezes, eram viúvas e viviam sozinhas. Sua pobreza se destaca nas confissões. Era em tempos de necessidade que o diabo aparecia para elas, para assegurar-lhes que a partir daquele momento “nunca mais deveriam pedir”, mesmo que o dinheiro que lhes seria entregue em tais ocasiões rapidamente se transformasse em cinzas, um detalhe talvez relacionado com a experiência da hiperinflação que era comum na época.

Quanto aos crimes diabólicos das bruxas, eles não nos parecem mais que a luta de classes desenvolvida na escala do vilarejo: o “mau-olhado”, a maldição do mendigo a quem se negou a esmola, a inadimplência no pagamento do aluguel, a demanda por assistência pública.

Caça às bruxas e revolta de classes


Como podemos ver a partir desses casos, a caça às bruxas se desenvolveu em um ambiente no qual os “de melhor estirpe” viviam num estado de constante temor frente às “classes baixas”, das quais certamente se podia esperar que abrigassem pensamentos malignos, já que nesse período estavam perdendo tudo o que tinham.

Não surpreende que este medo se expressasse como um ataque em forma de magia popular. A batalha contra a magia sempre acompanhou o desenvolvimento do capitalismo, até os dias de hoje. A premissa da magia é que o mundo está vivo, que é imprevisível e que existe uma força em todas as coisas de forma que cada acontecimento é interpretado como a expressão de um poder oculto que deve ser decifrado e desviado de acordo com a vontade de cada um.

A magia constituía também um obstáculo para a racionalização do processo de trabalho e uma ameaça para o estabelecimento do princípio da responsabilidade individual. Sobretudo, a magia parecia uma forma de rejeição do trabalho, de insubordinação, e um instrumento de resistência de base ao poder. O mundo devia ser “desencantado” para poder ser dominado.

Por volta do século XVI, o ataque contra a magia já estava no seu auge e as mulheres eram os alvos mais prováveis. Mesmo quando não eram feiticeiras/magas experientes, chamavam-nas para marcar os animais quando adoeciam, para curar seus vizinhos, para ajudar-lhes a encontrar objetos perdidos ou roubados, para lhes dar amuletos ou poções para o amor ou para ajudar-lhes a prever o futuro. Embora a caça às bruxas estivesse dirigida a uma ampla variedade de práticas femininas, foi principalmente devido a essas capacidades — como feiticeiras, curandeiras, encantadoras ou adivinhas — que as mulheres foram perseguidas, 158 pois, ao recorrerem ao poder da magia, debilitavam o poder das autoridades e do Estado, dando confiança aos pobres em sua capacidade para manipular o ambiente natural e social e, possivelmente, para subverter a ordem constituída.

Por outro lado, é de se duvidar que as artes mágicas que as mulheres praticaram durante gerações tivessem sido ampliadas até o ponto de se converterem em uma conspiração demoníaca, se não tivessem ocorrido num contexto de intensa crise e luta social. Tais revoltas foram as Guerras Camponesas contra a privatização da terra, que incluíram as insurreições contra os cercamentos na Inglaterra (em 1549, 1607, 1628 e 1631), quando centenas de homens, mulheres e crianças, armados com forquilhas e pás, começaram a destruir as cercas erguidas ao redor das terras comunais, proclamando que “a partir de agora nunca mais precisaremos trabalhar”. Durante estas revoltas, muitas vezes, eram as mulheres que iniciavam e dirigiam a ação.

A perseguição às bruxas se desenvolveu nesse terreno. Foi uma guerra de classes levada a cabo por outros meios.

Caça às bruxas, caça às mulheres e a acumulação do trabalho


Com este pano de fundo, parece plausível que a caça às bruxas tenha sido, pelo menos em parte, uma tentativa de criminalizar o controle da natalidade e de colocar o corpo feminino — o útero — a serviço do aumento da população e da acumulação da força de trabalho. Podemos imaginar o efeito que teve nas mulheres o fato de ver suas vizinhas, suas amigas e suas parentes ardendo na fogueira, enquanto percebiam que qualquer iniciativa contraceptiva de sua parte poderia ser interpretada como produto de uma perversão demoníaca.

Desse ponto de vista, não pode haver dúvida de que a caça às bruxas destruiu os métodos que as mulheres utilizavam para controlar a procriação, posto que eles eram denunciados como instrumentos diabólicos, e institucionalizou o controle do Estado sobre o corpo feminino, o principal pré-requisito para sua subordinação à reprodução da força de trabalho. A caça às bruxas foi, portanto, uma guerra contra as mulheres; foi uma tentativa coordenada de degradá-las, de demonizá-las e de destruir seu poder social.

Quando esta tarefa foi cumprida por completo — no momento em que a disciplina social foi restaurada e a classe dominante consolidou sua hegemonia —, os julgamentos de bruxas cessaram. A crença na bruxaria pôde inclusive se tornar algo ridículo, desprezada como superstição e apagada rapidamente da memória. Logo que o Estado assumiu o controle da caça às bruxas, um por um, os vários governos foram tomando a iniciativa de acabar com ela.

Uma vez destruído o potencial subversivo da bruxaria, foi possível até mesmo permitir que tal prática seguisse adiante. Depois de que a caça às bruxas chegou ao fim, muitas mulheres continuaram sustentando-se por meio da adivinhação, da venda de encantamentos e da prática de outras formas de magia. Mas agora as autoridades já não estavam interessadas em processar essas práticas, sendo inclinadas, ao contrário, a ver a bruxaria como um produto da ignorância ou como uma desordem da imaginação.

O espectro das bruxas seguiu, de qualquer forma, assombrando a imaginação da classe dominante. Em 1871, a burguesia parisiense o retomou instintivamente para demonizar as mulheres communards, acusando-as de querer incendiar Paris. Não pode haver muita dúvida, de fato, de que os modelos das histórias e imagens mórbidas de que se valeu a imprensa burguesa para criar o mito das pétroleuses foram retirados do repertório da caça às bruxas.

Sobre a autora


Silvia Federici é autora de vários livros, incluindo Caliban e Witch and Revolution at Point Zero. Foi co-fundadora do International Feminist Collective e organizadora da campanha Wages for Housework.

27 de outubro de 2018

A guinada à direita da América Latina

A extrema direita está em ascensão não apenas no Brasil, mas em toda a América Latina - impulsionada pela classe média que os governos de esquerda ajudaram a criar.

Pablo Vivanco

Jacobin

Uma manifestação de março de 2016 reivindicando o impeachment da então presidente do Brasil, Dilma Rousseff. Agência Brasil Fotografias / Flickr.

Tradução / A perspectiva de Jair Bolsonaro como presidente do maior país da América Latina colocou o Brasil sob um holofote global.

Um ex-capitão do exército, Bolsonaro elogiou o uso de tortura e assassinato sob a ditadura militar brasileira e fez declarações públicas terríveis sobre gays e mulheres. No entanto, apesar disso – ou talvez por causa disso – ele obteve 55%, ou mais de 57 milhões de votos, no segundo turno da votação.

Muitos analistas têm atribuído sua forte ascensão aos escândalos de corrupção envolvendo a petroleira estatal Petrobras e a construtora Odebrecht. Os brasileiros inundaram as ruas conforme surgiam informações sobre a profundidade e o escopo do desastre, que envolvia todos os principais partidos do país, incluindo o próprio Partido Social Liberal de Bolsonaro.

Entretanto, com a ajuda de uma campanha midiática organizada, grande parte da culpa pelo escândalo foi atribuída à esquerda política do país, especialmente o Partido dos Trabalhadores (PT). As enormes manifestações “anticorrupção” (altamente seletivas) que se seguiram fortaleceram a campanha da direita para remover a então presidenta Dilma Rousseff e manchar a imagem do PT.

O Brasil não é o único país da América Latina a se deslocar para a direita nos últimos anos. “Não sei se a categoria do fascismo é a mais adequada para se compreender esse fenômeno”, diz o Dr. Atilio A. Boron, sociólogo e professor de História Latino-Americana da Universidade de Avellaneda, na Argentina. Boron tem estudado a história da extrema direita na América Latina, incluindo as brutais ditaduras militares que governaram grande parte da região durante as décadas de 1970 e 1980 e os grupos paramilitares de extrema direita na Colômbia e na América Central.

Embora esses regimes e grupos compartilhassem certas características com o fascismo da Alemanha, Itália e Espanha, Boron afirma que havia outras diferenças significativas, incluindo a ausência de um movimento de massa. Para Boron, essas discrepâncias também se aplicam aos movimentos atuais de direita na América Latina, incluindo o de Bolsonaro.

“Acredito que eles são personagens claramente reacionários, mas o fascismo é uma forma muito específica de reação. Implica, por exemplo, um processo de organização e de mobilização dos estratos médios, o que não é o caso de Bolsonaro, do (presidente argentino Mauricio) Macri ou de (Ivan) Duque da Colômbia ”, diz Boron.

“Penso que Bolsonaro é um personagem miserável que infelizmente [encarna] os piores aspectos da política da América Latina em tempos recentes, por isso é conveniente usar o termo fascista neste caso, mas é preciso entender que o termo vai além [de suas declarações].

Sabrina Fernandes, socióloga e pesquisadora da Universidade de Brasília, considera que o campo de Bolsonaro já atingiu essa camada média. Fernandes, produtora do canal de esquerda Tese Onze no YouTube, diz que a direita conseguiu realizar incursões significativas entre as classes populares na esteira da operação Lava Jato.

“O movimento de extrema direita no Brasil mobilizou a classe média mais do que qualquer outra, especialmente em torno do impeachment de Dilma Rousseff”, afirma Fernandes. O processo de impeachment, disse ela, mobilizou “predominantemente as classes média e alta brancas”, mas também foi capaz de mobilizar setores da classe trabalhadora e baixa. O tamanho das manifestações contra a corrupção no país, assim como seu pesado tom anti-esquerda e anti-PT, atestam isso.

Classe e a “classe média”
Há pouca dúvida de que a classe média na região, que cresceu consideravelmente em tamanho desde a virada do milênio, vem desempenhando um importante papel eleitoral. A combinação do boom de mercadorias primárias e a proliferação de políticas nacionais de investimento e de redistribuição por toda a América Latina permitiram que cerca de 70 milhões de pessoas fossem retiradas da pobreza entre 2002 e 2014, de acordo com a Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe (Cepal).

Destes, quase 30 milhões estavam no Brasil. No Equador, a classe média dobrou de 18,58% para 37,4% entre 2005 e 2015. Tanto no Equador quanto agora no Brasil, análises recentes mostram que essa classe média está de fato votando em números significativos para candidatos conservadores.

Os apelos da direita à realização individual, bem como a argumentos de que as intervenções do governo seriam responsáveis pelas crises econômicas, têm sido narrativas poderosas no direcionamento dessa nova classe média para candidatos de direita. Fernandes diz que esta estratégia, implantada através dos principais meios de comunicação e mais recentemente através das mídias sociais, tem funcionado no Brasil.

“Dessa maneira, eles começaram a afetar o senso comum, então não é mais apenas a classe média, a maior parte da classe trabalhadora está na verdade indo contra sua própria consciência de classe”, diz Fernandes. Boron acrescenta que a classe média está agindo com medo e “ressentimento”, afetando não apenas seus padrões de voto, mas também suas visões sociais, incluindo o racismo e a xenofobia que tem aumentado em toda a região.

“Eles veem aqueles que declaram uma posição econômica inferior como uma ameaça e, portanto, tendem a ter posições discriminatórias, agressivas e ofensivas sobre os setores populares. Isso é algo que também ocorreu no fascismo italiano e alemão ”, diz Boron.

Negócios inacabados
Em pouco mais de uma década os governos da chamada “Onda Rosa” realizaram um progresso social inegável na região mais desigual do mundo. Porém, muitos daqueles que alcançaram uma certa mobilidade social durante este período se voltaram contra esse projeto político e as políticas que o definiram.

Independente se uma “Onda Marrom” for iminente ou não, a afirmação de Walter Benjamin de que “por trás de todo fascismo há uma revolução fracassada”, vale para a América Latina hoje, argumenta Boron.

“É uma punição – eu não diria que por não ter feito uma revolução, mas por não ter completado um processo de reformas que tinha de ser radicalizado e, com isso, suprimir as possibilidades do surgimento de movimentos políticos fascistas,” afirma Boron, enfatizando a ausência de educação e organização política pela maioria dos governos de esquerda na região.

“Infelizmente, eles caíram em uma espécie de determinismo econômico, um certo economicismo, por parte dos governos da era progressista, pensando que melhorar as condições materiais seria o suficiente para gerar consciência da necessidade de lutar contra o capitalismo”.

Isso também é verdade no caso do Brasil, onde um movimento popular enfrentou uma ditadura e depois elegeu candidatos do PT como Lula para a presidência. “Havia muito potencial quando Lula foi eleito, com muito apoio popular, para mobilizar as pessoas e pressionar por mais, e as pessoas estavam muito esperançosas de que o governo seria mais do que foi”, diz Fernandes.

A esquerda pode ter falhado em organizar uma base de apoio suficiente para sustentar seu projeto, mas agora terá uma luta muito mais difícil pela frente – garantir que a direita reacionária também não seja capaz de fazê-lo. Isso motivou ativistas de esquerda, como Fernandes, que são críticos do governo do PT, a fazer campanha por Fernando Haddad no segundo turno das eleições presidenciais.

Jeito fascista

Um diálogo com Stefan Zweig sobre Jair Bolsonaro

André Singer


Apoiador do candidato Jair Bolsonaro (PSL) usa camiseta durante manifestação em Copacabana, Rio de Janeiro. Carl de Souza/AFP

O escritor Stefan Zweig (1881-1942) me ligou ontem de manhã (ele não usa WhatsApp).

— Bom dia, Stefan, como vai?

— Estou preocupado com a eleição de domingo aí no Brasil.

— Eu também.

— Mas acho que você ainda não percebeu direito o que está acontecendo. Leia “Autobiografia: O Mundo de Ontem”, que escrevi antes de me suicidar em Petrópolis (RJ).

— Deixa passar o pleito.

— O método da extrema direita brasileira é o mesmo do nacional-socialismo: uma dose de cada vez, e, depois de cada dose, uma pequena pausa. Sempre só um comprimido e depois esperar um pouco para verificar se não era forte demais, se a consciência do mundo tolerava essa dose.

— Do que está falando?

— Veja, por exemplo, a reação de Jair Bolsonaro (PSL), esta semana, diante da má repercussão do vídeo em que o seu filho, Eduardo, ameaçava fechar o Supremo Tribunal Federal com “um soldado e um cabo”.

— Sim, o que há com essa reação?

— O candidato, com ar compungido na TV, pediu “desculpas ao Poder Judiciário”, dizendo não ter sido a intenção de Eduardo atacar “quem quer que seja”. A técnica é ir experimentando devagar, para descobrir até onde se pode ir a cada momento.

— Não serão apenas bravatas?

— Nós na Alemanha e na Áustria não acreditávamos nem um centésimo ou milésimo ser possível o que poucas semanas mais tarde haveria de eclodir. Monstruosidades como queimas de livros, que poucos meses depois seriam um fato, ainda estavam longe de qualquer compreensibilidade mesmo para pessoas de larga visão.

— O pessoal aqui pensa que as instituições estão funcionando e que elas impedirão o arbítrio.

— Engano. O clima de ameaça à liberdade de expressão tomou conta de parte das instituições. Repare nas ações policiais que ocorreram em 12 universidades nos últimos dias. Durante três décadas de democracia o território universitário foi inviolável e, de repente, aulas sobre fascismo são interrompidas à força. Isso se chama Estado policial.

— Você exagera, Stefan, eles possuíam mandados judiciais.

— Você fica lendo em casa e não ouviu o que Bolsonaro disse para os seus apoiadores na Paulista domingo passado. Ele afirmou que os “marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria”. A sociedade já foi intimidada. Temendo as “brigadas conservadoras”, Fernanda Torres suspendeu a encenação de uma peça prevista para novembro.

Desliguei apreensivo. Talvez Zweig estivesse apavorado. Por via das dúvidas, saí para virar mais uns votos. Não vale a pena pagar para ver se ele tem razão.

PS - Grato a Elio Gaspari pela inspiração. O texto utiliza trechos, em adaptação livre, do livro citado.

Sobre o autor


Professor de ciência política da USP, ex-secretário de Imprensa da Presidência (2003-2007). É autor de “O Lulismo em Crise”.

26 de outubro de 2018

Por que voto no Professor

Fico sempre do lado da democracia e contra o ódio, mas Haddad também é melhor em outras áreas

Nelson Barbosa


O candidato Fernando Haddad (PT). Créditos: Nelson Almeida/AFP Photo

Neste domingo (28), escolheremos entre Haddad e Bolsonaro para presidente.

De um lado, temos a defesa da social-democracia e do diálogo por um Professor Universitário. Do outro, o louvor ao autoritarismo e à repressão por um Ex-Capitão do Exército.

Fico sempre do lado da democracia e contra quem incita o ódio, mas Haddad também é muito melhor em outras áreas, vejamos algumas.

Na tributação, os dois candidatos prometem (equivocadamente) zerar o Imposto de Renda de quem ganha até cinco salários mínimos. Trata-se de um exagero, mas cada lado tem diferenças importantes.

O Professor diz que compensará essa desoneração aumentando a tributação sobre os mais ricos, de modo que no final possa ocorrer até alta de receita. Em contraste, o Ex-Capitão quer desonerar mais os super-ricos, adotando uma alíquota única de 20%, um grande erro.

Ainda nos impostos, o Professor se compromete a simplificar tributos indiretos e rever benefícios tributários, consenso entre a maioria dos economistas.

Do outro lado não há clareza, pois assessores do Ex-Capitão sinalizaram e recuaram sobre a criação de uma super-CPMF, em conjunto com uma megadesoneração da folha que pode quebrar a Previdência.

Como no Brasil foram governos de direita que aumentaram a carga tributária de modo permanente, podemos esperar um tarifaço sobre os mais pobres em caso de vitória do Ex-Capitão, outro erro.

Passando ao gasto público, o Professor já disse que continuará alinhando as regras de aposentadoria entre os setores público e privado, como fizeram os governos do PT.

Em contraste, o Ex-Capitão indicou que preservará os privilégios adquiridos pelo núcleo militar-judicial-policial do Estado. As demais categorias, especialmente na educação e saúde, provavelmente ficarão à míngua em um eventual governo PSL.

Nos salários e emprego, o Professor se compromete a rever a reforma trabalhista, dando mais poder aos sindicatos, e continuar aumentando o salário mínimo.

O Ex-Capitão foi na direção contrária, prometendo flexibilizar ainda mais a legislação trabalhista e sendo ambíguo no salário mínimo.

Dado que o candidato do PSL já disse que o Brasil deveria voltar à situação dos anos 1970, só posso concluir que sua proposta trabalhista é arrocho salarial permanente, como aconteceu na ditadura militar.

No desenvolvimento sustentável, o Professor já deu exemplos de preocupação ambiental quando prefeito de São Paulo. Podemos esperar mais medidas de desenvolvimento verde no seu governo.

O Ex-Capitão está no polo oposto, pois deseja acabar com o Ministério do Meio Ambiente, e seus assessores já sinalizaram que o Ibama só “enche o saco” e que pode haver mais desmatamento na Amazônia (uma equipe de exterminadores do futuro).

E, na transparência, o Professor se comprometeu com a independência dos órgãos de controle e o combate à corrupção, como fizeram os governos do PT.

O Ex-Capitão não falou muito sobre isso, ou sobre qualquer coisa, mas novamente seus generais assessores já indicaram que desejam agilizar e simplificar processos em um “balcão único”, como era, adivinhe, nos anos 1970!

Nesse quadro é fácil escolher, sobretudo porque o Professor defende a restauração do Estado democrático de Direito, mais investimento em educação e saúde, retomada do crescimento econômico com sustentabilidade ambiental e redução de desigualdades sociais (só crescimento não basta).

Por isso e pelo respeito aos direitos civis, mesmo de quem discorda da minha opinião, votarei novamente Haddad Presidente.

Sobre o autor


Professor da FGV-SP, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

22 de outubro de 2018

Política externa para o século XXI

É hora de desenvolver uma nova geoestratégia livre de traumas passados.

Daniel Bessner

Boston Review

Imagem: Departamento de Estado dos EUA

The Great Delusion: Liberal Dreams and International Realities
John J. Mearsheimer
Yale University Press, $30.00 (impresso)

A Foreign Policy for the Left
Michael Walzer
Yale University Press, $30.00 (impresso)

Em 2 de fevereiro de 2003, o cientista político John J. Mearsheimer publicou um artigo em co-autoria no The New York Times que criticava o caso da administração Bush de invadir o Iraque. Em um argumento cuidadosamente apresentado, Mearsheimer e Stephen Walt, um colega acadêmico de relações internacionais, previram que a deposição de Saddam Hussein causaria mais problemas do que resolveria. Eles argumentaram que o ditador precisava ser contido e que a guerra preventiva não era apenas desnecessária, mas prejudicial.

É claro que nem Bush nem seus comparsas ouviram, e em 20 de março começou a Guerra do Iraque. Quando foi oficialmente encerrada em dezembro de 2011 (observe que ainda mantemos milhares de soldados dos EUA no país), custou quase US$ 1 trilhão; resultou na morte de centenas de milhares de iraquianos e cerca de 4.500 soldados americanos; gerou sofrimento incalculável entre pessoas que perderam membros, familiares e sua saúde mental; e desestabilizou a região, fortalecendo o Estado Islâmico e gerando uma enorme crise de refugiados.

Desde então, Mearsheimer, um graduado de West Point que serviu na Força Aérea, tem sido um forte oponente do aventureirismo militar dos EUA, particularmente na Europa Oriental e no Oriente Médio. Seu último livro, The Great Delusion, é sua tentativa de explicar por que tão poucas pessoas no establishment da política externa dos EUA – uma rede frouxa de órgãos governamentais, think tanks, ONGs, grupos de lobby e organizações de pesquisa – parecem concordar com ele. Fazer isso, sustenta Mearsheimer, nos ajudará a entender “por que a política externa dos EUA pós-Guerra Fria foi tão propensa ao fracasso” e (espero) ajudará a nação a traçar um caminho melhor em uma era em que a posição de poder relativo dos Estados Unidos está em declínio.

De acordo com Mearsheimer, a política externa dos EUA fracassou porque após a Guerra Fria, e especialmente após o 11 de setembro, as elites de ambos os partidos abraçaram uma grande estratégia de “hegemonia liberal” que busca “transformar o maior número possível de países em democracias liberais, ao mesmo tempo em que promovem uma economia internacional aberta e constroem instituições internacionais formidáveis”. Essa estratégia está condenada, argumenta ele, porque não está suficientemente sintonizada com duas realidades da política internacional. Primeiro, não leva em conta o poder do nacionalismo, que faz com que os povos estrangeiros rejeitem as tentativas dos EUA de intervir em seus assuntos internos. Em segundo lugar, e mais importante, Mearsheimer acredita que a hegemonia liberal ignora a centralidade da política de equilíbrio de poder nas relações internacionais.

Mas os Estados Unidos, é claro, não têm sido um estado sábio. Para explicar por que, Mearsheimer argumenta que, às vezes, um estado liberal é muito mais poderoso do que qualquer desafiante em potencial que suas elites podem desconsiderar o equilíbrio de poder e abraçar a noção quixotesca de que podem fazer o mundo à sua imagem liberal, democrática e capitalista. Esta, obviamente, foi a posição em que os Estados Unidos se encontraram após o colapso da União Soviética, e todos que estão lendo isso sabem onde a história termina: nas montanhas do Afeganistão, nas ruas do Iraque e nos desertos da Líbia, onde as intenções dos EUA foram para morrer.

Essas falhas levam Mearsheimer a aconselhar que os Estados Unidos abandonem a hegemonia liberal e adotem uma grande estratégia de “contenção” caracterizada por um uso muito mais limitado do poder dos EUA no exterior. Especificamente, ele afirma que os Estados Unidos devem parar de provocar a Rússia incentivando a expansão da OTAN e da União Européia; deve parar de promover a democracia nos vizinhos da Rússia; e deve acabar com a guerra permanente no Oriente Médio.

Mearsheimer, no entanto, de forma alguma defende uma redução total do poder dos EUA. De fato, ele está bastante preocupado com a ascensão da China, que ele considera a única nação capaz de desafiar potencialmente a hegemonia dos EUA. Como tal, ele sustenta que os Estados Unidos devem “impedir que a China se torne uma hegemonia regional na Ásia”. Isso presumivelmente significa que os americanos devem manter sua presença no leste da Ásia, especialmente no Mar da China Meridional. Se os Estados Unidos impedirem a ascensão da China, Mearsheimer sugere que poderíamos colher os benefícios da hegemonia sem sofrer as desvantagens da superextensão.

Há muito a admirar no caso de Mearsheimer contra a hegemonia liberal, que repetidamente falhou em alcançar suas grandes ambições. Não tenho dúvidas de que os Estados Unidos têm pouco a ganhar provocando Vladimir Putin ou atacando casamentos no Iêmen com drones. Em suma, uma estratégia de contenção seria muito superior a uma caracterizada por intervenções desastrosas, e aqueles que vislumbram serviços de bem-estar social mais robustos em casa deveriam considerar construir pontes com realistas como Mearsheimer, que querem conter as forças armadas dos EUA e seu orçamento inflado.

No entanto, existem problemas significativos com a ontologia de Mearsheimer – e, de fato, com a ontologia do realismo em geral. Para entender por que isso acontece, devemos examinar as origens do realismo em meados do século. O realismo foi desenvolvido nas décadas de 1940 e 1950 por um grupo de emigrantes alemães marcados pelas relações internacionais da década de 1930, uma década em que duas grandes potências – a Alemanha nazista e o Japão imperial – lançaram uma guerra mundial devastadora que matou e mutilou dezenas de milhões. Não é de surpreender que, em resposta aos horrores da Segunda Guerra Mundial – e à incapacidade da Liga das Nações de evitá-la – pensadores como Morgenthau, John Herz, Hans Speier e Arnold Wolfers desenvolveram uma teoria da política internacional que era incrivelmente pessimista quanto às possibilidades de cooperação internacional e que consideravam as guerras de grandes potências características endêmicas da geopolítica. Essas crenças formaram o núcleo do realismo e permanecem no centro de sua filosofia.

Essas convicções são problemáticas, porém, porque reificam um momento histórico peculiar como realidade ontológica. Como Mearsheimer coloca sucintamente, “o realismo é uma teoria atemporal” que é verdade em todas as eras da história. Mas, como mostrou o historiador Nicolas Guilhot, essa crença “impõe limites ao tipo de objetivos políticos que se pode perseguir e... torna difícil, se não impossível, perseguir objetivos positivos ou transformadores.” Assim, Mearsheimer sustenta que os seres humanos nunca serão capazes de criar um estado mundial capaz de transcender a anarquia internacional e, em vez disso, estão condenados a lutar guerra após guerra até que, presumivelmente, finalmente acabe com toda a espécie. Há uma razão pela qual o livro mais famoso de Mearsheimer é intitulado The Tragedy of Great Power Politics.

De uma perspectiva histórica, porém, o pessimismo de Mearsheimer parece injustificado. Se mostra alguma coisa, a ampla extensão da história humana evidencia uma tendência para unidades políticas cada vez maiores que abrangem espaços geográficos e culturais cada vez mais amplos. Os seres humanos, em outras palavras, construíram repetidamente novas solidariedades que antes pareciam impossíveis. Por que esse processo pararia no estado-nação, uma forma política que tem apenas 225 anos? Mesmo se alguém acredita que um estado mundial é uma fantasia irreal, por que é impossível criar novas constelações políticas baseadas em respeito mútuo e cooperação? Simplificando, não estou convencido de que Mearsheimer esteja correto ao afirmar que os seres humanos são congenitamente incapazes de construir comunidades políticas regionais, continentais e, talvez, globais que, eventualmente, transcendam a guerra. Embora esse processo seja, sem dúvida, difícil e doloroso, não há razão para acreditar que seja impossível – a menos que você pense que sempre foi, e sempre será, a década de 1930.

As origens do realismo em meados do século também levam Mearsheimer a enfatizar os piores cenários. Isso fica claro em sua ansiedade com a ascensão da China, que ele considera uma ameaça à hegemonia dos EUA e, portanto, ao interesse nacional dos EUA. Além do fato de que me parece profundamente irrealista acreditar que os americanos apoiarão indefinidamente uma presença militar dos EUA no leste da Ásia, não está claro por que, exatamente, o surgimento de outra grande potência longe de nossas costas ameaça os Estados Unidos. De fato, uma transição de segurança negociada no Leste Asiático (os Estados Unidos mantêm aproximadamente 375.000 funcionários em seu Comando Indo-Pacífico) liberaria fundos que poderiam ser usados ​​para reforçar a rede de segurança social e abordar a desigualdade de renda doméstica, duas das questões mais prementes do nosso Tempo. Também poderia tornar a China uma verdadeira parte interessada na manutenção da paz internacional. Além disso, há razões históricas para desconfiar dos piores cenários. Durante a Guerra Fria, a crença equivocada de que a União Soviética era necessariamente um inimigo existencial empenhado na destruição dos Estados Unidos gerou corridas armamentistas caras, impediu o tipo de negociações honestas que poderiam ter encerrado a luta EUA-Soviética na década de 1950 e encorajou os americanos a criarem um sistema de bases global em massa (atualmente cerca de 800 bases em dezenas de países). Mais recentemente, o medo de outro 11 de setembro levou à infrutífera “Guerra ao Terror” e suas muitas violações das liberdades civis que Mearsheimer deplora com razão. Isso tudo para dizer que não devemos permitir que os piores cenários determinem a política externa dos EUA. Em toda a sua existência, pode-se argumentar que a sobrevivência dos Estados Unidos foi urgentemente ameaçada por forças externas apenas duas vezes – durante a guerra de 1812 e durante a crise dos mísseis cubanos de 1962. Nossa condição média é de segurança, e é a partir desta base que devemos desenvolver nossa grande estratégia.

A obsessão de Mearsheimer – e de muitos realistas – com os piores cenários surge da suposição de que “a maioria dos estados, na maioria das vezes, segue a lógica do equilíbrio de poder”. Isto simplesmente não é verdade. Como muitos historiadores demonstraram, os tomadores de decisão buscam políticas por uma diversidade de razões, sejam elas ideológicas, econômicas, desenvolvimentistas, raciais, de gênero ou, talvez o mais importante, políticas. Para dar um exemplo famoso, Lyndon B. Johnson escalou a Guerra do Vietnã não apenas – ou mesmo principalmente – por causa da “teoria do dominó”, mas porque estava preocupado com seu futuro político. Em retrospecto, mesmo a Guerra Fria – a luta de equilíbrio de poder por excelência – parece ter sido principalmente sobre a luta ideológica entre capitalismo e comunismo. Ironicamente, o próprio Mearsheimer reconheceu os limites do equilíbrio de poder como uma explicação do comportamento do Estado, co-escrevendo um livro sobre os efeitos perniciosos do “lobby de Israel” na política externa dos EUA. De fato, em The Great Delusion, ele admite que uma maneira importante de combater a hegemonia liberal “é construir uma contra-elite que possa defender” uma abordagem heterodoxa dos assuntos mundiais. Pela própria admissão de Mearsheimer, então, o equilíbrio de poder muitas vezes não explica as relações internacionais dos EUA. Uma categoria central do pensamento realista sobre geopolítica é, assim, prejudicada, o que implica que o pessimismo do realismo pode ser injustificado.

***

Apesar de suas falhas, o realismo de Mearsheimer fornece um guia muito melhor para fazer política externa do que o apresentado no estranho A Foreign Policy for the Left, de Michael Walzer. Walzer, um dos teóricos políticos mais proeminentes do século XX, infelizmente parece preso naquela época: suas recomendações refletem atavicamente as esperanças dos “longos anos 1990” (1989-2001), quando os americanos acreditavam que poderiam usar seu incrível poder para fazer tudo o que eles quisessem no mundo.

A principal preocupação de Walzer é a intervenção humanitária, que é um foco um tanto estranho em 2018. Como Samuel Moyn colocou apropriadamente em sua resenha de A Foreign Policy for the Left, “Walzer eleva o estreito e raro problema de quando enviar os militares para ajudar estranhos ao decisivo problema em torno do qual gira o futuro da política externa americana”. A compreensão de Walzer sobre política externa, em suma, é paroquial; pode-se até dizer que existe fora da história. Desde o fim da Guerra Fria, os formuladores de políticas foram forçados a responder à questão da intervenção humanitária menos de uma dúzia de vezes. Compare isso com o fato de que, somente em 2017, as Forças Especiais dos EUA foram enviadas para 149 países. Dadas essas realidades materiais, a esquerda ressurgente deveria concentrar suas energias na intervenção humanitária ou no militarismo dos EUA?

De uma perspectiva biográfica, é fácil ver por que Walzer está preocupado com a intervenção humanitária. Nascido de pais judeus na cidade de Nova York em 1935, o desenvolvimento político inicial de Walzer foi definido por um confronto ético com a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto. A fonte de seu intervencionismo torna-se óbvia em A Foreign Policy for the Left quando adverte que “o antimilitarismo... produziu um dos piores momentos da história da esquerda - a oposição de muitos... esquerdistas britânicos, franceses e americanos a rearmamento da Alemanha nazista na década de 1930”. Semelhante a realistas como Mearsheimer, o bicho-papão de Hitler continua a moldar a compreensão de geopolítica de Walzer. Embora os esquerdistas sejam tolos em argumentar que uma figura de Hitler nunca mais emergirá, eles também não devem fingir que ditadores como Putin, Kim Jong-un e Bashar al-Assad são ameaças existenciais semelhantes ao tirano nazista. O mesmo vale para o “zelotismo islâmico” contra o qual Walzer quer iniciar uma “guerra ideológica”. Talvez seja hora de esquerdistas mais jovens, menos traumatizados por eventos que aconteceram há mais de sete décadas, começarem a afirmar sua voz nas discussões de política externa.

Em vários casos, Walzer parece não ter uma compreensão completa da geopolítica contemporânea. Isso fica decepcionantemente claro quando ele afirma que “uma intervenção americana muito limitada (e ineficaz)” na guerra civil síria “foi esmagada pelas intervenções maciças de outros estados”. Walzer parece estar argumentando que mais investimentos militares na Síria teriam encerrado, ou pelo menos atenuado, a violência. Isso está errado por dois motivos. Primeiro, os Estados Unidos intervieram continuamente na Síria desde o início, financiando oponentes do regime, apoiando as ações de aliados regionais e, eventualmente, armando representantes locais. Essas políticas, juntamente com uma postura de “Assad deve ir” e uma recusa inicial de incluir o Irã nas negociações, podem não ter colocado as botas dos EUA no chão, mas exacerbaram a crescente militarização do conflito de formras que aumentaram e prolongaram o derramamento de sangue. É difícil ver o que a adição de tropas dos EUA ao turbilhão teria conseguido.

Em segundo lugar, e mais importante, a posição de Walzer ignora o equilíbrio de poder. Como Asli Bâli e Aziz Rana observaram, a crença dos EUA “que com pressão [militar] suficiente poderia ser alcançado um ponto de inflexão e o regime de Assad cair... ignorou o fato óbvio de que a centralidade da Síria para os interesses de segurança regional iraniano e russo significava que esses países não permitiriam a queda do regime”. Embora seja verdade que Assad e seus apoiadores externos tenham a esmagadora responsabilidade pela violência na Síria, a decisão dos EUA de tratar a nação como uma peça de xadrez regional sem levar em conta os interesses de estados concorrentes se mostrou desastrosa. A menos que os Estados Unidos estivessem dispostos a comprometer totalmente seus militares com a derrubada de Assad - o que era politicamente improvável na esteira do Afeganistão e do Iraque - o Irã e a Rússia não permitiriam que isso acontecesse. Como isso sugere, a compreensão de Walzer sobre política externa se beneficiaria de uma boa dose do realismo mearsheimeriano.

Walzer, no entanto, está certo em criticar os esquerdistas americanos que acreditam que “os americanos estarão mais seguros no mundo e o mundo ficará melhor... se nos concentrarmos em criar uma sociedade justa em casa”. (Embora ele vá longe demais ao se referir a essa posição como o “padrão”que eu saiba, poucos jovens esquerdistas defendem o isolacionismo.) Ele também está correto ao argumentar que os Estados Unidos são simplesmente poderosos demais, influentes demais e inseridos demais nos sistemas políticos, econômicos e culturais do globo para se retirar das relações internacionais. Mas não está claro por que o internacionalismo de esquerda deve centrar-se na intervenção militar, em oposição, digamos, ao fechamento de bases no exterior - um tópico que Walzer mal aborda e que para mim parece um problema urgente. Embora Walzer deseje honestamente “ajudar as pessoas em países distantes a escapar da pobreza e do terror”, ele nunca considera que o melhor meio de fazê-lo é remover um exército dos EUA que repetidamente causou os mesmos horrores que ele quer aplacar.

Apesar de seus problemas significativos, A Foreign Policy for the Left contém vários insights. Talvez o mais importante seja o argumento de Walzer de que a esquerda deve se concentrar tanto “no que nosso próprio Estado está fazendo nos países de outras pessoas” quanto no que “nossos partidos, sindicatos e organizações não governamentais [isto é, de esquerda] devem fazer no mundo. Em outras palavras, Walzer destaca utilmente a distinção entre a política externa do Estado e o que pode ser chamado de política externa da sociedade civil. Embora estes estejam relacionados, eles não são os mesmos. Na primeira, os atores centrais são as elites - analistas, especialistas, burocratas - o que ressalta a necessidade de a esquerda desenvolver quadros capazes de manipular efetivamente as alavancas do poder estatal caso um governo socialista democrático seja eleito. Neste último, os atores centrais são pessoas comuns que têm a capacidade de construir solidariedades transnacionais a partir de uma política antimilitarista, antiimperialista e pós-capitalista. A questão para a esquerda é como integrar esses dois tipos de política externa em um programa coerente que seja popular, eficaz e sábio – tarefa nada fácil e à qual os esquerdistas devem se dedicar nos próximos anos.

***

Infelizmente, nem Mearsheimer nem Walzer oferecem recomendações sobre como reformar o processo de formulação de política externa. Para ambos os estudiosos, a política externa se concentra no que os Estados Unidos devem ou não fazer no mundo. No entanto, hoje, várias das questões mais importantes da política externa estão em casa. Desde pelo menos 1945, a política externa dos EUA tem sido feita por um pequeno grupo de elites não eleitas abrigadas em agências executivas e livres de responsabilidade pública e do Congresso. Na esteira da miríade de desastres de política externa desde o 11 de setembro, do Afeganistão ao Iraque, à Líbia, à Síria e ao Iêmen, essa elite, sem surpresa, perdeu sua legitimidade. De fato, durante sua campanha nas primárias, o presidente Donald J. Trump deu um golpe de mestre ao criticar o establishment por seus muitos fracassos. E ele não estava errado. Dado que os Estados Unidos estão entrando em uma nova era geopolítica definida não pela unipolaridade e hegemonia, mas pelo multilateralismo e compartilhamento de poder, talvez seja hora de os americanos repensarem como a política externa dos EUA é feita. Como podemos garantir que a política externa dos EUA seja mais democrática? Como podemos garantir que os formuladores de política externa sejam responsabilizados profissional e legalmente? Essas são questões críticas que os pensadores de política externa, que por muito tempo se concentraram no mundo e não nos Estados Unidos, devem começar a abordar seriamente.

Mearsheimer e Walzer representam dois lados importantes do debate dominante sobre política externa. Embora à primeira vista tenham pouco em comum, ambos estão respondendo de maneira significativa à geopolítica das décadas de 1930 e 1940. Mas o mundo de 2018 manifestamente não é o mundo de 1945 - muito menos de 1933 - e talvez seja hora de desenvolver uma nova geoestratégia livre de traumas passados. Embora as relações internacionais às vezes sejam desagradáveis ​​e brutais, nunca devemos supor que são para sempre. Se desistirmos da política transformacional, como faz Mearsheimer, e se permanecermos atolados nas banalidades dos anos 1990 e 2000, como Walzer, nossa política externa continuará a ser definida pelo fracasso, destruição e morte. Pelo bem dos americanos e daqueles que vivem no exterior, não podemos permitir que isso aconteça.

Daniel Bessner é professor associado da Escola de Estudos Internacionais Henry M. Jackson da Universidade de Washington e coapresentador do podcast American Prestige.

O retorno do partido

Por que os partidos de massa estão de volta? Porque ainda são a melhor forma de organizar os impotentes para enfrentar os poderosos.

Paolo Gerbaudo


O ex-líder do Partido Trabalhista Jeremy Corbyn reconhece os delegados após seu discurso no quarto dia da conferência do partido em 26 de setembro de 2018 em Liverpool, Inglaterra. Christopher Furlong / Getty

Tradução / É lugar comum observar que a era pós crise é definida pelo surgimento de movimentos populistas à direita e à esquerda, em meio a uma tendência de crescente polarização política. Todavia, menos comentado é o retorno do partido como ator central na arena política.

Por todo o Ocidente e na Europa em particular estamos testemunhando a ressurgência do partido político. Tanto partidos antigos, como o Labour no Reino Unido, quanto os novos, como o Podemos na Espanha e a França Insubmissa, experimentaram crescimento espetacular em anos recentes, ao mesmo tempo em que passaram por importantes inovações organizacionais. 

O retorno do formato-partido é formidável, considerando que, por muitos anos, sociólogos e cientistas políticos, de forma quase unânime, previram que o partido político estava perdendo sua primazia em uma sociedade digital globalizada e altamente diversificada.

De fato, a atual ressurgência da esquerda vem desmentindo tais previsões. Afinal, a tecnologia digital não suplantou os partidos; ao invés disso, ativistas têm usado os avanços da tecnologia para desenvolver mecanismos inovadores para atrair os cidadãos, mesmo afirmando a forma-partido como o principal instrumento da luta política.

Previsões fracassadas

Que os partidos políticos estão passando por uma revitalização é evidente, antes de mais nada, pelo número crescente de membros filiados, uma clara mudança em relação à longa queda no número de filiações que muitos partidos europeus históricos experimentaram no começo da década de 1980.

Na Grã-Bretanha, o Partido Trabalhista está no caminho de atingir 600.000 membros, o que acontece após chegar no fundo do poço com apenas 176.891 membros em 2007, ao final da liderança de Tony Blair. Na França, o movimento França Insubmissa, sob liderança de Jean-Luc Melenchon, contabiliza 580.000 apoiadores, o que o torna o maior partido da França um ano e meio após sua fundação. Na Espanha, o Podemos, fundado em 2014, gira em torno de 500.000 membros, mais do que o dobro do que o Partido Socialista. Mesmo nos EUA, um país que pela maior parte de sua história não teve partidos de massa no sentido europeu do termo, podemos ver um movimento de alguma maneira similar, tendo a maior formação socialista do país, o Socialistas Democráticos da América (DSA), crescido para 50.000 membros no decorrer da candidatura de Bernie Sanders para a nomeação do Partido Democrata em 2016.

Esse crescimento espetacular nas fileiras de membros dos partidos de esquerda - muitos dos quais recentemente formados - contrasta fortemente com as previsões que vinham sendo feitas até pouco tempo atrás por muitos cientistas políticos. Entre os anos 1990 e o período imediatamente anterior à crise financeira de 2008, acadêmicos concorreram na predição da queda definitiva do partido político. Em meio a uma crescente apatia dos eleitores e declínio de filiações, o partido político pareceu a muitos um tipo de organização antiquada - uma teimosa relíquia de um tempo que passou.

Em 2000, os famosos cientistas políticos Russell Dalton e Martin Wattenberg argumentaram que, “atualmente, extensa evidência aponta para o declínio do papel dos partidos políticos na formatação da política das democracias industriais avançadas. Muitos partidos políticos estabelecidos tem visto sua filiação esvanecer e o público contemporâneo parece cada vez mais cético sobre política partidária”. O acadêmico escocês Peter Mair afirmou que estamos testemunhando a passagem da “era da democracia partidária”, argumentando que uma série de fenômenos, tais como a volatilidade do eleitorado e o aumento do espalhado “sentimento antipolítico”, apontaram para o declínio dos partidos políticos.

Para além de ser um comentário sobre o declínio da filiação de históricos partidos de massa, tal diagnóstico foi frequentemente informado por teorias pós modernas sobre “o fim da história”, uma profecia que para muitos também significa que o partido - o ator histórico decisivo para parte significativa da teoria marxista tradicional - encontrou seu final.

Em meio à extrema diferenciação e individualização da sociedade em rede descrita pelo sociólogo Manuel Castells, com seu espaço crescente para a autonomia individual e flexibilidade, todas as organizações aproximariam a morfologia horizontal da rede, ao invés da estrutura vertical da pirâmide que dominou as organizações da era industrial. Esse não pareceu ser um bom prenúncio para o futuro do partido político que, por sua natureza, envolve a presença de uma estrutura de liderança centralizada, demandando disciplina e submissão da vontade individual ao objetivo coletivo.

Somou-se a isso a percepção de uma crise da identificação partidária. Identidades de classe não eram mais vistas como capazes de mobilizar os eleitores e partidos estavam se tornando organizações abrangentes, buscando votos de forma oportunista sempre que pudessem encontrar uma brecha no “mercado eleitoral”.

Essa sociologia de extrema complexidade, individualização e desintegração de classe foi acompanhada pelo argumento de que em um mundo globalizado, o partido perderia importância pela simples razão de que o estado-nação - o objeto tradicional de conquista do partido e sua referência operacional - estava perdendo poder em favor das instituições de governança global. Os auto-proclamados “marxianos” maîtres à penser Antonio Negri e Michael Hardt celebraram a mudança de um império de estados-nação para um global, não muito diferente da maneira como Thomas L. Friedman, colunista do New York Times, falou entusiasmadamente sobre a iminente vitória da globalização sobre as nações.

A condição global parecia favorecer outros tipos de organização coletiva, operando transnacionalmente e focando em “questões pontuais”: protestos em rede, movimentos sociais, caridades e ONGs. É significativo que o Fórum social Mundial, o evento principal do movimento anti-globalização, excluiu partidos explicitamente, como se eles fossem não apenas antiquados, mas também reprováveis moralmente.

Desconfiança anti-partido

Esse forte sentimento anti-partido que tem moldado a educação política das gerações passadas de ativistas de esquerda informou a distorção autoritária das formas ao longo do século XX.

O nazismo e o estalinismo demonstraram até que ponto o partido poderia ser transformado em uma máquina cruel, empenhada em manipular seus membros e comandar obediência inabalável. O cinema e a literatura produziram retratos vívidos do maligno efeito psicológico e político da obediência ao partido, tais como o abominável Partido Nazista de Hitler ou os julgamentos públicos e perseguições conduzidas pelos Partidos Comunistas no bloco soviético, tal como dramatizadas no livro Darkness at Noon, de Arthur Koestler. “Partidos de massa” social democratas mais benignos também produziram desapontamento generalizado.

Mas o que era problemático era o modo pelo qual esse criticismo justificado se aliou a um ressentimento liberal de longa data com o partido político, sustentado por um medo antidemocrático das massas organizadas e suas demandas de controle democrático e redistribuição econômica.

Esse discurso liberal tem uma história muito longa que remonta às origens da democracia moderna. Personalidades tão diferentes como James Madison, Moisey Ostrogorski, John Stuart Mill, Ralph Waldo Emerson e Simone Weil criticaram veementemente o partido político. Eles atacaram os partidos políticos por sujeitarem o indivíduo à obediência e à uniformidade e argumentaram que, em vez de servir aos interesses gerais da sociedade, os partidos acabavam defendendo os interesses estreitos de uma facção.

Emerson, por exemplo, afirmou que "uma seita ou partido é uma elegância incógnita, concebido para salvar um homem do tormento do pensamento", enquanto a anarquista cristã Simone Weil escreveu que os partidos políticos levaram a uma situação em que "em vez de pensar , apenas tomamos partido: a favor ou contra. Essa escolha substitui a atividade da mente.”

Nos tempos neoliberais, essa preocupação com a liberdade individual encontrou nova moeda na celebração freqüentemente ouvida do empreendedorismo e da espontaneidade das forças de mercado não regulamentadas, fazendo com que todas as formas de organização coletiva parecessem um impedimento ilegítimo. Em The Constitution of Liberty, Friedrich Hayek, o mais importante filósofo do “pensée único” (“pensamento único”) neoliberal expressou sua descrença na ordem organizada (táxis) e confiança na ordem espontânea (kosmos) da sociedade, modelada nas supostas “trocas livres” que ocorrem no mercado.

O partido político, como o Estado, é assim representado como um Leviatã cinza e burocrático que mina a liberdade, a expressão autêntica, a tolerância e o diálogo. Desanimadoramente, esse pensamento único veio a ser inconscientemente absorvido por muitos movimentos antiautoritários que emergiram na sequência dos protestos estudantis de 1968, ecoando os neoliberais com sua denúncia da organização coletiva e sua burocracia, em nome da autonomia e da autoexpressão pessoal.

Ironicamente, muito do desgosto que as pessoas hoje em dia sentem em relação aos partidos políticos é, em si, produto da ideologia neoliberal e da maneira como nos anos 1990 e 2000 essa ideologia facilitou a transformação dos velhos partidos de massa da era industrial em novos “partidos líquidos” no estilo dos “partidos profissionais / eleitorais” americanos. Esses partidos, cujo cinismo foi capturado na imaginação do público por séries de TV como House of Cards e The Thick of It, substituíram os velhos apparatchiks por spin doctor, e os quadros partidários por pesquisadores [de opinião] e consultores de comunicação.

Assim, quando pessoas de diferentes convicções protestam contra os partidos políticos, elas podem muito bem ter diferentes tipos de partidos em mente. No entanto, eles parecem pensar que há algo inerentemente errado na forma do partido como tal.

Organizando as massas populares

Por que, então, o partido político está voltando, apesar de todas essas críticas?

Esse ressurgimento, observado nos últimos anos por vários autores como Jodi Dean, é um reflexo da necessidade política fundamental da forma partidária, particularmente em tempos de crise econômica e crescente desigualdade. O partido político é a estrutura organizacional através da qual as classes populares podem se unir e desafiar o poder concentrado dos super-ricos e dos oligopólios econômicos; ou seja, desafiar os mesmos atores que usaram a crise financeira para impor uma espetacular transferência de riqueza a seu favor.

Anos de neoliberalismo convenceram muitos de que suas necessidades materiais poderiam ser satisfeitas por meio de seu próprio esforço individual, empreendedorismo e competição individual, por meio da suposta meritocracia do sistema. Mas o fracasso do capitalismo financeiro em criar bem-estar econômico convenceu muitos de que a única maneira de promover seus interesses é se reunir novamente em uma associação política organizada.

Essa reação quase instintiva às dificuldades econômicas serve para demonstrar o papel contínuo do partido como o meio pelo qual uma unidade de classe pode alcançar uma vontade coletiva e se tornar uma força política. De fato, esse entendimento há muito é discutido na tradição marxista; da análise de Karl Marx e Friedrich Engels em O Manifesto Comunista, à discussão de Lenin sobre o partido de vanguarda, às observações de Antonio Gramsci sobre o “príncipe moderno” nos Cadernos da prisão e, de fato, a reflexão de Nicos Poulantzas em Poder Político e Classes Sociais. O partido de vanguarda leninista e o partido de massas social-democrata forneceram diferentes soluções para a prossecução desta missão. No entanto, ambos acabaram por erguer uma vasta burocracia para atender à tarefa do que Gramsci chamou de “centralizar, organizar e disciplinar” a massa de apoiadores.

Robert Michels, um dos pioneiros da teoria do partido moderno, atacou essa burocracia florescente como a raiz da “lei de ferro da oligarquia”. Mesmo assim, ele argumentou que seu surgimento refletia uma necessidade fundamental de organização de massa. “A organização, baseada no princípio do menor esforço, ou seja, na maior economia possível de energia, é a arma do fraco contra o forte.” O partido atua, assim, como um “agregado estrutural”, proporcionando aos membros uma forma de amalgamar suas forças e superar esse isolamento - que, como observou Nicos Poulantzas, define de outra forma a experiência dos trabalhadores, constantemente desorganizados pela política de “dividir para reinar” promovida pelo capital e pelo estado.

Embora a burguesia esteja dividida em muitas linhas (ou seja, as divisões entre capital comercial, industrial e financeiro), é muito mais fácil para ela se unir, dado seu número muito menor e sua posse de locais-chave de agregação social, como marinas, campos de golfe, lojas maçônicas e clubes rotários, sem falar de seus juramentos de sangue celebrados por meio de casamentos mistos. Diante dessa densa oposição, os partidos políticos são fundamentalmente “armas dos fracos”.

Como escreveu o sociólogo americano Anson D. Morse, eles são os meios para “converter muitos em um”, unindo forças dispersas com o objetivo final de apresentar um desafio crível contra o poder econômico concentrado. É precisamente por isso que sempre foram vistos com desdém pelas elites liberais, mas também vistos com desconfiança pela pequena burguesia, que, como argumentou o sociólogo francês Maurice Duverger, tem medo do encadrement [ter uma estrutura imposta a ele] e de perder sua autonomia individual.

Hoje, enfrentamos uma economia digital que está dividindo e isolando trabalhadores por meio de terceirização, downsizing e supervisão algorítmica remota - visível, por exemplo, em empresas como Uber e Amazon. Nesse novo contexto, a necessidade de o partido atuar como um “agregado estrutural”, reunindo o poder de muitos indivíduos isolados, é mais importante do que nunca. Isso é especialmente verdade, dado que, embora os partidos estejam claramente em ascensão, como demonstrado por seu número crescente de membros, o mesmo dificilmente pode ser dito dos sindicatos e outras formas tradicionais de organização popular.

Na era pós-crash, é claro que os partidos políticos devem atender às tarefas de representação política, cuja necessidade mais uma vez se torna evidente. Mas parece que eles também precisam compensar o fracasso comparativo de outras formas de representação social, para expressar os interesses dos trabalhadores e exigir concessões dos empregadores.

Considerando tudo isso, não deveria ser surpresa que em tempos marcados por grotescas desigualdades sociais e individualização desenfreada, o partido político esteja voltando com força total. Claramente, o “príncipe hipermoderno” (para distingui-lo do “príncipe moderno” descrito por Gramsci) é muito diferente do partido burocrático da era industrial, apesar de sua tentativa semelhante de construir espaços de participação em massa. Como visto mais claramente em novas formações como Podemos e France Insoumise, as organizações políticas emergentes geralmente têm uma estrutura de direção central muito mínima e ágil, o que as torna semelhantes ao modelo operacional “enxuto” de empresas iniciantes na economia digital.

Essas formações podem preferir se autodenominar “movimentos”, devido às associações negativas que o partido político ainda evoca na esquerda. Mas os partidos políticos é o que eles são em última análise. Eles são melhor compreendidos como esforços para inovar a forma partidária e adaptá-la às circunstâncias atuais, nas quais a experiência social e os padrões de vida cotidiana são totalmente diferentes das condições da era industrial em que o partido de massas emergiu. Eles estão surgindo em um contexto no qual as seções locais, os quadros e o complexo sistema de delegação típico dos partidos socialistas e comunistas tradicionais se tornaram amplamente ineficazes.

Os ativistas estão tentando enfrentar esse desafio usando uma variedade de ferramentas digitais, incluindo plataformas participativas online, baseadas no sistema OMOV (one man one vote), no qual todos os membros registrados são chamados a participar das decisões tomadas em plataformas participativas online. Como descrevo em The Digital Party: Political Organization and Online Democracy, há um debate veemente dentro e fora dessas formações sobre se essa mudança de “democracia delegada” para democracia direta online é realmente uma melhoria. E, de fato, algumas dessas organizações estão se afastando da “lei de ferro da oligarquia” denunciada por Michels, apenas para colidir com um “plebiscitarismo” digital igualmente problemático, acompanhado de uma liderança carismática - uma espécie de “hiperliderança” no topo.

No entanto, em suma, esta transformação organizacional deve ser saudada como uma tentativa ousada de reviver a forma partidária. Isso é particularmente verdadeiro em uma época em que agregar as classes populares em um ator político comum é claramente necessário para abalar um equilíbrio de forças que é esmagadoramente empilhado em favor das elites econômicas. Abordar esse objetivo estratégico levantará questões espinhosas de poder e organização interna que por muito tempo os ativistas de esquerda se esquivaram.

Ao contrário do que alguns diziam na virada do milênio, não há como "mudar o mundo sem tomar o poder". E não há como tomar o poder e mudar o mundo sem reconstruir e transformar os partidos políticos.

Colaborador

Paolo Gerbaudo é professor de cultura digital e sociedade no King's College London e autor de The Mask and the Flag.

21 de outubro de 2018

Fora dos trilhos

Modernizar não é comprar trem. O fundamental é reduzir a frequência. Há muito poderíamos contar com 290 km a mais de metrô

Eduardo Fagnani

Folha de S.Paulo

O debate sobre os transportes públicos é desalentador. Ao lado da esgotada opção pelo ônibus (na forma de corredores), emergem "soluções" elitistas (bicicletas) e utópicas (restrição ao uso do automóvel, pedágio, carona, rodízio etc.). Bicicleta é bom para quem mora em Higienópolis (centro) e trabalha no Pacaembu (zona oeste). Não serve para a minha empregada, que mora no Capão Redondo (zona sul) e trabalha no Butantã (zona oeste). Usar automóvel não é ato de vontade, mas falta de opção.

O problema remonta à década de 1950. A acelerada urbanização não foi acompanhada de ação pública. O setor nunca foi prioridade, e usuários sempre foram tratados como gado.

Em metrópoles europeias, o transporte coletivo prepondera ante o individual. No universo dos meios coletivos, metrô e trem respondem pela maioria das viagens; o ônibus tem papel suplementar.

Caracas e Cidade do México seguem esses parâmetros. Aqui, ocorre o inverso. Entre 1967 e 2007, a participação dos meios coletivos declinou (de 68% para 55%) em favor do automóvel.

No âmbito exclusivo das viagens coletivas, em 2007, o ônibus respondia por 78% dos deslocamentos, ante 16% do metrô e 6% do trem.

Iniciamos tarde o investimento em transporte público e não recuperamos o tempo perdido. Desde 1968, construímos, em média, 1,7 km de metrô ao ano. Na Cidade do México e em Santiago, o ritmo é superior -4,4 km e 2,6 km, respectivamente. Xangai constrói 21 km/ ano desde 90. Aqui, as obras da linha amarela (de 12 km) já levam 16 anos.

O indicador "população por km de linha" evidencia a reduzida oferta.

Em 2009, figurávamos entre as dez piores situações globais (278 mil pessoas/km), distantes da Cidade do México (94 mil) e de Santiago (55 mil) e da maioria das aglomerações(entre 10 e 30 mil).

Nosso metrô é um dos mais superlotados do mundo (27mil passageiros por km de linha), taxa superior às da Cidade do México, de Buenos Aires, de Santiago (entre 15 e 19mil) e da maior parte das metrópoles mundiais (inferior a 10 mil).

Com a privatização, o metrô tem de dar lucro. Nos últimos 20 anos, a tarifa subiu quase o dobro da inflação. Em 2009, nossa tarifa (€ 0,99) era semelhante à de Lisboa (€ 1,05). Todavia, o lisboeta trabalhava 14 minutos para comprar um Big Mac; o paulistano, 40. Cidades latinas possuíam tarifas inferiores: Santiago (€ 0,72); Bogotá (€ 0,57); Buenos Aires (€ 0,31) e México (€ 0,18).

Não priorizamos a modernização dos 290 km da CPTM, que demanda investimentos muito menores (pois evita desapropriações e subterrâneos). Em 2007, o metrô (60 km) transportou 2,2 milhões de pessoas/ dia, enquanto a CPTM (290 km) se restringia a 800 mil. Essa disparidade é explicada pela rápida frequência do metrô. Modernizar não é comprar trem. O fundamental é reduzir a frequência. Há muito poderíamos contar com 290 km adicionais de metrô.

O governo estadual é o principal responsável pela crise, seguido pelo município, que não investe no sistema. A União também foi omissa: em 1990, o tema saiu da agenda, só retornando em 2007(via PAC).

Precisamos elaborar uma política nacional assentada na responsabilidade compartilhada entre os entes federativos e ancorada em fontes de financiamento sustentadas.

O Brasil pode resolver essa questão no curto prazo. Estima-se que meio ponto a mais na taxa de juros tenha um custo de R$ 15 bilhões -o suficiente para construir mais da metade da rede de metrô paulistana.

Transporte público em metrópoles do porte das capitais brasileiras requer sistemas de alta capacidade.
Isso é o que separa a civilização da barbárie. Transporte é um direito do cidadão, e não apenas do torcedor da Copa do Mundo.

EDUARDO FAGNANI é professor doutor do Instituto de Economia da Unicamp

20 de outubro de 2018

O Karl Marx da música

O compositor Hanns Eisler foi comunista ao longo da vida e se descreveu como jacobino. Sua música forneceu a trilha sonora das tragédias e triunfos do antifascismo alemão.

Alex Brown

Jacobin

Bertolt Brecht e Hanns Eisler, data desconhecida. Cidade de Liebzig, Alemanha.

Hanns Eisler foi um dos maiores compositores da era moderna. No entanto, sua biografia se parece mais com um thriller de espionagem do que com as carreiras acadêmicas de muitos de seus contemporâneos musicais. Nascido em 1898 em uma família pequeno-burguesa em dificuldades, sua vida levou-o a alguns dos momentos decisivos do século XX, das linhas de frente da Primeira Guerra Mundial a Berlim durante a ascensão do nazismo, Guerra Civil Espanhola, América McCarthysta, e Alemanha da era da Guerra Fria.

Um talentoso compositor de trilhas sonoras de filmes, Eisler, o indicado ao Oscar, é talvez mais conhecido por escrever o hino nacional da RDA (República Democrática Alemã), o estado fundado na porção oriental da Alemanha após a Segunda Guerra Mundial. A mensagem otimista de Auferstanden aus Ruinen (Arisen from Ruins) refletia a promessa de superar os crimes e a devastação da era nazista.

O futuro socialista não foi realizado: o novo estado nasceu em circunstâncias adversas e acabou por desmoronar. Mas Eisler, que morreu em 1962, também representou uma geração que sentiu o fascismo em seu próprio couro e procurou criar uma nova Alemanha. Por décadas um colaborador de Brecht, Eisler é um protagonista indevidamente esquecido de um ambiente cultural galvanizado por um humanismo socialista compartilhado.

"Politicamente não-confiável"


Embora nascido em Leipzig, na Alemanha, filho de pai judeu-austríaco e mãe alemã, Eisler cresceu na Viena natal do pai, junto com sua irmã Elfriede e seu irmão Gerhart. Isso permaneceria perceptível no forte sotaque vienense que ele sempre mantinha quando falava alemão. Eisler com frequência comentava sobre sua herança de classe dual: sua mãe, uma criada pobre, trouxe histórias da realidade da classe trabalhadora no final do século XIX, enquanto seu pai filósofo vinha da Bildungsbürgertum (pequena burguesia educada) e assegurava que houvesse uma rigorosa filosofia humanista dentro da casa da família.

Durante sua juventude, a família passou por períodos de extrema pobreza. Eles apoiaram o Partido Social Democrata e, aos quatorze anos, Eisler juntou-se a um grupo de jovens socialistas. Ele mostrou talento musical desde muito jovem, completando sua primeira composição aos dez anos de idade. Como o pai de Eisler não podia mais pagar pelo aluguel de seu piano, isso foi feito sem a ajuda de um instrumento musical real.

Pouco depois de se formar na escola secundária em 1916, Eisler foi convocado para o exército austro-húngaro, na época lutando por sua sobrevivência na tempestade da Primeira Guerra Mundial. Oficiais classificaram Eisler como "politicamente não-confiável" devido a filiações em várias organizações socialistas e o fato de que seu irmão havia publicado uma revista anti-guerra ilegal. Após um breve período em uma escola de treinamento de oficiais de reserva onde ele foi repetidamente punido por desobedecer ordens, Eisler foi designado para um regimento de infantaria húngaro na frente oriental. Seus superiores esperavam que a barreira da língua o impedisse de mais agitação política. Eisler voltou-se para a composição de músicas em seus momentos de folga a fim de lidar com o horror e o tédio da guerra. Sua composição Gegen den Krieg (Contra a Guerra) desgraçadamente acabou se perdendo para as futuras gerações. No entanto, Eisler escreveu mais tarde sobre o impacto que a Revolução de Outubro de 1917 teve sobre os soldados, celebrando notícias que eles esperavam que parassem com o derramamento de sangue que se tornara sua realidade diária.

Após a rendição final das Potências Centrais (Alemanha, Áustria-Hungria, Império Otomano e Bulgária) em 1918, Eisler voltou para Viena. Graças à sua promessa óbvia, tornou-se um estudante pessoal do famoso compositor expressionista Arnold Schönberg, inventor da técnica dos doze tons. No entanto, apesar da inovação radical dos grupos musicais pelos quais ele estava se movendo, Eisler se encontrava inquieto dentro dos limites políticos da Viena pequeno-burguesa e incapaz de ganhar a vida. Em 1925 mudou-se para Berlim, um foco de sedição cultural e política na época. Apoiando-se ao trabalhar como professor de piano, Eisler envolveu-se em agitação política escrevendo canções para coros operários e grupos de agitação, incluindo o mais famoso conjunto comunista da República de Weimar - Das rote Sprachrohr (O Megafone Vermelho).

Em 1926, Eisler conheceu o jovem dramaturgo Bertolt Brecht, de quem ele se tornou um grande amigo. O destino de Eisler logo se entrelaçou com o do célebre dramaturgo, com quem ele colaboraria estreitamente para o resto de sua vida. Nesse mesmo ano, Eisler entrou para o Partido Comunista da Alemanha (KPD) e começou a trabalhar como crítico de música para o jornal do partido, Die rote Fahne (A bandeira vermelha). Durante esse período, suas canções se tornaram parte da trilha sonora da revolução social que parecia borbulhar sob a superfície de Berlim ao longo dos anos 1920 e início dos anos 1930. Isso foi em grande parte graças à sua colaboração com Ernst Busch, um cantor da classe trabalhadora que se tornou uma das vozes mais famosas da falecida República de Weimar. Eisler compôs muitas canções para ele cantar, geralmente usando letras tiradas da poesia ou das peças de Brecht e Erich Weinert (outro autor comunista amplamente conhecido). Busch tocou com Eisler ao piano em todos os clubes e pubs dos trabalhadores de Berlim e além. Uma das canções mais influentes deste período foi Roter Wedding (Red Wedding). Esta marcha inspiradora fala de Wedding, um famoso bairro comunista em Berlim, e conclama os ouvintes à ação:

“Red Wedding” greets you comrades,
Hold your fists at the ready!
Keep the red ranks closed,
As our day is fast approaching!

Com a ascensão meteórica do Partido Nazista após o crash financeiro de 1929, a atenção de Eisler, como muitos de seus camaradas comunistas, foi cada vez mais direcionada para a atividade antifascista. Uma colaboração com Brecht e Ernst Busch, Das Lied vom SA-Mann (A Canção do Homem da SA) conta a história de como uma camisa marrom nazista, inicialmente entusiasta, vê o erro de seus modos ao receber ordens para atirar em colegas de trabalho. O Gegen den Faschismus (Canção de Batalha Contra o Fascismo) em 1932 era um popular single de vinil de goma-laca que destacava o fato de que muitos capitalistas estavam apoiando a suposta agenda "nacional socialista" de Hitler. Igualmente, pedia a todos os ouvintes que se esquecessem das antigas divisões e se unissem à frente única sob a bandeira vermelha. Embora produzir material especificamente antifascista fosse naturalmente uma preocupação fundamental de Eisler nesse período, ele, como Brecht, também reconheceu que ser contra algo não era suficiente e que os socialistas tinham de oferecer uma alternativa positiva inspiradora à demagogia divisiva da extrema direita.

Projetos como o famoso filme Kuhle Wampe (Who Owns the World), financiado pelo KPD, para o qual Eisler compôs a partitura, tinham como objetivo comunicar de maneira convincente por que o sistema capitalista era responsável pelo desemprego, fome e destituição em massa que afetavam milhões de alemães. O filme termina com uma versão animada da famosa Solidaritätslied de Eisler e Brecht, que clama pela unidade da classe trabalhadora entre nações e raças para construir um mundo melhor para todos, pedindo poderosamente em seu refrão final: “Wessen Welt ist die Welt? ”(“ De quem é o mundo?”) Durante as filmagens, os membros do KPD tiveram que se proteger fisicamente dos conjuntos de camisas marrons da SA e o filme foi banido após a liberação pelo governo, demonstrando os interesses cada vez mais alinhados do estado alemão e do partido nazista.

Apesar dos muitos desafios que enfrentaram, Eisler, Brecht e Busch et al. desempenharam um papel significativo na construção de redes culturais em prol da massa da classe trabalhadora em Berlim, estabelecendo uma “hegemonia vermelha”. É importante ressaltar não apenas a oposição ao fascismo e capitalismo, mas também uma alternativa inspiradora e concebível: o futuro socialista da humanidade. Sua abordagem para construir uma alternativa cultural dependia de músicas cativantes, teatro e filmes voltados para o "homem comum", seguros em sua convicção de que apenas a classe trabalhadora poderia deter o fascismo e construir uma sociedade democrática digna desse nome. Embora esses esforços não pudessem deter o gigante nazista em nível nacional, deve-se notar que Berlim permaneceu “vermelha”; nas eleições democráticas finais, em 1932, os dois partidos obtiveram 62% dos votos (KPD, 38%; SPD, 24%) contra 22% dos nazistas.

Os anos de Hollywood


Depois que os nazistas alcançaram o poder do Estado em 1933, tanto a herança judaica de Eisler quanto as convicções comunistas o forçaram a fugir. O primeiro estágio de seu exílio foi passado em Paris. Para pagar as contas, ele escreveu partituras para filmes baratos, um dos quais ele descreveu como um "pedaço de merda".

Em fevereiro de 1934, Eisler viu em primeira mão o que descreveu como uma tentativa de golpe pelos fascistas franceses. Como um comunista comprometido, ele se apressou para as contra-manifestações organizadas pelos sindicatos franceses. Na chegada, ele encontrou a multidão reunida cantando a versão francesa do Roter Wedding (Casamento Vermelho), que se tornou um clássico do movimento internacional dos trabalhadores. Um operário, não reconhecendo o compositor e olhando para a sua calvície, abordou Eisler com suspeita, gritando: "Ei burguês, você deve cantar com a gente!" Eisler tentou o seu melhor, mas não conseguia lembrar a letra francesa de sua música e foi forçado a recuar, tendo sido confundido com um membro da burguesia fora do lugar que se deparou com a manifestação por acidente. O humor muitas vezes auto-depreciativo de Eisler foi demonstrado em seu prazer em regalar as pessoas com essa anedota.

Nos anos seguintes, Eisler se mudaria de lugar em lugar seguindo as encomendas de partituras dos filmes. Ele também procurou apoiar a luta comunista e antifascista internacional da melhor forma possível, dando concertos e gravando música. O Einheitsfrontlied (Canção da Frente Unida) que Brecht e Eisler compuseram a mando do Comintern (a aliança internacional dos partidos comunistas) em 1934 foi um marco dessas performances. A canção procurou sublinhar a nova política do Comintern, que buscava uma frente unida formal na luta contra o fascismo europeu e para cobrir as velhas divisões entre social-democratas e comunistas que haviam ajudado a dividir o movimento dos trabalhadores e contribuído para a ascensão do fascismo. Ainda é uma canção popular entre socialistas e antifascistas até hoje, tendo sido traduzida para muitas línguas e gravada por vários artistas.

No início de 1937, Eisler foi convidado para a Espanha pelas Brigadas Internacionais, formadas por voluntários internacionais que defendiam a República Espanhola dos clero-fascistas sob Franco. Chegando em Madri, foi rapidamente levado para a linha de frente em Múrcia, onde passou algumas semanas com a XI Brigada, famosa por estar envolvida em algumas das batalhas mais sangrentas do conflito, particularmente a defesa de Madri em 1936.

No dia de sua chegada, ele ficou tão inspirado pelos voluntários que escreveu quatro novas músicas naquele mesmo dia, que foram devidamente cantadas por voluntários de todas as nações em um concerto improvisado naquela noite. Muitos deles estavam gravemente feridos e exaustos, levando Eisler a recordar: "Eles não cantavam lindamente; suas vozes estavam roucas devido ao frio terrível das linhas de batalha. Mas eles cantaram com muita paixão. É assim que os camponeses devem ter cantado durante a Grande Revolta dos Camponeses, os taborites [um movimento milenar do século XV], é assim que a Marselhesia deve ter soado pela primeira vez. "Talvez a canção mais notável que veio da época de Eisler na Espanha é No Pasarán!, a interpretação musical de um poema da republicana espanhola Herrera Patere, que pôde ser ouvida em toda a Madri logo após sua gravação inicial e se tornou uma das mais icônicas canções e slogans da Guerra Civil Espanhola. No Pasarán! ainda é um grito de batalha comum para os antifascistas hoje.

Em 1938, Eisler emigrou para a América com um visto temporário com sua segunda esposa, Louise. Em Nova York, ele novamente se viu compelido a voltar sua atenção para compor partituras para sustentar sua família, incluindo um desenho animado financiado por magnatas do petróleo. Ele nunca poderia imaginar que as circunstâncias o deixariam trabalhando para o grande capital americano. Ao mesmo tempo, no entanto, ele estava envolvido nas atividades do Partido Comunista da América, ajudando a organizar um grande evento memorial para Lenin como parte das comemorações do aniversário da Revolução de Outubro. Como qualquer atividade comunista era motivo para revogar seu visto, ele adotou o pseudônimo de “John Garden”. Ele até ajudou a escrever o hino não oficial do Partido Comunista da América, Sweet Liberty Land.

Após uma série de complicações com vistos - Eisler era um comunista indesejável, no que diz respeito às autoridades americanas - havia uma ordem para sua prisão e deportação em 1940. Se ele tivesse sido mandado de volta para a Europa, é muito provável que Eisler tivesse viajado para a sua morte devido à sua herança judaica e fidelidade comunista bem conhecida. Felizmente para Eisler, ele foi capaz de buscar refúgio no México, naquela época governado pelo esquerdista Lázaro Cárdenas. Graças a um “funcionário consular adormecido” (como o Comitê de Atividades Antiamericanas da Câmara o chamaria posteriormente), Eisler logo conseguiu obter um visto ilimitado em pessoa na fronteira entre o México e a Califórnia. O oficial claramente não sabia que estava lidando com um conhecido comunista. Após breves temporadas em Nova York e na URSS, Eisler decidiu se juntar ao seu amigo Brecht em Los Angeles.

Após o assassinato do renomado nazista e principal arquiteto do Holocausto, Reinhard Heydrich, por partisans da Tchecoslováquia em 1942, Brecht e Eisler trabalharam juntos em um filme vagamente baseado nos eventos intitulado: Hangmen Also Die! Eisler conseguiu inserir-se na melodia do Comintern Song nos créditos finais, sob o título No Surrender. Por seu trabalho no filme, dirigido por Fritz Lang, Eisler seria nomeado para um Oscar, como o foi novamente por None but the Lonely Heart de Clifford Odets, em que Cary Grant fez o papel principal. Com a sua reputação como compositor de trilhas sonoras de Hollywood agora assegurada, Eisler achava ofertas de trabalho de forma rápida e grande quantidade. Em comparação com grande parte de sua experiência anterior com o exílio, Eisler agora podia viver confortavelmente. Ele e sua esposa compraram uma casa vizinha a exilados antifascistas, como o célebre romancista Thomas Mann e o filósofo da Escola de Frankfurt Theodor Adorno. A partir de 1943, o FBI manteria Eisler e esse círculo de antifascistas sob vigilância quase total, como atesta seu arquivo do FBI com mais de seiscentas páginas.

Em 1946, o infame House Un-American Activities Committee (HUAC) do Senator Joseph McCarthy reconvocou sua caça anticomunista. A aliança dos tempos de guerra com a URSS chegara ao fim e também a tolerância de curta duração com os emigrados comunistas. Hanns Eisler e seu irmão Gerhart, um funcionário do KPD, que estava na América desde 1941, foram alvo de uma furiosa campanha da imprensa. Eisler foi chamado perante o Comitê para descobrir que ele havia sido denunciado por ninguém menos que sua própria irmã Elfriede, agora usando o nome de Ruth Fischer.

Fischer foi o líder do KPD durante uma breve fase de ultra-esquerda em meados da década de 1920 caracterizada por atitudes sectárias em relação à cooperação com o SPD; nesse período, os membros do KPD foram proibidos de apertar a mão de membros do SPD e representantes parlamentares foram instruídos a usar luvas vermelhas. Após sua exclusão do paritdo em 1926, Ruth Fischer e seu marido Arkadi Maslow foram colaboradores próximos de várias figuras oposicionistas soviéticas, primeiro Grigory Zinoviev e depois de perto com Leon Trotsky até que eles se desentenderam com ele em 1936.

Em 1941, o casal que também fora forçado ao exílio antifascista, encontrava-se em Havana quando Maslow sofreu um ataque cardíaco, que Ruth Fischer sempre acreditou ser um assassinato direcionado por agentes soviéticos. Deste ponto em diante, ela se tornou um renegado comunista incansável, publicando uma revista anticomunista The Network, ministrando palestras anti-soviéticas na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e até se tornando uma figura chave nas atividades anticomunistas do precursor da CIA The Pond. Fischer parecia estar decidido a derrubar o comunismo mundial sozinho e seus irmãos foram seu primeiro alvo, apesar do fato de que ela permaneceu amiga de Hanns durante os anos de guerra, recebendo apoio financeiro dele e até mesmo permanecendo com ele em Los Angeles em várias ocasiões. As cartas que ela enviou ao HUAC mostram como ela se tornou paranoica. Ela também começou a publicar anúncios de página inteira em jornais em todo o país, acusando seu irmão Gerhart de ter assassinado o político soviético Nikolai Bukharin e de ser um espião nuclear da União Soviética.

O futuro presidente, Richard Nixon, sentou-se no HUAC e observou em seus preparativos que o caso contra Eisler poderia ser "o mais importante" a ser levado diante deles. Em retrospecto, os historiadores acreditam que o caso de Hanns Eisler foi concebido como a salva de abertura das audiências de Hollywood, em que dezenas de atores, artistas e outros profissionais do cinema foram submetidos a períodos prolongados de pressão e escrutínio, a fim de farejar qualquer cheiro de comunismo.

Eisler anotou suas impressões do HUAC em seu diário: “Essa audiência é sinistra e risível ao mesmo tempo. O Comitê não está realmente interessado em meu testemunho, tem apenas dois propósitos: apresentar-me como um monstro publicamente e me jogar na cadeia por perjúrio.” A ameaça da prisão era muito real; o irmão de Hanns, Gerhart, foi condenado a três anos de prisão, embora tenha finalmente conseguido fugir para a Europa em 1948, contrabandeando a bordo de um navio enquanto estava sob fiança.

Eisler procurou defender-se das maquinações dos McCarthystas respondendo à pergunta infame: "Você é ou foi a qualquer momento membro do Partido Comunista?", declarando em seu inglês altamente germanizado que ele havia "feito uma inscrição", mas não tomou “mais cuidado com isso” devido a suas “atividades artísticas”, ao mesmo tempo em que notou que, assim como membros de qualquer ordem, se você não pagasse suas dívidas, “desistiria”. Essa semântica equilibrada era necessária para tentar manter-se fora da cadeia. No entanto, isso não o impediu de ocasionalmente provocar o Comitê e fazer alguns golpes. Quando foi perguntado ao investigador-chefe, Robert Stripling, sobre qual era o propósito de ler tantas citações das canções, entrevistas e artigos de Eisler, ele retrucou arrogantemente: “O objetivo é mostrar que Eisler é o Karl Marx do comunismo na área da música.” Eisler respondeu laconicamente: “Isso me lisonjiaria!”


Enfrentando o futuro


Ao chegar em Viena, Eisler logo percebeu que não era a mesma cidade de sua juventude ou mesmo de suas visitas durante o exílio. Ele encontrou um boicote cultural e pessoal de quase qualquer coisa associada ao comunismo. O Partido Comunista da Áustria conseguiu um apartamento para ele, mas as perspectivas de sua carreira musical pareciam sombrias. Em junho de 1949, Eisler emigrou para Berlim. A promessa de trabalho da companhia estatal de filmes GDR, DEFA, o fato de que seu velho amigo Brecht estava estabelecendo um grupo de teatro Berliner Ensemble, e a possibilidade mais ampla de contribuir para o primeiro estado socialista em solo alemão parecem ter sido decisivos para o compositor agora com cinquenta e um anos de idade.

Eisler se jogou com entusiasmo no Aufbau (construção) do socialismo. Em 1951, ele escreveria: “Desde minha juventude, tenho me esforçado para escrever música em benefício do socialismo. Esta tarefa tem sido difícil e muitas vezes cheia de contradição. Mas essa parece ser a única tarefa digna para os artistas de nossa época.” A primeira contribuição de Eisler foi compor o hino nacional da RDA, Auferstanden aus Ruinen (Arisen from Ruins), com letras do poeta Johannes R. Becher. A canção capturou o clima dos tempos, a esperança e a determinação de construir uma sociedade socialista a partir das ruínas do fascismo e da guerra alemães.

No entanto, os primeiros anos de Eisler na RDA não se passaram sem controvérsia. Em 1953, ele foi acusado de degradar a lenda nacional do Fausto de Goethe com sua peça, que ele pretendia transformar em uma ópera, Johann Faustus. Os detalhes dessa disputa em grande parte acadêmica talvez sejam difíceis de apreciar cerca de sessenta e cinco anos depois. Mas mais interessante é a tentativa perceptível em alguns setores de destacar episódios como este, a fim de dissociar o célebre intelectual Eisler de seu país escolhido, a RDA, como se fossem evidência de sua postura "dissidente" ou "oposicionista".

Narrativas semelhantes podem ser encontradas com relação a Bertolt Brecht e Ernst Busch, entre muitos outros intelectuais e artistas comunistas. Disputas relativamente menores são desproporcionalmente enfatizadas a fim de reivindicar esses comunistas convencidos para um cânone liberal ocidental de "intelectuais críticos". Seu marxismo-leninismo é visto como uma anomalia estranha devido aos tempos em que viviam e operavam. Comentaristas como Friederike Wißmann ou Andrea e Philip Bohlmann retratam Eisler como um intelectual “cosmopolita” cuja relação com o comunismo pode ser descrita em termos de “dissidência”. Os bohlmanns sugerem que o senso de justiça e o espírito de luta de Eisler foram derivados não de suas convicções marxistas, mas de sua identificação com o judaísmo, apesar de seu firme ateísmo convicto.

Essa tendência parece ter sido parte de uma mudança discursiva mais ampla, resultante do suposto "fim da ideologia" (como alegou Francis Fukuyama) e da deslegitimação da esquerda socialista na década de 1990. Marx e especialmente Lênin não podiam mais ser discutidos. No entanto, quase trinta anos depois, em um mundo pós-colisão no qual o autoritarismo de direita e a insegurança econômica estão em ascensão, podemos ver que essa proclamação da “vitória final” do capitalismo e da democracia liberal era em si uma mera expressão de viés ideológico.

Isso exige que reconsideremos a história e a tradição que intelectuais comunistas como Eisler realmente representam. Suas próprias palavras finais sobre o debate de Fausto dizem: "Eu só posso imaginar o meu lugar como artista naquela parte da Alemanha, onde as bases para o socialismo estão sendo construídas de novo."

A questão da liberdade artística era uma das quais Eisler gostava de filosofar. Ele rejeitou qualquer noção liberal de absoluta liberdade artística, considerando que os artistas devem se esforçar para servir a um propósito mais elevado: “Eu não acredito em liberdade artística que simplesmente existe para seu próprio prazer. A esse respeito, posso afirmar claramente que sou um jacobino”.

Sol sobre a Alemanha

Eisler evidenced this unity of artistic purpose and meaning with aesthetic quality throughout his time in the GDR. This was particularly poignantly expressed with the music he composed for French director Alain Resnais’s Nuit et brouillard (Night and Fog). The groundbreaking 1956 documentary was one of the first to bring the horrors of the Holocaust to a wider Western European audience. Eisler’s haunting melodies overlap with images of Auschwitz-Birkenau, testimony from survivors, and the final montage of camp guards repeating the same words, “I am not responsible.” Eisler’s music, like the film itself, avoided sentimentality, which is perhaps why it remains a potent classic to this day.

The Jewish-heritage communist Eisler had always considered it his duty to educate the world about the horrors of fascism, and not least to teach that fascism was a form of capitalism. As the opening lines of one of his 1930s songs had plainly put it: “Who pays the money for Hitler and his company? It is the big profitlers [sic] of the weapons industry!” This duty came to fruition in his magnum opus the Deutsche Sinfonie (German Symphony). Eisler began work on the symphony during his exile period, the first two movements were scheduled to be performed in 1937 as part of the Paris World Exhibition. However, the Nazis persuaded the French government to cancel the performance. A slightly more developed version was scheduled to be performed in England in 1940, however, this was halted, somewhat ironically, due to anti-German sentiment among the English musical establishment. It would not be fully completed until 1958, shortly before its premiere.

Using lyric poetry from Brecht, Eisler created a sweeping cacophony of intermittent tales. They tell of the concentration camps — the original title was Concentration Camp Symphony — of the bloody hands of German soldiers raised in the Hitler salute, but also of the suffocating atmosphere of enforced conformity and denunciation which characterized life under fascism for ordinary Germans. In many respects, the symphony represents a socialist artist’s comment on the “German question” in the Nazi era but also, significantly, thereafter. Eisler gives a resounding answer that this question is, at its core, a question of class struggle. The penultimate and longest section entitled Worker’s Cantata is a stirring reworking of Brecht’s Lied vom Klassenfeind (The Class Enemy Song). It tells a moving story of a worker grappling with the class system around them from childhood onwards, through war, hunger, and poverty. The repeated motif of rain falling from above to below serves to illustrate the upper class’s inherent need to exploit the classes below, for example:

Rain can’t suddenly fall up
because it is benevolently inclined,
but what it can do is: it can stop
once the sun comes out and shines.

The metaphorical sun is an end to the capitalist class system; that is, socialism.

With this emphasis on the class nature of any nation, and therefore the disparities of power, of influence, and of the ability to forge the ideology of that nation, Eisler sought to point an accusing finger at the German capitalist class which had handed power to Hitler in order to brutally crush the latent social revolution. This is again highlighted in the epilogue of the symphony, which repeats:

Look at our children, stunned and besmeared in blood!
Freed from a frozen Panzer they come:
Even the Wolf who licks his lips needs
a place to hide! Warm them, they are numb.

Eisler did not wish to excuse the crimes committed by German soldiers in the name of the German nation — far from it. But as a consistent Marxist he wanted his audience to understand that these crimes had ultimately stemmed from a dialectic of material events and relations that emanated from capitalist class society — a lesson many writers on the subject of fascism appear to have forgotten. Eisler’s magnum opus is ultimately a powerful call for recognition of Germans’ culpability but also their resistance; a call for the rehabilitation of those led astray and for an end to the socioeconomic structures that ingrain division, competition, and ultimately war.

Two events in 1956 had a profound effect on Eisler. Firstly, in February, Khruschev’s so-called “Secret Speech” attacked the deceased Soviet leader Joseph Stalin. It shattered the positive image of Stalin and thus of the entire Soviet-influenced socialist project. The repercussions of the speech are still felt in debates surrounding communism today. Secondly, in August his best friend and collaborator Brecht died aged fifty-eight. Following this, Eisler fell into a deep depression and began to drink heavily. However, this blue funk was short-lived. He dedicated himself to continuing the work of his dear departed friend, setting numerous of Brecht’s words to music, notably Kriegsfibel (War Primer) and Schwejk im zweiten Weltkrieg (Schweik in World War II), a powerful reworking of Czechoslavakian author Jaroslav Hašek’s celebrated World War I novel The Good Soldier Švejk. In 1958 he received the National Prize of the GDR for his combined efforts.

Eisler would never have been happy with superficial simplifications such as the concept of “Stalinism” or “anti-Stalinism.” He instead sought to get to grips with the fluid development of socialism; to understand it dialectically and contextualize the birth pangs of a revolution surrounded by hostile enemies and to do so without moralizing judgements. He sought to envisage the trajectory of a socialist society truly unencumbered by imperialist encirclement, hot or cold war; a society that had traversed the vestigial class divisions and resentments that were clearly still present in the early postwar socialist states. This can be seen from his final major work Ernste Gesänge (Serious Songs) in which he comes to terms with the history of socialism, warts and all, but communicates the importance of learning from the tradition and past of socialism in order to build the “scarcely imagined joy: life without fear.”

Hanns Eisler would not live to see his hopes fulfilled. He died on September 6, 1962. He was given a full state funeral by the GDR, which set up an award to honor his legacy: the Hanns Eisler Music Prize has been awarded since 1968 for outstanding compositions. The Hanns Eisler College of Music in Berlin still bears his name today. There are a great many things we can learn from a life like Eisler’s but perhaps the most poignant is captured in the words of Brecht, which Eisler himself set to music, “Change the world, it needs it!”

Sobre o autor


Alex Brown é um pesquisador de doutorado na Universidade de Birmingham (Reino Unido), especializado na história da oposição na RDA.

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