6 de outubro de 2018

A virada repressiva do Syriza

O governo de Alexis Tsipras prometeu acabar com a austeridade. Agora está defendendo os bancos contra pessoas expulsas de suas casas - e perseguindo aqueles que protestam.

Stathis Kouvelakis e Costas Lapavitsas


O primeiro-ministro da Grécia, Alexis Tsipras, chega ao Conselho da União Européia para o primeiro dia da cúpula de líderes do Conselho Europeu em 22 de março de 2018 em Bruxelas, na Bélgica. Jack Taylor / Getty

Tradução / Muitos na esquerda internacional creem que as coisas na Grécia estariam melhorando devagar, e que o governo do Syriza ainda seria força de esquerda que protegeria os interesses de trabalhadores e dos pobres, mesmo nas difíceis condições atuais. Para os que ainda pensam assim, recentes desenvolvimentos no país serão terrível surpresa.

A amarga realidade é que, desde que se rendeu à Troika dos credores da Grécia (UE, Banco Central Europeu (BCE), FMI) em julho de 2015, Tsipras e seu governo têm seguido as mesmas políticas neoliberais radicais implementadas por todos os governos gregos desde 2010, quando foi assinado o primeiro acordo de resgate com a Troika.

O governo Tsipras promoveu cortes drásticos no gasto público, fez avançar a desregulação e estendeu as privatizações, além de arrochar salários, aposentadorias e benefícios sociais. Reduziu especialmente o investimento público, ao mesmo tempo em que elevou a níveis sem precedentes a taxação direta e indireta, o que feriu terrivelmente as famílias de renda média e baixa.

A única diferença em relação a governos anteriores é que Tsipras e seu partido foram eleitos em janeiro de 2015 precisamente para reverter essas políticas. Essa extraordinária virada no verão de 2015 — apenas dias depois de um referendo em que 61% do eleitorado rejeitou a imposição de ainda mais austeridade – foi choque traumático para o público grego. Nos três anos seguintes, o cinismo do governo Tsipras levou à desmoralização profunda que já contaminou todas as vias da vida pública. Passividade e desalento são os principais fatores que permitem ao governo implementar um novo resgate, já sem encontrar grande oposição.

O Syriza está pois prestando excelente serviço à Troika. Contudo, essas políticas de arrocho, desregulação e privatização, que agridem a maioria da população, são de fato impossíveis de implementar sem muita repressão e em contexto de coerção violenta. É impossível implantar todos os cortes nos serviços públicos, redução em pensões e em salários, aumentos de impostos, e condições de extraordinária exploração do trabalho, sem levantar oposição ativa e sem gerar medo do que possa acontecer a quem não se submeta.

É coisa já amplamente confirmada pela experiência política da Europa Ocidental, mas também dos EUA e de vários outros países nas últimas quatro décadas. De 2010 a 2015, a própria Grécia também assistiu a uma extraordinária proliferação de medidas repressivas e autoritárias, a cada novo governo e seus pacotes de resgate. Lentamente – e inevitavelmente – também o governo de Alexis Tsipras tomou o mesmo rumo.

Especialmente violento, nos últimos meses, é o modo como a pressão sobre os bancos gregos levou ao aumento no número de despejos e retomada de casas de moradia, pelos credores. Se um dia o Syriza levantou a bandeira do “nenhuma moradia na mão de bancos”, hoje já ataca furiosamente manifestantes que tentam fazer parar os leilões de moradias. Novas leis ameaçam de prisão os que interfiram no processo dos leilões – na verdade, já começaram as prisões políticas, de críticos do governo.

Apertando os parafusos


Para compreender a crescente importância política da batalha para deter os despejos das famílias, deve-se considerar a situação precária em que estão os bancos gregos, e a pressão que exercem sobre o governo e, de modo mais amplo, sobre toda a sociedade grega. De fato, foi precisamente para impedir mais um surto de instabilidade dos bancos, que o governo recorreu a métodos cada vez mais repressivos.

Ao longo da crise, o sistema bancário grego veio a ser dominado por quatro bancos “sistêmicos” que controlam mais de 90% de todos os depósitos e ativos. Esses bancos foram os maiores apoiadores das estratégias de resgate desde 2010 e usaram o enorme poder econômico e social que têm para forças sucessivos governos gregos, inclusive o do Syriza, a aceitar as exigências dos credores, para evitar colapso de bancos e para se autoproteger da possível nacionalização.

Desde o começo da crise, houve duas grandes recapitalizações dos bancos, uma das quais já em governo do Syriza. Os custos totais passaram de €45 bilhões. Tudo financiado inteiramente por empréstimos a serem pagos pelos contribuintes. Apesar dessa extraordinária imposição sobre os ombros do povo grego, os bancos mesmo assim mantêm o recorde europeu de “maus empréstimos” e efetivamente já pararam de apoiar ativamente a atividade econômica. Esses “maus empréstimos” incluem Non-Performing Loans (NPLs), mas também Non-Performing Equity (NPEs), categoria mais ampla, que inclui empréstimos que não se espera que sejam inteiramente honrados, mesmo que ainda não haja atraso formal nos pagamentos.

Reduzir a exposição dos bancos gregos a NPEs e NPLs há anos é alta prioridade para o Banco Central Europeu (BCE). Desde 2016, o governo Tsipras acedeu obedientemente, facilitando uma onda de retomada de imóveis, inclusive casas de moradia, além de vendas de pacotes de empréstimos a preços baixos a fundos abutres. Leilões de imóveis tiveram, nisso, papel importante.

Não há absolutamente mistério algum quanto ao fracasso dos bancos, que não conseguiram controlar esse problema, por razões que começam no próprio acordo de resgate que Tsipras assinou. Em resumo, os bancos gregos esperam limpar gradualmente seus balanços varrendo de lá os maus empréstimos mediante leilões, vendas e práticas violentas de retomada e despejo, processo que com certeza demorará vários anos. Ao mesmo tempo, espera-se que os bancos apoiem a atividade econômica com oferta de novos créditos. Mas, como seria de esperar, os bancos tenderam a reduzir os novos empréstimos, ao mesmo tempo em que tentam sanear os respectivos balanços. O corte nos novos empréstimos já fez gorar a retomada do crescimento, o que tornou o problema dos maus empréstimos ainda mais grave para a economia. O declínio geral nos empréstimos também significa que maus empréstimos passam a ter maior peso relativo no total. É exemplo perfeito do nonsense econômico que jaz no coração do resgate concebido por Tsipras.

O fracasso dos bancos gregos, em relação aos maus empréstimos levou a um colapso das respectivas ações na bolsa de valores de Atenas desde o início do verão de 2018, que virou queda livre mês passado. Com efeito, todo o setor bancário grego foi dramaticamente desvalorizado desde que Tsipras assinou o acordo de resgate. Resultado disso, ouvem-se crescentes rumores sobre a necessidade de nova rodada de recapitalização. Se acontecer, será total desastre para o governo, que enfrentará eleições nacionais em 2019.

Assim sendo, acelerar o programa de faxina de maus empréstimos passou para o topo da agenda da Troika, e de seus obedientes executores dentro do governo de Tsipras. E dado que o problema parece ser mais persistente entre empréstimo para compra de imóveis e para o consumo, fixou-se meta muito ambiciosa para retomada de imóveis e leilão, que passou, de 8-10 mil imóveis para 2018, para 50 mil em 2019.

Repressão aos atos de protesto


Desde a meia-volta do Syriza, a questão da retomada de moradias tornou-se o mais espinhoso problema político para Tsipras e seu partido. Até 2015 o slogan “nenhum lar entregue aos bancos” era o grito que mais se ouvia nos comícios do Syriza. Mas ante as pressões geradas pelo resgate que ele próprio inventou, o governo de Tsipras aprovou leis para punir qualquer ação que vise a impedir leilões de moradias de famílias endividadas, com penas que variam de três a seis meses de prisão.

Assim se formou o cenário para terrível batalha entre o governo e um movimento muito ativo que se pôs contra os leilões de propriedades executadas pelos bancos. Esse movimento, na verdade, ganhou novo ímpeto depois que os leilões recomeçaram no outono de 2016. Durante muitos meses, a mobilização de grupos de ativistas determinados, presentes em locais de julgamento dos casos de retomada de imóveis já conseguiu cancelar centenas desses leilões, o que conseguiu desacelerar significativamente o processo. Essa sem dúvida é uma das causas de os bancos não terem conseguido cumprir as próprias metas.

A reação do governo, ao se curvar à pressão da Troika, foi transferir o procedimento dos leilões, depois do verão de 2017, para uma plataforma eletrônica ativada pelos leiloeiros de dentro de seus escritórios, com portas fechada, em vez de manter os leilões públicos. Claro que, com isso, ficou mais difícil organizar os protestos nos locais dos leilões. Mesmo assim, continuaram os protestos, embora em menor escala, a impedir vários leilões, com considerável impacto negativo sobre a disposição dos leiloeiros para participar do processo.

Durante esse período começaram a se intensificar os confrontos com a Polícia, na entrada dos prédios dos escritórios dos leiloeiros. Durante os protestos, ativistas foram filmados e formalmente acusados de praticar atos de agitação social. Desde o início do ano, dúzias de ativistas enfrentaram acusações formais feitas pela Polícia. Dentre esses, Elias Smilios, conselheiro municipal na região de Ambelokipi-Menemeni, na cidade de Thessaloniki, a segunda maior cidade da Grécia, e também membro da Antarsya, uma coalizão de organizações de extrema esquerda. Na pequena cidade provincial de Volos, nada menos de 20 ativistas estão sendo investigados, além de outros 15 nas cidades de Argos e Nafplio. Três ativistas começaram a ser julgados em Atenas, dia 21 de setembro.

A intensificação da repressão judicial relacionada a leilões de casas de moradia é apenas a instância mais óbvia das práticas autoritárias às quais o governo de Tsipras tem recorrido. A repressão judicial também está sendo usada contra os que tentam defender o meio ambiente, como no caso da repressão policial contra manifestantes que protestavam contra o projeto de mineração a céu aberto operado por uma empresa do Canadá em Skouries, norte da Grécia. Mais amplamente, o governo usou força direta para suprimir todos os protestos contra suas políticas, especialmente quando há possibilidade de o movimento disseminar-se. O uso da Polícia antitumultos contra aposentados é apenas o exemplo mais repugnante. Por fim, há relatos frequentes de funcionários públicos, inclusive policiais, mobilizados para fazer cumprir as políticas do governo no setor de eletricidade e outros. Começa a emergir um padrão bem claro, pelo qual o governo confia nos mecanismos de repressão do “estado profundo” para defender as duras realidades criadas pelo ‘resgate’ dos bancos concebido por Tsipras.

Lafazanis


Um limite simbólico na escalada da repressão foi derrubado dia 26 de setembro, quando Panagiotis Lafazanis, veterano resistente da esquerda radical grega foi acusado de participar em movimentos de agitação nas ações semanais de protesto contra os leilões de imóveis de moradia.

Lafazanis foi ministro de Energia do governo do Syriza antes da meia volta para trás, e principal figura da “Plataforma de Esquerda,” que naquele momento mobilizava a maior parte da ala esquerda do Syriza. Hoje é secretário da Unidade Popular, uma frente política criada no verão de 2015 principalmente pelas forças da Plataforma de Esquerda que se separaram do Syriza e foram acompanhadas por várias outras organizações da esquerda radical.

É a primeira vez desde a derrubada da ditadura nos anos 1970 — quando Lafazanis foi perseguido por atividade clandestina no movimento estudantil e na organização da juventude do então ilegal Partido Comunista – que um líder de partido de esquerda é outra vez processado por atividade política. Está sendo acusado de infringir nada menos que 15 artigos do Código Penal, com penas que podem chegar a dois anos de prisão. Se for considerado culpado em todas as acusações, a sentença pode chegar a nove anos.

Também notável é que os procedimentos acusatórios partiram do “Departamento para Proteção do Estado e da Ordem Política Democrática” – braço especial dos Serviços de Segurança da Grécia, encarregado de atividades de terrorismo ou outras que se entende que ameacem a democracia. O departamento foi criado em 2000, no tempo de uma onda de “modernização” na Grécia, quando o país preparava-se para se integrar à União Monetária Europeia, e foi reforçado em 2011, depois de o país entrar no regime de ‘resgate’ dos bancos. Sempre operou sistematicamente como agência para monitorar protestos de rua, e, no governo do Syriza teve as suas funções ampliadas para atividades de vigilância mais ampla. Notável que, desde que foi criado, o departamento jamais agiu contra o Partido Alvorada Dourada, nem qualquer outro partido da extrema direita ou organização terrorista.

Lafazanis não é o único ativista visado pelo departamento. Quatro outros, dentre os quais um membro da Unidade Popular e duas conhecidas figuras da rede “Não Pago”,” Leonidas e Elias Papadopoulos, também foram acusados de longa lista de crimes. Já se sabe também que Lafazanis foi seguido e mantido sob vigilância por uma equipe de policiais disfarçados de jornalistas que filmavam as ações de protesto. Esse material foi complementado por fotos e vídeo que o Departamento requisitou das empresas de TV. Mensagens de Facebook também foram usadas para identificar ativistas em várias ações de protesto.

E agora? O que virá?


A maré montante dos processos judiciais forçou a mídia-empresa grega a dar alguma atenção à escalada da repressão pelo Estado. Também provocou alguma reação pública, inclusive um questionamento encaminhado ao Ministro da Justiça por 43 Parlamentares do Syriza. Na verdade, essas reações ganharam impulso com os desenvolvimentos muito graves que se veem nos intestinos do Estado grego sob governo do Syriza, e os Parlamentares tentam salvar o que ainda reste da postura moral da coalizão governante. Contudo, a posição oficial do governo é que a questão pertence inteiramente ao âmbito do Judiciário e da Polícia, sem nada a ver com decisões políticas.

Seja como for, fato é que a iniciativa para as acusações e processos não partiu do Judiciário, mas do “estado profundo”, a saber, do “Departamento para Proteção do Estado e da Ordem Política Democrática”, submetido ao Ministro da Ordem Pública. Não há como escapar da evidência de que o governo do Syriza está envolvido e é cúmplice, envolvimento e cumplicidades que são diretamente relacionados ao terceiro ‘resgate’ e à mais recente outra crise dos bancos gregos.

Não há resgate neoliberal de bancos sem repressão contra a população. O governo do Syriza não escapa a essa regra. A democracia grega já foi duramente ferida até aqui, e as coisas devem tornar-se ainda mais graves nos próximos meses, conforme se aproximem as eleições e os problemas dos bancos muito provavelmente virem o centro das atenções. O desastre econômico e social causado pela capitulação de Tsipras já é perfeitamente visível para camadas cada vez mais amplas do eleitorado, e os sentimentos de frustração alastram-se.

Dado que este governo já vendeu sua alma ao comprometer-se com os credores, não terá remorso em aumentar a repressão contra todos aqueles que se opõem a ela. Toda a solidariedade internacional é urgentemente necessária para deter essa perigosa deriva na Grécia. Rapidamente se vai configurando a necessidade imperiosa de defender a democracia grega.

Sobre os autores


Stathis Kouvelakis leciona Teoria Política no King’s College em Londres. Foi membro do Comitê Central do Syriza.

Costas Lapavitsas leciona Economia na SOAS. Foi deputado eleito ao Parlamento grego.

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