30 de junho de 2023

Bolsonaro é declarado inelegível por 8 anos pelo TSE após mentiras e ataques ao sistema eleitoral

Decisão por 5 a 2 deixa ex-presidente fora de eleições até 2030; ex-presidente diz ter levado facada nas costas, e defesa avalia recurso ao STF

Matheus Teixeira
José Marques
Marcelo Rocha

Folha de S.Paulo

O TSE (Tribunal Superior Eleitoral) decidiu nesta sexta-feira (30), por 5 votos a 2, tornar Jair Messias Bolsonaro (PL) inelegível por oito anos.

O ex-presidente, que tem 68 anos, somente estará apto a se candidatar novamente em 2030, aos 75 anos de idade, ficando afastado portanto de três eleições até lá (sendo uma delas a nacional de 2026).

Bolsonaro fala com jornalistas em Belo Horizonte - Douglas Magno/AFP

Os ministros Benedito Gonçalves, Floriano de Azevedo Marques Neto, André Ramos Tavares, Cármen Lúcia e Alexandre de Moraes votaram para reconhecer o abuso de poder político e o uso indevido dos meios de comunicação por parte do ex-presidente.

Raul Araújo e Kassio Nunes Marques se manifestaram para livrá-lo da acusação.

A ação julgada teve como foco a reunião em julho do ano passado com embaixadores estrangeiros no Palácio da Alvorada, residência oficial da Presidência da República.

Na ocasião, a menos de três meses da eleição, Bolsonaro fez afirmações falsas e distorcidas sobre o processo eleitoral, alegando estar se baseando em dados oficiais, além de buscar desacreditar ministros do TSE.

O quarto dia de julgamento na corte foi aberto nesta sexta com o voto de Cármen, que seguiu o relator. Depois, Kassio disse que não via gravidade suficiente para condenar Bolsonaro, mas defendeu o sistema de votação.

Em seguida, Moraes, presidente do tribunal, também votou pela inelegibilidade e classificou a reunião de Bolsonaro com embaixadores como um "monólogo eleitoreiro".

Além de ter declarado Bolsonaro inelegível, o TSE decidiu que o caso será encaminhado ao TCU (Tribunal de Contas da União) e a inquéritos criminais em curso no STF (Supremo Tribunal Federal) para apurar se cabem investigações contra Bolsonaro além da seara eleitoral. A corte de contas pode analisar, por exemplo, se houve uso indevido de prédio público, no caso o Palácio da Alvorada, para realização da reunião com os embaixadores.

A inelegibilidade tira do páreo o hoje principal adversário do presidente Lula (PT) e obriga a direita a construir um nome para herdar o capital eleitoral de Bolsonaro no pleito de 2026.

O ex-presidente disse ter levado uma facada nas costas com a decisão do TSE. "Hoje vivemos aqui uma inelegibilidade. Não gostaria de me tornar inelegível. Na política, essa frase não é minha, ninguém mata, ninguém morre."

Tarcísio Vieira de Carvalho, advogado de Bolsonaro, disse ao deixar o plenário da corte que respeita o resultado do julgamento e avaliará recorrer ao Supremo.

"A defesa recebe com profundo respeito a decisão do tribunal e aguarda divulgação oficial do inteiro teor dos votos e composição do acórdão do julgamento para depois da publicação verificar qual é a melhor estratégia possível, inclusive recorrer ao STF", disse.

Ele evitou fazer comentários sobre a posição dos ministros. "Não é ético a nenhum advogado comentar votos individuais dos ministros e que estratégia correta é aguardar a publicação do acórdão [resultado do julgamento] e verificar se há caminho para recurso."

O julgamento ocorre seis meses após a saída de Bolsonaro do cargo e tem como foco uma ação movida pelo PDT contra a chapa devido a reunião com os embaixadores.

"Ainda podemos dizer que em Brasília há juízes. Ou seja, ratifica-se o parâmetro democrático e não é apenas aqueles mandatários nos rincões que precisam cumprir a legislação eleitoral", afirmou o advogado Walber Agra, um dos representantes do partido.

No julgamento, o TSE decidiu, de forma unânime, rejeitar o pedido de inelegibilidade de Braga Netto (PL), que foi candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro nas eleições de 2022.

Ao longo de seu mandato, Bolsonaro, que foi a 42ª pessoa a exercer a Presidência, buscou desestabilizar o sistema eleitoral em vários momentos, inflamando apoiadores e contestando a confiabilidade da votação sem apresentar indícios nem provas.

Ele levantou suspeitas inclusive sobre o pleito de 2018, que o levou ao Palácio do Planalto, sugerindo vitória mais robusta contra o então candidato do PT, Fernando Haddad, não fosse uma pretensa fraude.

Bolsonaro se utilizou de lives semanais, transmitidas do Palácio da Alvorada, e entrevistas para alardear a tese, replicada por seus aliados nas redes sociais.

Nessas transmissões, promoveu ataques verbais a integrantes do TSE, principalmente contra Moraes.

Em uma das lives, ele e auxiliares divulgaram informações reservadas de uma apuração da Polícia Federal sobre invasão hacker ao sistema eleitoral ocorrida em 2018. A investigação policial e o tribunal não identificaram manipulação de resultados naquelas eleições.

Uma minuta de um decreto golpista para subverter o resultado das eleições, apreendida em janeiro na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, também foi inserida ao processo do TSE, sob protesto da defesa de Bolsonaro.

Em entrevista à Folha no domingo (25), Bolsonaro reconhecia a possível inelegibilidade e disse que, mesmo fora da urna, pretende seguir na vida pública e que tem uma "bala de prata" para 2026 —ele não detalhou o que isso significa.

O ex-presidente fez pressão, porém, para um adiamento do julgamento do TSE, com possível pedido de vista de Raul Araújo ou de Kassio Nunes Marques, indicado por ele ao STF.

Ao defender a punição para Bolsonaro no primeiro dia de julgamento, no dia 22, a representação jurídica do PDT argumentou que houve tentativa de golpe de Estado.

O evento com os embaixadores durou cerca de 50 minutos e foi transmitido pela TV Brasil. Na ocasião, a Secretaria de Comunicação do governo barrou a imprensa, permitindo apenas a participação dos veículos que se comprometessem a transmitir o evento ao vivo.

Corregedor-geral do TSE e relator do caso, Benedito Gonçalves votou na terça para tornar Bolsonaro inelegível, afirmando não ser possível fechar os olhos para discursos antidemocráticos com mentiras e discursos violentos, criticando a banalização do golpismo e destacando a epopeia de ataques do ex-presidente com uso da imagem das Forças Armadas.

O vice-procurador-geral eleitoral, Paulo Gonet Branco, considerou a reunião com embaixadores como algo grave, com o objetivo de criar desconfiança sobre as eleições e deslegitimar um eventual resultado negativo nas urnas para Bolsonaro.

"O discurso ganhou difusão nacional por meio de televisionamento em TV federal e nas redes sociais. O discurso, portanto, também se dirigiu ao conjunto da população brasileira e não apenas para o corpo diplomático", afirmou na semana passada.

A ação contra Bolsonaro é uma Aije (ação de investigação judicial eleitoral), que pode ser apresentada até a data da diplomação do candidato.

Esse instrumento tem como objetivo apurar condutas que possam afetar a igualdade de disputa na eleição, como abuso de poder econômico, de autoridade ou uso indevido dos meios de comunicação social em benefício de um candidato.

Uma das linhas da defesa de Bolsonaro vinha sendo sustentar que as falas do evento foram feitas enquanto chefe de Estado e como ato de governo, tendo o objetivo de "dissipar dúvidas sobre a transparência do processo eleitoral".

Além disso, alegava que o público-alvo do evento não eram eleitores, mas pessoas sem cidadania brasileira.

29 de junho de 2023

A esquerda grega está com sérios problemas

Após as eleições nacionais de 2023, a Grécia está olhando para mais quatro anos de autoritarismo, privatizações e mais desregulamentação financeira e do mercado de trabalho. Uma nova alternativa de esquerda radical enraizada em movimentos sociais orgânicos é urgentemente necessária.

Giorgos Gouzoulis

Jacobin

Kyriakos Mitsotakis, primeiro-ministro da Grécia e líder do partido Nova Democracia, cumprimenta apoiadores ao chegar à sede do partido durante as eleições parlamentares em Atenas, Grécia, em 25 de junho de 2023. (Konstantinos Tsakalidis / Bloomberg via Getty Images)

Tradução / As  eleições gregas de maio de 2023 surpreenderam a maioria das pessoas de esquerda na Grécia e em todo o mundo. Depois de quatro anos de grandes escândalos políticos, controle da mídia e acusações de espionagem ilegal de opositores políticos e jornalistas, a Nova Democracia venceu as eleições com uma margem de vinte pontos contra o Syriza.

Entender como chegamos até aqui é essencial para que os movimentos sociais progressistas e os partidos de esquerda ofereçam uma agenda política progressista convincente e voltem ao poder. Rejeitar completamente as políticas de austeridade, reconectar-se com movimentos sociais e sindicatos e oferecer alternativas políticas confiáveis são tarefas árduas, mas necessárias. O regresso à esquerda ao poder deverá ser um processo lento, e evitar a repetição da queda do Syriza deverá ser o principal objetivo.

A ascensão e a queda do Syriza

A ascensão do Syriza ao poder em 2015 foi o choque político mais significativo na Europa na memória recente. Após cinco anos de políticas de austeridade irrelevantes impostas à Grécia pela União Europeia e pelo Fundo Monetário Internacional como parte dos programas de ajuste econômico, o povo grego votou a favor de uma potencial ruptura com a UE. O Syriza prometeu uma possibilidade realista de políticas econômicas progressistas na zona euro.

Entre 2012 e 2015, o partido de direita Nova Democracia e o antigo social-democrata Pasok implementaram programas de política econômica orientados para a austeridade que levaram ao empobrecimento em massa e à agitação social. Durante esse tempo, o Syriza se envolveu ativamente com movimentos sociais progressistas e criticou abertamente as duras e ineficientes políticas de austeridade.

A história da ascensão definitiva do Syriza ao poder é relativamente conhecida. Após formar um governo de coalizão em janeiro de 2015, o governo liderado pelo Syriza tentou convencer as instituições da UE, lobbies poderosos e os líderes políticos do Norte da UE de que uma agenda política alternativa progressista é possível. Mas essas aspirações foram esmagadas após seis meses de negociações.

O último ato da tentativa do Syriza de mudar o rumo das políticas econômicas dentro da zona do euro foi o referendo de resgate grego de 2015. Enquanto 61,3% dos votos populares eram contra novas políticas de austeridade e o apoio a um Grexit era maior do que nunca, o primeiro-ministro Aléxis Tsípras decidiu ir contra o resultado e assinar um novo acordo de resgate. Os principais membros da primeira administração liderada pelo Syriza, incluindo o ministro das Finanças Yanis Varoufakis, renunciaram, e novas eleições foram anunciadas para setembro de 2015.

O Syriza emitiu uma promessa implícita de que o novo governo faria de tudo para distribuir de forma justa os custos das próximas medidas de austeridade. As pessoas aceitaram que esta era a única alternativa depois de tentativas anteriores fracassadas de mudar as políticas econômicas da UE, e o Syriza de Tsípras reconquistou a maioria do parlamento e formou um novo governo de coalizão.

Nos anos seguintes, algumas políticas sociais limitadas que protegiam as famílias mais pobres foram implementadas, mas a política econômica tem se concentrado principalmente na manutenção dos superávits orçamentários e no serviço dos pagamentos da dívida pública. Naturalmente, o processo de criação de um excedente que acabou por atingir os trinta e um mil milhões de euros incluiu pesadas fiscalidades e a estagnação da despesa social, que prejudicou particularmente os segmentos mais pobres da sociedade grega. O Syriza argumentou que este era um programa inevitável, mas temporário, que seria revertido assim que os acordos de memorando terminassem.

Não há alternativa

Novas eleições ocorreram em julho de 2019. A narrativa do Syriza era a de que, após a conclusão de certos acordos orientados para a austeridade, era tempo de implementar a sua própria agenda, mais progressista, e devolver o excedente orçamental acumulado à sociedade.

Sem surpresa, a maioria dos eleitores não estava convencida, e a Nova Democracia conquistou a maioria dos assentos no Parlamento, formando o primeiro governo de partido único desde 2009.

Sob a liderança do herdeiro político Kyriakos Mitsotakis, filho de um ex-primeiro-ministro e irmão de um ex-ministro, a Nova Democracia absorveu vários políticos de extrema-direita de partidos políticos menores. O partido apresentou uma agenda xenófoba de migração e política externa. Mas, em termos de política econômica, sua narrativa era que a Nova Democracia era um partido de tecnocratas bem educados que, ao contrário do Syriza, sabiam como implementar eficientemente a economia a conta-gotas e criar uma administração pública mais eficiente e orientada para o mercado.

Poucos meses após a reeleição da Nova Democracia, a pandemia começou e o novo governo teve que abandonar sua agenda de austeridade por necessidade. A agitação social causada pela abordagem autoritária do partido em saúde pública e o desinvestimento na saúde pública, que causou milhares de mortes em excesso, levaram o governo a gastar uma grande parte do excedente criado pelo Syriza em subsídios salariais e benefícios sociais.

É erro dizer que não se tratou de uma escolha política deliberada, mas de uma medida necessária para limitar a agitação social em circunstâncias extraordinárias. Entretanto, a administração da Nova Democracia também gastou vinte milhões de euros em campanhas de saúde pública contra a COVID-19.

Mas, logo depois, surgiram críticas alegando que a distribuição desses recursos era desigual e baseada na filiação política ao partido governista. Esse favoritismo partidário, juntamente com restrições claras à liberdade jornalística (a Grécia ocupa a 107ª posição em um recente ranking global de liberdade de imprensa), fortaleceu a impressão do público sobre a corrupção da Nova Democracia.

Além disso, evidências recentes também sugerem que os serviços de inteligência gregos, que estão sob o controle direto do primeiro-ministro, usaram sistemas de vigilância ilegais para espionar jornalistas e opositores políticos.

Por último, mas não menos importante, durante os últimos meses do governo da Nova Democracia, um grande acidente de trem matou cinquenta e sete pessoas. Este acontecimento devastador resultou, em grande medida, do desinvestimento em infraestruturas públicas e da privatização dos estradas-de-ferro, uma vez que não existia um sistema de sinalização há anos e os operadores não estavam devidamente formados. E como resultado dessas marcas negras no histórico da Nova Democracia, muitos acreditavam que as chances da esquerda grega de retornar ao poder aumentaram significativamente.

Sonho adiado novamente

O resultado das eleições de 2023 é o mais inesperado na política grega em anos. Embora a reeleição da Nova Democracia não tenha sido inesperada, vencer com uma margem de 20 pontos percentuais contra o Syriza após quatro anos de autoritarismo e escândalos era imprevisto. Ao mesmo tempo, três partidos menores de extrema direita conseguiram entrar no Parlamento, onde agora controlam mais de 10% dos assentos.

Como chegamos até aqui? Primeiro, o alívio temporário das restrições fiscais pela UE devido à COVID permitiu que o governo da Nova Democracia fornecesse alguns benefícios em dinheiro, bem como cupons em resposta à crise do custo de vida, usando o superávit orçamentário que o Syriza gerou.

Se a agitação social que a Covid criou não tivesse levado o governo a fornecer tais benefícios, a agenda de política econômica real da Nova Democracia pareceria muito diferente do que foi realmente implementado. Inteligentemente, no período pré-eleitoral de 2023, a Nova Democracia aproveitou essa reviravolta e argumentou que eles, e não o Syriza, são o partido que realmente se preocupa com as pessoas da classe trabalhadora.

Além disso, a estratégia eleitoral do Syriza foi concentrar-se quase exclusivamente nos escândalos políticos da Nova Democracia e no autoritarismo flagrante, sem oferecer uma agenda de política económica mais concreta. Essa abordagem não considera que uma população precária e empobrecida se preocupa principalmente com sua sobrevivência econômica e pode ser facilmente enganada pela retórica da extrema-direita.

Quanto à razão pela qual o Syriza atenuou as suas promessas económicas, o partido talvez tenha reconhecido que os mercados financeiros teriam reagido de forma muito agressiva contra a eleição de um governo de esquerda, levando a taxas de empréstimo mais elevadas.

Como resultado, um governo de esquerda teria que implementar a austeridade de qualquer maneira, uma lição que o Syriza já aprendeu da maneira mais difícil — e que levanta grandes questões sobre como os mercados financeiros restringem a democracia, especialmente em um sistema monetário interconectado como a zona do euro.

A saída

Como a Nova Democracia controlará mais da metade dos assentos no Parlamento nos próximos quatro anos, os funcionários do partido se sentem à vontade para afirmar que sua agenda para os próximos anos inclui a implementação do programa que tinham em mente se a Covid não tivesse ocorrido.

Consequentemente, é provável que a privatização da saúde continue, a criação de universidades privadas com fins lucrativos esteja planejada para acontecer em breve e milhares de famílias que não podem pagar suas dívidas enfrentam riscos crescentes de despejo.

Além disso, de acordo com a atual Constituição, nenhum partido pode propor de forma independente uma moção de censura contra o governo, já que isso exige a posse de pelo menos cinquenta cadeiras. O principal partido da oposição, o Syriza, terá apenas quarenta e oito. A formação de coalizões mais amplas entre partidos de esquerda e centro-esquerda parece extremamente improvável, já que nem o partido comunista KKE, nem o social-democrata Pasok mostraram qualquer disposição ou interesse.

Combater a austeridade e as privatizações e defender a democracia serão tarefas muito difíceis no parlamento grego nos próximos quatro anos. Parece improvável que os políticos associados ao primeiro governo do Syriza consigam, durante esse período, convencer os eleitores de que podem oferecer uma alternativa pró-trabalho confiável.

Por isso, a tarefa de reconstruir os movimentos sociais de esquerda e a organização política é mais necessária do que nunca. Novos movimentos sociais progressistas inevitavelmente surgirão com o retorno da mercantilização e da privatização.

Embora minuciosa e difícil, a esquerda deve consolidá-las e organizá-las, levando à criação de novas alianças políticas genuinamente radicais. Estas devem oferecer políticas progressistas realistas e fiáveis contra as políticas neoliberais da UE para convencer as pessoas de que existe um caminho alternativo viável. A grande questão que surge é se a resistência pode alguma vez ser plenamente realizada dentro do sistema da zona euro.

Colaborador

Giorgos Gouzoulis é professor assistente na University of Bristol, Business School. Sua pesquisa se concentra em como a financeirização e a globalização afetam a negociação salarial, a precarização da força de trabalho, a atividade grevista e a filiação sindical.

Lula diz que direita usa fake news sobre Foro de São Paulo para atacar esquerda

Presidente comparece ao primeiro dia do encontro internacional de países latino-americanos

João Gabriel
Julia Chaib

Folha de S.Paulo

O presidente Lula (PT) disse nesta quinta-feira (29) que a criação do Foro de São Paulo é uma "bênção" para a América Latina e que é preciso rediscutir o discurso da esquerda para evitar o avanço do que chamou de "direita fascista".

Lula afirmou que os adversários usam "fake news" sobre o foro para atacar a esquerda e fez um apelo por unidade dentro do campo. Para o presidente, é melhor que ter "um companheiro" de esquerda cometendo "alguns erros" do que alguém da extrema direita no poder.

"Portanto, é muito melhor ter um companheiro da gente fazendo alguns equívocos para a gente criticar do que alguém de direita governando que não permita sequer que a gente tenha espaço para fazer criticas, contando mentiras, usando fake news, violentando qualquer parâmetro de dignidade para voltar ao poder", afirmou.

Lula durante evento do Foro de São Paulo - Pedro Ladeira/Folhapress

O petista ainda avalia que a "direita fascista" tem crescido e ganhado espaço no mundo e que é preciso repensar o discurso da esquerda.

"É preciso a gente rediscutir o discurso da esquerda. É preciso que a gente repita o que a gente quer e como vamos fazer para conquistar. Muitas vezes a direita tem mais facilidade que nós com o discurso fascista", afirmou.

Durante o discurso, Lula disse que o foro foi criado para que os partidos de esquerda pudessem vencer na democracia. O petista comentou que não deixou o ex-presidente da Venezuela, Hugo Chávez, participar do Foro na época em que seu companheiro do país vizinho havia tentado dar um golpe no país.

"Não deixamos Chávez participar porque ele tinha tentado dar o golpe na Venezuela, tinha tentado dar um golpe e quando chegou em El Salvador, não deixamos o Chávez participar. Por que você não é democrático, não vai participar do Foro, todos tinham essa consciência", disse Lula.

Mais cedo, ao ser questionado durante entrevista em programa de rádio por que ele e demais integrantes do seu governo não reconheciam que o regime de Nicolás Maduro, na Venezuela, não era uma democracia, o petista afirmou que o conceito de democracia é relativo, com pessoas tendo diferentes visões sobre o que seria um regime democrático e uma ditadura.

O Foro de São Paulo, congregação de partidos e movimentos de esquerda da América Latina e Caribe, é criticado pela direita e até mesmo por setores progressistas por ser complacente com ditaduras na América Latina, sobretudo depois da visita do ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, ao Brasil.

Lula esteve no principal evento do dia de abertura do encontro, em Brasília —foi a primeira reunião da aliança de países desde a pandemia e aconteceu na capital brasileira justamente em razão da eleição do petista em 2022.

O principal tema do evento, a integração regional, vai ao encontro da agenda de política externa do petista, que reuniu 11 líderes de países da América do Sul em Brasília no mês passado.

Lula e a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, durante a abertura encontro do Foro de São Paulo, em Brasília - Pedro Ladeira/Folhapress

O 26° encontro acontece ainda num contexto de preocupação da esquerda com as fake news. A versão de que o Foro de São Paulo pretende implantar ditaduras de esquerda na região é atribuída por petistas a Olavo de Carvalho, escritor guru do bolsonarismo morto em janeiro de 2022.

Com a diretriz de que a definição do seu regime político cabe a cada país e sua população, o foro, que se posiciona contra o imperialismo e o neoliberalismo, evita tratar do cerceamento de opositores e violações dos direitos humanos em países como Venezuela, Cuba e Nicarágua.

Questionados sobre conivência com as ditaduras de esquerda, integrantes do foro se esquivam de criticar o autoritarismo de países aliados e argumentam que a organização preza pela mediação e pela construção do diálogo, rechaçando interferência nos 28 países-membros.

Além disso, o foro não se posiciona acerca do que não é consenso entre os cerca de 130 partidos e entidades que o compõem –incluindo nacionalistas, socialistas e comunistas.

Segundo dirigentes do grupo, porém, o foro tem compromisso com a democracia e todos os seus membros defendem que a disputa política deve se dar por meio de eleições –e não de revoluções.

No Brasil, PT, PC do B e PCB são os partidos que compõem o foro. Com uma crítica ao autoritarismo de Maduro, o PSB decidiu deixar o foro em 2019.

Além da integração regional, organizadores do foro dizem que as discussões vão se concentrar em políticas de desenvolvimento e na agenda ambiental de preservação da Amazônia.

O evento terá convidados estrangeiros, como o Democratas Socialistas da América, grupo do senador Bernie Sanders dentro do Partido Democrata dos EUA, e o Partido Esquerda Europeia, que integra o Parlamento Europeu.

Boas notícias na economia e uma pedra no caminho

Copom se disfarça como mero espectador de jogo viciado em que só ele pode ganhar

André Roncaglia
Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de S.Paulo

O encerramento do primeiro semestre de 2023 traz uma safra de boas notícias para o governo Lula. Os saldos recordes da balança comercial e os influxos de capital estrangeiro ao país vêm segurando a taxa de câmbio abaixo de R$ 4,8/US$. Isso não apenas reduz a inflação como eleva, a curto prazo, o poder de compra dos salários, fortalecendo o consumo.

As crescentes projeções de crescimento do PIB em 2023 (2,2%) se apoiam no pacote de gastos do governo e, com uma atuação mais efetiva do BNDES, o investimento nas infraestruturas física e social tende a elevar o emprego e a renda, em linha com a descarbonização da economia.

A Finep planeja liberar R$ 40 bilhões (em quatro anos) para investimentos em inovação, com efeitos duradouros sobre a economia. O programa Minha Casa, Minha Vida estimulará a construção civil, e o programa Desenrola aliviará o endividamento familiar de um terço da população, enquanto o orçamento familiar se expande com o Bolsa Família turbinado e o reajuste real do salário mínimo.

O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, durante coletiva de imprensa na sede da autarquia - Pedro Ladeira - 29.jun.2023/Folhapress

Do lado da oferta agregada, o relatório do Ibre-FGV mostrou que a produtividade do trabalho cresceu —pela primeira vez em anos— no primeiro trimestre de 2023. Na mesma linha, a aprovação da reforma dos tributos sobre consumo elevará a produtividade da economia e a confiança empresarial.

Mesmo com o desemprego estável em 8,5% em maio, a inflação oficial (IPCA) caiu para 3,9% em 12 meses, com possível deflação em junho. O efeito combinado de apreciação cambial e recuo dos preços internacionais de commodities tem causado deflação dos preços ao produtor. Com isso, o IGP-M acumula queda de 6,86%, e o IGP-DI, de 5,49%, em 12 meses. A safra recorde deste ano tende a derrubar ainda mais o Índice de Preços ao Produtor Amplo (IPA-DI), o qual caiu 3,37% em maio e acumula queda de 8,89%, em 12 meses; o Plano Safra lançado nesta semana estimula a produção de alimentos para o mercado interno, reforçando a pressão baixista sobre os preços.

A combinação dessas boas notícias fez os juros dos contratos da dívida pública com vencimento em 2031 caírem abaixo de 11% ao ano. Os dados deixam claro o espaço para o afrouxamento monetário, com economistas de mercado já fazendo mea-culpa pelos erros de previsão (autocrítica é exigir demais).

É, portanto, inusitado o Banco Central se prender, por vontade, às expectativas de inflação coletadas pelo boletim Focus. Mesmo com a clara predominância dos canais de custo (preços internacionais e taxa de câmbio) no comportamento da taxa de inflação brasileira, o BC impõe a narrativa do canal das expectativas como fiel da balança.

A retórica do BC lembra o Calvinball, da famosa tirinha Calvin: um jogo em que se pode mudar a regra para ganhar sempre. Depois de mudar várias vezes o motivo de manter a Selic na estratosfera, o Copom usa agora a reunião de junho do CMN, em que se discutiu a elevação da meta de inflação para o período 2024-2026.

Assim que se aventou essa possibilidade, o mercado elevou para 4% a meta de inflação efetiva para 2024. Na sua comunicação estabanada e em claro abuso da autonomia operacional do BC, Campos Neto deixou claro que a meta implícita adotada para 2023 é 5%, para 2024, 4%, e, para 2025, 3%. Essa convenção informal entre BC e mercado refuta, portanto, qualquer relação mecânica entre elevação da meta oficial e a desancoragem das expectativas.

O Copom se disfarça como mero espectador de um jogo viciado em que só ele pode ganhar. Manter a meta oficial em 3% foi a condição imposta para cortar a Selic em agosto, fechando 2023 perto de 11%. Esse é preço político (e institucional) que o BC cobra para devolver o oxigênio à economia.

Parafraseando Drummond, no meio do caminho para a retomada da economia tem uma pedra: o Copom sob Campos Neto.

Lula tem motivos sérios para duvidar dos EUA como mediador na Ucrânia

Diplomacia de Washington há muito esqueceu a necessidade de alcançar a paz por meio de negociações e compromissos

Oleg Karpovitch e Mikhail Troianski
Vice-reitores da Academia Diplomática do Ministério das Relações Exteriores da Rússia

Folha de S.Paulo

A maioria dos especialistas ocidentais chegou à conclusão de que a Washington oficial de hoje já mostra menos interesse em preservar a imagem dos EUA como um "pacificador global", inventada uma vez e propagada ativamente por décadas pela diplomacia americana.

A recusa de Washington em desempenhar o papel de pacificador não é acidental, pois para resolver uma cadeia de problemas modernos, a ênfase é colocada principalmente na força militar. O Ocidente está promovendo ativamente o conceito de "ordem baseada em regras", o que na prática significa que recebeu o direito de não ser guiado pela Carta da ONU e por todas as normas geralmente aceitas do direito internacional, mas por certas "regras" inventadas pelo próprio Ocidente. Como mostra a prática atual, é conveniente e prático.

O presidente dos EUA, Joe Biden caminha ao lado de seu homólogo brasileiro, Lula, na Casa Branca - Alex Brandon - 10.fev.23/Reuters

Os líderes dos EUA veem as relações internacionais como um confronto global entre "democracia e autocracia" e intervêm nos conflitos internos de vários Estados para realizar os objetivos de sua visão de ordem mundial. A diplomacia de Washington há muito esqueceu a necessidade de alcançar a paz por meio de negociações e compromissos. Sua lógica é baseada em cenários bastante duvidosos de heróis de sucesso de bilheteria de Hollywood salvando sozinhos o mundo inteiro.

As pessoas nas margens do Potomac tendem a ver o mundo hoje como uma rivalidade internacional entre vários grupos de Estados, com países individuais divididos no princípio de "amigo ou inimigo". Os Estados Unidos impõem serviços de mediação a seus vassalos para proteger e expressar seus interesses em qualquer conflito diplomático ("a diplomacia americana está acima de tudo").

No decurso da crise ucraniana, os Estados Unidos conseguiram convencer os países do Ocidente coletivo que os seguem a fornecer armas ao regime de Kiev sem controle para prolongar indefinidamente as hostilidades. Ao mesmo tempo há um fracasso total em trazer para o seu lado o Sul Global, cujos Estados há muito manifestam seu claro interesse em um fim rápido do confronto militar.

Está se tornando cada vez mais óbvio para os países da maior parte do mundo que o futuro do desenvolvimento global não deve ser associado aos EUA e seus asseclas. O presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, além de seu país, não vê os EUA, mas a Índia e a China como possíveis mediadores. Acreditamos que ele tenha motivos sérios e dúvidas bastante justificadas sobre a capacidade de Washington de acabar com a crise na Ucrânia.

Os americanos continuam sua política voltada para manter a unipolaridade e o domínio no mundo, mas ao mesmo tempo não é costume falar sobre a quantidade de erros graves cometidos durante o período da responsabilidade monopolista de Washington pela ordem mundial global. A América do Norte continua cativada por sua convicção enganosa e arrogante de exclusividade e hegemonia total.

De acordo com o novo Conceito de Política Externa, a Rússia segue um curso político independente e multivetorial ditado por seus interesses nacionais e pela consciência de sua responsabilidade especial de manter a paz e a segurança mundial e regional. Há um estreitamento das relações com China, Brasil, Índia, Irã e outros atores influentes no cenário mundial. O status político e a autoridade econômica do Brics, da Organização de Cooperação de Xangai e da União Econômica Eurasiática estão aumentando.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, em um de seus discursos, enfatizou que "no plano de nossas ações de longo prazo, é importante levar em consideração a plenitude dos fatores e tendências no desenvolvimento das relações internacionais, trabalhar para fortalecer a soberania da Rússia, aumentar o papel de nosso país na solução dos problemas mundiais que tratam da formação de uma ordem mundial mais justa e multipolar". É o que apontam as ações da diplomacia nacional.

28 de junho de 2023

Descapitalizar a cultura

Redistribuição ou abolição?

Dylan Riley


Gerhard Richter

Tradução / Existem inúmeros debates entre sociólogos e economistas acerca dos conceitos de "capital humano" e "capital cultural". A visão geral é a de que o primeiro implicaria em uma atitude racional e instrumental visando obter determinadas habilidades, enquanto o segundo sugeriria um investimento naquilo que bourdieaneos chamam de ilusio: a negação de que o jogo da cultura é de fato um jogo.

Iván Szelényi certa vez caracterizou essa distinção de modo ligeiramente diferente, apontando que o capital humano era recompensado por causa de sua contribuição à produtividade, enquanto o capital cultural era fundamentalmente uma reinvindicação de caráter rentista. Me parece, entretanto, que deveríamos estar levantando outro tipo de questão. É particularmente importante perguntar: em que condições históricas a cultura toma a forma de um "ativo" ou "quase-ativo"?

As pré-condições dessa formação são um acontecimento anterior, de expropriação cultural, e o processo subsequente que permite a reprodução contínua e regular dessa expropriação. Tal "acumulação primitiva" do capital humano ou cultural pode se dar de vários modos. Pode envolver a imposição de uma dialética única sobre a linguagem nacional que repentinamente desvaloriza linguagens pré-existentes, como o que aconteceu inter alia com a dialética florentina na península italiana.

Ou pode ser a desvalorização de conhecimento indígena, tais como o manejo do comum e de terras desertificadas a partir de ciclos de fertilidade. Mas precisamos de uma análise mais articulada aqui. Porque não é verdade que as únicas opções disponíveis no processo de formação do capital cultural são igualdade completa ou posse privada. Diferentes períodos da história humana foram marcados por uma forma coletiva de posse da cultura, que abrangia amplo espectro de classes, de tal modo que a cultura não pudesse ser compreendida como "capital" de posse individual. Podemos pensar nos culturalmente onívoros homens da Renascença, ou os debates públicos que serviram de modelo para Habermas. Dentro desses espaços de relativa exclusividade, a cultura era uma "posse" coletiva. Ela não tomava a forma de um objeto alienígena da classe dominante; não era um "ativo" apropriado por um determinado indivíduo.

Isso tudo é relevante para pensarmos a política da universidade e, além disso, uma política da cultura no capitalismo contemporâneo. Hoje, a academia costuma ser defendida por sua contribuição ao capital "cultural" ou "humano". Mas essa abordagem é autodestrutiva. A alegação de que se está providenciando "capital" para alguns tem como premissa a ideia de que outros estão sendo excluídos.

Capital cultural ou humano só é valioso a partir de sua escassez. Nessa configuração, não é do interesse das elites universitárias que todos ou nem mesmo a maioria daqueles que assim desejam recebam diplomas. O valor de uma diplomação universitária, assim como qualquer outro ativo, diminui com a expansão do acesso a ele.

A resposta da esquerda social-democrata, "educação superior gratuita para todos", mal toca esse problema subjacente. Porque a universalização do ensino superior só teria como resultado a redução do seu valor econômico, a não ser que o significado dessa educação fosse radicalmente transformado. A cultura deve ser descapitalizada, em primeiro lugar; ela não pode mais ser um ativo. A universidade humanizada deixaria de ser um local aonde se adquire capital humano ou cultural e passaria a ser uma instituição dedicada à construção da personalidade.

Este processo não deve ser pensado como uma espécie de retorno ao cavalheiro estudioso ("gentleman scholar"), mas deve ter por base a formação de um novo tipo de intelectual. O novo intelectual ainda possuiria um amplo leque de habilidades, mas os meios pelos quais essas habilidades seriam ensinadas e transmitidas seriam diferentes da forma em vigor na sala de aula contemporânea.

O próprio ofício de ensinar se tornaria cada vez mais o ensino do ofício. Mutatis mutandis, a disponibilidade generalizada de "informação" (um nome um pouco impróprio) via internet e inteligência artificial ajudaria a academia, ao invés de prejudicá-la. Nossa meta não deveria ser o acesso universal ao capital cultural ou humano, mas sua abolição como realidade social. Nesse, como em outros casos, o programa de uma sociedade humanizada não é a redistribuição de propriedade, mas a superação dela como uma categoria real.

Censo deve mudar números do emprego

População contada é 11 milhões menor do que a estimada pela Pnad; país vai precisar de mais imigrantes

Vinicius Torres Freire

Folha de S.Paulo

O Censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) conta que a população brasileira era de 203 milhões de pessoas em agosto de 2022. Nas pesquisas socioeconômicas mais rotineiras do IBGE, a população era estimada em cerca de 214 milhões, em mês equivalente do ano passado. São os dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) mensal, trimestral e anual. Pela projeção da população do IBGE atualizada em 2020, seríamos quase 215 milhões no ano passado.

A diferença entre os números do Censo e da Pnad pode ser relevante para se pensar alguns aspectos do mundo do trabalho (a situação estaria melhor do que se imaginava) e a taxa de desemprego. São 11 milhões de pessoas a menos, uma diferença de mais de 5% em relação às Pnads.

Recenseadores do IBGE em Paraisópolis, em São Paulo - Rubens Cavallari - 18.ago.22/Folhapress

Além disso, ao menos na revisão da estatística, o país ficou mais rico (aumentou o PIB per capita), embora, claro, o número de pessoas dormindo nas calçadas ou sem comida e salário decentes continue na mesma.

Importante: já estava claro que o país precisaria de muita mão de obra imigrante, em especial com mais qualificação, se a economia voltasse a crescer. Com esses números do Censo, parece que a necessidade será ainda maior. Vai ter de ser assunto de política de Estado.

Por ora, com os dados à mão, os números novos da população podem, sim, ter relevância imediata para se pensar o emprego.

Por exemplo, os números do Censo devem provocar revisões da taxa de participação na força de trabalho. Isto é, da proporção de pessoas ocupadas ou procurando trabalho em relação à população total em idade de trabalhar (mais de 14 anos, na estatística do IBGE).

Os economistas Samuel Barbosa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre, FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO), e Daniel Duque, pesquisador da área de Economia Aplicada do Ibre, FGV, concordam com a avaliação.

E daí? Essa taxa deve subir, caso não sobrevenham revisões do número de pessoas ocupadas ou procurando trabalho. Em tese, pode vir daí também uma revisão na taxa de desemprego —ainda não é possível saber, com os dados disponíveis.

De qualquer modo, é possível especular, com base nos dados disponíveis, que a situação do emprego é, quantitativamente, melhor: há proporcionalmente mais gente trabalhando.

Como ainda não há dados do novo Censo sobre a população por faixa de idade, se pode apenas especular sobre outras mudanças na interpretação do que se passa com o emprego no Brasil. Por exemplo, se diferença entre Censo e Pnad for maior entre jovens, é provável que a taxa de desemprego seja menor do que a medida atualmente.

A diminuição da taxa de participação na força de trabalho depois da epidemia é um assunto que tem sido objeto de discussão de economistas. Essa taxa foi de 61,4% no trimestre encerrado em abril, segundo a Pnad mensal. Em abril de 2019, antes da epidemia, de 63,6%. Desde quando há dados comparáveis, 2012, até 2019, a média foi de 62,9%.

Se a taxa de participação em abril fosse a da média de 2012-2019, haveria mais 2,6 milhões de pessoas na força de trabalho (trabalhando ou, mais provavelmente, procurando emprego).

Esse número pode dizer algo sobre a taxa de desemprego. Com menos gente procurando trabalho e tudo mais constante, a taxa de desemprego cai, por exemplo. É o que tem acontecido neste ano.

O motivo é tema de debate. Mais gente recebendo Bolsa Família maior? Ligeira melhora da situação das famílias, ajudando a tirar gente do mercado de trabalho (até para estudar, por exemplo)?

Enfim, mais gente (em termos relativos à população) trabalhando pode indicar um potencial maior de crescimento da economia.

Quanto à situação geral da vida, fica a questão para demógrafos, sociólogos, antropólogos ou economistas: por que o crescimento da população desacelerou tão rapidamente e é tão baixo? O colapso econômico que começou em 2014 tem algo a ver com isso?

27 de junho de 2023

Como a IA está agravando a discriminação no mercado imobiliário

Os proprietários estão recorrendo cada vez mais a programas de IA para selecionar possíveis inquilinos. A prevalência de informações incorretas, desatualizadas ou enganosas nestes relatórios está aumentando os custos e as barreiras à habitação, especialmente entre as pessoas de cor.

Rebecca Burns


À medida que mega-proprietários anônimos e algoritmos proprietários ganham maior controle sobre o acesso à habitação, os defensores estão pedindo que os reguladores tomem medidas enérgicas. (Grand Warszawski / Getty Images)

Tradução / Quando Chris Robinson se candidatou a mudar-se para uma comunidade de idosos na Califórnia há cinco anos, o gerente da propriedade submeteu seu nome a um programa de triagem automatizada que, segundo relatos, usava inteligência artificial para detectar “locatários de alto risco”. Robinson, então com setenta e cinco anos, foi negado depois que o programa lhe atribuiu uma pontuação baixa — uma pontuação que ele posteriormente descobriu ter sido baseada em uma condenação passada por jogar lixo na rua.

Não apenas a queixa tinha pouca relevância para determinar se Robinson seria um bom inquilino, ele nem mesmo o havia cometido. O programa havia identificado o caso de um homem de trinta e três anos com o mesmo nome no Texas — onde Robinson nunca havia morado. Ele eventualmente corrigiu o erro, mas perdeu o apartamento e a taxa de inscrição, segundo uma ação coletiva federal que avançou para um acordo neste mês.

O escritório de crédito TransUnion, um dos principais atores americanos envolvidos na indústria de triagem de locatários de bilhões de dólares, concordou em pagar US$11,5 milhões para resolver alegações de que seus programas violaram as leis de relatórios de crédito justos.

Os proprietários estão cada vez mais recorrendo a programas de triagem de inteligência artificial (IA) com apoio de capital privado para ajudá-los a selecionar inquilinos, e casos resultantes como o de Robinson são apenas a ponta do iceberg. A prevalência de informações incorretas, desatualizadas ou enganosas em tais relatórios está aumentando os custos e as barreiras à habitação, de acordo com um relatório recente de reguladores federais de consumidores.

Mesmo quando os programas de triagem apresentam dados reais, defensores da habitação e privacidade alertam que algoritmos opacos estão perpetuando a discriminação de alta tecnologia em um mercado imobiliário já desigual — o mais recente exemplo de como a IA pode amplificar preconceitos existentes.

Além do processo contra a TransUnion, pelo menos outras quatro empresas de triagem de locatários, muitas das quais afirmam prever "risco de locação" por meio do uso de IA, enfrentam atualmente mais de noventa ações civis federais de direitos civis e consumidores, de acordo com nossa análise de registros judiciais. Os resultados desses casos, juntamente com novas regras potenciais de agências federais, podem ajudar a definir o tom para as futuras batalhas regulatórias sobre a IA, à medida que as preocupações aumentam sobre seus usos proliferantes.

No mês passado, quinze procuradores-gerais estaduais enviaram uma carta urgindo os reguladores a garantir que "os candidatos a moradia tenham acesso a todos os dados que estão sendo usados para tomar decisões sobre sua 'dignidade' como inquilinos" — e que as empresas de triagem estejam cumprindo a lei de direitos civis. Os reguladores federais estão atualmente considerando regulamentações adicionais para programas de triagem de locatários.

Mas essas medidas são fortemente opostas por grupos de lobby do setor imobiliário, gestão de propriedades e indústrias de dados do consumidor — estes últimos também lutaram contra a legislação estadual para conter o uso de Big Data na habitação, emprego e outras decisões de alto risco.

A Associação da Indústria de Dados do Consumidor dos EUA, um grupo de lobby de empresas de triagem e relatórios de crédito, informou que gastou mais de US $400.000 este ano até agora em lobby nos estados que estão considerando legislação para aumentar a transparência no desenvolvimento e uso de IA.

Em uma carta de junho de 2021 aos reguladores federais de consumidores, o grupo do setor argumentou contra a necessidade de supervisão adicional da IA em tecnologias financeiras. Ao incentivar ferramentas precisas e preditivas que criam oportunidades de lucro, a carta dizia: "O próprio mercado regula inherentemente o sistema de IA".

"Eles não são neutros"

Aexplosão de programas automatizados de triagem de locatários tem caminhado lado a lado com a consolidação da habitação após a crise de execuções hipotecárias de 2008. O americano médio agora gasta mais de um terço de sua renda em habitação, uma tendência impulsionada em parte por proprietários de Wall Street que aumentam os aluguéis, cobram taxas e recorrem cada vez mais a sistemas automatizados para gerenciar seus vastos portfólios em todo o país.

Estima-se que duas mil empresas de triagem de terceiros ofereçam a mega-proprietários, que muitas vezes carecem de equipe no local, uma alternativa mais rápida às verificações de antecedentes tradicionais.

A tecnologia também despertou o interesse de empresas de capital privado e capital de risco, com bilhões de dólares investidos em empresas com nomes como TurboTenant, RentSpree e LandlordStation — esta última com o slogan: "Trabalhamos duro para tornar sua vida um pouco mais fácil!"

Os custos dos relatórios de triagem variam, mas muitas vezes são pagos pelos inquilinos, e aqueles que recebem pontuações baixas o suficiente para uma "aceitação condicional" muitas vezes são forçados a pagar depósitos mais altos, de acordo com reportagem da ProPublica.

A maioria das empresas de triagem diz que seus algoritmos se baseiam nos mesmos tipos de registros que muitos proprietários verificariam por conta própria, incluindo relatórios de pontuação de crédito e históricos criminais. Essa prática de longa data já aumentou as barreiras para moradias de alta qualidade para muitas pessoas de cor. Pesquisas disponíveis descobriram que registros criminais geralmente não são um bom indicador de como alguém se comportará como inquilino, enquanto a instabilidade habitacional está intimamente associada à reincidência.

Muitas cidades americanas já limitam o uso de verificações de antecedentes em solicitações de moradia. Mas quando essas decisões são terceirizadas para algoritmos não regulamentados, "Isso afasta ainda mais os problemas existentes de acesso à habitação da responsabilidade e transparência", disse Hannah Holloway, diretora de política e pesquisa na TechEquity Collaborative, uma organização sem fins lucrativos que avalia o impacto dos programas de triagem de locatários.

Holloway dá o exemplo da empresa de triagem Naborly, que diz comparar as "características únicas de um inquilino" com as características da propriedade alugada pelo proprietário. Um relatório de amostra disponível online avalia os candidatos em categorias como "estabilidade de renda e emprego" e "análise de comportamento do consumidor", que são usadas para produzir uma série de classificações que indicam a probabilidade prevista de um inquilino pagar atrasado, sair cedo ou uma série de outros resultados.

"Não sabemos quais são suas fontes de dados, ou com que frequência eles estão verificando essas informações e atualizando-as", disse Holloway. E embora algumas características possam ser bastante objetivas, ela observou: "Se eu sou um inquilino, eu não tenho ideia de como eles estão usando essas informações para chegar a uma previsão sobre se eu vou danificar a propriedade ou perder um pagamento."

A Naborly não respondeu a um pedido de comentário da Jacobin.

Essas empresas de triagem argumentam que a decisão sobre aceitar um inquilino ainda cabe ao proprietário. Mas um estudo comportamental recente que utilizou relatórios de triagem simulados descobriu que os proprietários confiavam principalmente nas pontuações retornadas, em vez dos dados subjacentes — mesmo que os dados subjacentes frequentemente contivessem contexto crítico, como quando uma acusação criminal ou ação de despejo tinha sido eventualmente retirada.

Wonyoung So, autor do estudo e candidato a doutorado no departamento de estudos urbanos e planejamento do MIT, chama isso de "viés de automação". De acordo com So, "Os sistemas de tomada de decisão automatizada parecem oferecer essas recomendações neutras, mas de forma alguma são neutras."

"Não é uma desculpa para o comportamento ilegal"

Em abril, o Escritório de Proteção Financeira do Consumidor (CFPB, na sigla em inglês) e outras três agências federais divulgaram uma declaração conjunta afirmando que sistemas automatizados "não são uma desculpa para comportamento ilegal" — e que eles aplicariam as leis de direitos civis, proteção ao consumidor e concorrência justa em relação a essas tecnologias.

O CFPB recebeu milhares de reclamações de consumidores sobre relatórios de triagem, e junto com a Comissão Federal de Comércio, recentemente concluiu a coleta de opiniões públicas sobre os programas — um possível primeiro passo em direção a regulamentações adicionais.

Enquanto grupos de consumidores e especialistas em análise de dados opinaram pedindo maior supervisão e auditorias algorítmicas de agências federais, alguns grupos de lobby do setor pintaram a ação como excesso regulatório.

O Conselho Nacional de Habitação Multifamiliar, que representa grandes proprietários e empresas de triagem, advertiu contra "medidas de relatório que interrompam indevidamente práticas operacionais e de gestão de propriedades necessárias".

A Associação da Indústria de Dados do Consumidor, que alertou anteriormente os reguladores federais contra "permitir que os estados restrinjam o uso de IA", também se opôs repetidamente aos esforços iniciais dos estados para conter a IA — incluindo um projeto de lei da Califórnia que teria exigido que proprietários e empresas de gestão de propriedades conduzissem e submetessem avaliações anuais de impacto das ferramentas aos reguladores estaduais. O projeto de lei morreu em comissão no início deste ano.

Em resposta às nossas perguntas, um porta-voz do grupo forneceu uma declaração que dizia: "Para preservar o estoque habitacional existente e continuar a construir o suprimento, os proprietários devem ser capazes de avaliar a confiabilidade de um futuro residente em pagar o aluguel."

"Os estatutos simplesmente não estão acompanhando"

Ironicamente, as empresas de triagem têm há muito tempo comercializado seus serviços como ajudando os proprietários a reduzir o risco de processos judiciais baseados em decisões em dados objetivos.

Por mais de uma década, grupos do setor argumentaram que algoritmos não discriminam. Em 2013, a Associação da Indústria de Dados do Consumidor apresentou um parecer de amigo da corte (amicus curiae) em um caso da Suprema Corte relacionado ao chamado padrão de impacto desproporcional sob a lei de habitação justa — que sustenta que políticas aparentemente neutras ainda podem ter efeitos discriminatórios.

O grupo de lobby argumentou no parecer que responsabilizar as empresas por impacto desproporcional prejudicaria seus membros, que fornecem informações preditivas "racialmente neutras", e acabaria forçando os proprietários a fazer uma “escolha de Hobson” entre renunciar a essas informações ou enfrentar processos judiciais.

Esse caso foi resolvido, mas um caso subsequente da Suprema Corte, no qual o grupo do setor também se envolveu, sustentou que não é necessária uma prova de discriminação intencional para apresentar ações de habitação justa — o impacto de uma ação ou política é o que importa.

Agora, as próprias empresas de triagem estão sujeitas a uma série de ações federais alegando que, longe de serem racialmente neutras, estão desrespeitando a lei de direitos civis por meio de critérios que negam desproporcionalmente a moradia a pessoas não brancas.

De acordo com um processo movido em 2018, um homem de Connecticut incapaz de andar ou cuidar de si mesmo após um acidente teve sua inscrição habitacional negada devido a um relatório de triagem da CoreLogic Rental Solutions, agora conhecida como SafeRent Solutions. O homem, Mikhail Arroyo, havia tentado morar com a mãe, a quem disseram apenas que ele tinha registros criminais "desqualificadores". Ela não pôde obter mais informações sobre quais eram esses registros – uma suposta violação das leis federais de relatórios de crédito justos.

O histórico de Arroyo consiste em uma única acusação de furto em lojas quando ele tinha vinte anos, e ela foi eventualmente retirada, de acordo com a queixa. Seus advogados também argumentam que desqualificar candidatos com base em um registro de prisão é uma violação da lei de habitação justa, porque pessoas de cor têm mais probabilidade de serem presas em Connecticut e em todos os Estados Unidos.

Outra ação federal pendente contra a SafeRent alega que a empresa está discriminando candidatos a aluguel negros e hispânicos que usam vales de habitação financiados pelo governo federal.

O algoritmo da SafeRent é proprietário, mas a empresa diz que se baseia em fatores como registros de falência, históricos de despejo e pontuações de crédito. A reclamação observa que cerca de 45% dos consumidores negros e 32% dos consumidores hispânicos têm pontuações de crédito subprime, em comparação com 18% dos consumidores brancos.

Em sua propaganda, a empresa afirma que os candidatos com altas pontuações geralmente "pagam em dia, tratam a propriedade com cuidado e permanecem por períodos mais longos, o que ajuda a administração a maximizar a receita operacional líquida".

Mas a SafeRent não considera se os candidatos têm vales de habitação, de acordo com a ação – embora esses vales geralmente cubram a maior parte do aluguel dos inquilinos, aumentando drasticamente sua capacidade de pagar.

Advogados da SafeRent e CoreLogic não responderam a um pedido de comentário da Jacobin sobre o litígio.

Eric Dunn, diretor de litígios do Projeto de Lei Nacional de Habitação e um dos advogados que representam Arroyo, disse que esses cenários destacam a necessidade de regulamentação e fiscalização atualizadas.

A lei federal de relatórios de crédito justos, que governa as informações coletadas por agências de relatórios de crédito e fornece aos consumidores acesso periódico gratuito, "ainda fala sobre entrar em um escritório e olhar em uma pasta de manila", disse ele. "As estatísticas simplesmente não acompanham a forma como a indústria opera."

À medida que mega-proprietários anônimos e algoritmos proprietários ganham maior controle sobre o acesso à habitação, Dunn e outros defensores estão pedindo que os reguladores tomem medidas enérgicas contra taxas predatórias, garantam que os inquilinos tenham o direito de revisar e corrigir seus arquivos ou até mesmo pausar o uso dos programas até que possam ser avaliados.

"Não se pode exagerar que grande parte da tecnologia que impulsiona essa ascensão dos serviços de triagem de locatários digitalizados é uma caixa-preta", escreveram So e quatro colegas do MIT em um comentário aos reguladores no mês passado. "Recomendamos que os reguladores estabeleçam uma moratória federal em serviços de triagem de locatários até que tais serviços possam ser comprovados como seguros, justos e não discriminatórios."

Você pode assinar o projeto de jornalismo investigativo de David Sirota, o Lever, aqui.

Colaborador

Rebecca Burns é repórter do Lever.

26 de junho de 2023

As Revoluções de 1848 devem ser uma pedra de toque histórica para os socialistas de hoje

Revolutionary Spring de Christopher Clark é um relato emocionante das revoluções de 1848 na Europa. As questões levantadas por esses movimentos e sua derrota final ainda são de vital importância para a política socialista em nosso tempo.

Owen Dowling

Jacobin

Horace Vernet, Nas barricadas da Rue Soufflot, Paris, 25 de junho de 1848. (Deutsches Historisches Museum via Wikimedia Commons)

Resenha de Revolutionary Spring: Europe Aflame and the Fight for a New World, 1848-1849 de Christopher Clark (Crown: New York, 2023).

As revoluções europeias de 1848-49 ocupam um lugar curiosamente marginal na memória histórica coletiva dos socialistas de hoje. A "Primavera dos Povos" viu revoltas democráticas em massa irromperem nas capitais e províncias da Europa, expulsando imperadores, reis e papas de seus palácios com medo do poder popular armado.

Muitos na esquerda de hoje podem se lembrar de que uma onda de revoluções se seguiu rapidamente à publicação do Manifesto Comunista, ou podem estar familiarizados com o elogio sarcástico de Karl Marx à efêmera Segunda República Francesa, O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte ( 1852). No entanto, em comparação com as tomadas da Bastilha e do Palácio de Inverno, ou mesmo com a Comuna de Paris de 1871, os eventos reais de 1848 geralmente recebem pouca discussão entre os celebrantes modernos do cânone das revoluções européias.

Isso pode se dever em parte ao que Christopher Clark, autor de uma nova história monumental desses levantes, Revolutionary Spring, descreve como sua aparente combinação potencialmente pouco atraente de "complexidade e fracasso". Em nenhum lugar em 1848 foi estabelecido um regime revolucionário durável comparável aos nascidos em 1917 ou 1949: todos os governos insurgentes recém-nascidos sucumbiram relativamente cedo à contra-revolução interna ou internacional.

Mas seria um erro, argumenta Clark, concluir que os eventos de 1848-49 foram historicamente inconsequentes ou indignos de nosso interesse hoje. As revoluções de 1848 foram únicas na história da Europa, observa ele, com "tumultos políticos paralelos" irrompendo por todo o continente na "única revolução verdadeiramente europeia que já existiu". Além disso, em sua leitura, essas revoluções "não foram de fato um fracasso" - elas foram um divisor de águas histórico definido, após o qual "a Europa foi ou se tornou um lugar muito diferente".


Para Clark, a revolta continental de 1848-49 foi "a câmara de colisão de partículas no centro do século XIX europeu", dentro da qual as correntes políticas decisivas da modernidade européia, do "socialismo e radicalismo democrático ao liberalismo, corporativismo e conservadorismo", foram postos à prova e mudados indelevelmente, para serem soltos em suas novas formas no mundo.

Um panorama europeu

Até este ponto, houve relativamente poucos relatos das revoluções de 1848 em perspectiva continental disponíveis em inglês. Isso talvez se deva em parte aos pré-requisitos linguísticos envolvidos na tentativa de um [relato desse tipo], bem como ao excesso de histórias nacionais.

Eric Hobsbawm abre A Era do Capital (1975), o segundo volume de sua trilogia clássica sobre o longo século XIX, com uma sucinta mas esclarecedora panorâmica sobre a Primavera e suas consequências. Dos tratamentos mais recentes, do tamanho de um livro, o livro de 1994 de Jonathan Sperber é provavelmente o mais conhecido - e o melhor. Mas a enorme nova história de Clark, com 754 páginas, supera todos os estudos anteriores, reconstruindo a experiência pan-europeia de 1848 em uma extensão nunca antes alcançada.

Professor Regius de História na Universidade de Cambridge, Clark é autor de uma série de obras sobre a história alemã e europeia, incluindo seu célebre relato das origens diplomáticas da Primeira Guerra Mundial, Os Sonâmbulos (2012). Aqui, Clark também toma a Europa como tema: embora as revoluções de 1848 possam ter sido "nacionalizadas em retrospecto", para os contemporâneos, elas "foram experimentadas como revoltas europeias". Revolutionary Spring sem dúvida aparece desta forma como o apogeu do próprio estilo de Clark de escrita da história europeia transnacional: basta dar uma olhada através do emaranhado poliglota de notas finais para entender que este é um trabalho de arte apaixonada.

Clark conta a história de 1848 em dez capítulos, traçando o desenvolvimento subterrâneo, a erupção, a jornada da unidade à divisão, a derrota final e os legados duradouros das manobras revolucionárias entrelaçadas em vários teatros: França, os reinos da Alemanha pré-unificação e Itália pré-Risorgimento, Áustria dos Habsburgos e seus territórios imperiais (principalmente a Hungria), Romênia moderna e além. Embora vagamente cronológico, cada um dos capítulos sucessivos de Clark é um mundo em si mesmo, tratando com profundidade impressionante de dimensões temáticas específicas dentro da criação e destruição das revoluções.

Escrever uma história narrativa direta de 1848 é difícil, explica Clark - especialmente ao chegar às "detonações quase simultâneas" de março: "A narrativa se fragmenta, o historiador se desespera e 'enquanto isso' se torna o advérbio de primeiro recurso". A ênfase de Clark está na imersão, levando os leitores a uma ampla reconstrução da Europa da década de 1840 como uma totalidade, incluindo os mundos da religião, filosofia, arte e cultura.

Trata-se, claramente, de uma obra de quem tem um conhecimento excepcional da cultura literária da época. Panfletos políticos ficam ao lado de canções, sátiras e romances, como os do radical francês George Sand, que não se conforma com o gênero, como uma parte central do mundo mental social contemporâneo no qual o leitor está submerso.

Extensas digressões biográficas povoam a Europa de Clark com um elenco eclético de personagens - insurgentes românticos, tribunos nacionalistas, jornalistas estrangeiros, liberais ambivalentes, parlamentares cautelosos, reacionários determinados - que, experimentando a jornada no redemoinho revolucionário ao lado do leitor, tornam-se os protagonistas de 1848. Repleto de anedotas e apartes ilustrativos, a voz narrativa de Clark é envolvente, autorizada e muitas vezes bastante engraçada.

Camada sobre camada

Construindo camada sobre camada para estabelecer uma imagem mais completa da Europa contemporânea, esta é uma escrita histórica séria e ambiciosa. A abordagem longa de Clark merece as boas-vindas de qualquer pessoa interessada no mundo do século XIX - embora possa testar a resistência dos leitores que buscam uma introdução leve ao assunto.

Afinal, o livro tem 266 páginas - mais do que todo o estudo de Sperber! - para chegar ao início parisiense das revoluções titulares em fevereiro de 1848. Os leitores em potencial devem estar preparados para uma maratona, mas isso é muito mais a força do livro do que sua fraqueza, tornando-se uma leitura substancial e gratificante. Isso pode, com alguma confiança, ser chamado de a nova história definitiva das revoluções de 1848 e uma forte declaração em apoio à visão de Clark como a autoridade no assunto.

Há muitas maneiras de escrever a história de uma revolução. A História da Revolução Russa de Leon Trotsky e Os jacobinos negros de C. L. R. James retratam, em termos grandiosos e poéticos, a luta singular pela vitória de um sujeito revolucionário popular distinto. As revoluções de 1848, como Clark as relata, não tiveram esse agente social ou político unificado; eles foram definidos, em vez disso, por "polivocalidade, falta de coordenação e a sobreposição de muitos vetores transversais de intenção e conflito".

A dissensão dentro dos blocos revolucionários que se fundiram naquela primavera e depois se dividiram de várias maneiras, é um tema central do livro. Os radicais de esquerda logo descobriram que sua visão de uma "república democrática e social" não era compartilhada pela maioria dos liberais monarquistas constitucionais (ou republicanos moderados) que predominavam nos órgãos de poder que a onda inicial de revoluções havia cedido.

Muitas das questões enfrentadas por esses revolucionários permanecem de importância premente para a esquerda hoje: pluralismo político e coalizões entre classes, democracia liberal e mobilização extraparlamentar, falta de liberdade civil e emancipação e a complicada relação do nacionalismo com outras formas de solidariedade. De fato, enquanto o relato de Clark é declaradamente escrito a partir de uma perspectiva de "afinidade com os liberais que leem jornais, bebem café e se orientam para o processo", o livro tem muito a se recomendar aos leitores socialistas.

A questão social

"Tudo e todos estavam em movimento", observa Clark, nos anos anteriores a 1848. Ele dedica seus capítulos iniciais aos contextos e conflitos de uma Europa pós-napoleônica que foi "pressionada e flexionada por mudanças rápidas" como a transição deslocadora para o capitalismo prosseguiu em ritmo acelerado. Através das lentes do discurso investigativo contemporâneo em torno da "Questão Social", Clark traça o perfil das condições sociais predominantes do período, incluindo a aparentemente nova forma de "pauperismo" que era visível "quase em todos os lugares que olhamos na Europa pré-1848".

Clark é impressionantemente familiarizado com os índices da história social urbana e agrária da Europa, e há extensas passagens onde, nas perguntas que ele faz e responde, ele escreve - talvez mesmo apesar de si mesmo - como um marxista. Com os grilhões tradicionais à subsunção do trabalho ao enfraquecimento do capital (especialmente a oeste do Elba), os artesãos foram cada vez mais expostos a "processos de 'proletarização'".

O cerco dos bens comuns rurais gerou "antagonismos de classe emergentes" em todo o interior da Europa, enquanto suas favelas municipais se encheram de uma classe crescente de trabalhadores assalariados, dependentes abertamente das caprichosas condições de mercado. Distúrbios alimentares e escaramuças agrárias proliferaram, enquanto revoltas de tecelões famosos levantaram o espectro para comentaristas radicais de uma classe trabalhadora não apenas em si, mas também para si mesma.

Com uma crise comercial e industrial internacional após insuficiência de colheita em 1845-1847, o impacto sobre os estratos mais baixos da população da Europa foi "imediato e severo". Clark se esforça para insistir que as revoluções não foram simplesmente conseqüências diretas da pobreza e da fome populares, enfatizando a relativa autonomia da política. Mas ele entende que esse "desastre material" foi "o pano de fundo indispensável para os processos de polarização política que possibilitaram as revoluções".

Anatomizando as ecléticas ideologias políticas que surgiram em meio a essa realidade social em crise, Clark mostra uma fluência especializada com a cultura intelectual da Europa na época em que termos como liberalismo, socialismo e conservadorismo estavam "apenas entrando em circulação". Essa era a Europa da tecnocracia saint-simoniana, do nacionalismo mazziniano, do liberalismo de livre comércio e do revolucionarismo neojacobino - bem como de formas embrionárias de conservadorismo popular.

Liberais e radicais são as tendências políticas axiomáticas dentro do relato de Clark sobre o partido revolucionário em 1848. Eles compartilhavam um terreno comum substancial: oposição ao absolutismo monárquico, apoio ao princípio da representação política, anticlericalismo e a defesa do "progresso". Como Clark deixa claro, no entanto, havia contradições significativas entre suas respectivas visões programáticas.

Os radicais eram republicanos, enquanto os liberais geralmente apoiavam monarquias constitucionais. Os radicais defendiam o sufrágio universal (masculino); os liberais, por outro lado, eram "enfaticamente não democratas" e imaginavam uma franquia eleitoral limitada baseada na qualificação da propriedade. Os radicais apoiavam o confronto enérgico com a autoridade, enquanto os liberais, embora "profundamente implicados nas revoluções" de 1848, eram "revolucionários relutantes".

A distinção mais nítida e, em última análise, mais consequente entre eles surgiu em questões de reforma social redistributiva (em oposição a uma reforma estritamente política). Defensores do mercado e da santidade da propriedade privada, com uma base entre a burguesia e o professorado em ascensão, os liberais eram muito menos propensos do que os radicais a tolerar a interferência do governo na economia capitalista para remediar os problemas sociais.

Clark fornece um exemplo ilustrativo do republicano liberal francês Alphonse de Lamartine. Ele condenou as propostas do socialista Louis Blanc de intervenção estatal sustentada nos mercados de trabalho para remediar o desemprego como um retorno aos princípios da Convenção de 1792 dominada pelos jacobinos, "aplicados ao campo do trabalho".

Rompendo a represa

Revolutionary Spring segue a trajetória da política europeia desde 1830 - através do surgimento de uma tradição insurrecional clandestina, proliferação de clubes e publicações reformistas e entusiasmo popular por figuras culturais liberais e patrióticas - até a microcósmica Guerra Sonderbund suíça e a campanha francesa do "banquete democrático" de 1847-48. Em meio à agitação social de longo prazo, agitação política liberal e radical e impasse governamental em muitos estados, rachaduras começaram a aparecer na represa da ordem estabelecida. Clark vividamente retrata um senso contemporâneo generalizado de que algo tinha que acontecer. "Em 1848, a represa metafórica se romperia."

Alexis de Tocqueville, representante liberal e renomado homem de letras, dirigiu-se à Câmara dos Deputados da França em janeiro de 1848 em meio a notícias de levantes em todo o Reino das Duas Sicílias:

Você não sente, por algum instinto intuitivo que não é passível de análise, mas que é inegável, que a terra está tremendo mais uma vez na Europa? Você não sente... o que eu devo dizer?... como se um vendaval de revolução estivesse no ar?

A advertência de Tocqueville provou ser presciente. O terço médio do estudo de Clark retrata o desenrolar emocionante, país por país, desta primavera revolucionária. A resistência na França à tentativa do governo de reprimir a campanha do banquete explodiu em dias de luta nas ruas. Depois de não conseguir conter a crise, o rei Louis Philippe abdicou e uma república foi declarada.

As revoltas "se espalharam como um incêndio" de Viena e Pest a Milão e Veneza, bem como capitais alemãs como Berlim, chegando mais tarde a Praga, Bucareste e outros centros. Monarquias em outros lugares, lutando para impedir o espírito de mudança, concederam constituições liberais. Klemens von Metternich e François Guizot, os dois representantes das "potências da velha Europa" referenciados pessoalmente no Manifesto Comunista, fugiram para o exílio. Da Sicília à Escandinávia, observa Clark, este foi "um momento abrangente de experiência compartilhada".

As reconstruções do autor das peças sociais épicas daquela primavera - batalhas de barricadas, manifestações, celebrações, massacres, funerais - baseiam-se em vários relatos de testemunhas oculares no nível do solo. É aqui que seu livro é mais dinâmico. As ruas e praças de 1848, e as novas formas como as pessoas as habitavam, são parte integrante da representação de Clark sobre os levantes: "Esses eram lugares onde as pessoas se tornavam parte de algo maior do que elas mesmas".

A vida pública adquiriu uma "qualidade teatral", pois as avenidas que jaziam repletas de corpos foram ocupadas com cortejos fantasiados, oratória grandiosa e luz de velas onipresente. Quando a jornalista feminista Fanny Lewald chegou à recém-republicana Paris, Clark escreve, "ela ficou surpresa com o canto constante".

O "claro-escuro emocional" do período revolucionário é retratado dramaticamente aqui: a euforia da multidão revolucionária contra a dor das famílias dos combatentes mortos e o horror das elites titulares repentinamente inseguras. Nenhum monarca foi executado em 1848, mas o destino de Luís XVI permaneceu fresco na mente dos governantes da Europa.

Pressionado pela poderosa multidão revolucionária a comparecer ao funeral em massa dos insurgentes mortos nas Jornadas de Março de Berlim, a realeza da Prússia ficou paralisada de medo; a rainha Elisabeth observou que "a única coisa que falta agora é a guilhotina". O imperador austríaco, em colapso nervoso pelos acontecimentos recentes, implorou a seu vice-rei húngaro: "Eu imploro, por favor, não tire meu trono!"

Um futuro aberto

Clark também discute os "cães que não latiam" em 1848: a Bélgica e os reinos ibéricos, onde as tentativas de revolta foram prontamente reprimidas. Indo contra um consenso historiográfico tradicional e auto-satisfeito, ele rejeita como mito a ideia de que não houve "1848 britânico", desmentida pelas realidades da significativa mobilização cartista, contramobilização policial ainda mais ampla e a "franquia da contenção política por meio de a periferia [colonial]".

O poder da polícia e "a eliminação de agitadores por meio de prisões e transportes" foram, ele argumenta, suficientes para bloquear "o potencial de uma grande rebelião" na Irlanda colonial assolada pela fome. Existem várias referências à Irlanda ao longo do livro, embora uma discussão mais aprofundada sobre a revolta dos jovens irlandeses pudesse ter sido bem-vinda.

Clark situa 1848 em uma perspectiva global admirável, traçando as influências extra-europeias, vidas e pós-vidas das revoluções em todo o sistema mundial mais amplo. Do Ceilão à Colônia do Cabo e ao Chile, o "1848 Global" - incluindo o abolicionista "1848 Negro", delineado anteriormente na obra de Robin Blackburn - recebe aqui sua primeira reconstrução sistemática.

Vale a pena notar o quão astronômica seria uma mudança de paradigma que os eventos da primavera teriam parecido para os contemporâneos europeus. O absolutismo monárquico, ostensivamente divino, aparentemente havia sido derrubado: "o futuro foi repentinamente aberto".

A emancipação é um tema persistente na apresentação de Clark desse momento utópico, desde a abolição da escravidão colonial francesa até a libertação civil de grande parte da população judaica da Europa (apesar das ondas de violência popular anti-semita) e da alforria dos "escravos ciganos" de Valáquia para a dissolução de muitas obrigações "feudais" remanescentes. Uma exceção notável a esse respeito foi a emancipação das mulheres. Sua presença onipresente, mas exclusão quase universal das conquistas políticas de 1848, se destaca durante a Primavera Revolucionária.

No entanto, o progresso da reforma política em direção a uma transformação social mais profunda enfrentaria obstáculos inesperados. Clark detalha como muitas das novas assembléias legislativas, produtos das consideráveis (embora não universais) extensões pós-revolucionárias da franquia eleitoral masculina, mostraram-se hostis às insurreições às quais deviam sua própria existência. Sua avaliação dos parlamentos e constituições da nova Europa põe em claro relevo a vulnerabilidade das conquistas da Primavera.

Dominadas por "liberais e conservadores moderados", as instituições representativas das revoluções democráticas estavam repletas de opositores declarados da revolução e da democracia. Enquanto isso, os verdadeiros defensores da Primavera Revolucionária viram-se cada vez mais impotentes e marginalizados: "O que fazer se uma revolução inesperadamente gerasse as condições de sua própria negação?"

Rumo à derrota

Os fatores por trás da morte lenta, e depois muito rápida, dos governos revolucionários ocupam os capítulos finais de Clark. O nacionalismo, que Clark descreve como "o mais poderoso e influente dos fantasmas que assombravam a política européia na década de 1840", aparece com destaque entre eles.

Surgindo em uma era anterior à consolidação dos Estados-nação modernos, muitas das revoluções de 1848 adquiriram um caráter nacionalista: esforçando-se para combinar políticas co-linguísticas em um estado unitário, por meio de iniciativas como a Assembleia Nacional Alemã de Frankfurt; alcançar a autonomia nacional de impérios dinásticos supranacionais, como o movimento-de-independência-que-virou-guerra húngaro de Lajos Kossuth; ou fazer as duas coisas simultaneamente, como na cruzada totalmente italiana contra a suserania austríaca. No entanto, como Clark observa, o sentimento nacionalista também repetidamente "superou a solidariedade revolucionária" entre patriotas de nações vizinhas, para vantagem dos poderes contrarrevolucionários ressurgentes da Europa.

Clark’s discussion of the Austrian Empire conveys this point most clearly. The revolutions “triggered a chain of interlocking national mobilizations” in the Habsburg domains. Allying themselves to the emperor in hopes of gaining future autonomy, “Slavic and Romanian groups counter-mobilized against the national claims of Hungarians, Poles or Germans,” which had not taken sufficient account of the other nationalities in the territories they hoped to rule. The Hungarian hinterland descended into an inter-ethnonational bloodbath from which restored Austrian imperial absolutism emerged triumphant.

Além das divisões nacionalistas, a tensão crescente entre "entendimentos liberais radicais e liberais moderados da revolução" aparece na leitura de Clark como a disjunção decisiva e fatal no coração de 1848. Essa contradição se desenrolou de maneira mais violenta em Paris, prenunciada em fevereiro pela icônica rejeição de Lamartine à bandeira vermelha para a nova República, insistindo na clássica tricolor. Clark revela longamente o colapso das relações entre "liberais, pessoas da bandeira tricolor" e "radicais, pessoas da bandeira vermelha", que atingiu seu desenlace nas infames jornadas parisienses de junho.

Essa “insurgência trabalhadora de última hora” contra o plano do governo liberal-conservador de fechar as Oficinas Nacionais - uma versão diluída das propostas radicais de Blanc - viu milhares de mortos por meio de barricadas e execuções sumárias. Quando as coisas finalmente explodiram, Clark escreve, a “presença espectral da violência colonial pairava sobre as ruas de Paris”. Os republicanos liberais colocaram o general Louis-Eugène Cavaignac, já bem versado em contrainsurgência genocida desde seu tempo na Argélia, contra os proletários supostamente “bárbaros”.

Tendo suprimido progressivamente os clubes de esquerda da capital e congelado as demandas socialistas, o governo da França havia, como observa Clark, provado que “o republicanismo e o compromisso com as causas sociais eram coisas diferentes e separáveis”. De fato, a vitória liberal que junho representou sobre as expectativas sociais provocadas por fevereiro foi codificada na constituição republicana subsequente, que complementou os “princípios revolucionários sagrados” de Liberdade, Igualdade e Fraternidade com um novo mantra: “Família, Trabalho, Propriedade, Ordem pública."

A compreensão de Clark sobre o comentário socialista contemporâneo serve-lhe bem em uma seção memorável sobre as reações dos radicais europeus às Jornadas de Junho. Karl Marx argumentou que os eventos em Paris simbolizaram o colapso do "sonho de uma frente revolucionária unida sob a bandeira do 'sufrágio universal'" sob a irreconciliabilidade dos antagonismos de classe, enquanto George Sand caiu em depressão suicida: "Eu não acredito na existência de uma república que começa matando seus proletários".

Uma rede de ferro

O estudo de Clark retrata tensões semelhantes em outros teatros europeus. Enquanto a “iniciativa política deslizava gradualmente para a direita em Paris e Berlim”, as coisas caminhavam na direção oposta em Viena. Aqui, uma série de medidas radicalizantes alargou o fosso que se abria no interior do campo revolucionário, com deputados conservadores e liberais acabando por acompanhar a (segunda) fuga da Corte Imperial da capital.

A revolução da Prússia acabou sendo suprimida, junto com as dos outros estados alemães, pelo poder monárquico ressurgente que os ministérios liberais de Berlim não conseguiram conter, enquanto o Império Habsburgo recuperou sua capital por meio de uma força militar esmagadora. A execução pelo pelotão de fuzilamento austríaco do parlamentar radical alemão Robert Blum, que aparece como um dos favoritos de um autor ao longo do livro, dramatizou o destino da revolução pan-germânica da qual ele era para Clark “a personificação”.

A descida vitoriosa de uma “rede de ferro” contrarrevolucionária pela Europa deveu-se, na perspectiva de Clark, à combinação de vulnerabilidade externa e discórdia interna que enfraqueceu os governos revolucionários. Agora sob a presidência de Luís Napoleão, a França republicana lançou uma intervenção contrarrevolucionária contra a embrionária e radical República Romana em 1849. Isso tipificou as dimensões geopolíticas que o naufrágio da solidariedade revolucionária adquiriu.

Embora eventualmente vencida pelas tropas francesas, a famosa defesa de Roma pelos legionários de Giuseppe Garibaldi está entre as seções mais emocionantes dolivro. As revoltas dos últimos dias no sul da Alemanha, nas quais Engels lutou contra as tropas prussianas nas barricadas, tentaram manter a chama acesa, mas em agosto de 1849 tudo havia acabado. Um capítulo curto e poderoso sobre "The Dead" lista as execuções, neste rescaldo contrarrevolucionário, de muitos dos personagens que o leitor conheceu ao longo do livro.

Postmortem

A autópsia de Clark sobre a experiência de 1848-49 segue os impactos constitucionais, administrativos, econômicos e políticos de longo prazo dessas convulsões: "Não houve retorno ao status quo ante pré-revolucionário. Muita coisa havia mudado. Mas a visão política popular-democrata de reforma social redistributiva que inspirou a esquerda radical e camadas significativas da multidão revolucionária nesses anos foi forçada à clandestinidade por uma geração, com a consolidação em grande parte da Europa de uma “ordem capitalista liberal-conservadora. ”

Havia algo que os revolucionários poderiam ter feito para evitar isso? Clark conclui que as redes revolucionárias transnacionais de 1848 falharam em reunir “um poder capaz de afastar a ameaça representada pela contra-revolução internacional”. Ele discute longamente a questão de saber se havia rotas alternativas viáveis não tomadas em 1848.

Clark reconhece os inúmeros relatos que atribuem o fracasso de 1848 ao “caminho errôneo” seguido por vários atores, “o suspeito mais comum sendo a burguesia liberal”. No entanto, ele parece resistir a endossar essa conclusão, apontando, em vez disso, para uma escassez de esforços de compromisso entre as vozes liberais e de esquerda. Foi o “fracasso de liberais e radicais em ouvir uns aos outros” naquela Primavera Revolucionária, afirma ele, que provou ser “um dos impedimentos centrais para uma transformação política mais profunda”.

Ele identifica esse momento perdido como “uma das tragédias centrais de 1848”:

E se os liberais tivessem se aberto à lógica social da política radical em vez de se agarrarem às saias dos poderes tradicionais? E se os radicais tivessem conseguido chegar a um acordo sobre um programa social mínimo, uma plataforma para uma política de melhoria que pudesse superar as objeções dos liberais?

Tendo passado suas páginas detalhando como a maioria dos “liberais da propriedade privada” se opôs implacavelmente às demandas democráticas e sociais mais profundas de 1848 - e muitas vezes, eventualmente, contra as revoluções como tais - apenas para, em última análise, atribuir a culpa pelo colapso das revoluções a uma “falha de diálogo” mais generalizada e mútua entre o centro político e a esquerda, pode-se dizer que o livro, em sua conclusão, deixa a burguesia liberal um pouco fora de perigo.

Da primavera à policrise

A lamentação de Clark pela coalescência não realizada de uma "frente unida de liberais e radicais" em 1848 sem dúvida fala do espírito político no qual o livro foi escrito. Sua discussão final sobre o liberalismo como um projeto histórico é notavelmente positiva: lembrando, contra as críticas modernas tanto da direita quanto da esquerda, "que coisa rica, diversa, arriscada e vibrante foi o liberalismo" no período de sua ascendência - com sua "visão de uma metapolítica voltada para a mediação discursiva de interesses" permanecendo "indispensável", tanto agora quanto em 1848.

Ele reconhece que o liberalismo contemporâneo também representava "uma constelação de grupos de interesse", cujos "pontos cegos" e "inconsistências nascidas do interesse próprio" os radicais de 1848 estavam corretos em condenar. Mas ele sugere que "argumentos radicais em prol da democracia e da justiça social" poderiam ter se mostrado "um corretivo crucial para o elitismo liberal", se o diálogo tivesse sido seriamente tentado.

Há uma crença implícita aqui de que os liberais e radicais (incluindo os socialistas) de 1848 não estavam necessariamente destinados a entrar em conflito, mas poderiam potencialmente ter colaborado, caso caminhos diferentes tivessem sido tomados, para forjar uma síntese reformista progressista. Em vários pontos ao longo do livro, Clark parece estar se aventurando a reivindicar as revoluções de 1848 para a (pré-) história não do comunismo, mas da social-democracia moderna.

Com isso, e uma divertida referência à atual "policrise", da qual nenhuma rota clara "não revolucionária" parece visível ao autor, a Primavera Revolucionária se encerra. Os socialistas de hoje podem ter uma visão nada otimista do liberalismo ou do estado atual da política social-democrata. Mas as questões que as insinuações contrafactuais de Clark levantam sobre a possibilidade de construir coalizões progressistas viáveis através de diferenças ideológicas substanciais dificilmente são aquelas que a esquerda pode se dar ao luxo de ignorar.

Para os exilados radicais espalhados pelo mundo, incluindo Marx e Engels, a experiência devastadora da derrota em 1848 foi politicamente formativa. Dificilmente houve um agrupamento ou tendência socialista ao longo do próximo meio século que não entendesse a si mesmo e seu programa à luz das lições percebidas de 1848.

Quer se considere desde 1848 a necessidade de manter amplas faixas de opinião liberal ao lado de qualquer projeto socialista, ou alternativamente de assegurar a independência socialista absoluta de influências liberais corrosivas, para os esquerdistas não há como escapar das questões políticas levantadas pelas revoluções de 1848. Aqueles que buscam entender essa história não encontrarão um guia melhor do que o livro de Clark.

Colaborador

Owen Dowling é historiador e pesquisador de arquivos do Tribune.

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