9 de novembro de 1997

A Bolsa e a vida

Lições contemporâneas

Maria da Conceição Tavares


Em um celebrado trabalho, cujo título tomei de empréstimo para este artigo, o historiador francês Le Goff conta como, no século 12, alguns teólogos da Igreja solucionaram o conflito entre suas posições doutrinárias de condenação à usura e a realidade objetiva gerada pela crescente importância do capital usuário na economia da época, em função da significativa expansão das relações mercantis. A saída encontrada foi a criação de uma instância intermediária entre o inferno -ao qual, até então, estavam inexoravelmente condenados os usuários- e o paraíso, ao qual não tinham a mais remota possibilidade de aceder. Esta instância, o purgatório, à qual passaram a ser destinados os usuários, tinha, porém, uma particularidade: dela, purgadas as penas, somente se sai para o paraíso. Com isso a Igreja preservou formalmente seu princípio condenatório e os usuários, além da bolsa -os juros- ficaram também com o benefício da 'vida eterna'.

Esta recordação me veio à mente ao refletir sobre a natureza da atual crise financeira internacional e seus desdobramentos no caso da economia brasileira.

O ambiente favorável às manobras especulativas verificadas nas bolsas e nos mercados cambiais tem como determinante imediato a escandalosa liberalidade com que os operadores do mercado e o governo atuam na esfera financeira; como causa permanente a fragilidade de nossas contas externas e a sobrevalorização cambial (de estrita responsabilidade do governo); e como determinante, em última instância, a desregulamentação crescente os mercados financeiros globais. A ausência de normas e controles dos fluxos de entrada e saída de capitais do exterior, que possibilitariam uma elementar seletividade e permanência do investimento estrangeiro, é agravada pela omissão das autoridades monetárias em aspectos chaves do funcionamento do sistema financeiro. Isto ficou evidenciado pelo próprio desdobramento da atual crise, quando o Banco Central teve que antecipar o resgate de títulos com vencimentos em 1998 para 'injetar liquidez' em instituições que, por terem feito alavancagens acima de qualquer limite aceitável, não tinham condições de honrar compromissos assumidos 48 horas antes. Só depois desta operação de resgate de algumas instituições, cujas posições o Bacen tinha a obrigação de conhecer e controlar, é que foi dado o tranco, a meu juízo excessivo, nos juros (no final da quinta-feira, dia 30/10). Esta atitude recorrente do Banco Central não permitindo a quebra de qualquer banco de relativa importância favorece todo tipo de práticas especulativas. O custo dos ajustes periodicamente necessários para "salvar" o sistema bancário privado é, sistematicamente, bancado pelo Tesouro e pelos Bancos Públicos, convocados desta vez junto com os fundos de pensão das Estatais para segurar as bolsas e o mercado de câmbio.

O festival de despropósitos e arrogância verbal no manejo da crise foi fartamente noticiado pela imprensa e dispensa comentários. O choque violento da taxa de juros, assinalado como demonstração, ainda que tardia, da 'competência' da equipe econômica, te óbvias implicações recessivas com impactos dramáticos sobre o desemprego e as dívidas da classe média e de consumo dos mais pobres que usam o crediário. Sobre o orçamento federal consolidado do Tesouro e Autoridades Monetárias, o choque de juros representa um brutal custo financeiro, tanto para operar a recomposição das reservas internacionais quanto, sobretudo, para a rolagem da dívida pública interna. Esta já tendo alcançado em setembro, só em títulos federais, mais de R$ 200 bilhões, vai custar neste mês a modesta quantia de R$ 8 bilhões em juros.

Os 'ciclistas' do mercado deveriam pagar pelo menos parte do preço da especulação. Sempre seria mais apropriado do que atribuir ao Congresso ou à Oposição (!) a falta de 'cooperação' com a política econômica. "Culpem os ciclistas" como disse Élio Gaspari, embora, em minha opinião, os que pilotam a corrida e deveriam controlar legalmente as posições das instituições financeiras não possam ser absolvidos. Uma coisa é ser um 'operador' audacioso contra ou a favor do mercado outra coisa é ser autoridade monetária. Compare-se à atitude ponderada do presidente do FED com os destemperos do nosso 'agressivo' mago do Real. Compare-se também o custo privado da IBM, de Bill Gates e outros mega investidores na especulação da bolsa de Nova York e os custos de nossos afoitos especuladores locais. Culpe-se e puna-se os 'ciclistas' e invoque-se o espectro da globalização financeira, mas não se atribua às 'reformas' em curso no Congresso (aliás adiadas pelo governo e sua base de sustentação) a virtude de reduzir a dependência do país dos capitais voláteis.

Informe-se o público corretamente sobre os custos das 'operações' públicas e privadas que contornaram, temporariamente, a crise cambial e financeira: Quanto custou a recompra de R$ 4,5 bilhões de títulos nos três dias da crise para salvar os especuladores excessivamente alavancados? Quanto vai custar a recompra dos 9 bilhões de reservas perdidas pelo Bacen com um cupom cambial que chegou a 45% ao ano? Quanto custou à Eletrobrás e à Telebrás a desvalorização de suas ações? Quanto custou ao BNDES os financiamentos das privatizações deste ano com seus ágios fabulosos, inclusive o da CPFL realizado na contramão do 'valor de mercado' das ações? Quanto vai custar, em termos de redução dos gastos essenciais do setor público, um novo corte orçamentário previsto para 'negociações' com os partidos da base de apoio do governo?

Se, como noticiou a imprensa, a maioria das reservas perdidas pelo Bacen acabou não saindo do país e encontra-se retida nas carteiras das instituições financeiras privadas brasileiras (que operam livremente nos mercados de câmbio), é evidente que o 'ataque especulativo' não foi 'externo' e está esperando a última maldade do saco sem fundo do presidente das 'autoridades monetárias' para promover mais turbulências. Convêm lembrar que a mais importante forma de controle de entrada e saída de recursos externos foi a que adotou o Chile (a quarentena do capital estrangeiro), que além disso tem a sorte de não ter mais nenhuma privatização importante a fazer, razão pela qual o 'El niño financeiro', apesar de gerado no Pacífico, não atingiu o país irmão. O nosso grande país do Atlântico não quis implementar essa medida sugerida pela Oposição em março em 1995, por isso sofre de 'ataques especulativos' periódicos, agravados ou adiados pelas oportunidades de 'grandes negócios', como a venda das 'Minas do Rei Salomão' de que tanto se orgulha o Ministro das Telecomunicações.

O clima de turbulência instalou-se para ficar, até ocorrer a última das privatizações altamente rentáveis a favor dos monopólios privados (nacionais ou estrangeiros). Aí sim, se não tivermos mudado a política cambial e financeira, veremos o que é um ataque especulativo contra a nossa moeda e o que é uma crise cambial.

Como no século 17, os nossos 'modernos'usuários mais uma vez ficam com a bolsa e, à custa da sociedade, alongam sua vida, com a vantagem de sequer precisarem passar pelo purgatório. Este se reserva aos trabalhadores, a quem correspondem os sacrifícios e as incertezas de um futuro obscuro, dominado pelo desemprego, a supressão de direitos sociais, a precarização dos serviços básicos e a degradação salarial.

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