30 de junho de 2022

Crítica de Pessôa é questionável, mas é bom saber que não se opõe a taxar os ricos

André Singer e Fernando Rugitsky respondem a economista sobre revogação do teto de gastos

André Singer
Professor titular do Departamento de Ciência Política da USP e autor, entre outros livros, de "Os Sentidos do Lulismo" e "O Lulismo em Crise"

Fernando Rugitsky
Professor do Departamento de Economia da USP e da Universidade do Oeste da Inglaterra, em Bristol


[RESUMO] André Singer e Fernando Rugitsky respondem a críticas feitas pelo colunista da Folha Samuel Pessôa a artigo que publicaram na Ilustríssima e reafirmam a tese de que aumentar o gasto público é fundamental para alavancar a economia e proteger a democracia de ameaças autoritárias.

*

Em recente coluna nesta Folha, o economista Samuel Pessôa contesta raciocínios e informações usados por nós em artigo publicado na Ilustríssima sobre a revogação do teto de gastos. Para além de eventuais divergências de fundo, cabe esclarecer as objeções pontuais do colunista, de modo que os termos do debate fiquem equilibrados perante a opinião pública. Como é sabido, o diabo mora nos detalhes.

O primeiro reparo de Pessôa diz respeito aos Estados Unidos. Segundo o colunista, "os números do mercado de trabalho americano" não sustentam a interpretação que adotamos, segundo a qual o bloqueio ao programa American Families Plan, proposto por Joe Biden em 2021, contribui para a sobrevivência do trumpismo. A geração de emprego tem ido bem e a renda começa a se recuperar, diz ele. O verdadeiro risco para os democratas na eleição de meio de mandato seria a inflação, conclui.


A visão de Pessôa é parcial. A fragilidade do Partido Democrata nas eleições deste ano deve ser explicada à luz das condições de vida deterioradas de boa parte da população, não apenas por baixos salários, como também pelas mazelas do sistema de saúde, endividamento e precariedade dos postos de trabalho.

A atual escalada inflacionária —que, diga-se de passagem, tem origem na pandemia e na Guerra da Ucrânia— sem dúvida derruba ainda mais a popularidade do presidente. Todavia, não atua no vácuo, e o artigo que assinamos visava destacar tal pano de fundo, que levou Biden a propor, assim que assumiu, um vasto projeto de gastos públicos, que incluía o plano familiar barrado no Congresso.

A inflação, corretamente apontada por Pessôa como relevante fator eleitoral, reforça, aliás, a importância do American Families Plan, o qual poderia atenuar efeitos da alta dos preços sobre grupos vulneráveis.

Diante de um mercado de trabalho em que os proventos, em termos reais, estão caindo, medidas na direção do Welfare State ajudariam a atravessar a onda inflacionária. Por isso, o senador Bernie Sanders tem defendido que o partido reapresente no Congresso as propostas bloqueadas. "Está na hora de mostrar de que lado estamos", escreveu no jornal britânico The Guardian.

No que se refere ao Brasil, Pessôa afirma que "não é verdade" haver um estudo, conforme dissemos, da Instituição Fiscal Independente (IFI) mostrando "que o gasto público teria estimulado o crescimento entre 2006 e 2014".

Aqui, a redação do colunista induz a um erro quase ofensivo, pois o próprio Pessôa admite, na frase seguinte, a existência de um estudo que estima impulso fiscal positivo no período 2003-2014 (intervalo usado em nosso artigo). Para comprová-lo, basta consultar o Estudo Especial número 17 do IFI, publicado em 22 de dezembro de 2021, verificando o gráfico B1 da página 19.

Neste ponto seremos obrigados, pela opção de Pessôa e a exiguidade de espaço, a usar certo jargão econômico que pode parecer pouco claro ao leitor não especializado. Em dois parágrafos elípticos, o colunista expressa uma interpretação questionável do significado do impulso fiscal naquele período.

Os números por ele empilhados de forma apressada indicariam que, ao fazer a economia brasileira operar acima de sua capacidade, os gastos do governo teriam produzido um crescimento artificial (e inflacionário), que viria a ser revertido, portanto anulado.

Ocorre que a identificação da capacidade de crescimento de uma economia ou, para usar o termo técnico, de seu produto potencial, é sabidamente controversa. Mais: no caso concreto, os dados do mercado de trabalho não sustentam a ideia de que a economia estivesse com "pleno emprego", especialmente no início do período mencionado pelo articulista.

Em que pesem as confusões geradas pela coluna, ficamos felizes ao perceber no final da mesma que Pessôa se coloca como aliado para tornar o sistema tributário mais progressivo e, mediante tal mudança, revogar o teto de gastos. Persistir apostando na austeridade já se provou economicamente contraproducente e politicamente ameaçador para a própria democracia.

A expansão fiscal que mantém o gasto constante?

Corte de impostos e aumento de gastos serão positivos para o nível de atividades no segundo semestre

Nelson Barbosa


Governo tenta conter o efeito da alta de preços dos combustíveis sobre a inflação - Luo Jinglai/Xinhua

A falta de planejamento do governo gerou mais uma proposta de emenda constitucional, a "PEC da emergência eleitoral", para reduzir preço de combustível, transferir renda adicional aos mais pobres e criar o "bolsa caminhoneiro".

As três medidas fazem sentido econômico e poderiam ter sido adotadas de modo previsível, dentro de um plano de reconstrução econômica pós pandemia, caso o governo Bolsonaro tivesse se preocupado em planejar a saída da crise em vez de decretar repetidamente o seu fim.

Somando corte de imposto e aumento de gasto, o atual pacote orçamentário deve injetar 0,5% do PIB na renda disponível do setor privado, com impacto positivo sobre o nível de atividade econômica no segundo semestre.

Por enquanto estimo que as medidas "emergenciais" de Bolsonaro elevarão o gasto primário federal para 18,6% do PIB em 2022. Um aumento de 0,4 ponto em relação à projeção oficial de abril, quando o governo enviou o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2023 ao Congresso.

O novo gasto de 18,6% do PIB é alto ou baixo? A resposta depende da base de comparação.

Para quem acredita no teto Temer de gasto, 18,6% do PIB é alto. A despesa primária federal deveria ter caído para 17% do PIB neste ano segundo a proposta original de Temer. Já para todos os demais economistas 18,6% do PIB é um valor neutro, pois este foi o gasto realizado em 2021.

Em outras palavras, o desgoverno Bolsonaro criou uma grande confusão legislativa para praticar o mesmo gasto do ano passado. Um mínimo de bom senso teria deixado espaço para novas medidas de estabilização sem alterar a Constituição. O governo Bolsonaro não tem bom senso.

No último ano completo do governo Dilma, 2015, o gasto primário federal também foi de 18,6% do PIB quando levamos em consideração o ajuste decorrente de anos anteriores (0,8% do PIB) determinado pelo TCU.

Depois, em 2016, o governo Temer elevou o gasto primário para 19,9% do PIB, mas com promessa de reduzi-lo nos anos seguintes. Houve redução? Inicialmente sim, mas em relação ao praticado pelo próprio Temer em 2016. Comparado ao praticado pelo governo Dilma segundo o TCU, Temer aumentou o gasto público.

Em números, o gasto primário federal foi de 19,4% do PIB, em 2017, e 19,3% do PIB, em 2018. Os dois valores ficaram acima dos 18,6% do PIB registrados no último ano completo de Dilma. Dizer que Temer reduziu gasto é uma das falácias do golpe de 2016, mas prossigamos.

Em 2019 e antes da Covid, Bolsonaro assumiu o governo e elevou a despesa primária federal para 19,5% do PIB. No ano seguinte a pandemia nos atingiu, Bolsonaro chamou a doença de gripezinha, sua equipe econômica disse que R$ 5 bi resolveriam o problema, mas a conta foi cem vezes maior.

Segundo o monitor de gasto do Tesouro Nacional, as ações emergenciais criadas pelo Congresso elevaram a despesa primária federal de 2020 em R$ 524 bi, aumentando o gasto primário total para 26,1% do PIB naquele ano.

As ações de 2020 foram corretas, pois amenizaram a crise e possibilitaram a recuperação em V da economia. O problema foi o governo Bolsonaro achar que a pandemia acabaria rápido e não ter plano de reconstrução para 2021 e 2022.

Entramos 2021 com o governo prometendo grande contração fiscal e depois voltando atrás. Começamos 2022 da mesma forma e agora estamos na fase de Guedes e cia voltarem atrás com novas medidas "temporárias". Juntando os dois anos, o despreparo administrativo do governo Bolsonaro prejudicou a recuperação da economia e aumentou a incerteza sobre 2023.

Solução poderá vir das pequenas empresas (falta um plano)

Estamos desperdiçando uma forma eficaz de impulsionar o desenvolvimento

Paulo Feldmann


Industrialização e desenvolvimento tecnológico são hoje aspectos mutuamente dependentes e atuam como processos críticos sem os quais nenhuma nação obtém avanços nos campos econômico, social ou político. Os países que mais se desenvolveram nos últimos anos foram aqueles que deram muita atenção a esses aspectos, como China, Israel ou Coreia do Sul.

No caso brasileiro, apesar das inúmeras mazelas que nos assolam, a inexistência de uma política industrial não somente não nos dá um rumo para o futuro como ameaça seriamente a própria sobrevivência da empresa nacional. Já perdemos a corrida em inúmeros setores, mas ainda vamos perder muitos outros se não nos planejarmos como nação.

Até os Estados Unidos, que muito recentemente foram árduos combatentes de ações do Estado na economia, acabam de implementar uma moderna política industrial sob o patrocínio do presidente Joe Biden. Ou seja, a visão de que se deve deixar para o mercado a solução dos problemas não encontra mais coro em praticamente nenhum país desenvolvido.

O Brasil precisa urgentemente de um plano que encaminhe soluções definitivas para temas como desemprego, pobreza, desindustrialização e mudanças climáticas, dentre tantos outros. A maioria desses temas pode ter boas soluções integradas desde que se dê importância para a pequena empresa.

Por isso é importante nos debruçarmos sobre as políticas industriais das nações que têm crescido bastante nos últimos 20 anos. Pequenas empresas de países como Itália e Israel criaram parcerias envolvendo vários segmentos, mas principalmente com seus respectivos governos, os quais foram decisivos para o sucesso. Assim, enquanto no Brasil a pequena empresa praticamente não exporta nada (menos de 1% do total de nossas exportações), na Itália responde por mais da metade das exportações.

Será que a pequena empresa italiana é assim tão mais eficiente que a nossa? Claro que não. A diferença está numa política pública chamada consórcio de pequenas empresas, pela qual o governo estimula a formação de associações que, às vezes, reúnem mais de mil pequenas firmas com o objetivo de, juntas, conseguirem exportar.

Mas é de Israel que vem o exemplo mais marcante. Há um modelo bem concebido que reúne universidades, grandes empresas e governo —todos incumbidos na criação e manutenção de incubadoras, onde as pequenas empresas ficam hospedadas como se fosse um hotel para empreendimentos menores.

Nas incubadoras, as pequenas vão trabalhar em conjunto com engenheiros e estudantes das universidades israelenses em busca de inovações. Claro que o enorme investimento de Israel em educação também é importante, mas o modelo acima foi decisivo para transformar este pequeno país de 8 milhões de habitantes no 13° maior produtor de inovações do mundo, segundo o GII ("Global Innovation Index", o principal ranking de países inovadores).

Além disso, temos que reconhecer que não nos saímos bem na geração de grandes empresas com atuação e dimensão mundial. Claro que temos Embraer, Natura, Weg e outras poucas, conforme acaba de mostrar a relação da revista Forbes sobre as 2.000 maiores companhias do mundo. Apenas 1% delas é brasileira. E, daqui para frente, as grandes empresas serão cada vez menos geradoras de emprego.

Atualmente, estão todas empenhadas em se automatizar cada vez mais, e para isso compram robôs, impressoras 3D, drones e outros poupadores de emprego. Não é por outra razão que, em plena pandemia, em 2021, bateu-se o recorde de vendas de robôs no mundo.

Precisamos de um plano para o país. E estamos desperdiçando uma das formas mais importantes de impulsionar o desenvolvimento econômico —que são as pequenas empresas— com apoio, direção e, sobretudo, uma política industrial que a considere e privilegie. Nos últimos seis meses, elas foram responsáveis por 80% dos empregos criados no país. Há uma crise mundial, mas há brechas e oportunidades para quem se preparar para enfrentá-las. Temos os recursos e o potencial. Falta o plano.

Sobre o autor

Professor de economia da USP; ex-presidente da Eletropaulo (1995-96, governo Covas) e do Conselho da Pequena Empresa da FecomercioSP, foi diretor e presidente no Brasil de multinacionais como Microsoft, Ernst & Young e Sharp.

29 de junho de 2022

Quando as mulheres venceram a batalha pelo aborto na França

Em 1971, com o aborto na França ainda ilegal, 343 mulheres francesas se organizaram para declarar que haviam feito um. Foi um ato de desafio que quebrou tabus de longa data - e deve ser defendido hoje.

Vincent Chabany-Douarre


Manifestantes do Movimento de Libertação das Mulheres Francesas confrontam as forças de segurança em Paris em novembro de 1972, durante o julgamento de Chevalier. (AFP/Getty Images)

Tradução / No outono de 1971, Marie-Claire Chevalier percebe que está grávida. Ela não quer esse filho: ela tem 16 anos, foi agredida sexualmente por um colega de classe e vem de uma família da classe trabalhadora com pouco dinheiro para subsistência. Mas em 1971, os abortos são ilegais na França, a menos que a vida de uma mulher esteja em perigo.

A mãe-solo de Marie Claire, Michèle, estica seu magro salário para conseguir um aborto clandestino à filha. O procedimento quase mata a jovem, mas ela sobrevive. Algumas semanas depois, Marie-Claire é presa, assim como Michèle. O estuprador de Marie-Claire, que foi pego roubando um carro e esperava aliviar sua sentença, a denunciou às autoridades.

O julgamento começa em 1972. As Chevaliers são representadas por Gisèle Halimi, que recentemente fora notícia por defender Djamila Boupacha, uma combatente da libertação argelina que foi torturada e agredida sexualmente por soldados franceses. Há muitas mulheres no julgamento, apoiando Marie-Claire e testemunhando em seu favor, explicando por que elas também fizeram abortos ilegais. Essas mulheres não têm nenhum problema em admitir o que continua sendo um ato criminoso: toda a nação já sabe que interromperam uma gravidez.

Quem são essas mulheres e por que seu aborto já era um assunto de registro público? Poucos meses antes do julgamento de Marie-Claire, elas faziam parte de um coletivo de 343 mulheres francesas, que foram à mídia para contar a toda a França que haviam feito um aborto. Ao fazer isso, elas se denunciaram como criminosas e incitaram um Estado abusivo a puni-las. Mas, mesmo assim, elas venceram.

Embora o aborto na França tenha sido proibido no século XVI, a aplicação rigorosa da lei só começou com a Primeira Guerra Mundial. A guerra devastou a França e, com uma série de políticas nativistas, os políticos franceses procuraram reconstruir a população do país. Assim, em 1920, 314 deputados, todos homens, eleitos por um corpo eleitoral exclusivamente masculino, decidiram que qualquer mulher considerada culpada por fazer um aborto seria punida com três anos de prisão e uma pesada multa de 5.000 francos.

Essa repressão chegaria ao clímax na década de 1940. O hiperconservador regime ditatorial de Vichy encorajou avidamente a denúncia e a vigilância. No chão de fábrica, em leitos de hospital, nas ruas de suas próprias aldeias: nenhum lugar era seguro para as mulheres que procuravam interromper uma gravidez indesejada. Em 1940, 1.255 mulheres foram consideradas culpadas pelos tribunais franceses por terem feito um aborto, o dobro do registrado em 1938. Em 1944, em média, mais de dez mulheres foram condenadas todos os dias por essa acusação.

Embora o período do pós-guerra tenha marcado o fim de anos de dificuldades econômicas e lutas, ele trouxe pouco apetite por mudanças radicais. O aborto ainda era um tabu vergonhoso. Uma lei de 1955 permitia aos médicos interromper a gravidez apenas se a vida de uma mulher estivesse em perigo significativo, mas uma reação liderada pelos católicos ameaçou que houvesse mais progressos. A pílula anticoncepcional tornou-se disponível em 1967, mas as mulheres com menos de 21 anos precisavam da aprovação por escrito de seus pais. As únicas áreas onde o aborto e a contracepção foram relaxados foram Guadalupe, Martinica e La Réunion, onde pânicos racistas sobre o crescimento populacional levaram o Estado a abrandar a lei de 1920.

E, no entanto, algo estava se formando. Os protestos de 1968, nas palavras do jornalista Patrick Rotman, impulsionaram a França do século XIX ao XX. Nesse período, o feminismo encontrou novo vigor e, em 1970, nasceu o Mouvement de Libération des Femme (MLF) [em tradução livre Movimento de Libertação das Mulheres]. O MLF não estava interessado em concessões: elas protestaram, agitaram através de rádios e meios de comunicação franceses como Elle, e jogaram carne crua em líderes anti-aborto.

Mesmo com toda a proibição, o aborto não havia desaparecido. Mulheres ricas foram para a Inglaterra, Holanda e Suíça. Mulheres pobres faziam abortos clandestinos na França. O procedimento era muitas vezes traumático. A atriz Bulle Ogier, em sua autobiografia J’ai Oublié [Eu Esqueci, em tradução livre], conta como sua amiga quase morreu de sepse depois de interromper uma gravidez com uma agulha de tricô. Quando Ogier fez um aborto, ela foi agredida sexualmente pelo médico que o fez. O mesmo aconteceu com a cantora Brigitte Fontaine, no final da década de 1950, durante seu segundo aborto. Quanto à sua primeira interrupção de gravidez em 1956, Fontaine recebeu instruções claras: se algo der errado, não volte. Durante duas semanas, ela se automedicou com uísque para uma febre de 41 graus. Em 1958, Nadine Trintignant, a famosa diretora, conseguiu o dinheiro emprestado e foi para a Suíça: o médico a chamou de prostituta.

Essas histórias eram como segredos, sussurradas em círculos íntimos, mas nunca divulgadas na esfera pública. Isto, até 1971, quando o MLF foi abordada pela jornalista do Nouvel Observateur, Nicole Muchnik. Muchnik e seu editor-chefe queriam que as famosas integrantes da MLF anunciassem publicamente seus abortos. Eles argumentaram que, se figuras públicas respeitadas como Catherine Deneuve ou Françoise Sagan se manifestassem, quebrariam o tabu sobre o aborto e influenciariam a opinião pública – e o silêncio finalmente terminaria.

Esta era uma proposta perigosa. Embora as prisões por aborto fossem menos comuns do que na década de 1940, elas ainda eram frequentes. 289 mulheres foram condenadas por terem feito aborto em 1960, 720 em 1966 e 340 em 1970. Mas o manifesto também era cheio de potencial. Essas prisões prosperaram no silêncio e na vergonha. O aborto só acontecia com “pessoas estranhas”, com “mulheres más”. Se as mulheres do MLF se mantivessem juntas, o Estado francês teria uma escolha: prender essas celebridades amadas ou reconhecer a crueldade de suas leis.

A reação no MLF não foi unânime. A socióloga Christine Delphy deu as boas-vindas ao plano, mas participantes da base do MLF estavam relutantes. Eles não gostavam da ideia de fazer uma aliança com a imprensa burguesa e relutavam em fazer das mulheres ricas as figuras de proa de um movimento onde as mulheres pobres mais sofriam. Eventualmente, o MLF concordou, mas a lista teria que incluir muito mais do que apenas celebridades. Também apresentaria ativistas do MLF, de todas as idades, de todas as classes. Algumas seriam nomeadas, outras permaneceriam anônimas. Eles usariam as famosas assinaturas como escudos. Antecipando a reação, a advogada Gisèle Halimi fundou o Choisir, um grupo de ação, para defendê-las.

O manifesto foi escrito coletivamente no apartamento de Simone De Beauvoir em Paris. Agnès Varda assinou, assim como a física nuclear Annie Sugier, a tradutora Emmanuelle de Lesseps e a filósofa Monique Wittig, entre outras. Algumas, como a jornalista Yvette Roudy, colocaram o nome sem ter feito um aborto, por solidariedade.

Em 5 de abril de 1971, a capa do Nouvel Observateur dizia, em letras maiúsculas sobre fundo preto:

A lista das 343 francesas que tiveram a coragem de assinar o manifesto “EU FIZ UM ABORTO”.

Um pequeno texto explicava que um milhão de mulheres na França faziam abortos todos os anos, em condições perigosas. O manifesto exigia abortos livres e seguros e afirmava que cada signatária havia infringido a lei ao fazer um aborto.

Nenhuma das mulheres foi presa. Ainda assim, muitas pagaram por terem falado sobre seus abortos. Segundo Claudine Monteil, a signatária mais jovem, algumas perderam o emprego. Algumas foram ameaçadas. Algumas foram alijadas por suas famílias. A mãe de Claudine era uma acadêmica de renome, uma mulher educada e com visão de futuro. Mas quando ela leu o nome de sua filha naquela lista, durante uma viagem de trem, ela caiu em prantos na frente dos outros passageiros. Ela pensou que a vida de Claudine tinha acabado.

Mas Claudine não se arrependeu. Ao longo de quarenta e oito horas, o aborto passou de um segredo indescritível a uma palavra no rádio, falada em jantares de família em toda a França. Algo palpável havia mudado. Como observou a historiadora Bibia Pavard, pela primeira vez na história francesa, foram as mulheres que lideraram a conversa sobre o aborto e o enquadraram como um ato de libertação e autonomia. Mais tarde naquele ano, a revista alemã Stern publicou uma carta onde 374 mulheres alemãs, incluindo a atriz Romy Schneider, fizeram a mesma declaração. Médicos e ginecologistas franceses posteriormente publicaram cartas reconhecendo que haviam realizado a operação.

O manifesto influenciou a opinião pública durante o julgamento de Marie-Claire em 1972 e o juiz absolveu a jovem. O terceiro ato do manifesto veio alguns anos depois: em 1975, o governo francês aprovou a primeira lei do país legalizando o aborto. Foi um primeiro passo tímido. As mulheres elegíveis tinham que estar “em perigo”, receber aconselhamento médico e pagar do próprio bolso. Mas foi um marco – uma pequena chama, acesa pela faísca das 343 mulheres que deram um passo à frente em 1971.

Em 1974, Claudine Monteil, a mais jovem das 343, disse a Simone de Beauvoir que elas haviam vencido. Beauvoir a advertiu: uma crise e os direitos das mulheres seriam derrubados. Durante toda a sua vida, disse Beauvoir à Claudine, você deve permanecer vigilante.

Quando os Estados Unidos revogaram Roe v. Wade em junho de 2022, o presidente francês Emmanuel Macron imediatamente anunciou sua intenção de consagrar o aborto na Constituição francesa. A esquerda francesa já havia proposto essa ideia em julho de 2018. Mas o partido do presidente, então maioria na assembleia francesa, votou contra. Vários membros do gabinete de Macron foram acusados ​​de agressão sexual. Alguns de seus principais aliados, como o deputado Eric Woerth, expressaram recentemente que, ao formar uma coalizão na Assembleia Francesa, o partido do presidente preferiria trabalhar com a extrema direita do que com a esquerda.

Por isso, precisamos permanecer vigilantes.

Sobre o autor

Vincent Chabany-Douarre é historiador. Ele aponta a necessidade urgente de que suas leitoras e leitores doem à Brigid Alliance (em tradução livre Aliança Brígida) e à National Network of Abortion Funds (em tradução livre, Fundo Nacional de Redes de Apoio ao Aborto).

28 de junho de 2022

Como a esquerda está construindo a paz na Colômbia

Durante anos, o regime de direita da Colômbia colocou em risco o acordo de paz de 2016. Mas agora o primeiro presidente esquerdista do país se comprometeu com a plena implementação - incluindo a justiça econômica, o diálogo político e as demandas de paz por igualdade social.

Mariela Kohon


O candidato presidencial Gustavo Petro e sua candidata a vice-presidente Francia Marquez do Pacto Historico comemoram após o dia da eleição presidencial em 29 de maio de 2022 em Bogotá, Colômbia. (Guillermo Legaria / Getty Images)

Tradução / Em junho foram eleitos na Colômbia Gustavo Petro e Francia Marquez pelo Pacto Histórico (PH). Sua vitória é uma imenso avanço para a política progressista em toda a América Latina e seu significado na região não pode ser subestimado.

A Colômbia é às vezes referida como a “democracia mais antiga” da América Latina, geralmente por aqueles que não compreendem sua história complexa e violenta, ou por aqueles que têm um interesse direto em ocultá-la. Esta é a primeira vez que a Colômbia elege um governo de esquerda, que vem depois de uma longa e difícil luta para criar um espaço político progressista diante de décadas de repressão brutal sistemática.

Um legado de violência

Adifícil jornada até este ponto é melhor evidenciada pelo fato de que inúmeros candidatos presidenciais foram assassinados ao longo da história da Colômbia, desde Jorge Eliécer Gaitán em 1948 até Jaime Pardo Leal em 1987. Um partido político inteiro, a União Patriótica (UP) – fundada em 1985 durante uma longa insurgência armada, para dar vozes de esquerda a uma via democrática em busca de mudança – foi vítima de “genocídio político” entre seu início e 2018. A Jurisdição Especial para a Paz (conhecida pela sigla em espanhol JEP) – o tribunal de paz transitório criado pelo Acordo de Paz de 2016 – descobriu que 5.733 membros da UP foram assassinados nessa época.

A escala da repressão sofrida pela esquerda e pela sociedade civil não pode ser minimizada. Cerca de 3.000 sindicalistas foram assassinados. Mesmo após a assinatura do Acordo de Paz, mais de 1.300 mil ativistas políticos e sociais foram assassinados – 80 dos quais só este ano.

Francia Marquez vem do Sudoeste, do Distrito de Cauca na Colômbia, uma das regiões mais afetadas pelo conflito, com um número assombroso de líderes assassinados. Em seu discurso após as eleições, ela mesma, sobrevivente de uma tentativa de assassinato em 2019, prestou homenagem aos ativistas assassinados, agradecendo-lhes por “abrirem o caminho para o futuro, por semearem a resistência e a esperança”.

Esta eleição veio poucos dias antes de outro momento histórico para a Colômbia, no qual a Comissão da Verdade, um mecanismo criado pelo Acordo de Paz, divulgará seu relatório. Por todas estas razões, esta vitória deve ser vista em seu contexto histórico. E esse contexto histórico faz com que a eleição de Petro, ex-guerrilheiro e Márquez, uma líder de comunidades afro-colombianas, ativista ambiental e feminista, fortaleça especialmente aqueles que estão envolvidos no apoio à luta pela paz e justiça social no país.

A agitação de 2019-2020

Na história mais imediata, esta vitória só foi possível graças a uma luta mais determinada. Os protestos aconteceram em todo o país em uma escala sem precedentes em 2019 e 2020. Os jovens, os protagonistas desses protestos, ajudaram a quebrar os níveis históricos de abstenção nesta eleição: a participação foi de 58%, bem acima da média recente de 48%, refletindo a esperança renovada que o PH criou. A mãe de Dilan Cruz, um jovem assassinado pela polícia militar durante esses protestos, falou no comício da vitória de Petro e Márquez.

Embora tenha sido esta onda de ação popular que levou Petro e Márquez à vitória, a capacidade de construir alianças com o centro e partes da centro-direita também provou ser um fator importante, e será fundamental para a sobrevivência do governo.

Por exemplo, Petro obteve o apoio de figuras de alto nível da época de Juan Manuel Santos, o ex-presidente cujo o governo negociou o Acordo de Paz de 2016 com as FARC-EP. Estes políticos se tornaram importantes apoiadores de sua plataforma. Como resultado, nos dias seguintes a sua vitória, Petro renovou esforços para criar um “acordo nacional”, construindo um diálogo em todo o espectro político, inclusive convidando o ex-presidente de extrema-direita Álvaro Uribe a falar.

Marquez também desempenhou um papel crucial na mobilização de apoio ao PH entre os movimentos sociais de massa como a primeira vice-presidente negra em um país onde as comunidades negras e indígenas foram historicamente marginalizadas e desproporcionalmente afetadas pela desigualdade e exclusão sociopolítica. Ao receber suas credenciais como vice-presidente eleita, Marquez disse que isso em si foi um ato de justiça racial e justiça de gênero. Ela se comprometeu a fazer do combate à desigualdade racial estrutural e de gênero uma parte central do programa do PH para o governo e liderará um novo Ministério da Igualdade.

O Acordo de Paz

Omapa eleitoral mostra uma forte sobreposição entre aqueles que votaram em Petro e aqueles que votaram a favor do Acordo de Paz em 2016, tornando esse acordo um dos fatores cruciais para essa vitória histórica. No centro do acordo está o objetivo de criar um espaço democrático, abrindo a participação política e dando esperança à crença de que a Colômbia pode ser mudada por meios democráticos. Foi também este Acordo de Paz que abriu o caminho para a mobilização popular vista nas ruas entre 2019 e 2020.

Em sua essência, o conflito entre as FARC e o Estado colombiano – que o acordo buscava acabar – foi impulsionado pela terrível desigualdade da Colômbia e pela falta de espaço político para a oposição. O acordo, portanto, delineia importantes reformas estruturais para lidar com essas causas fundamentais. Mas muitos passos ainda precisam ser feitos para concretizar o acordo, prejudicado nos últimos 4 anos por uma sabotagem sistemática da extrema direita que se opõe ao processo.

Como resultado, o programa econômico da PH prioriza o desenvolvimento da produtividade doméstica em detrimento das indústrias puramente extrativistas, combatendo a desigualdade social através da reforma fiscal progressiva e protegendo o meio ambiente através da transição verde. Inclui a extensão dos serviços sociais como o acesso à saúde e à educação. A paz também depende da implementação da reforma agrária e da substituição de cultivos prevista no acordo a fim de corrigir a injustiça histórica no acesso à propriedade da terra, investindo no campo e dando aos camponeses opções além do cultivo da coca.

Petro se comprometeu em alcançar uma paz “completa”, tanto implementando o acordo de 2016 quanto abrindo negociações com as demais organizações guerrilheiras. O ELN, com quem o presidente Duque interrompeu as negociações em janeiro de 2018, já declarou sua disposição para entrar em diálogo. Outro grupo liderado por alguns ex-membros das FARC, que deixaram o processo atual desiludidos com seu processo, também fizeram uma declaração expressando esperança.

Desafios à frente

No entanto, Petro e sua ampla coalizão enfrentam enormes desafios. Apesar da disposição das demais forças de esquerda para entrar em diálogo, um teste fundamental para o novo governo será enfrentar os grupos paramilitares de direita e as organizações violentas de tráfico de drogas que ainda aterrorizam partes da Colômbia.

Nos últimos meses, vastas áreas do norte do país foram fechadas pelos grupos paramilitares do Clã do Golfo, faltando ao Estado a capacidade e talvez até mesmo a vontade de enfrentá-los. O Acordo de Paz inclui medidas para desmantelar esses grupos armados – responsáveis pelo assassinato de tantos líderes sociais – mas o próprio dia das eleições foi um lembrete sombrio da brutalidade enfrentada pelos militantes. Duas testemunhas eleitorais e militantes do PH, Roberto Rivas e Ersain Ramírez, foram mortos.

Ex-combatentes das FARC também são assassinados, com mais de 315 assassinatos desde que depuseram suas armas e cumpriram com suas obrigações no acordo de 2016. Outras organizações guerrilheiras precisarão ver resultados e ter certeza de que não arriscarão o mesmo destino.

Também será necessário fazer mudanças nas forças de segurança, já que o Exército e a polícia são responsáveis por algumas das piores atrocidades da Colômbia. Durante uma recente comitiva da Justiça para a Colômbia composta por sindicalistas e parlamentares britânicos, irlandeses e espanhóis, os defensores dos direitos humanos falaram da necessidade urgente de pôr um fim à doutrina militar de combate ao “inimigo interno”, que tem levado consistentemente a sociedade civil a se deparar com a violência do Estado. As greves e manifestações de 2019-20 levaram ao assassinato de 44 manifestantes pela polícia.

Quando nossa delegação viajou para Putumayo, no sul da Colômbia, ouvimos testemunhos assustadores de sobreviventes e parentes de vítimas de um massacre do Exército. Soldados haviam atirado em 11 civis em uma festa comunitária e depois os apresentaram como guerrilheiros dissidentes mortos em combate.

Este acontecimento fez lembrar o caso dos chamados “falsos positivos”, que viram soldados matarem 6.400 civis entre 2002 e 2008, e depois os apresentaram como guerrilheiros mortos em combate para inflar números e receber promoções e bônus. A reforma adequada das forças de segurança foi algo que o governo anterior não conseguiu incluir no Acordo de Paz final – portanto, esse é um grande desafio para o novo governo.

Aqueles justificadamente cheios de esperança por esta grande vitória também terão que controlar suas expectativas. Antes de 2016, o processo de paz dividiu o establishment, e nem todos os defensores de Petro são de esquerda. Como disse o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica em sua mensagem de felicitações ao povo colombiano, Petro “não pode fazer mágica”.

Sem uma maioria no Congresso, fazer as mudanças legislativas propostas exige que Petro continue a construir alianças, algo que ele já parece estar fazendo. Em seu discurso de vitória, ele deu um tom realista: “Vamos desenvolver o capitalismo”, disse Petro aos apoiadores, “não porque o amamos, mas porque primeiro temos que superar a pré-modernidade, o feudalismo… temos que criar uma democracia”. E com mandatos presidenciais que duram apenas quatro anos, fazer mudanças duradouras, incluindo organização e planejamento a longo prazo para o próximo governo, será crucial.

Uma mudança progressista

Reconhecendo os desafios futuros, Petro e Márquez desempenharão um papel importante consolidando uma nova onda de governos progressistas na América Latina. A mudança está em movimento em todo o continente: vimos a vitória socialista na Bolívia derrubando um golpe de extrema direita e a eleição de Gabriel Boric no Chile; a esperança está se consolidando com uma aparente vitória de Lula nas próximas eleições no Brasil, e uma série de outros governos de esquerda estão liderando o caminho da região.

Os efeitos desta mudança ainda não podem ser superestimados. A Colômbia é há muito tempo a principal base dos Estados Unidos na América Latina, um fiel aliado de Washington em suas relações hostis com a Venezuela e Cuba. Quando o regime de Duque se recusou a implementar acordos protocolares assinados no caso do fracasso das conversações de paz com o ELN, generosamente acolhido pelo governo cubano, estabeleceu-se um precedente perigoso para os processos de paz em todo o mundo.

Talvez surpreendentemente, então, dada a história de interferência sangrenta dos EUA e a falta de respeito pelos governos de esquerda democraticamente eleitos na América Latina, o governo Biden foi rápido em reconhecer Petro, com os dois falando apenas dias após o resultado. Petro também anunciou que conversou com o presidente venezuelano Maduro, e reabrirá a fronteira comum.

Mais amplamente, a comunidade internacional tem estado muito quieta por muito tempo em relação aos abusos ocorridos na Colômbia. A retórica hipócrita e inconsistente do governo britânico sobre os direitos humanos no exterior ficou exposta por sua atitude em relação à Colômbia, e os sindicatos britânicos e colombianos têm se manifestado em nossa oposição ao acordo de livre comércio Reino Unido-Colômbia. Para aqueles comprometidos com a paz e a justiça social na Colômbia, então, este é um momento entusiasmante e emocionante, e um momento que se propõe a aumentar o apoio a organizações como a Justiça para a Colômbia.

Talvez o mais crucial, agora, é o momento de prestar homenagem a todos aqueles que perderam suas vidas durante esta luta, que não estão mais conosco e que foram brutalmente silenciados no caminho. Há muitos com os quais gostaríamos de compartilhar este momento maravilhoso. Em vez disso, é em sua honra que celebramos o presente – e ansiamos por um futuro melhor e mais brilhante na Colômbia.

Colaboradora

Mariela Kohon é oficial internacional sênior do TUC, ex-assessora no processo de paz da Colômbia e vice-presidente de Justiça da Colômbia.

Bolsonarismo é vitorioso mesmo se perder eleição, diz autor de "Limites da Democracia"

Presidente do Cebrap, Marcos Nobre lança o livro em que analisa os últimos dez anos da vida política nacional

Naief Haddad

Folha de S.Paulo

Marcos Nobre, presidente do Cebrap e professor do departamento de filosofia da Unicamp - Jardiel Carvalho - 10.jun.19/UOL

Impressionado com os atos de raiz golpista do 7 de Setembro do ano passado, liderados pelo presidente Jair Bolsonaro, e com a ausência de reação dos políticos e da sociedade, Marcos Nobre decidiu se lançar mais uma vez ao que chama de "diagnóstico do tempo presente".

O último livro do professor do departamento de filosofia da Unicamp com esse tipo de abordagem —em que discute a fundo o passado recente e a atualidade da política brasileira e avalia caminhos possíveis para o futuro— havia sido "Imobilismo em Movimento", publicado em 2013.

Em "Limites da Democracia", com lançamento nesta terça (28), em São Paulo, ele enfrenta os dez anos seguintes. Não são, como diz, quaisquer dez anos.

"São dez anos de brutal crise econômica e social, de instabilidade política permanente, de desastres ambientais sem precedentes, de ameaça direta à democracia e à vida", escreve Nobre, também presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).

O livro vai em busca das motivações e dos efeitos das manifestações de junho de 2013, a partir das quais se consolidou o que o autor chama de "oposição extrainstitucional".

Os anseios desses grupos encontraram eco na Lava Jato, operação que "acabou se mostrando, para uma enorme parcela do eleitorado, a última instância recursal da política, o único caminho institucional disponível para a canalização de sua insatisfação".

A Lava Jato insuflou as "novas direitas", observadas em minúcia ao longo do livro, e manteve o sistema político acuado, o que contribuiu de modo decisivo para o impeachment de Dilma Rousseff.

É de Michel Temer o último governo federal analógico, o que talvez soe como um dado pitoresco, mas é bem mais do que isso.

Está nesse terreno um dos pontos fortes de "Limites da Democracia". Com base em estudos acadêmicos do Brasil e do exterior, muitas vezes reinterpretados por Nobre, o livro demonstra a impossibilidade de radiografar a realidade política do país sem uma percepção detalhada dos avanços digitais.

O autor observa o bolsonarismo sob vários ângulos, entre eles, como um "partido digital", um conceito criado pelo sociólogo italiano Paolo Gerbaudo para definir organizações que tenham expressão eleitoral, estejam mobilizadas permanentemente e sejam capazes de hackear (ou parasitar) partidos institucionalizados.

Importa menos a sigla à qual Bolsonaro está formalmente vinculado —no caso, o PL. Para líderes de vertente autoritária como ele, vale, sobretudo, a força do "partido digital".

Essa é uma das razões para que Nobre, ao fim do penúltimo capítulo, conclua: "Perdendo ou ganhando a eleição em 2022, o bolsonarismo já ganhou. Derrotá-lo será tarefa para muitos anos".

"É enorme o grau de organização e de engajamento [do bolsonarismo]", diz à Folha.

"Quer um exemplo? O 7 de Setembro de 2021. Não foi dirigido ao bolsonarismo em geral, a esses cerca de 30% que o apoiam [Datafolha mais recente indicou 28%]. Foi, na verdade, dirigido ao núcleo duro do ‘partido digital bolsonarista’, que é um núcleo autoritário. E os estudos mostram que a mobilização foi muito capilarizada".

"Apesar de tudo o que aconteceu nos últimos três anos e meio, Bolsonaro mantém por volta de 30% de apoio e não é um apoio da boca para fora, existe um alto grau de engajamento", afirma. "É muito razoável imaginar que Bolsonaro consiga manter essa base antissistema ao seu lado, mesmo que perca a eleição".

Além disso, como o presidente do Cebrap tem dito nos últimos anos, a questão central para o bolsonarismo não é eleitoral.

"O campo democrático continua jogando amarelinha eleitoral enquanto Bolsonaro monta o octógono do MMA do golpe. Que dará como for possível. Conseguindo a reeleição e fechando o regime desde dentro, produzindo um caos social duradouro, aguardando o fracasso do seu sucessor e as eleições de 2026, dando um golpe em moldes mais clássicos."

CONTRA A CORRENTE

Em algumas passagens de "Limites da Democracia", Nobre se dedica a desmontar interpretações que se tornaram corriqueiras a respeito de episódios e movimentos desses últimos dez anos. Veja três delas:

Junho de 2013 foi um raio em céu azul

As enormes manifestações de 2013 não foram um acontecimento completamente inesperado, como muitos já disseram. Nobre insere junho no contexto global das revoltas democráticas dos primeiros anos da década de 2010. Segundo ele, foram revoltas que expressavam mudanças estruturais da sociabilidade ocorridas ao longo dos anos 2000 e que coincidiram com uma severa crise econômica mundial.

"Não foi um 'raio em céu azul' porque havia muita movimentação na base da sociedade ao longo dos anos 2000, tanto no Brasil quanto no mundo. Por que não era tão visível? Porque era uma movimentação, em grande parte, digital. E isso estava fora do radar."

Ao fim da crise da democracia, o modelo institucional voltará a ser o que era

Grande parte dos autores que escrevem sobre a crise da democracia do ponto de vista global, como o cientista político polonês Adam Przeworski, indicam, grosso modo, dois caminhos para o futuro: o retorno à maneira anterior de funcionamento da política institucional, ainda que com alguns ajustes, ou a morte da democracia.

Não é o que Nobre pensa. "Se saída democrática houver, será apenas com um salto adiante. Não há como voltar atrás", afirma.

"O mundo virou de ponta-cabeça, e não raro temos a sensação de que a teoria continua no mesmo lugar", diz Nobre, refutando análises nessa linha de cientistas políticos como Carlos Pereira e Marcus André Melo.

Fortalecimento da extrema direita é unicamente reação a movimentos de intenção emancipatória

O autor aponta o "equívoco, grave a meu ver, de enxergar a ascensão da extrema direita unicamente [ele destaca a palavra] em termos de reação a movimentos" de esquerda, especialmente de cunho emancipatório.

"Há uma parcela de verdade nessa afirmação, claro. Mas quando se diz que ‘a extrema direita é só reação’, existe primeiramente uma supervalorização do movimento emancipatório. Em segundo lugar, você se desobriga de entender como a extrema direita se mobiliza."

LIMITES DA DEMOCRACIA - DE JUNHO DE 2013 AO GOVERNO BOLSONARO

Quando Lançamento nesta terça (28), às 19h30, com bate-papo com Marcos Nobre e os jornalistas Julia Duailibi e Fernando de Barros e Silva (retirada de ingressos a partir das 18h30; entrada gratuita)

Onde Sesc da Av. Paulista (Av. Paulista, 119)

Preço R$ 75 (ebook, R$50)

Autor Marcos Nobre

Editora Todavia (320 págs.)

A esquerda ao poder no Paraguai?

As eleições de 2023 constituem uma oportunidade para as forças da esquerda derrubarem o nefasto Partido Colorado.

Norma Flores Allende e Laurence Blair


Manifestação em Assunção contra o presidente Mario Abdo Benítez em 17 de março de 2021. (Foto: Jorge Saenz/AP)

Tradução / O som do helicóptero anunciava o inevitável: a polícia estava de volta, desta vez pronta para atirar para matar. Após um tenso impasse, os corpos de repente começaram a cair. Foi um confronto de facões, cavalos e rifles de alta potência de um lado contra velhas espingardas enferrujadas do outro, enquanto as mulheres e crianças fugiam de suas tendas. A terra vermelha testemunhou um massacre de 11 camponeses e 6 policiais que, dez anos depois, ainda não foi totalmente investigado.

22 de junho marcou uma década desde que Fernando Lugo, um ex-bispo de esquerda que liderou o único governo progressista do Paraguai, foi removido em um rápido golpe parlamentar após esse banho de sangue rural. Os assassinatos de 15 de junho de 2012 ocorreram em meio a uma ocupação por agricultores sem-terra em Marina Kue, em Curuguaty, leste do Paraguai. Eles foram seguidos por mais assassinatos de líderes camponeses e um julgamento cheio de irregularidades.

As forças conservadoras também usaram o despejo fracassado de Marina Kue como pretexto para impugnar Lugo, em um processo que durou apenas algumas horas. Governos progressistas em toda a América Latina chamaram isso de golpe; até mesmo os governos conservadores do Chile e Colômbia chamaram de volta seus embaixadores.

Golpes e lawfare

Os acontecimentos no Paraguai em 2012 seguiram o que aconteceu em Honduras três anos antes, quando outro presidente progressista, Manuel Zelaya, foi derrubado. Eles inauguraram uma era de golpes “soft” e lawfare em toda a região. A ex-presidente Dilma Rousseff comentou sobre o destino de Lugo em 2015 antes que ela também fosse destituída, em um rápido processo de impeachment que até mesmo seu substituto de direita mais tarde admitiu ter sido um golpe.

A década passada, desde 2012, foi sombria para o povo paraguaio, com um terço de sua população ainda vivendo na pobreza. Os conservadores evangélicos sufocaram qualquer progresso em relação aos direitos reprodutivos e LGBTQ, o crime organizado transnacional se aprofundou no país e a destruição do mundo natural do Paraguai pela agroindústria está se acelerando. Os ativistas urbanos e as comunidades indígenas e camponesas que resistem enfrentam uma repressão feroz.

“O primeiro partido nazista fora da Alemanha foi fundado no Paraguai em 1929.”

Em abril de 2023, o país votará em um novo presidente e congresso. O conservador Partido Colorado, que está atualmente no poder e disputa a presidência desde a década de 1940, está dividido por lutas internas entre diversas facções. Com Lugo fora da disputa devido ao limite de mandatos, uma série de rivais à direita, centro e esquerda espera tirar vantagem da situação.

Se a oposição puder superar os profundos obstáculos estruturais e divisões internas para recuperar o poder, ela poderá deter essas tendências sombrias e unir-se a uma luta regional com outras forças progressistas. A uma década do golpe e a menos de um ano das eleições, a questão é se a esquerda paraguaia pode replicar o triunfo eleitoral de Lugo sem ele nas urnas.

Sem paz, sem progresso

O Paraguai não é estranho à violência. Entre 1864 e 1870, a Guerra da Tríplice Aliança, formada por Argentina, Brasil e Uruguai, quase exterminou a população local. O século seguinte não foi melhor: guerras civis, revoluções, golpes e contragolpes foram pontuados por outro conflito exaustivo, desta vez contra a Bolívia. O autoritarismo infeccionou nas profundas feridas da instabilidade política. O primeiro partido nazista fora da Alemanha foi fundado no Paraguai em 1929.

Duas ditaduras militares, a do general Higinio Morínigo (1940-48) e a do general Alfredo Stroessner (1954-1989), governaram de mãos dadas com o partido político que governa o Paraguai até hoje. A duradoura hegemonia do Partido Colorado, também conhecido como Asociación Nacional Republicana (ANR), tem suas origens em uma sangrenta guerra civil. Em 1947, os colorados saíram vitoriosos, com o Paraguai se transformando em um Estado de partido único. O regime aniquilou toda a oposição; o Partido Comunista e a esquerda em geral se esconderam, e um grande número de pessoas foi forçado ao exílio, incluindo a maioria dos intelectuais do país.

A ditadura de Stroessner, apoiada pelos Estados Unidos, propagandeou o slogan “Paz e Progresso”. A realidade foi um regime totalitário que durou 35 anos – a ditadura mais longa da América do Sul – enquanto dava asilo a nazistas e franquistas, assassinava mais de 400 pessoas e sujeitava cerca de 19 mil pessoas à tortura.

Um legado de Stroessner para a política paraguaia hoje são os “colorado seccionales“: escritórios locais do partido que ainda estão presentes em praticamente todos os bairros de todas as cidades. Eles fornecem abertamente esmolas, remédios, empregos, contratos públicos e eventos esportivos para comprar votos e convocar, em ações físicas e digitais, os soldados de infantaria conhecidos como hurreros.

Esse controle social feroz, quase único na América Latina, instalou uma cultura política clientelista que cooptou a pequena classe média e enriqueceu aqueles que Tomás Palau chama de empresaurios: oligarcas capitalistas compadres próximos ao regime e seus sucessores. A queda de Stroessner não significou o fim do sistema autoritário que ele criou. Uma anedota popular conta que o ditador exilado, vendo uma foto do primeiro gabinete pós-transição do Paraguai, comentou: “Sou o único ausente”.

Uma esquerda no suporte de vida

Se o Partido Colorado se tornou dominante, a esquerda paraguaia sofre com múltiplas fraquezas estruturais – que por sua vez são difíceis de separar do legado do autoritarismo – que o diferencia regionalmente. Movimentos de massa (e, em menor grau, resistência armada) forçaram os regimes militares do Brasil, Chile e Uruguai a restaurar a democracia e criaram uma geração de líderes pós-ditaduras de esquerda (Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff, José Mujica) e centro-esquerda (Ricardo Lagos). No Paraguai, por outro lado, Stroessner foi derrubado apenas por um golpe palaciano em 1989 liderado por seu genro, general Andrés Rodríguez, que foi então legitimado em uma eleição nominalmente livre, mas injusta.

A continuidade subsequente do Colorado privou as forças progressistas de visibilidade, financiamento de campanha e experiência governamental além do truncado interregno de Lugo – que foi possibilitado apenas pela divisão do voto do Colorado entre dois candidatos e pelo jeito único de Lugo. Segundo Fernando Martínez, cientista político paraguaio da Universidade de Buenos Aires, o “fenômeno” de Lugo se baseou em uma aliança incomum entre os fiéis católicos rurais, os movimentos sociais de esquerda e o establishment do Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA).

“A taxa de sindicalização do Paraguai, de apenas 6,7%, está bem abaixo do Brasil (18,9%), Argentina (27,7%), Uruguai (30,1%), Bolívia (39,1%) ou mesmo dos EUA (10,3%).”

“Lugo chega magicamente às pessoas, sobretudo aos pobres que estão distantes das estradas de asfalto das cidades”, lembra o colunista político Alfredo Boccia. A esquerda paraguaia ganhou poder em 2008 “por um atalho”, acrescenta. Hoje esse atalho não existe mais. Lugo representava um milagre, mas também uma espécie de maldição. Sua vitória personalizada privou a esquerda “de um processo de coordenação, debate, crescimento e construção de poder que não pode ser feito da noite para o dia”.

As universidades sul-americanas há muito fornecem um campo de treinamento para movimentos e políticos antiestablishment. O social-democrata chileno Gabriel Boric e sua chefe de comunicação comunista Camila Vallejo são apenas os exemplos mais recentes. No entanto, no Paraguai, os partidos tradicionais cooptam líderes universitários, até mesmo de ensino médio, como meio de colher novos eleitores.

Os operadores políticos costumam fazer dois ou três cursos de graduação sucessivos, diz David Riveros García, um ativista anticorrupção, “para que permaneçam na universidade para projetar influência política para si ou para seu partido. É uma loucura, mas acontece muito”. Quando os subornos falham, a repressão é empregada. Vivian Genes, estudante de arquitetura e organizadora da Universidade Nacional de Assunção (UNA), foi presa sem julgamento no ano passado junto com vários outros militantes durante protestos massivos contra a corrupção no Partido Colorado.

A etnicidade também não fornece uma estrutura organizadora para a política no Paraguai, como na vizinha Bolívia, onde a maioria indígena tem consistentemente devolvido ao Movimento ao Socialismo (MAS) o poder desde 2005. A maioria dos paraguaios é mestiça e fala um pouco de guarani e políticos falam da boca para fora sobre a herança indígena do país. No entanto, poucas pessoas se identificam com as comunidades indígenas marginalizadas de hoje, que somam apenas 120.000 pessoas e estão muito dispersas geograficamente (e em 19 povos distintos) para formar uma bancada indígena sólida.

Os partidos indigenistas nascentes precisam estar sob o guarda-chuva do movimento de esquerda mais amplo, argumenta Mario Rivarola, um artesão Mbyá Guarani e organizador da Organização Nacional de Aborígenes Independientes (ONAI). “Se os progressistas não se unirem”, acrescenta, os colorados “continuarão governando o Paraguai como sempre, com a extrema direita e a extrema corrupção. Não haverá um programa político para os pobres ou para nós indígenas”.

Enquanto os países vizinhos têm federações trabalhistas combativas que definem os parâmetros das políticas públicas, os sindicatos paraguaios são fracos e fragmentados. A taxa de sindicalização do Paraguai, de apenas 6,7%, está bem abaixo do Brasil (18,9%), Argentina (27,7%), Uruguai (30,1%), Bolívia (39,1%) ou mesmo dos Estados Unidos (10,3%). A economia é carente de empregos de manufatura ou mineração. Sete em cada dez pessoas trabalham na economia informal atomizada, vendendo chipa na beira da estrada ou atendendo famílias ricas. Apenas 0,6% dos empregados do setor privado são sindicalizados.

De acordo com a pesquisa de Ignacio González Bozzolasco, os trabalhadores frequentemente relatam a repressão sindical, incluindo intimidação por parte dos gerentes. Paradoxalmente, o baixo limite necessário para formar um sindicato setorial (trinta pessoas) significa que os patrões podem facilmente diluir o trabalho organizado por meio de recortes flexíveis. À medida que as empresas brasileiras aceitaram ansiosamente o convite de 2014 do ex-presidente Horacio Cartes para “usar e abusar do Paraguai” e sua (não sem relação) mão de obra barata, os últimos anos viram uma explosão no negócio têxtil. Essa forma de industrialização pouco qualificada nos moldes da América Latina dificilmente produzirá uma figura como Lula, que se formou no sindicato dos metalúrgicos de São Paulo, ou gerará condições para ações grevistas abrangentes como as que estabeleceram pisos salariais no Uruguai.

Os camponeses, normalmente sem o título da terra que trabalham, representam o setor político mais agitado, organizando marchas regulares, ocupações e manifestações, mas sofrem igualmente de desunião e repressão. Na década de 1970, a polícia de Stroessner desmantelou violentamente as Ligas Agrarias Cristianas, comunas camponesas autônomas e utópicas que haviam desafiado a dominação do Partido Colorada no campo. Seus herdeiros modernos, como a Federación Nacional Campesina, Conamuri e a Organización de Lucha por la Tierra, ajudam pequenos agricultores a reivindicar corajosamente terras públicas ocupadas ilegalmente pelo agronegócio, apesar de enfrentarem duras punições judiciais.

“No nível da luta social e em termos eleitorais, nos últimos 25 anos os camponeses têm sido o principal grupo social que oferece ideias transformadoras”, diz Najeeb Amado, secretário-geral do Partido Comunista Paraguaio (PCP). Mas a mídia corporativa e o governo são rápidos em pintar essas organizações com o mesmo pincel que o Ejército del Pueblo Paraguaio (EPP), um minúsculo grupo guerrilheiro ativo no norte.

Após as esperanças frustradas dos anos de Lugo, alguns movimentos rurais são ambivalentes em relação à política eleitoral, e seu poder está diminuindo à medida que pequenos proprietários familiares são forçados, muitas vezes sob a mira de armas, a migrar para a cidade ou para o exterior. Quanta chance a esquerda realmente tem, Boccia se pergunta em voz alta, em um país com uma população rural desenraizada e sem um proletariado urbano com qualquer poder real?

Engolir o sapo

O ano de 2023 pode, no entanto, fornecer uma brecha rara na notória “unidade granítica” dos Colorados. As duas facções rivais dominantes dentro do partido estão atualmente em guerra. O ex-presidente Horacio Cartes não é um Colorado por convicção, mas um latifundiário e plutocrata que se juntou ao partido há apenas uma década. Por outro lado, o presidente Mario Abdo Benítez – filho do carregador de malas de Stroessner – representa uma vertente mais estatista e tradicionalista do coloradismo.

No entanto, os analistas concordam que suas diferenças não são realmente sobre ideologia, mas sim sobre uma luta por riqueza e poder. Há meses, o governo Abdo Benítez vem informando que a fortuna de Cartes pode derivar de uma vasta operação internacional de contrabando de cigarros e lavagem de dinheiro em aliança com narcotraficantes: uma suspeita há muito compartilhada pela Agência Antidrogas dos EUA (DEA) e vários relatórios independentes. Cartes e seus funcionários insistem que tais alegações são politicamente motivadas e que a razão pela qual o magnata do tabaco reduziu suas viagens ao exterior não é o medo de ser preso como seu colaborador próximo Dario Messer, mas sim porque ele está cansado de viajar.

“No Paraguai, as eleições presidenciais são vencidas com maioria simples em um único turno: ou seja, a oposição só tem uma chance.”

Limites de mandato na Constituição paraguaia fazem com que nem Cartes nem Abdo Benítez possam concorrer no ano que vem, e seus sucessores nas primárias do Partido Colorado são profundamente sem inspiração. Santiago Peña, o tecnocrático de Cartes, foi derrotado nas primárias de 2017 por Abdo Benítez. Hugo Velázquez, o atual vice-presidente, é um veterano do partido perseguido por suas próprias alegações de corrupção.

As apostas para seus patronos rivais são tão altas que o perdedor das prévias em dezembro pode concorrer no ano que vem de qualquer maneira, dividindo ainda mais o voto do Partido Colorado e abrindo uma brecha para a esquerda, como aconteceu em 2008, quando a máquina partidária se uniu a um candidato e o vencedor saiu baqueado de toda confusão.

O desafio para a oposição, então, é reduzir o número de figuras centradas na personalidade em uma chapa unificada que possa tirar proveito das lutas internas do Partido Colorado. Dentro da crescente aliança centrista da Concertación, os pré-candidatos incluem Soledad Núñez, uma mulher de 39 anos que foi ministra da Habitação de Cartes, e Sebastián Villarejo, ex-vereador municipal do conservador Patria Querida (PPQ).

As diatribes da deputada Kattya González contra a corrupção são populares no TikTok, mas muitas vezes se transformam em estroessnerismo requentado sobre lei e ordem e valores “familiares”. No entanto, o PLRA, a segunda força política do Paraguai depois dos Colorados, provavelmente insistirá em mais uma vez impor seu líder sério Efraín Alegre, que concorreu à presidência e perdeu em 2013 e (mais estreitamente) em 2018. Os outros provavelmente se contentarão com cargos do primeiro escalão no gabinete e no Congresso.

O bloco de esquerda Ñemongeta por una Patria Nueva votou em Esperanza Martínez da Frente Guasú como sua candidata. Médico, especialista em saúde pública e senador que expandiu maciçamente a assistência médica gratuita como ministro da Saúde de Lugo, Martínez é uma figura de fala mansa em uma cultura política estridente. Mas seu apelo é óbvio depois que a pandemia revelou o estado abissal dos hospitais do Paraguai devido ao subfinanciamento e aos furtos do Partido Colorado.

Para o bem ou para o mal, parece provável uma chapa com Alegre e Martínez. Pode ser uma fórmula vencedora em 2023 – um arranjo semelhante chegou a alguns pontos percentuais da vitória em 2018 – mas há riscos. No Paraguai, as eleições presidenciais são vencidas com maioria simples em um único turno: ou seja, a oposição só tem uma chance. Se uma figura como González, o grosseiro e habilidoso ex-goleiro José Luis Chilavert, ou Euclides Acevedo – um social liberal que até recentemente era ministro das Relações Exteriores – decidir concorrer fora da emergente aliança Concertación-Ñemongeta, eles dividem fatalmente o voto da oposição.

Lugo, agora senador pela Frente Guasú, vai apostar em Martínez e na Concertación. Mas a bênção do ex-clérigo pode ser mista. Sua imagem foi manchada graças a escândalos sexuais que surgiram quando ele estava no cargo e à tentativa conjunta com Cartes de permitir que ambos concorressem a um segundo mandato por meio de uma emenda constitucional secreta, que levou manifestantes a incendiar o Congresso em março de 2017.

Mesmo que essa coalizão desajeitada seja vitoriosa, seus líderes podem lutar para realizar as mudanças significativas que o povo paraguaio tanto precisa, como a redistribuição de terras, os grandes aumentos de impostos e gastos recomendados até mesmo pelo Banco Mundial e pelo FMI, além de sérias reformas anticorrupção e o fortalecimento de movimentos que defendem os direitos reprodutivos e uma política de drogas mais inteligente. “Todos sabemos que o Partido Liberal é uma organização de direita”, diz Rivarola, que classifica Alegre como “traidor” por aderir à deposição de Lugo em 2012, “mas temos que engolir um pouco o sapo e a víbora para ganhar um espaço no poder para manter a organização. Acho que as pessoas vão se unir contra um inimigo claro: o Partido Colorado”.

Um jardim em um campo de soja

Um velho ditado cunhado pelo escritor Augusto Roa Bastos afirma que o Paraguai é uma ilha cercada de terra. Fica atrás de seus vizinhos em termos de direitos e liberdades, e é o único país sul-americano a manter relações com Taiwan e não com a China. Mas não está isolado das correntes políticas regionais. Com o Brasil provavelmente devolvendo Lula ao poder em outubro, o Paraguai pode ser o último de seus vizinhos a seguir a tendência de esquerda – parte maré rosa 2.0, parte anti-incumbência – varrendo a América do Sul.

Para conseguir isso, a desajeitada coalizão Concertación, incluindo a Ñemongeta, terá que unir com sucesso a oposição fraturada do Paraguai contra o Partido Colorados. Fazendo a ponte entre o campesinado sitiado e as classes médias urbanas espremidas, pode-se enfatizar como os colorados não apenas entregaram mais de oito milhões de hectares de terras agrícolas estatais a seus comparsas – uma área maior que o Panamá – mas estão ocupando ilegalmente pelo menos uma dúzia de parques públicos em Assunção, a capital, com seus escritórios partidários.

Também pode aproveitar o orgulho nacional feroz na resistência heróica do Paraguai nas guerras da Tríplice Aliança e do Chaco, enfatizando que o neoliberalismo do Partido Colorado deixou o país indefeso contra violentos cartéis transnacionais de drogas, os abusivos proprietários estrangeiros cortando suas florestas e diplomatas brasileiros tentando enganar o Paraguai pagando um preço injusto por sua abundante fonte de energia hidrelétrica.

“Os camponeses, embora perseguidos e exilados, continuem sendo os mais perspicazes na articulação de seus objetivos políticos e materiais.”

Expor a corrupção do governo pode ser uma tática de campanha eficaz. No entanto, os progressistas devem tomar cuidado para não deslegitimar o próprio gasto público, quando o estado do Paraguai quase não existe em muitos lugares, exceto para fornecer milícias armadas e uniformizadas para os barões do gado e da soja. A corrida será acirrada e observadores internacionais independentes precisarão ajudar a oposição a proteger cada voto.

Um Paraguai progressista seria um pontapé na cara dos direitistas latino-americanos e internacionais que há muito se inspiram em sua mistura de economia laissez-faire e governança autoritária: veja a recente visita do líder de pesquisa argentino Javier Milei, ou a onda de anti-vaxxers alemães e neonazistas que estão colonizando o campo do país. Também pode representar um desafio para os Estados Unidos, cuja a expansão da embaixada em Assunção, argumenta Amado, do Partido Comunista, ilustra o papel de longa data do Paraguai como ponta de lança dos interesses norte-americanos no Cone Sul.

Qualquer que seja o resultado em 2023, os movimentos sociais divididos, mas teimosos, continuarão sua luta contra as probabilidades. E é provável que os camponeses, embora perseguidos e exilados, continuem sendo os mais perspicazes na articulação de seus objetivos políticos e materiais.

Dez anos depois do golpe, a resposta ao refrão comum – “O que aconteceu em Curuguaty?” — permanece obscuro. Em 2018, no entanto, os 11 camponeses injustamente presos foram finalmente libertados e sua comunidade permanece no local. Em uma comemoração anterior ao massacre de 2012, Karina Paredes, que perdeu 2 irmãos na saraivada de balas, mostrou aos visitantes a aldeia florestal, seus pomares florescentes e hortas familiares, resistindo em meio a um horizonte infinito de soja. “Estamos muito orgulhosos”, disse ela. “Esses são os frutos da luta.”

Sobre os autores

Norma Flores Allende escreve para o jornal paraguaio Hína e para a mídia internacional, incluindo Tidningen Global (Suécia).

Laurence Blair reporta sobre o Paraguai para a mídia internacional, incluindo o The Guardian

27 de junho de 2022

Centrão lamenta Braga Netto na vice e prevê reforço da imagem radical de Bolsonaro

Aliados do presidente avaliam que Tereza Cristina seria uma opção melhor e ajudaria a ampliar eleitorado

Matheus Teixeira

Folha de S.Paulo

O presidente Jair Bolsonaro ao lado do então ministro Braga Netto (Defesa), durante cerimônia no Planalto - Antonio Molina - 12.jan.22/Folhapress

Aliados do presidente Jair Bolsonaro (PL) que integram os partidos do centrão fizeram uma avaliação negativa do anúncio de que o general Braga Netto (PL) será o vice na chapa do chefe do Executivo nas eleições deste ano.

Apesar de evitarem críticas públicas à escolha do mandatário, correligionários avaliam que o militar dificulta a missão de ampliar o eleitorado bolsonarista e reforça a imagem radical do presidente.

A preferência de grande parte do centrão era pela deputada e ex-ministra Tereza Cristina (PP). A decisão serviria para tentar melhorar o desempenho de Bolsonaro entre as mulheres, fatia do eleitorado em que tem um dos piores índices, segundo as pesquisas de intenção de votos. Além disso, havia a avaliação de que a parlamentar ajudaria a passar uma imagem mais moderada para a chapa do mandatário.

Embora tenha ouvido apelo de diversos aliados para mudar de escolha, Bolsonaro resistiu e anunciou no domingo (26) que decidiu manter a opção por Braga Netto.

Nos bastidores, interlocutores do Palácio do Planalto creditam a escolha ao fato de o chefe do Executivo ver o militar como uma pessoa mais confiável e que não representaria risco.

Cristina, por sua vez, tem bom trânsito no Congresso e, em uma eventual crise, poderia dar força a um movimento a favor do impeachment de Bolsonaro em um segundo mandato caso seja reeleito.

Braga Netto já era dado como certo para ocupar o posto de vice. Ele se filiou neste ano ao PL e deixou o Ministério da Defesa no prazo exigido para poder disputar as eleições. Em abril, o chefe do Executivo chegou a afirmar que o general tinha 90% de chance de ser seu vice.

Nas últimas semanas, porém, Bolsonaro começou a reavaliar a decisão. Diante da dificuldade para decolar nas pesquisas, o nome de Tereza Cristina passou a ser defendido por integrantes do governo e do Congresso como uma forma de o chefe do Executivo ampliar o eleitorado e melhorar a imagem junto ao público feminino.

O chefe do Executivo se mostrou aberto à discussão em conversas reservadas. Prova de que titubeou em relação ao general para seu vice foi a mudança de discurso recente quando abordado sobre o assunto.

Se em abril disse que tinha 90% de chance de indicá-lo para o posto, no último dia 15 equiparou as chances dele e de Cristina para ocupar a função. Na ocasião, em entrevista, afirmou que ambos estavam "cotadíssimos" para serem seu vice.

A hesitação ocorreu no momento em que mais sofria pressão para escolher a deputada. Depois de viver um momento de euforia pela saída do ex-juiz Sergio Moro (União Brasil) da disputa presidencial e pelo impacto positivo do aumento do valor do Auxílio Brasil, Bolsonaro estagnou nas pesquisas e aliados começaram a traçar novas estratégias em relação à disputa contra o ex-presidente Lula (PT) nas eleições deste ano.

A principal delas era criar um fato novo positivo e indicar uma mulher para vice. No último domingo (26), entretanto, Bolsonaro frustrou os aliados.

"Pretendo anunciar nos próximos dias", afirmou, em relação ao militar. "Vice é só um. Gostaria de poder indicar dez, aí não teria problema", disse ao programa 4 por 4, em entrevista feita por simpatizantes do presidente.

Braga Netto é um dos aliados mais fiéis de Bolsonaro e ajudou o presidente a consolidar o apoio da cúpula das Forças Armadas. Nos momentos de tensão, nunca se opôs às ameaças golpistas do chefe do Executivo, tampouco ao uso do Exército para pressionar o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) contra o sistema eletrônico de votação.

Além de ter sido ministro da Defesa, também ocupou a chefia da Casa Civil, ministério mais poderoso da Esplanada e quem tem a missão de coordenar a atuação de todas as outras pastas.

A filiação do militar ao PL ocorreu no final do prazo para estar apto a concorrer nas eleições deste ano e em um ato fechado, que não foi aberto ao público, como costuma acontecer em ações desta natureza.

Como já era dado como favorito para ser o vice, a campanha de Bolsonaro já vinha dando papel de protagonismo ao general nas discussões internas.

Ele tem sido usado por políticos próximos ao mandatário para trazer a ala militar do bolsonarismo para perto dos aliados do centrão, que hoje tocam o dia a dia da campanha.

O general tem participado de reuniões do comitê, como mostrou o Painel, e ficou responsável pela construção do programa de governo. Segundo aliados, caberá a ele reunir dados de entregas dos ministérios e apresentar um planejamento da administração para os próximos quatro anos.

O líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), elogia a escolha e afirma que o militar "será o braço direito do presidente Bolsonaro".

"É uma pessoa preparadíssima. Já foi chefe da Casa Civil, portanto é gestor do governo como um todo. Tem ampla visão das necessidades e da estrutura do Executivo e das oportunidades para o desenvolvimento do Brasil", diz.

Nas redes sociais, aliados de Bolsonaro também elogiaram a decisão do mandatário. Em alguns casos, publicaram a imagem do militar ao lado de uma foto do ex-governador Geraldo Alckmin (PSB), que será vice de Lula, e tentaram fazer comparações entre os dois.

25 de junho de 2022

Gilberto Gil faz 80 anos e diz que é cada vez melhor viver

Em entrevista, músico relembra trajetória artística e pessoal e reafirma a fé no Brasil

Claudio Leal

Jornalista e mestre em teoria e história do cinema pela USP

Folha de S.Paulo

[RESUMO] Em entrevista, Gilberto Gil fala de seus 80 anos, que completa neste domingo (26), relembra suas influências musicais e a tomada de consciência racial, comenta o impacto da tropicália em sua vida e no país, declara sua admiração por Lula, FHC e Ciro e reafirma sua fé no Brasil, a despeito da turbulência atual.

O tropicalista Gilberto Gil chega aos 80 anos neste domingo (26) dominado por "um sentimento de bondade radical". Na Alemanha, seguido por esposa, filhos, netos e bisnetos, o patriarca dos Gil festeja o aniversário no palco, abrindo a turnê familiar "Nós, a Gente".

Um dos músicos mais virtuosos da geração surgida nos anos 1960, Gil deu impulso ao movimento tropicalista com seu desejo de integrar a música popular brasileira aos acontecimentos estéticos internacionais.

Sua trajetória de seis décadas contempla a música, a política e a militância negra e ambientalista. O tropicalismo, a prisão, o exílio em Londres, a aproximação com o rock inglês e a integração estilística da bossa nova com o baião foram estágios de seus anos de vanguarda.

O músico Gilberto Gil em seu estúdio na estrada da Gávea, no Rio Eduardo Anizelli-21.jun.22/ Folhapress

Depois dos choques tropicalistas, ele não deixaria de renovar suas experiências estéticas e pessoais, ilustradas pela tendência ao orientalismo e à africanização nos anos 1970, pela trilogia Re ("Refazenda", "Refavela" e "Realce"), pelo mergulho no pop oitentista, pela apologia da internet e das novas tecnologias, pelo tributo ao baião e ao reggae, pelo embarque no Ministério da Cultura (2003-2008), no governo Lula, e pelo ingresso na ABL (Academia Brasileira de Letras), envergando o fardão satirizado na capa de seu disco de 1968.

"Com o passar do tempo, foi ficando melhor viver", reconhece Gil, perto de começar mais um ensaio com a família. A nova turnê percorre Alemanha, Dinamarca, Marrocos, Itália, Eslovênia, França, Suíça, Espanha, Bélgica e Inglaterra.

Dentro do conjunto de celebrações, o Google abriu um museu virtual dedicado ao músico, e a Amazon Prime Video lançou a série "Em Casa com os Gil". A edição ampliada de "Todas as Letras" (Companhia das Letras), organizada por Carlos Rennó, também chega às livrarias.

Nesta entrevista, Gil conversa sobre a velhice, sua formação musical, os retrocessos políticos do Brasil, sua visão de Lula, Ciro e FHC, a tropicália, a relação com o pai, sua consciência racial e suas reflexões existenciais.

Você completa 80 anos neste domingo (26) e celebra a data em uma turnê familiar. Você passa a impressão de que é bom viver. Tem sido assim em sua experiência? Ao longo da vida, da infância para a adolescência, depois para a vida adulta e agora para a velhice, vai ficando cada vez melhor viver. Pela acumulação das experiências. Fica como condição central. Só é isso que a gente tem. É a vida. Todas as nossas intervenções são no sentido de melhorá-la. Nós não conseguimos sair desse ovo áurico da condição existente. Com o passar do tempo, foi ficando melhor viver. Porque também a gente não tem a experiência de não viver. A alternância entre viver e não viver não existe. Só cabe enriquecer esse viver. Não há alternativa.

Você é uma vertente do violão brasileiro e se tornou um mestre tanto quanto seu mestre maior, João Gilberto... Sonhei com ele nesta noite. Ele em um apartamento que era meu ou de algum amigo, promovendo uma sessão de gravação, onde ele tinha uma convidada. Ele experimentava um estilo completamente diferente do que foi a bossa nova e todas as experiências que ele fez com o violão. Um violão completamente diferente, inusitado, surpreendente [risos].

E como define seu próprio estilo no violão? É eclético. Começou com a bossa nova. O primeiro desafio que eu enfrentei foi a decifração da batida do samba feita por João. Foi uma dificuldade que só se resolveu quando intuí que aquele violão de João era baseado no baião. No samba também, mas especialmente no baião. Talvez tivesse também minha própria presença na elucidação dessa questão. Eu já era muito impregnado pelo baião, e facilitou o fato de eu descobrir que João também era. A junção do estilo do baião ficou muito explícito na introdução do "Expresso 2222" (1972). Ficou como uma marca dessa minha capacidade de compreender o baião no violão.

Depois veio a incorporação de outros estilos. O afro-cubano, muito importante, com a rumba e todos os gêneros derivados daquele mundo ali de Cuba, Porto Rico, América Central. Em seguida, vieram as influências americanas, que começaram com as orquestras de Duke Ellington, Count Basie e Glenn Miller.

Depois, vieram as influências do jazz. Eu já extrapolava a coisa das orquestras, porque tinham as personalidades insinuantes, como Miles Davis. Os cantores, os intérpretes americanos me influenciaram muito com a capacidade de percorrer labirintos nas melodias, nas canções, com a influência do canto negro, da África. Aí chega o rock and roll e os estilos mais contemporâneos, americanos.

A tropicália acaba sendo um filtro? Um filtro de tudo isso com a última corrente do rock and roll revisto pela Europa, pela Inglaterra. Beatles, Stones, Traffic, aquele mundo todo. Finalmente, uma visita obrigatória que eu fui fazer ao folk baiano, pernambucano, nordestino, com o samba de roda, as modas nordestinas. Deram nesse estilo. É um percurso longo e variado.

As canções tropicalistas —as suas, de Caetano, Torquato, Capinan e Tom Zé— manifestaram a crítica social de uma forma inovadora na música popular. Ao mesmo tempo, os tropicalistas não se afastaram de uma visão utópica das possibilidades do país. Com um presidente de extrema direita e o agravamento das desigualdades, da fome e da violência, como fica a sua fé tropicalista no Brasil? A mesma. Não mudou nada. O que a gente tem sido levado a observar é um desenvolvimento natural do Brasil no mundo, um diálogo permanente entre o Brasil e suas origens, seus destinos insinuados a partir desse amálgama, dessa reunião de aspectos civilizatórios vindos da Europa, da África, da Ásia, de todos os lugares. O Brasil talvez seja, das nações grandes, a mais exuberante nesse sentido.

Isso é irremovível. Não há como cancelar. Não há um cancelamento possível do Brasil. Como é cada vez mais integrado na questão mundial, ele é afetado também por esses processos transformadores em outros lugares do mundo. O destino do mundo é o destino do Brasil, o destino do Brasil é o destino do mundo. O Brasil continua. A Bahia está viva ainda lá, como diria Caymmi.

Lula é o candidato com mais força eleitoral para enfrentar Bolsonaro. Você foi ministro da Cultura do governo Lula, entre 2003 e 2008, e renovou agora seu apoio a ele. Como foi sua recente conversa com Lula, no Rio? Você reconheceu mudanças no olhar dele sobre o país? Eu não sei se poderia arriscar dizer que percebi mudanças. Sem dúvida, ele se manifesta, hoje, politicamente mais aberto. Ele pertence a um partido de esquerda operária à feição do Labour inglês e de outros partidos operários, como os da Itália, da França, mas com muita influência da América Latina, dos grupos políticos que se juntaram em partidos. Ele é egresso dessa fonte. Não sei em que medida ele teria condições de se "transformar", para usar entre aspas essa palavra, em um agente mais contemporâneo.

Ou pelo menos pacificador do país? Isso sim. Isso é um dado político evidente nele, que poderia ser considerado como uma novidade. Porque ele está se defrontando com a realidade do Brasil. A realidade do mundo é a realidade do Brasil. Ele sabe que tem uma extrema direita ou uma direita irascível, que surgiu no mundo e no Brasil, com uma representação cada vez mais forte.

Ele sabe que a identidade brasileira e a identidade progressista da sociedade mundial não se coadunam com esse tipo de visão. Ele sabe que o mundo quer um andamento natural de movimentos de centro-esquerda. Ele sabe que o PT precisa representar cada vez mais isso.

Ele tem noção natural do respeito que tem que ter a outras formulações político-ideológicas que surgiram no Brasil e no mundo. Agora, a persona política dele é ligada às suas origens. Não vejo como ele mudar nesse sentido.

Você mantém um diálogo próximo também com FHC? Sim, sempre mantive. Sempre tive admiração por ele. Sempre apreciei o fato de que um homem com um grau razoável de ilustração viesse a se tornar chefe de Estado no Brasil e viesse a estimular a continuidade das mudanças. Foi a Presidência dele que propiciou logo depois a chegada de um partido operário ao poder. Um homem razoável, de diálogo.

Tenho muita admiração por Ciro também, pela capacidade da reteorização das questões da sociedade mundial e do Brasil. A releitura que ele faz das mazelas brasileiras, das omissões das elites, dos déficits na questão da abolição, da distribuição da riqueza talvez seja, do ponto de vista de uma nova visão teórica, a manifestação mais expressiva que a gente tem hoje no Brasil. Sinto muita pena que essa nova visão teórica do Ciro não esteja a serviço de toda a esquerda, toda a centro-esquerda brasileira.

Seu livro "Todas as Letras", organizado por Carlos Rennó, demonstra o quanto as distopias e utopias tecnológicas estão presentes em sua obra, de "Lunik 9" e "Cérebro Eletrônico" a "Parabolicamará" e "Pela Internet". Como avalia a transformação do debate público pelo mundo digital? Os hippies estavam certos na desconfiança com as sociedades tecnológicas? Em uma certa medida, sim. Porque eram grupos utópicos radicais. Eles queriam a transformação definitiva do mundo em um grande aglomerado edênico. Eles tinham o éden na cabeça, no coração. Eles queriam paz e amor. Eles queriam a abolição definitiva do mal.

No entanto, o mal emergiu. O mal está aí. Não há um éden possível. Não é isso que a sociedade humana pode construir na Terra. O que ela pode construir na Terra é o projeto da compreensão permanente do jogo entre o bem e o mal, das forças positivas e negativas do diálogo. Por isso, há necessidade cada vez maior de debate, e é isso que as redes sociais e esse mundo eletrônico têm estimulado, com a presença permanente de todas essas vozes, mas com a prevalência desse deslocamento para o horizonte de mais beleza, bondade e justiça.

"Expresso 2222" completa 50 anos. Quero fazer uma provocação. Nesse álbum, você desenvolve mais plenamente seu intuito de integrar a cultura popular brasileira ao pop internacional que em seus álbuns tropicalistas de 1968 e 1969? Eu tenho dito reiteradamente que a fase londrina, a experiência de Londres, do exílio, da pós-prisão, representaram uma plenitude do tropicalismo que não foi possível obter enquanto o tropicalismo esteve aqui vigente como movimento. Pelo menos no meu caso —acho que também no caso de Caetano, de Tom Zé e da Rita Lee e tantos outros—, foi o pós-tropicalismo que deu margem à plenitude, à realização mais plena de exercícios mais abertos de linguagem musical e poética.

O tropicalismo foi um escândalo que abriu esses caminhos? É. Aquela coisa da minha palestra lá na ABL sobre a tropicália [em 14 de abril deste ano], da questão do meu canto...

Sobre o que Hélio Oiticica falou de sua voz estourar? Hélio Oiticica fala e eu me refiro a ter assumido muito daquela compreensão que ele teve sobre meu modo de cantar e ter levado isso adiante em dosagens variadas. Eu responsabilizo inclusive isso pelo comprometimento de minha corda vocal [risos].

Em seu show mais recente, você conseguiu estabilizar a sua voz, depois daquele problema com as cordas vocais. Consegui uma voz madura, uma voz de serviço, como eu costumo dizer. Uma voz que serve à prática de um modo médio de manifestação vocal. Acho que sim. Porque adotei disciplinas rigorosas no sentido de conservação do restante das cordas vocais.

No tropicalismo, Caetano se pronunciou mais que você sobre as manifestações tropicalistas em outras artes, como cinema, teatro e literatura. Há uma certa lacuna em suas entrevistas. Na conferência sobre a tropicália e a antropofagia, na ABL, você falou um pouco disso. Gostaria de saber como você recebeu em sua formulação pioneira do tropicalismo o filme "Terra em Transe", de Glauber Rocha, a encenação de "O Rei da Vela", no Teatro Oficina, e se leu o livro "PanAmérica", de José Agrippino de Paula. Sim, tudo isso. Mas tudo através do filtro do Caetano. Caetano era intelectualmente e existencialmente aderente a todo esse campo de experimentalismo no teatro, no cinema —às novas correntes, ao neorrealismo italiano, à nouvelle vague francesa, ao cinema novo brasileiro.

Eu era distante de tudo isso. Cinema para mim era diversão pura, era ir para o Guarany, para o Liceu [salas de Salvador], para os cinemas ver o maior número possível de filmes. Eu adorava os filmes de caubói, de guerra.

Eu não tinha ainda, antes de conhecer Caetano, o interesse. Nem pelo teatro, nem mesmo pela literatura, nem pela poesia. Gostar de João Cabral, de Bandeira, gostar dessa poesia mais nova, mais aberta, foi uma coisa que passou muito por eu ter conhecido Caetano e ter admirado nele a maneira como ele já vivia essa nova intelectualidade.

Imagino que, assim como Caetano, você não viu a instalação "Tropicália", de Helio Oiticica, em 1967, no MAM do Rio. Não, só vi quando ela foi reinstalada na comemoração dos meus 20 anos de carreira. Por iniciativa do Waly [Salomão], se reinstalou a "Tropicália" entre os vários ambientes que criaram o "environment" dos 20 anos. Só ali eu vi. Era uma reinstalação fiel, mas precária.

Como pensa hoje na figura de seu pai, José Gil? Aos 80 anos, você se tornou também um patriarca, com filhos, netos e bisnetos. A memória de seu pai teve peso em sua decisão de entrar para a Academia Brasileira de Letras? Acho que sim. Ele representando um homem profissional liberal, de formação liberal, muito cioso da questão da institucionalidade. Uma academia de letras e cultura é uma coisa que sempre esteve no horizonte de uma pessoa como ele. Ele se esforçou muito no sentido de que eu me tornasse um profissional liberal com formação acadêmica. Acabei me transformando em um profissional liberal em uma profissão moderna, pós-moderna.

Ele sonhava que eu fosse um médico, advogado, engenheiro. Então, na fase da velhice, tem um espaço para a satisfação, na medida do possível, dos sonhos de realização dele para o filho. É um pouco isso. Além de ter também a aprovação de pessoas próximas, de gente da família, de colegas que são acadêmicos e da minha geração.

E a questão da presença negra na ABL? Também teve uma influência. Foram fragmentos de muitas pequenas e grandes coisas que me fizeram acabar aceitando a ideia da Academia.

No texto "Recuso + Aceito = Receito", de 1969, de recusa ao prêmio Golfinho de Ouro por "Aquele Abraço", você manifestou, a meu ver pela primeira vez, de forma aberta, sua inquietação com o racismo e com a definição de lugares subalternos para o negro no Brasil. Esse é um momento importante do estalo de sua consciência racial? Sem dúvida. É o tropicalismo, o final do tropicalismo, o exílio e o convívio com um grupo especial de brasileiros devotados às vanguardas que me dão consciência mais profunda de problemas brasileiros, entre os quais a questão negra, do racismo, da insuficiência do abolicionismo para dar conta desses problemas. A necessidade de uma continuação do abolicionismo contemporâneo. Tanto é que só na volta do exílio que eu vou conhecer o candomblé. E tem a viagem pra África.

Como avalia o impacto da lei de cotas, sancionada há dez anos no Brasil? Não tenho condições de fazer uma avaliação muito rigorosa da lei. Sei pelas notícias, pelas estatísticas, que tem sido positivo, tem cumprido a sua missão. Eu tenho me mantido favorável às cotas desde o início até hoje. Não arredei da minha crença de que as cotas acabam tendo um papel mais positivo que negativo.

Nos anos 1970 e 1980, em sua figura pop, você ressaltou aspectos de feminilidade que, certamente, todo homem traz em si. Caetano e Ney Matogrosso também fizeram isso. O visual e as palavras dos tropicalistas influenciaram muitos homens e mulheres na aceitação das liberdades e diversidades sexuais. O questionamento dessas fronteiras da sexualidade entrou de forma consciente, deliberada, em seu projeto artístico? Depois de um certo tempo, sim. Na fase tropicalista e no imediato pós-tropicalismo, sim. Porque já muito influenciado pela adoção de uma noção de androginia. Toda a coisa hippie, toda a contemporaneidade da juventude mundial. A ideia do andrógino foi fundamental. O andrógino é o feminino e o masculino ao mesmo tempo. Não há separação possível.

Chico Buarque e Caetano lançaram dois sambas em resposta à situação no país, "Sem Samba Não Dá" e "Que Tal um Samba?". Quando é que vem o seu samba? O meu já está no próprio hibridismo que eu expliquei no começo da conversa. A fase última das adesões ao folk. Eu tenho muito de samba no meu modo de abordar outros gêneros ou gêneros mistos. O samba puro eu não sei até que ponto, principalmente porque a base principal do meu samba é a baiana, não é nem mesmo a carioca. O samba baiano de roda é o meu samba principal. Mas toda hora aparece um "Andar com Fé". Tem muito samba no meu trabalho. Mas samba especificamente samba, com essa titulação específica, talvez daqui a pouco. Eu tenho vontade de fazer.

Em 2017, no período em que se recuperava de uma fase de internações hospitalares, você tocava muito "Cores Vivas", sozinho, em seu apartamento na Bahia. Esse questionamento sobre o destino, a vida e a morte continua a te inquietar agora, em uma fase de boa saúde? Na fase da velhice, as coisas são vistas extrapolando suas particularidades. O amálgama existencial alcança a questão intelectual, dos sentimentos, dos valores, da moral. Tem toda uma diafanização da vida, que é característica do terceiro momento da existência.

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...