Tereza Campello
Sandra Brandão
Pessoas vão até o Mercado Municipal de São Paulo para pegar restos de alimentos que iriam para o lixo - Danilo Verpa - 18.out.2021/Folhapress |
Em reportagem publicada no dia 26 de maio ("Insegurança alimentar dobra no Brasil em sete anos e afeta mais as crianças"), repercutindo o competente estudo de Marcelo Neri, pesquisador da FGV Social, com dados do Gallup World Poll sobre a gravíssima situação da insegurança alimentar no Brasil, esta Folha crava que "a taxa de insegurança alimentar na população brasileira dobrou a partir de 2014, ano em que a economia entrou em recessão no governo Dilma Rousseff (2011-2016)".
Tal argumento não encontra fundamento no estudo de Neri, nas tabelas e gráficos que o acompanham ou no ranking feito com a metodologia do Gallup World Poll. Os dados sobre o Brasil permitem três conclusões: 2014 registrou a menor parcela de brasileiros que diziam faltar dinheiro para alimentação; inexistem evidências de que o aumento tenha sido em 2015 ou no início de 2016; a situação nunca foi tão ruim como a atual, quando essa parcela é o dobro da existente no governo Dilma.
Em busca da série completa do indicador, estabelecemos diálogo com Neri que, gentilmente, reorganizou os dados da Gallup World Poll por período de governo. Nesta nova agregação, a história torna-se ainda mais diferente da narrada na reportagem. A média da parcela de brasileiros que dizem faltar dinheiro para alimentação evoluiu da seguinte forma: no período Lula (2006-2010) eram 20,2%; no período Dilma (2011 a meio de 2016), 20%; no período Temer (meio de 2016 a 2018), 28,4%; e, no período Bolsonaro (2019 a 2021), chegou a 31,33%. Foi só tirar a Dilma que a insegurança alimentar voltou a crescer. Certamente não era isso que os brasileiros queriam, mas este é o resultado que os dados mostram.
A fome voltou ao Brasil a partir do golpe de 2016, que a um só tempo solapou a democracia e deu fim a um auspicioso período de construção de políticas de combate à fome e à pobreza e garantia de segurança alimentar. Em 2014, ao informar a saída do Brasil do Mapa da Fome, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) associou o feito histórico à estratégia que combinou aumento da oferta de alimentos e da renda dos mais pobres, geração de emprego, programas Bolsa Família e de merenda escolar à governança na área de segurança alimentar, com transparência e participação da sociedade. Todos os programas dessa estratégia foram progressivamente fragilizados ou abandonados após o golpe de 2016.
Com Michel Temer e a emenda constitucional 95, que congelou os gastos sociais, teve início o desmonte da estratégia reconhecida pela ONU. O desemprego passou para a casa dos dois dígitos desde 2016 e cresceu a parcela de trabalhadores sem direitos trabalhistas e com renda baixa e instável. A reforma trabalhista não produziu mais emprego, mas resultou em mais precariedade e insegurança. A não correção dos benefícios do Bolsa Família diminuiu sua capacidade de sustentar a renda dessa parcela de brasileiras e brasileiros.
Com Jair Bolsonaro, o desmonte foi aprofundado. Ele extinguiu o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), espaço de participação social e debate das principais políticas de segurança alimentar do país. Não elaborou o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional para 2020-23 e paralisou a instância federal coordenadora de ações em diferentes setores, deixando a área acéfala.
Reduziu ações de apoio à produção de alimentos básicos e de promoção da segurança alimentar. Diminuiu os recursos do Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) e do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). E extinguiu a política de valorização do salário mínimo.
A fome está de volta porque os governos Temer e Bolsonaro desmontaram toda a estratégia que sustentava a histórica conquista civilizatória brasileira registrada pela ONU. Identificar as verdadeiras razões da tragédia que nos assola é essencial para evitar falsas ou parciais soluções. Para superar a fome novamente, o Brasil precisará voltar a crescer, é certo, mas precisará também reconstruir e aprimorar políticas. Só assim o flagelo da fome poderá vir a ser, mais uma vez, página virada em nossa história.
Tal argumento não encontra fundamento no estudo de Neri, nas tabelas e gráficos que o acompanham ou no ranking feito com a metodologia do Gallup World Poll. Os dados sobre o Brasil permitem três conclusões: 2014 registrou a menor parcela de brasileiros que diziam faltar dinheiro para alimentação; inexistem evidências de que o aumento tenha sido em 2015 ou no início de 2016; a situação nunca foi tão ruim como a atual, quando essa parcela é o dobro da existente no governo Dilma.
Em busca da série completa do indicador, estabelecemos diálogo com Neri que, gentilmente, reorganizou os dados da Gallup World Poll por período de governo. Nesta nova agregação, a história torna-se ainda mais diferente da narrada na reportagem. A média da parcela de brasileiros que dizem faltar dinheiro para alimentação evoluiu da seguinte forma: no período Lula (2006-2010) eram 20,2%; no período Dilma (2011 a meio de 2016), 20%; no período Temer (meio de 2016 a 2018), 28,4%; e, no período Bolsonaro (2019 a 2021), chegou a 31,33%. Foi só tirar a Dilma que a insegurança alimentar voltou a crescer. Certamente não era isso que os brasileiros queriam, mas este é o resultado que os dados mostram.
A fome voltou ao Brasil a partir do golpe de 2016, que a um só tempo solapou a democracia e deu fim a um auspicioso período de construção de políticas de combate à fome e à pobreza e garantia de segurança alimentar. Em 2014, ao informar a saída do Brasil do Mapa da Fome, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) associou o feito histórico à estratégia que combinou aumento da oferta de alimentos e da renda dos mais pobres, geração de emprego, programas Bolsa Família e de merenda escolar à governança na área de segurança alimentar, com transparência e participação da sociedade. Todos os programas dessa estratégia foram progressivamente fragilizados ou abandonados após o golpe de 2016.
Com Michel Temer e a emenda constitucional 95, que congelou os gastos sociais, teve início o desmonte da estratégia reconhecida pela ONU. O desemprego passou para a casa dos dois dígitos desde 2016 e cresceu a parcela de trabalhadores sem direitos trabalhistas e com renda baixa e instável. A reforma trabalhista não produziu mais emprego, mas resultou em mais precariedade e insegurança. A não correção dos benefícios do Bolsa Família diminuiu sua capacidade de sustentar a renda dessa parcela de brasileiras e brasileiros.
Com Jair Bolsonaro, o desmonte foi aprofundado. Ele extinguiu o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), espaço de participação social e debate das principais políticas de segurança alimentar do país. Não elaborou o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional para 2020-23 e paralisou a instância federal coordenadora de ações em diferentes setores, deixando a área acéfala.
Reduziu ações de apoio à produção de alimentos básicos e de promoção da segurança alimentar. Diminuiu os recursos do Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) e do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). E extinguiu a política de valorização do salário mínimo.
A fome está de volta porque os governos Temer e Bolsonaro desmontaram toda a estratégia que sustentava a histórica conquista civilizatória brasileira registrada pela ONU. Identificar as verdadeiras razões da tragédia que nos assola é essencial para evitar falsas ou parciais soluções. Para superar a fome novamente, o Brasil precisará voltar a crescer, é certo, mas precisará também reconstruir e aprimorar políticas. Só assim o flagelo da fome poderá vir a ser, mais uma vez, página virada em nossa história.
Sobres os autores
Economista, titular da Cátedra Josué de Castro/USP e ex-ministra de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2011-16, governo Dilma)
Economista, mestre em Economia (Unicamp) e ex-chefe do Gabinete de Informações da Presidência da República (2011-16, governo Dilma)
Economista, mestre em Economia (Unicamp) e ex-chefe do Gabinete de Informações da Presidência da República (2011-16, governo Dilma)
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