31 de agosto de 2022

Lula terá outra chance para transformar o Brasil?

As apostas são altas nas próximas eleições presidenciais do Brasil: mais quatro anos do governo reacionário, corrupto e direitista de Jair Bolsonaro ou o retorno do presidente mais transformador que o Brasil já viu, Lula da Silva.

Uma entrevista com
Sabrina Fernandes


Luiz Inácio "Lula" da Silva cumprimenta apoiadores do lado de fora do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC em 9 de novembro de 2019, em São Bernardo do Campo, Brasil. (Pedro Vilela/Getty Images)

Entrevistada por
Loren Balhorn

A escolha dos eleitores brasileiros em 2 de outubro não poderia ser mais dura: ou mais quatro anos de Jair Bolsonaro, o populista de direita amante de armas, temente a Deus, cujo tempo no cargo já viu centenas de milhares de mortes por COVID-19 e níveis recordes de destruição da floresta amazônica, ou o retorno de Luiz Inácio “Lula” da Silva, o ícone do Partido dos Trabalhadores (PT) que governou o Brasil de 2003 a 2010.

Enquanto os dois mandatos de Lula resultaram em um aumento maciço do padrão de vida da classe trabalhadora e uma série de reformas progressistas, acusações de corrupção (principalmente infundadas e cinicamente armadas pela direita) e um golpe judicial contra sua sucessora Dilma Rousseff alimentaram uma dinâmica de reação que acabou levando Bolsonaro ao poder em 2018. Desde que assumiu a presidência, ele trabalhou duro para privatizar o máximo possível, reverter os programas de assistência social instituídos pelo PT e fomentar uma atmosfera tóxica de chauvinismo e ressentimento.

Lula, fazendo seu retorno político depois de ser preso por falsas acusações de corrupção há quatro anos, agora está fazendo campanha para “derrotar a ameaça totalitária” e “reconstruir e transformar o Brasil”. As apostas, para dizer o mínimo, são altas.

Faltando pouco mais de um mês para os eleitores irem às urnas, a ecossocialista brasileira Sabrina Fernandes falou com Loren Balhorn, da Fundação Rosa Luxemburgo, sobre o histórico sombrio de Bolsonaro, o estado da oposição ao presidente em exercício e o que a esquerda pode aprender com a experiência de seu país na construção de movimentos poderosos e na tomada do poder estatal.

Loren Balhorn

A campanha eleitoral presidencial do Brasil começou oficialmente há várias semanas. Vai ser um grande confronto, com o presidente de direita Jair Bolsonaro concorrendo à reeleição contra o ex-presidente do Partido dos Trabalhadores, Lula da Silva. Como o Brasil mudou sob o governo de quatro anos de Bolsonaro?

Sabrina Fernandes

Se você olhar para os ex-presidentes brasileiros, tivemos um, Juscelino Kubitschek, que prometeu desenvolver o país em cinqüenta anos em cinco. Com Bolsonaro, parece que voltamos quarenta anos em quatro.

Ele conseguiu fazer isso não só por mérito próprio, mas também porque entrou depois do golpe contra Dilma Rousseff. O ex-presidente interino, Michel Temer, começou a implementar uma agenda de austeridade e contrarreformas contra os direitos dos trabalhadores e as pensões. Bolsonaro entrou com um plano para desmantelar ainda mais, como privatizar empresas públicas. Seu ministro da Economia, Paulo Guedes, é considerado geralmente bem-sucedido pelos apoiadores de Bolsonaro, mas na verdade eles queriam privatizar mais, como os Correios, ou a Petrobras, a empresa nacional de petróleo.

Quando a pandemia chegou, Bolsonaro mostrou para que estava lá: garantir que o estado não proveria as pessoas. O sistema de saúde do Brasil está dividido entre o setor público e o privado, e a pandemia deveria ter sido o momento de demonstrar o poder da saúde pública. Mas por causa do plano de austeridade que foi implementado sob Temer e promovido por Bolsonaro, o governo alegou que não havia dinheiro. A austeridade começou antes de Bolsonaro ser eleito, mas ao afirmar que foi eleito democraticamente, ele passou a ter muita legitimidade para aprofundá-la.

Loren Balhorn

"Reivindicando" ser eleito democraticamente? Ele ganhou a eleição justa e honestamente, não foi?

Sabrina Fernandes

Sim, mas é muito importante ressaltar que as eleições de 2018 envolveram muita corrupção e um nível de fake news que não tínhamos visto antes. Bolsonaro empregou as táticas de Steve Bannon para manipular o eleitorado. Nesse sentido, a mecânica da eleição foi justa – as pessoas realmente votaram em Bolsonaro, mas a campanha em si representou um ataque aos princípios democráticos.

Loren Balhorn

Você diria que Bolsonaro tem uma agenda ideológica coerente, ou ele é mais um oportunista de direita na esteira do capital brasileiro?

Sabrina Fernandes

Acho que a maneira mais fácil de descrever Bolsonaro seria um conservador liberal. O que é muito engraçado, porque nos últimos quatro anos houve uma briga entre conservadores e liberais brasileiros, dependendo se gostavam dele ou não, dizendo “Não, ele não está conosco. Ele é apenas um conservador”, enquanto outros dizem: “Ah, não, ele não é conservador o suficiente”.

Se devemos chamá-lo de fascista ou protofascista ou neofascista é mais uma discussão acadêmica. Bolsonaro certamente joga com o imaginário fascista – ele tem uma base de apoio neonazista, e vimos um aumento de grupos neonazistas no Brasil nos últimos anos. Os fascistas clássicos gostam muito de Bolsonaro, e ele não fez absolutamente nada para repudiar isso. Alguns elementos de sua plataforma ideológica são semelhantes ao fascismo clássico, como a forma como ele apela às massas com retórica cristã religiosa e evangélica.

Mas, ao mesmo tempo, ele não é um grande protecionista. Sua agenda econômica é realmente jogar com as potências imperialistas. Sua conexão com Donald Trump foi importante aqui. Enquanto Trump era presidente dos Estados Unidos, Bolsonaro se sentia muito ligado aos EUA como principal aliado do Brasil na região. Estávamos saindo da Maré Rosa. Muitos governos de direita estavam chegando ao poder na América Latina, como na Argentina e no Chile, depois com o golpe na Bolívia, e Bolsonaro se via como parte dessa tendência.

No que diz respeito à classe capitalista internacional, Bolsonaro garantiu que os acionistas estrangeiros das empresas brasileiras fossem beneficiados e que os investidores estrangeiros tivessem acesso às terras brasileiras. Mas a elite tradicional brasileira foi provavelmente a mais feliz de todas, especialmente o agronegócio. Mesmo que Bolsonaro não seja um protecionista tradicional, ele serviu aos interesses da classe capitalista nacional o tempo todo.

Loren Balhorn

Como os trabalhadores se saíram sob sua presidência? As conquistas sociais do governo Lula foram revertidas?

Sabrina Fernandes

Uma das maiores vitórias de Lula em seu primeiro mandato foi seu programa de combate à fome. O Brasil historicamente teve um enorme problema de insegurança alimentar, e Lula fez do combate uma prioridade. Ele iniciou um programa chamado Fome Zero, que combinava programas de alimentação nas escolas, expandindo os estoques nacionais para ajudar a regular os preços dos alimentos, créditos e transferências de dinheiro. Lula tem muito orgulho dessas iniciativas, e o Bolsa Família é provavelmente o programa de transferência condicionada de renda mais bem-sucedido do mundo, tanto que o Banco Mundial o usa como modelo. Pode não ter sido muito radical, mas foi muito importante.

Agora sob Bolsonaro, o Brasil está de volta a um profundo estado de insegurança alimentar. Isso se reflete nos dados, mas você também pode dar uma olhada e ver que temos muito mais pessoas vasculhando latas de lixo em busca de comida, coletando ossos atrás de açougues porque não podem comprar carne e assim por diante.

O assassinato de lideranças indígenas também aumentou. O Brasil sempre foi bastante perigoso para ambientalistas e ativistas indígenas, mas piorou com Bolsonaro. Isso é combinado com a destruição da natureza em geral: a floresta amazônica costumava ser um sumidouro de carbono, mas agora é um emissor líquido devido a mudanças no uso da terra e desmatamento. Bolsonaro é o grande responsável por isso. As taxas de feminicídio e violência de gênero também estão alarmantemente altas agora.

De todos os ângulos, podemos ver uma deterioração na capacidade das pessoas de viver suas vidas. Não são apenas as mais de 600.000 pessoas que morreram durante a pandemia ou os atrasos de Bolsonaro na obtenção da vacina ou sua recusa em tomar as medidas adequadas para impedir a propagação do vírus – de muitas maneiras, é uma combinação de fatores em um governo baseado sobre a necropolítica.

Loren Balhorn

Se Bolsonaro foi um desastre, como podemos entender sua ascensão, antes de tudo? Como ele foi capaz de derrotar o que já foi uma coalizão muito popular e bem-sucedida? Afinal, ele nem sequer tem uma máquina política por trás dele.

Sabrina Fernandes

Há uma explicação comum que se conecta a muitas das análises em torno da Maré Rosa e do boom das commodities na época. Esses governos estavam muito empenhados na redistribuição, mas como o bolo econômico estava crescendo, lucros recordes poderiam coexistir com essa redistribuição. Isso significava que parte da elite estava bastante à vontade com programas sociais, porque também estava ganhando. Quando a crise econômica chegou, esses mesmos capitalistas procuraram mudar o jogo para manter seus lucros.

Isso certamente faz parte da história, mas acho que há mais do que isso. Para entender Bolsonaro, precisamos falar sobre o conservadorismo e o papel dos líderes cristãos fundamentalistas que se revoltaram com as políticas progressistas do governo do PT. Por exemplo, o movimento afro-brasileiro vinha fazendo campanha por políticas de ação afirmativa há muito tempo, algumas das quais foram implementadas no PT. Isso foi o suficiente para cutucar o urso e mudar a forma como partes da classe média pensavam sobre si mesmas.

Loren Balhorn

Como assim?

Sabrina Fernandes

O Partido dos Trabalhadores é um projeto de democratização, mas também foi um projeto de conscientização da classe trabalhadora. Com o tempo, o partido perdeu um pouco disso, enquanto partes da classe média começaram a se ver separadas da classe trabalhadora.

O conservadorismo e os privilégios históricos usufruídos por certos segmentos da sociedade brasileira também tiveram seu papel. Algumas pessoas ficaram chateadas ao ver que suas domésticas agora tinham mais direitos e podiam se dar ao luxo de viajar ou frequentar os mesmos shoppings que eles. Isso gerou ressentimento entre setores da classe média e até mesmo parte da classe trabalhadora, que foi amplificado por alegações de corrupção no governo.

Loren Balhorn

Parece muito com o dilema clássico dos partidos social-democratas na Europa Ocidental: à medida que as políticas social-democratas bem-sucedidas aumentam os padrões de vida e as oportunidades de vida dos trabalhadores, a base da classe trabalhadora que levou a social-democracia ao poder começa a se desgastar à medida que mais e mais trabalhadores se movem para a classe média.

Sabrina Fernandes

Está relacionado a isso, sim, mas estamos falando de países à margem do capitalismo, onde a mobilidade social significa mais do que ter um carro – significa fazer três refeições por dia. Há coisas muito básicas em torno da mobilidade social que são bastante poderosas. Mas se você não associar um projeto de mobilidade social aos ganhos da classe trabalhadora, muito menos à organização da classe trabalhadora, então você começa a perder pessoas na frente ideológica.

Loren Balhorn

E, no entanto, o Partido dos Trabalhadores continua sendo a única força capaz de derrotar Bolsonaro. Mesmo que as pesquisas estejam diminuindo um pouco, Lula mantém uma liderança firme desde que anunciou sua candidatura em maio. Você pode falar um pouco sobre sua importância para a política brasileira e para a sociedade em geral?

Sabrina Fernandes

Há algumas maneiras de descrever Lula. Uma que é muito comum é que ele é o melhor presidente que o Brasil já teve. Com todas as contradições, problemas e todas as outras coisas pelas quais o criticamos, ele foi o melhor presidente e estava muito preocupado com o bem-estar das pessoas. A compreensão de que você precisa tirar as pessoas da pobreza, garantir que elas comam bem, que tenham bons empregos – tudo isso é uma prioridade para Lula, e é isso que o faz se destacar.

Ele também é um político muito habilidoso, no sentido de que é capaz de reunir as pessoas em uma sala e criar um consenso quando ninguém mais achava possível. Isso é bastante positivo considerando o quão politicamente fragmentada é a sociedade brasileira, tanto em termos de consciência quanto de organizações políticas. Temos mais de trinta partidos oficiais no país, então sua capacidade de conversar com muitos políticos é muito importante.

Por outro lado, sua maneira de governar também o leva a abrir mão das coisas – essa ideia de que todos podem ganhar desde que cada lado dê algo para o outro lado, o que obviamente é um problema quando estamos falando sobre o poder da classe trabalhadora. Temos que entender Lula não como um líder radical de esquerda, mas um moderado que muitas vezes cede à centro-direita e à classe capitalista.

Loren Balhorn

Como isso está se desenrolando na campanha atual? Que tipo de coalizão ele montou atrás de si mesmo e que mensagem ele está transmitindo?

Sabrina Fernandes

Ficou muito claro que Lula não conseguiria vencer com uma chapa de esquerda “pura”, como em 2018, quando o candidato do PT Fernando Haddad concorreu com Manuela d'Ávila do Partido Comunista Brasileiro. Eles tiveram que escolher alguém da centro-direita.

A questão para mim não é tanto que eles escolheram alguém de centro-direita – que eu esperava – mas a pessoa em particular que eles escolheram: Geraldo Alckmin. Ele cumpriu quatro mandatos como governador do estado de São Paulo e esteve ligado a muita corrupção. Ele também é de um partido que foi um dos principais adversários do PT e ajudou a lançar campanhas de difamação contra a esquerda e a promover fake news antes que as fake news existissem.

Muita gente da esquerda brasileira acredita que Alckmin é essencial para vencer. Isso não vem apenas de Lula ou de um pequeno grupo de pessoas dentro do Partido dos Trabalhadores. Parte da base do movimento social de Lula está bem com a presença de Alckmin.

Teremos que ver como vai dar certo, mas acho que isso o magoa no sentido de que, principalmente no estado de São Paulo, as comunidades pobres realmente sofreram com seu governo. Quando os sindicatos de professores entraram em greve, eles foram espancados pela polícia. Há um problema de credibilidade quando você diz: “Olha, eu sei que esse cara não foi bom para você, mas você tem que lidar com ele porque é dele que precisamos para vencer”.

A coalizão por trás de Lula está muito focada na luta contra Bolsonaro. Se o principal oponente de Lula não fosse Bolsonaro, mas alguma outra pessoa moderada de centro-direita – talvez até Alckmin, que disputou contra Lula em 2006 – ele poderia não ter adotado a mesma estratégia. Mas agora que se trata de remover Bolsonaro, há uma tendência de as pessoas aceitarem certas coisas sobre a campanha, incluindo o nível de moderação política, apenas para garantir que Bolsonaro seja expulso.

Loren Balhorn

O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que surgiu como uma divisão de esquerda dentro do PT e é uma das maiores forças da esquerda, está apoiando Lula desta vez. E o resto da esquerda radical?

Sabrina Fernandes

A esquerda brasileira é muito fragmentada. Por exemplo, temos o Partido Comunista Brasileiro (PCB), que é bastante moderado em comparação com o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), que é um partido marxista-leninista mais tradicional. O PCB está muito próximo do PT há muito tempo e fez parte de seus governos.

Particularmente sob Bolsonaro, houve alguma convergência entre o PT e o PSOL. Isso faz sentido em termos de construir uma forte aliança contra Bolsonaro, mas também criou tensões dentro do PSOL e algumas pessoas saíram por causa disso. No geral, no entanto, o número de membros cresceu. Ainda é bem pequeno em relação ao PT, mas se tornou mais relevante em determinados setores da sociedade.

Três partidos menores da esquerda radical, incluindo o PCdoB e o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU), um partido trotskista que rompeu com Lula muito antes de seu primeiro mandato, estão concorrendo com seus próprios candidatos. Todos os outros apoiam Lula. Isso realmente não afetará a eleição, porque eles não têm apoio suficiente para fazer a diferença. Mas reflete o aumento do debate público em torno do socialismo e do comunismo no Brasil. Assim como o anticomunismo se espalhou sob Bolsonaro, as ideias comunistas também.

Loren Balhorn

Você disse que, apesar de todas as críticas e limitações, Lula continua sendo o melhor presidente que o Brasil já teve. Ao mesmo tempo, nenhum de seus críticos de extrema esquerda teve muito sucesso em promover uma agenda mais radical. Você acha que há alguma lição geral que pode ser tirada do histórico do PT em termos de construção de maiorias de esquerda?

Sabrina Fernandes

Uma das principais questões que temos no Brasil é que nossa política está muito centrada nas instituições que construímos – sindicatos, partidos e movimentos sociais – e não tanto em como podemos fazer esses projetos repercutirem no resto da sociedade. Um dos desafios é que temos uma esquerda que muitas vezes basicamente come a si mesma. Estamos lutando pela mesma base e não estamos tão preocupados em aumentar essa base.

Isso, por sua vez, geralmente está ligado à ideia de que nossa base é realmente muito grande porque podemos eleger pessoas – basta olhar para o Partido dos Trabalhadores, certo? Nesse sentido, há uma confusão entre uma base eleitoral e uma base popular real.

Não tenho certeza se a esquerda aprendeu essa lição, principalmente se Lula voltar e as pessoas se acostumarem novamente com a ideia de que uma base eleitoral é suficiente. Mas é algo que pelo menos algumas partes da liderança do PT estão cientes. Se quiserem implementar algumas das propostas mais ousadas de Lula, terão que levar as pessoas de volta às ruas. Eles terão que se mobilizar. Dilma foi fundamental nesse processo de reflexão e quase autocrítica, de entender que deveríamos ter mobilizado mais gente contra o golpe — temos que garantir que quando governamos, governamos por meio da mobilização. Eu acho que isso é bastante significativo, em particular, vindo dela.

Loren Balhorn

Você fez alusão à Maré Rosa, a onda de governos de esquerda latino-americanos da qual fez parte a vitória de Lula, bem como os contratempos que enfrentou na última década. Após a série de vitórias eleitorais na Bolívia, Colômbia e outros lugares, que impacto você acha que uma vitória de Lula poderia ter na América Latina de forma mais ampla?

Sabrina Fernandes

O fato de Lula ser um político muito habilidoso também ajuda muito em termos de integração latino-americana. Se vencer, e assumindo que não haja golpe, será importante para fortalecer as relações entre esses novos governos progressistas e mediar algumas tensões. Por exemplo, definitivamente há tensão entre o governo de Gabriel Boric no Chile e o governo de Nicolás Maduro na Venezuela, e acho que Lula pode ajudar nisso.

Lula também é chave para as conversas em torno de órgãos alternativos de governança na região, como a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos, e para a oposição à hegemonia dos EUA no continente. Mas sua influência vai muito além da América Latina. Lula é muito grande na cooperação Sul-Sul envolvendo os BRICS [Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul] e outras parcerias. Ao mesmo tempo, ele é bem visto na Europa e nos Estados Unidos, especialmente por causa do quão ruim Bolsonaro tem sido.

Loren Balhorn

Você é pós-doutoranda no Grupo de Pesquisa Internacional sobre Autoritarismo e Contra-Estratégias da Fundação Rosa Luxemburg há vários anos. Até que ponto existe realmente algo como uma tendência autoritária global? Podemos traçar paralelos claros entre o que está acontecendo nos EUA, no Brasil e, digamos, na Turquia?

Sabrina Fernandes

Há sempre uma tendência a fazer comparações e traçar paralelos. Durante as eleições colombianas, por exemplo, muitas pessoas disseram que Rodolfo Hernández [candidato presidencial de centro-direita] era como o Bolsonaro ou o Trump colombiano. Poderíamos traçar paralelos semelhantes com as Filipinas, Índia ou Turquia. Tudo bem, mas entender a mecânica por trás disso é um pouco diferente.

Sabemos que existem relações diretas, por exemplo, como eles usam as mídias sociais. Isso não é um acidente; eles não estão apenas copiando um ao outro. Há empresas e treinamentos envolvidos. Há também relações reais entre esses movimentos. Não estamos em um ponto em que podemos dizer que existe uma aliança global unificada de extrema-direita, mas eles certamente se comunicam. Eles compartilham as melhores práticas e têm parcerias diretas. Havia claramente conexões entre Bolsonaro e Juan Guaidó, que tentou se declarar presidente interino da Venezuela.

Isso não é apenas na América Latina, é um fenômeno global. Quando olhamos para os paralelos, nosso trabalho não é apenas fazer comparações, é também cavar os relacionamentos e ver como eles se alimentam. Acho que isso é algo que conseguimos fazer muito bem em nosso grupo de pesquisa.

Loren Balhorn

Nesse sentido, a derrota de uma figura como Bolsonaro também teria implicações para líderes semelhantes em todo o mundo?

Sabrina Fernandes

Tem implicações simbólicas, com certeza, mas é importante entender que derrotar Bolsonaro não é derrotar o bolsonarismo. Há um fenômeno maior por trás dele que ainda estamos tentando entender. Só porque Bolsonaro perde uma eleição não significa que a extrema-direita vai dar um tempo.

Colaboradores

Sabrina Fernandes é uma ativista ecossocialista do Brasil e apresentadora do popular canal marxista no YouTube Tese Onze. Ela também é bolsista de pós-doutorado no Grupo de Pesquisa Internacional sobre Autoritarismo e Contra-Estratégias da Fundação Rosa Luxemburg.

Loren Balhorn é editor colaborador da Jacobin e coeditor, juntamente com Bhaskar Sunkara, de Jacobin: Die Anthologie (Suhrkamp, 2018).

30 de agosto de 2022

Investimento chinês no Brasil triplica em 2021 e torna país principal destino de aportes

Em meio a campanha, gigante asiático é alvo de críticas de Guedes e Lula

Eduardo Cucolo


Entrada da fábrica da Great Wall em Iracemápolis (SP) - Eduardo Sodré/Folhapress

Com novos projetos e grandes aquisições, principalmente nos setores de energia e tecnologia da informação, o investimento de empresas chinesas no Brasil mais que triplicou em 2021, retornando ao patamar pré-pandemia.

Embora o resultado esteja influenciado pela base fraca de comparação com 2020, os números mostram que o país foi o principal destino do capital chinês no ano passado.

Entre as operações de destaque estão os aportes de recursos feitos pela Tencent em fintechs e startups como Nubank, QuintoAndar e Cora; a aquisição da companhia de transmissão de energia do Rio Grande do Sul pela State Grid e a compra da fábrica da Mercedes-Benz em Iracemápolis (SP) pela Great Wall Motors, além dos investimentos bilionários das gigantes chinesas de petróleo na Bacia de Santos.

A presença dos chineses no Brasil também ganhou destaque na campanha presidencial. O ministro Paulo Guedes (Economia) afirmou a empresários não querer "a ‘chinesada’ entrando aqui quebrando nossas fábricas, nossas indústrias, de jeito nenhum".

O ex-presidente Lula (PT) também manifestou a empresários preocupação com o avanço do país asiático na fabricação de produtos manufaturados e disse que a China "está ocupando o Brasil", "tomando conta do Brasil".

Relatório do Conselho Empresarial Brasil-China que será divulgado nesta quarta-feira (31) mostra que o investimento do país asiático em território nacional somou US$ 5,9 bilhões em 2021, valor 208% superior ao de 2020 em termos nominais, ano de queda por causa da pandemia, e o maior em quatro anos —os números não consideram a inflação, que no ano passado foi de 7% nos EUA.

Foram listados 28 projetos, número idêntico ao de 2017, e o segundo maior já registrado na série histórica iniciada em 2010.

Na América do Sul, desconsiderando o Brasil, os investimentos chineses cresceram 30% no ano passado. Em todo o mundo, a alta foi de apenas 3,6%.

O Brasil foi o país que mais recebeu investimentos da China no período, com participação de 13,6% do total. Desde 2005, foi o quarto maior receptor (4,8% do total).

Em termos de valores, o setor de petróleo foi predominante, respondendo por 85% do total. Em números de projetos, os destaques foram eletricidade e tecnologia da informação (TI).

OPERAÇÕES DESTACADAS

  • As chinesas CNODC e CNOOC assinaram com a Petrobras acordo de coparticipação no campo de Búzios, no pré-sal da Bacia de Santos
  • A Great Wall Motors comprou a fábrica de automóveis da Mercedes-Benz em Iracemápolis (SP)
  • A Tencent, o maior conglomerado chinês de tecnologia, que ingressou no Brasil em 2018, realizou aportes no Nubank, QuintoAndar, fintech Cora, Omie e Frete
  • A MSA Capital fez três novos aportes no Brasil: no Nubank e nas foodtechs Cayena e Favo
  • O grupo chinês Ant Financial, fintech do Alibaba, comprou 5% da Dotz
  • A CPFL, subsidiária da State Grid, venceu o leilão de privatização da CEEE-T (companhia de transmissão de energia do Rio Grande do Sul), com lance de R$ 2,6 bilhões

Fonte: Investimentos chineses no Brasil 2021 - Conselho Empresarial Brasil-China

Responsável pelo estudo, o diretor de conteúdo e pesquisa do Conselho Empresarial Brasil-China, Tulio Cariello, afirma que o setor de TI deve se destacar novamente em 2022, junto com a agropecuária, considerando os projetos anunciados até o momento.

A área de tecnologia foi um ponto fora da curva, segundo ele. Foram dez projetos, quase um terço do total, nessa área —praticamente o mesmo número verificado no acumulado de 2007 a 2020 (12 projetos).

Cariello afirma que os investimentos chineses no exterior passaram por dois momentos distintos nos últimos anos. O primeiro foi de um crescimento ano a ano até 2016, quando alcançaram US$ 170 bilhões, seguido por um patamar estável próximo de US$ 120 bilhões desde então, com investimentos "mais racionais" após exageros anteriores, na avaliação do especialista.

Em relação às preocupações com o avanço dos investimentos do país asiático no Brasil, Cariello afirma que muitos dos insumos usados pelas indústrias nacionais são de origem chinesa, o que ajuda a baratear esses produtos e melhorar sua competitividade.

Ele também destaca que metade dos negócios registrados em 2021 foi de novos projetos e que as aquisições têm sido acompanhadas por investimentos para modernização do parque industrial e da infraestrutura do Brasil.

O especialista destaca ainda que algumas operações, como a compra da fábrica da Mercedes-Benz, ajudam a salvar empregos no país.

"Não acho que a China esteja quebrando o Brasil. O que existe é uma falta de competitividade nacional, que é um fator crônico. É muito visível que esses investimentos chineses contribuem para aquecer a economia", afirma.

"Eu vejo isso como uma vantagem. Você está modernizando nosso parque industrial e, muitas vezes, salvando empresas da falência."

A direita está tentando impedir a nova Constituição do Chile

Mais de 80% do eleitorado chileno votou para substituir a constituição da época da ditadura do país. Enquanto os chilenos vão às urnas no domingo para finalmente votar a nova Constituição, a direita está alimentando temores para impedir sua aprovação.

Nicolás Contreras Bravo e Kiva Drexel

Jacobin

Traduzido por
Loren Balhorn

Os chilenos contra a aprovação da nova constituição protestam em Santiago, 27 de agosto, antes da votação de 4 de setembro. (Martin BERNETTI/AFP via Getty Images)

"Se eu votei a favor e agora não sou mais a favor, sou inconsistente?" pergunta a uma jovem em um comercial eleitoral sobre o referendo chileno marcado para 4 de setembro. O comercial defende o voto negativo no referendo sobre o novo projeto de constituição.

O apelo por uma nova constituição nasceu da revolta de outubro de 2019, quando milhões de chilenos protestaram contra a desigualdade social que assola o país. Um ano depois, quase 80% do eleitorado votou para substituir a atual Constituição, que remonta à ditadura de Augusto Pinochet, por uma nova. Os chilenos elegeram uma Convenção Constitucional em maio de 2021, com partidos de esquerda e representantes não partidários de movimentos sociais conquistando a maioria dos assentos.

A decisão indecisa

Desde então, o campo pró-Constituição perdeu muito apoio. Os opositores da nova constituição estão à frente em todas as pesquisas até agora. Com isso, o campo dos indecisos será decisivo na votação — que é obrigatória.

O instituto de pesquisa de opinião CADEM atualmente coloca o número de incrédulos em cerca de 16%, mas a tendência é aumentar. A principal razão para essa mudança são as informações contraditórias sobre os direitos consagrados na nova constituição. Além disso, uma campanha do não organizada com bastante antecedência conseguiu explorar os déficits estruturais da própria Convenção Constitucional.

Nos últimos doze meses, uma maioria de dois terços na Convenção Constitucional aprovou uma série de artigos com potencial para mudar fundamentalmente o Chile. Por exemplo, o novo rascunho caracteriza o Chile como um "Estado de bem-estar" e fortalece seus poderes nos sistemas de saúde e previdência, educação e criação de moradias - áreas em que a Constituição atual protege principalmente os interesses do setor privado. Os direitos reprodutivos, incluindo o direito ao aborto, também são consagrados.

Outra mudança significativa é que a água é declarada um bem comum que não pode ser privatizado. A atual constituição, por outro lado, protege explicitamente a propriedade privada da água - um modelo que favorece particularmente as indústrias de uso intensivo de água. Em um país que sofre com a seca e a escassez de água, tal artigo representa um verdadeiro marco.

No entanto, muito disso foi perdido na atual campanha do referendo. Em vez disso, os debates giram em torno dos artigos sobre “plurinacionalidade”, que se destinam a fortalecer os espaços de autogoverno e representação indígena, mas provaram ser irritantes para muitos chilenos no sul do país. Lá, a campanha do não promove deliberadamente a ideia de que a nova constituição privilegiaria as comunidades indígenas sobre o resto da população.

A campanha também explora a possibilidade de interpretar normas em outras áreas para alimentar o medo. A desinformação de que a constituição aboliu a propriedade de moradia foi repetidamente espalhada por membros da convenção de direita, mais recentemente por meio de panfletos que lembram materiais oficiais da convenção. Também muito debatida é a desinformação de que pacientes particulares seriam forçados a entrar no sistema público de saúde pela nova constituição. As alegações de que isso aumentará os tempos de espera em hospitais públicos são particularmente alarmantes para idosos de famílias de baixa renda, que atualmente compõem grande parte dos indecisos.

A coalizão governista liderada pelo presidente progressista de esquerda Gabriel Boric apoia a nova constituição. O governo foi acusado de interferir na campanha do referendo em meados de julho, depois de ter encomendado a impressão em massa do novo texto, mas desde então manteve um perfil discreto.

A maioria do Partido Democrata Cristão do Chile votou a favor da nova constituição no início de julho. Sob o lema Apruebo para reformar, os partidos de centro-esquerda da coligação Socialismo Democrático, que integra o governo, tentam convencer os indecisos. Isso marca uma concessão discursiva à direita política, que retrata o projeto de constituição como falho.

"Nosso compromisso com a nova constituição não é baseado em cálculo político", disse Manuela Royo, ex-deputada da convenção e porta-voz da campanha não partidária "Aceite a Nova Constituição", disse ao El Desconcierto. "Nós defendemos uma mudança social positiva por meio da qual os cidadãos recebem mais poder de decisão."

A campanha reúne mais de uma centena de organizações de base em todo o país, incluindo o Movimento para a Proteção da Água, da Terra e do Meio Ambiente (MODATIMA), que apoiou Royo em sua candidatura à Convenção Constitucional.

A direita joga no centro

Os partidos da direita política estão fazendo campanha sob o lema Rechazo por una Mejor (Rejeitar por uma melhor). Esses mesmos partidos se opuseram a uma nova constituição no primeiro referendo, em 2020. Hoje buscam demonstrar que não é preciso ser de direita para rejeitar o projeto, enquanto fazem o possível para esconder posições de extrema direita, como as do derrotado candidato presidencial José Antonio Kast. Mesmo o ex-presidente Sebastián Piñera ainda não se pronunciou sobre a nova constituição.

A campanha do não é apoiada por alguns democratas-cristãos e por setores da ala conservadora da ex-Concertación (a coalizão de centro-esquerda que governou por trinta anos após a ditadura), que lucrou com a recuperação econômica do Chile. Suas críticas à nova constituição incluem a cota proposta para candidatos indígenas e a transformação do Senado em uma "Câmara das Regiões", o que significaria a perda de algumas cadeiras do Senado democrata-cristão. Eles já haviam feito campanha pela elaboração de um novo texto durante a convenção sob o lema Una que nos una.

Enquanto isso, todas as previsões apontam para um resultado apertado em 4 de setembro. O advogado mapuche Salvador Millaleo atribui isso à perda de legitimidade que a Convenção Constitucional sofreu nos últimos meses. "O erro foi acreditar que a mudança já havia ocorrido, quando na verdade ela estava apenas em andamento", diz o sociólogo. "Alguns delegados da convenção pensaram que um clima político moldado pela revolta e pela pandemia era uma mudança cultural definitiva."

Os debates da convenção foram divulgados na mídia. Um número desproporcional de parlamentares se pronunciou, retratando o processo como sectário. Por exemplo, a Comissão Ambiental, de onde veio a consagração da água como bem comum natural, enfrentou repetidas críticas de dentro de suas próprias fileiras. O economista Bernardo Fontaine sentiu-se excluído dos debates e descreveu o artigo que consagra a natureza como sujeito jurídico como um "excesso ideológico".

Hoje, Fontaine lidera a campanha do não, que em meados de julho recebeu 98% de todas as doações registradas. Entre os doadores estão grandes empresários como Patricio Crespo, que hoje detém direitos de água para irrigação de 13.800 metros cúbicos por ano.

Rumores dominam o debate

"Se você olhar apenas para os debates e não para os resultados, poderá compartilhar certas preocupações", diz Juan Martin, ex-chefe da Comissão Ambiental. O ativista ambiental também atribui o desconhecimento da população sobre os artigos que foram repassados a uma falha do governo. "Quando perguntamos à estação de TV nacional, a resposta foi: 'Tudo o que podemos oferecer é um banner no site'. Isso é uma vergonha para um processo republicano como esse."

Como resultado, muitos chilenos acompanharam o processo por meio das páginas de mídia social de parlamentares individuais. Além disso, não havia uma estratégia de comunicação unificada. "Vimos a desinformação chegando", diz Juan Martin, de 26 anos. "Mas simplesmente não tivemos tempo de discutir com a imprensa."

Rumores de que as normas colocariam em risco a unidade do Estado chileno e sujeitariam a população à justiça indígena persistem até hoje. “No sul, agora existe um clima absolutamente hostil aos indígenas”, relata Millaleo. “Nisto, a direita política equipara a discussão dos direitos indígenas com as demandas das organizações mapuches mais radicalizadas”.

A coalizão governista reagiu agora à incerteza geral e publicou um acordo sobre projetos concretos de reforma. Entre outras coisas, afirma como pretende interpretar as normas sobre plurinacionalidade — desde que a constituição seja adotada.

Um processo alternativo seria complicado

Se a nova constituição for rejeitada em 4 de setembro, a legitimidade do governo sofrerá um grande golpe. O secretário presidencial Giorgio Jackson já indicou que partes do programa do governo dependem de sua adoção.

O anúncio do presidente Boric de iniciar um novo processo constitucional em caso de rejeição teria que ser aprovado por uma maioria no parlamento, que é dominado pela direita. Se o projeto for rejeitado, outro processo de reforma no parlamento seria o cenário mais provável. Desde a sua entrada em vigor em 1980, a atual constituição já foi reformada cinquenta e nove vezes.

Enquanto isso, sob pressão da oposição, o quórum parlamentar para emendas constitucionais foi reduzido de dois terços para quatro sétimos. Não haveria garantias de que os projetos de reforma estariam orientados para as questões levantadas pela Convenção Constitucional. Pelo contrário, a rejeição de uma constituição plurinacional e voltada para o estado de bem-estar forneceria um argumento democrático contra uma mudança profunda - e não apenas para a direita chilena.

Uma vitória apertada dos partidários daria impulso às discussões em torno da necessidade de reformar o texto. Para essas reformas, o governo também dependeria de votos da Democracia Cristã e alguns da direita moderada. Eles poderiam usar um resultado próximo para exigir reformas de longo alcance no próprio texto constitucional.

A aprovação do projeto de constituição com uma maioria de mais de 55 por cento, por outro lado, daria ao governo vento favorável para avançar com a legislação em áreas centrais durante o mandato de Boric, que dura até 2026.

Uma coisa já é certa: seja a nova Constituição rejeitada ou aprovada, será importante que os movimentos sociais mantenham a pressão — principalmente no que diz respeito à concretização e interpretação do significado da Constituição pelo Congresso.

Os movimentos sociais também estão balançando a balança na atual campanha eleitoral. “Há uma contradição entre o que as pesquisas e os meios de comunicação relatam e o que vivenciamos no terreno todos os dias”, disse Manuela Royo ao El Desconcierto. “Sabemos que temos muito a informar, mas, ao fazê-lo, estamos nos baseando em suposições que vêm de anos de experiência em organização. Agora podemos apontar um futuro e acabar com esse Chile marcado por tantos abusos”.

A campanha pró-governo também conta com atores da sociedade civil. Ambas as campanhas estão agora se coordenando para alcançar as pessoas nas ruas e em suas portas que ouviram pouco ou coisas contraditórias sobre a nova constituição. Seu trabalho educativo será decisivo para determinar se os duvidosos também decidirão votar a favor.

Republicado com a permissão da Rosa Luxemburg Foundation e da Jacobin América Latina.

Colaboradores

Nicolás Contreras Bravo estuda a história do policiamento e dos regimes de segurança transnacionais na Pontifícia Universidade Católica do Chile.

Kiva Drexel escreve para Lateinamerikanachrichten e foi observadora de julgamento no Observatório Constitucional de Gênero da Universidade do Chile de fevereiro a julho de 2022.

Loren Balhorn é editor colaborador da Jacobin e coeditor, juntamente com Bhaskar Sunkara, de Jacobin: Die Anthologie (Suhrkamp, 2018).

29 de agosto de 2022

Cuba e o Mais Médicos, 9 anos depois

Vê-se agora que fim injustificado trouxe efeitos dolorosos aos brasileiros

Pedro Monzón



O programa Mais Médicos, que se iniciou em 8 de julho de 2013, desempenhou um papel muito importante na promoção da saúde no Brasil. Seu propósito foi captar médicos no próprio país e no mundo para trabalhar nas zonas pobres e afastadas do país.

A participação cubana, até 2018, foi muito efetiva. Organizou-se sobre a base de um projeto de cooperação técnica entre a Organização Panamericana de Saúde e os ministérios de Saúde de Cuba e do Brasil. Teve a virtude de não constituir uma competição —os cubanos ocuparam postos não cobertos por médicos brasileiros ou estrangeiros.

É reconhecido em todo o Brasil que Cuba teve uma presença proeminente, fato confirmado com dados. Os médicos cubanos representavam 80% de todos os participantes do programa. Em cinco anos, o total do pessoal cubano da Saúde alcançou 20 mil colaboradores. No momento em que a iniciativa foi suspensa, havia mais de 8.000 médicos cubanos no Brasil. Os profissionais da ilha atenderam mais de 113 milhões de pacientes em mais de 3.600 municípios, dos quais 700 tiveram serviços médicos pela primeira vez em sua história. Os cubanos cobriram um universo de cerca de 60 milhões de pessoas em zonas de pobreza extrema e, em particular, nos 34 distritos especiais indígenas.

Nos lugares em que trabalharam, todos os indicadores de saúde melhoraram ostensivamente, os índices de mortes foram reduzidos e evitou-se o sofrimento desnecessário por doenças curáveis.

O papel dos médicos cubanos foi reconhecido pela população, que sofreu muito com sua partida. Segundo investigação encomendada pelo Ministério da Saúde do Brasil à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), 95% dos entrevistados confirmaram a alta consideração do povo brasileiro pelo trabalho dos médicos cubanos. Sempre foram distinguidos por seu profissionalismo, caráter amistoso e sua capacidade de se misturar com o povo.

Tanto no Brasil como em outros países, assumiram muitos riscos de contágio de doenças perigosas. Tal conduta se explica pelo fato de que os médicos cubanos são educados sobre a base de valores e a concepção de que a saúde é direito humano, e o paciente não é mercadoria.

Não é algo excepcional: esse comportamento caracteriza toda a colaboração internacional de Cuba nas últimas seis décadas. Nesse período, mais de 605 mil médicos apoiaram mais de 170 nações, geralmente as mais pobres, nas quais atenderam comunidades humildes que habitam regiões intrincadas.

Com esses antecedentes, é obvio concluir que as causas que provocaram o fim da participação de Cuba no programa Mais Médicos foram completamente injustificadas —e o resultado, desnecessário e doloroso para os cidadãos brasileiros, que ficaram sem serviços médicos, precisamente nos prelúdios da pandemia.

Os povos do Brasil e de Cuba têm muito em comum e possibilidades infinitas de intercâmbio, tendo em conta nossas respectivas fortalezas. Por isso, estamos seguros de que, no futuro, serão criadas condições para empreender projetos fraternais nesta e em outras esferas.

Sobre o autor

Cônsul-geral de Cuba em São Paulo

Crime e castigo

Seis meses depois, guerra entre Rússia e Ucrânia põe Ocidente na defensiva

Pedro Donizete da Costa Júnior

Valdir da Silva Bezerra


Soldados russos nas ruínas do teatro de Mariupol, cidade que foi objeto do mais sangrento cerco da guerra até aqui e caiu para Moscou - Alexander Nemenov - 12.abr.22/AFP

Após os eventos de 2014 na Ucrânia, Vladimir Putin enxergou o país vizinho como uma "plataforma" utilizada pelo Ocidente para minar a segurança da Rússia. Baseando suas alegações em elementos históricos, filosóficos e religiosos, Putin deixou claro que o movimento da Ucrânia em direção ao Ocidente (e especialmente em direção à Otan) seria algo inaceitável (uma"red line") à medida que minaria a "unidade espiritual e cultural" existente entre russos, bielorrussos e ucranianos.

Por outro lado, durante as décadas de 1990 e 2000, a ascensão de sentimentos nacionalistas nas ex-repúblicas soviéticas, e particularmente na Ucrânia, foi enxergada de forma positiva pelo Ocidente, uma vez que representava a perspectiva de uma democratização regional e de seu afastamento da Rússia enquanto polo de poder regional.

Logo Putin afirmava que Kiev fora arrastada para um perigoso jogo geopolítico que visava transformar a Ucrânia numa barreira entre a Europa e a Rússia, um trampolim (de ataque) contra o país, motivo que levou o Kremlin a crer que a Ucrânia estava servindo aos interesses geopolíticos do Ocidente, não aos interesses de seu próprio povo. Assim, Putin não somente enxergou a soberania ucraniana como essencialmente frágil como passou a exigir garantias por parte da Otan de que a Ucrânia não seria incluída futuramente na organização militar.

Nesse contexto, durante as primeiras semanas de 2022, enquanto mantinha conversações com diversos estadistas europeus, Putin e seu ministro das Relações Exteriores, Serguei Lavrov, enfatizavam as preocupações do Kremlin sobre a chamada "política de portas abertas" da Otan, mencionando que o descaso demonstrado pela liderança ocidental quanto à posição russa de que "uma possível admissão da Ucrânia na aliança atlântica seria inadmissível" foi uma das principais razões por trás da crise de confiança surgida entre a Rússia e a aliança atlântica.

Enquanto, por um lado, essa "política de portas abertas" da Otan ressaltava o direito de cada Estado escolher livremente seus arranjos de segurança, a Rússia enfatizava a necessidade de se atentar para que "nenhum Estado fortaleça sua própria segurança em detrimento da segurança dos demais". Segundo a liderança russa, uma eventual adesão da Ucrânia à Otan representaria uma ameaça militar ao país à medida que a aliança atlântica poderia colocar em solo ucraniano mísseis balísticos (500 km a 5.500 km) capazes de atingir importantes cidades russas, como Moscou e São Petersburgo, em questão de minutos —ao mesmo tempo em que forneceria terreno para o estacionamento de tropas da Otan nas fronteiras meridionais da Rússia. Além de tudo, perder a Ucrânia para a Otan seria, para os russos, o mesmo que perder uma parte de sua própria origem.

Fato é que com o fiasco das negociações entre o Kremlin e líderes europeus a respeito de "garantias de segurança" e sob a justificativa de defesa das populações de Lukansk e de Donetsk contra "as agressões do exército ucraniano", Putin decidiu tomar a controversa decisão de iniciar a guerra na Ucrânia, evitando aquele movimento que se aprofundava ao longo dos últimos anos em que a Rússia se via novamente como alvo de uma política de "cerco" empregada pelo Ocidente. Na prática, tinha início então uma nova guerra em território europeu contra o poder da hegemonia ocidental, que agora chega à marca de seis meses. Durante esse tempo, os olhos do mundo se voltaram para a Ucrânia, e os destinos de milhões de pessoas, assim como da própria ordem mundial, nunca mais seriam os mesmos.

Do ponto de vista sistêmico, seis meses após o início da guerra, pela primeira vez em 30 anos o Ocidente, liderado pela Otan e sob a hegemonia dos EUA, está na defensiva. "A Parceria sem Limites" assinada por Rússia e China em 4 de fevereiro, e aprofundada desde então, evidencia não só os interesses e as implicações regionais do conflito, mas um cisma muito maior do ponto de vista da geopolítica e da geoeconomia do poder: a imposição de uma eurásia nesta nova ordem mundial policêntrica, pela força, da parte russa, e pela economia, da parte chinesa. Afinal, como escreveu Dostoiéski, "em tudo há uma linha além da qual é perigoso cruzar; pois uma vez que você a atravessa, é impossível voltar atrás".

Colaboradores

Pedro Donizete da Costa Júnior

Doutorando da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP), é autor de "O Poder Americano no Sistema Mundial Moderno: Colapso ou Mito do Colapso?" (ed. Appris)

Valdir da Silva Bezerra

Mestre em relações internacionais pela Universidade Estatal de São Petersburgo (Rússia), é membro do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais sobre Ásia (Nupri-Geasia) e do Grupo de Estudos sobre os Brics (Gebrics) da USP

28 de agosto de 2022

Vão golpear Lula?

Lula da Silva está liderando as pesquisas para as próximas eleições presidenciais do Brasil. Mas o titular de extrema-direita Jair Bolsonaro está ameaçando um golpe para manter o poder se perder a eleição.

Francisco Domingos


O candidato presidencial brasileiro e ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva discursa a apoiadores durante um comício de campanha em São Paulo, 20 de agosto de 2022. (Miguel SCHINCARIOL / AFP via Getty Images)

Tradução / Após quatro anos de governo Bolsonaro, os brasileiros irão eleger em um novo presidente em 2 de outubro de 2022. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva – atualmente em primeiro nas pesquisas – está enfrentando um oponente delirante, que ameaça tomar uma ação inconstitucional se ele perder.

A vitória de Bolsonaro veio dois anos após o golpe do impeachment na Dilma Rousseff (PT), em 2016, a primeira mulher a ser presidente do Brasil – e por 2 mandatos consecutivos, num cenário onde o PT estava no poder desde 2003.

O período 2010-16 foi dominado pela “crise de crédito” que colocou o mundo em uma profunda turbulência, com uma contração econômica generalizada, grande endividamento nas economias avançadas e uma redução considerável no consumo de matérias-primas. O Brasil foi atingido com força. Em 2015, o PIB havia caído 3%, a inflação era alta (10%), e a dívida pública subiu para 63% do PIB, tornando difícil para o governo manter suas políticas sociais de erradicação da pobreza.

A direita brasileira aproveitou a crise. Vários movimentos reacionário, como Movimento Brasil Livre (MBL) e Vem Pra Rua, desencadearam uma onda de protestos de rua, se alimentando da “investigação” Lava Jato que mirava a corrupção na Petrobras, uma das maiores petrolíferas estatais do mundo. Isso permitiu que a direita brasileira criasse uma atmosfera de instabilidade, na qual eles usariam tanto para destituir Dilma com falsas acusações de “pedaladas fiscais”, quanto para lançar um sentimento e perseguição antipetista através da grande mídia.

O governo interino de Michel Temer, aproveitando essa campanha inebriante, tomou medidas para reverter as políticas sociais do PT, congelando os gastos do Estado com saúde e educação por vinte anos.

O que o MBL começou não estaria completo sem a remoção de Lula como candidato a presidente em 2018. O juiz Sergio Moro foi encarregado de conduzir uma investigação visando condenar Lula por corrupção. Moro conseguiu isso depois de quatro anos, levando à prisão ilegal do ex-presidente por 580 dias – primeiro como prisão preventiva, seguida por uma sentença de nove anos de prisão em 2017, depois aumentada para doze anos em 2018, quando Lula recorreu. Moro empregou todos os truques sujos do arsenal do lawfare para prender Lula e contou com o total apoio do establishment brasileiro e da grande mídia nacional e mundial.

Fernando Haddad, o candidato à presidente do PT que substituiu Lula, tinha apenas três semanas para disputar a eleição presidencial de 2018. O clima generalizado antipetista criado após o impeachment de Dilma e a prisão de Lula, permitiu que empresários pró-Bolsonaro quebrassem todas as normas eleitorais e pagassem milhões de dólares para inundar as redes sociais com fake news retratando Haddad “como um monstro pervertido que recomendava a distribuição de mamadeiras de piroca para creches e ‘kits gays’ ensinando homossexualidade nas escolas”. Bolsonaro venceu no segundo turno com 55% dos votos.

Jair Bolsonaro descreveu a pandemia da COVID-19 como uma “gripezinha”, aconselhou as pessoas a não usarem máscaras (o que poderia causar pneumonia e morte, disse ele), e alegou que nas mulheres poderiam crescer barba e as pessoas poderiam se transformar em jacaré por conta do efeito colateral das vacinas. O Brasil registrou 34 milhões de casos e quase 700 mil mortes, um dos piores números do mundo.

As políticas econômicas de Bolsonaro, por sua vez, reduziram os investimentos com saúde, drasticamente, juntamente com os investimentos na educação. Entre 2019 e 2021, os gastos do Estado destinados às mulheres caíram 46%. Bolsonaro desmantelou proteções trabalhistas, congelou o salário mínimo e privatizou a empresa estatal de eletricidade que gera 30% da energia do país, como um prelúdio da privatização da Petrobras. Mais de uma centena de ativos estatais de energia também foram privatizados. Sob o governo Bolsonaro, o desmatamento da Amazônia brasileira atingiu um recorde no primeiro semestre de 2022 (3.885 km quadrados, 80% maior do que no mesmo período de 2018) e, em meados de 2022, estimava-se que 33 milhões de brasileiros estavam passando fome.

Por outro lado, durante os 13 anos de governo do PT, 30 milhões de brasileiros saíram da pobreza. Em 2015, os salários reais eram 78% mais altos do que a inflação acumulada desde 2002. Mais de 90% dos beneficiários do programa Bolsa Família, voltado para a erradicação da pobreza, eram mulheres — 68% delas eram mulheres negras — e o desemprego caiu para menos de 6%, o menor nível da história. Foram criadas 214 escolas técnicas e 18 universidades estaduais, com educação gratuita em todos os níveis disponível para milhões de estudantes, muitos dos quais receberam bolsas de estudo (51% deles eram mulheres). Cerca de 10,5 milhões de pessoas de baixa renda foram alojadas em 2,6 milhões de casas por meio do programa habitacional “Minha Casa, Minha Vida”, e os cuidados básicos de saúde atingiram 70% da população – outro recorde histórico.

A desastrosa gestão de Bolsonaro levou sua aprovação a cair drasticamente (para menos de 20% em novembro de 2021 ), agravada por ter que enfrentar uma disputa presidencial contra um Lula muito fortalecido, que foi totalmente absolvido em 2021, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), de todas as acusações de corrupção. A última pesquisa do Datafolha (22 de setembro de 2022) mostra Lula com 47% da intenção de voto contra 33% para Bolsonaro.

Em resposta, Bolsonaro e seus apoiadores enlouqueceram. Marcelo Arruda, militante do PT, foi assassinado – baleado três vezes – por um apoiador do Bolsonaro durante sua festa de 50 anos em 10 de julho. Um comício eleitoral do PT no Rio de Janeiro também foi interrompido pela explosão de uma bomba caseira. Desde então, Lula usa colete à prova de balas.

Bolsonaro emitiu mais de uma dúzia de decretos para promover o portar armas. Ele disse que o sistema de votação eletrônica do Brasil não é confiável e ameaçou não reconhecer os resultados ou ceder o poder, se perder, sugerindo uma versão brasileira do Capitólio. Pode-se imaginar o que ele fará se Lula vencer no primeiro turno.

As apostas são altas: Bolsonaro representa uma grave ameaça à cambaleante democracia brasileira. Figuras proeminentes na política, negócios, ciência e artes emitiram um manifesto para defender o Estado de direito e se opor ao seu “delírio autoritário”, que foi assinado por mais de um milhão de pessoas e endossado por mais de quinhentas entidades da sociedade civil. Associações privadas como a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e as principais federações sindicais emitiram uma declaração semelhante. Na Grã-Bretanha, os parlamentares assinaram uma moção especial denunciando as ameaças de Bolsonaro às eleições por querer promover violência política.
Diante dessa situação, devemos apoiar a luta pela defesa da democracia, que já foi prejudicada pelo golpe do impeachment de Dilma, pela prisão de Lula, e pelo cerceamento de direitos sociais, econômicos e políticos. Devemos redobrar nossa solidariedade, condenar e nos opor fortemente aos ataques do Bolsonaro.

Sobre o autor

Francisco Dominguez é chefe do Grupo de Pesquisa sobre América Latina da Middlesex University. Ele também é secretário nacional da Campanha de Solidariedade da Venezuela e coautor de Right-Wing Politics in the New Latin America (Zed, 2011).

Quando os liberais desistiram do progresso

Os liberais constantemente exortam os cidadãos a aceitarem decisões difíceis para proteger a economia capitalista. Isto não foi sempre assim.

Sean T. Byrnes

Jacobin

A sede do Fundo Monetário Internacional em Washington, DC. (Al Drago / Bloomberg vía Getty Images)

O artigo a seguir é uma resenha de The Triumph of Broken Promises: The End of the Cold War and the Rise of Neoliberalism, de Fritz Bartel (Harvard University Press, 2022).

Após a série de aumentos de taxas pelos bancos centrais em ambos os lados do Atlântico, a imprensa financeira estava repleta de artigos insistindo que, mesmo que fosse uma decisão difícil, o trabalho de qualquer banco central responsável era cancelar a festa e esfriar as economias superaquecidas dos países ocidentais. A linguagem da moderação e dos sacrifícios duros tornou-se tão parte integrante da política contemporânea que é difícil imaginar uma alternativa.

Durante grande parte do século passado, não foi assim. Os governos, tanto capitalistas quanto comunistas, derivavam sua legitimidade de sua capacidade de cumprir promessas de elevar o padrão de vida e a segurança de seus cidadãos. Este mundo agora parece firmemente superado; em seu lugar surgiu uma ordem social dirigida por tecnocratas sensatos que oferecem um curso interminável de pílulas amargas. Esse estado de coisas é o resultado de tendências de longo prazo que marcaram os Estados Unidos e o resto do mundo, como Fritz Bartel argumenta brilhantemente em The Triumph of Broken Promises: The End of the Cold War and the Rise of Neoliberalism.

O fim do milagre econômico

O livro de Bartel, que estuda as últimas décadas da Guerra Fria, detalha como a política energética e o capital privado desmantelaram tanto as democracias de bem estar do Ocidente do pós-guerra quanto as autocracias socialistas do Oriente. No processo, fornece o melhor relato estrutural até o momento do fim da Guerra Fria, da ascensão do neoliberalismo e da ascensão da atual ordem mundial. Elegante obra de análise histórica crítica, o livro é leitura essencial para quem quer construir um futuro melhor e mais justo, embora Bartel deixe ao leitor a responsabilidade de tirar suas próprias conclusões políticas.

Sua tese é aparentemente simples: o fim da Guerra Fria pode ser explicado por uma mudança da "política de fazer promessas" para a "política de quebrar promessas". Talvez exemplificado por excelência pelo infame "Debate da Cozinha" de 1959 entre o então vice-presidente Richard Nixon e o líder soviético Nikita Khrushchev, a primeira Guerra Fria foi uma competição de "fazer promessas". Tanto o mundo comunista quanto o capitalista prometeram entregar os benefícios da modernidade industrial a um número cada vez maior de seus cidadãos: o Ocidente por meio do capitalismo administrado pelo New Deal americano e a democracia cristã europeia, e o Oriente por meio de uma economia de comando socialista. Apesar das diferenças de método, cada um deles prometia a mesma coisa: cozinhas melhores, eletrodomésticos melhores, carros, comida etc.; em resumo, padrões de vida cada vez mais elevados.

Ambos também se opuseram aos modelos laissez-faire de capitalismo que foram vistos como a causa da Grande Depressão. E, mais importante, tanto o Oriente quanto o Ocidente também se beneficiaram de um período de crescimento econômico explosivo desencadeado pela recuperação da Segunda Guerra Mundial e pela disseminação generalizada da industrialização da segunda onda em todo o Norte Global.

Conhecidos por muitos nomes - "wirtschaftswunder" na Alemanha Ocidental, "trente gloriesuses" na França, "milagre econômico" no Japão - esses anos de crescimento espetacular sustentaram os contratos sociais de ambos os lados da Guerra Fria. Como Bartel coloca, os governos do Oriente e do Ocidente "foram capazes de prometer pelo menos a seus homens brancos uma vida melhor, e cumprir essa promessa quase tão rápido quanto esses homens podiam imaginar o que era uma vida melhor". Embora o Ocidente fosse certamente mais rico, o Oriente às vezes apresentava taxas de crescimento mais rápidas e, em geral, o tempo de fazer promessas era comparável em toda a divisão da Guerra Fria. Apesar de todas as suas falhas, cada modelo foi genuinamente bem-sucedido em trazer aumento de renda, pleno emprego e segurança no emprego para grandes grupos da população.

Cada um deles viu as fontes desse sucesso secarem mais ou menos ao mesmo tempo. No final da década de 1960 e início da década de 1970, o crescimento econômico no mundo industrializado começou a estagnar (as taxas estimulantes do pós-guerra nunca se recuperaram), apenas para ser prejudicada pelo aumento meteórico dos preços do petróleo após a guerra árabe-israelense de 1973. O surgimento da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) marcou o fim da era da energia barata e, para Bartel, o início de uma nova era, a de "promessas quebradas".

Sobrecarregados com economias industriais estagnadas e intensivas em energia e pactos sociais baseados no crescimento, tanto o Oriente quanto o Ocidente foram confrontados com a necessidade de uma dolorosa transição econômica para alguma estrutura socioeconômica alternativa. Ficou claro que as promessas teriam de ser quebradas - a questão de quais, e para quem, permanecia.

A chave para determinar a resposta, argumenta Bartel, foram os dois mercados transformados e fortalecidos pela crise energética dos anos 1970: petróleo e capital. No caso deste último, as receitas do petróleo do Oriente Médio aumentaram as bolsas de capital offshore pouco regulamentadas - conhecidas como "Euromercados" - que atraíram quantidades cada vez maiores do excesso de riqueza privada mundial (aumentando de pouco menos de duzentos bilhões de dólares em 1973 para mais de nove cem bilhões em 1984), oferecendo taxas de retorno mais altas do que as participações domésticas mais regulamentadas.

Para ter acesso a essa riqueza, porém, era preciso mostrar a seus administradores que eles podiam esperar uma taxa regular de retorno de seus investimentos, ou seja, que podiam esperar exportações de capital dos países devedores. Isso exigia impor o que Bartel chama de "disciplina econômica", ou como é mais conhecido hoje: austeridade. O capital gasto em aumento de salários, investimento público e manutenção de empregos é capital não disponível para exportação regular a uma taxa fixa.

Uma corrida para quebrar o contrato social

Al principio, parecía que el Este estaba haciendo un trabajo mucho mejor para manejar estos desafíos. La Unión Soviética pudo beneficiarse de décadas de inversión en su industria petrolera para proporcionar a los aliados de Europa del Este suministros de combustible subvencionados, todo ello mientras ganaba divisas a través de las ventas de petróleo en el mercado mundial. Mientras tanto, el bloque comunista resultaba bastante atractivo para los banqueros occidentales: los gobiernos autoritarios parecían mejor posicionados para imponer la disciplina económica que sus oponentes democráticos.

¿Qué gobierno democrático, según el argumento, estaría dispuesto a imponer el dolor económico a sus propios electores? «Nuestra situación», dijo con suficiencia el primer ministro soviético Alexei Kosygin a su homólogo de Alemania Oriental en 1976, «es mil veces mejor». Los gobiernos occidentales, que en un principio no estaban dispuestos a imponer la austeridad ni al trabajo ni al capital, observaron cómo la estanflación desgarraba los cimientos de sus sociedades y el capital fluía hacia las arcas de Europa del Este, «financiando el socialismo real existente», escribe Bartel, «a crédito».

Sin embargo, a largo plazo, los regímenes democráticos eran más adecuados para imponer la disciplina económica que requerían los mercados de capitales. Aunque el Occidente de la posguerra había hecho muchas de las mismas promesas que en el bloque soviético, el cumplimiento de estas promesas no era la base de la legitimidad de los gobiernos no comunistas. Por el contrario, los políticos occidentales —empezando por Margaret Thatcher— pudieron emplear una versión sobrecargada de la ideología liberal preexistente, para comercializar la austeridad como una renovación de la «libertad», y mantener así la legitimidad de su sistema.

Mientras que Thatcher abrió la puerta al retorno de la ortodoxia económica, el presidente de la Reserva Federal de Estados Unidos, Paul Volcker, la abrió de una patada. Al elevar los tipos de interés a niveles astronómicos, resolvió la batalla entre el trabajo y el capital sobre quién llevaría el peso de la transición económica. «El capital», como describe Bartel, «recuperó totalmente la ventaja sobre el trabajo, los salarios cayeron permanentemente por detrás del crecimiento de la productividad y la desigualdad regresó dramáticamente». El crecimiento económico volvió a Europa Occidental y a Estados Unidos, pero a costa de las clases medias y trabajadoras.

Y, como se vio, a expensas del bloque soviético. Como los altos tipos de interés y los enormes déficits presupuestarios del presidente Ronald Reagan, impulsados por la defensa, atrajeron cantidades impresionantes de capital hacia Estados Unidos, dejaron poco dinero disponible para otros prestatarios. Incapaz de imponer la austeridad sin socavar los fundamentos ideológicos del proyecto comunista, con una creciente denegación de acceso a los mercados de capitales occidentales y enfrentándose a la disminución de las entregas de petróleo soviético, el bloque oriental se afrontó la perspectiva de la suspensión de pagos y a un precipitado descenso del nivel de vida de sus ciudadanos, ya de por sí escaso (en comparación con Occidente).

Algunos acudieron a los gobiernos de Europa Occidental en busca de ayuda, otros al Fondo Monetario Internacional, dominado por Estados Unidos, y cada paso aumentó la influencia del lado capitalista de la Guerra Fría. El bloque del Este acabó deshaciéndose bajo la presión. La URSS, más rica pero apenas mejor posicionada, no tardó en seguirle.

Es imposible transmitir aquí la convincente profundidad y amplitud del modelo de Bartel de las dos últimas décadas de la Guerra Fría: no solo proporciona una poderosa explicación del final del conflicto y la llegada del neoliberalismo, sino que también ofrece muchas intervenciones esclarecedoras en los debates historiográficos sobre la época. Esto no quiere decir que The Triumph of Broken Promises sea exhaustivo; como ocurre con muchos relatos estructurales del pasado, es fácil perder de vista la contingencia y dónde pueden haber surgido caminos alternativos al presente.

Bartel reconoce esto, e incluso señala alternativas de pasada —como la forma en que la Guerra de Malvinas debilitó a la oposición en la Gran Bretaña de Thatcher—, pero los contrafactuales no son su objetivo. El público haría bien en combinar el libro con una de las excelentes y más narrativas historias recientes de la era neoliberal, como The Rise and Fall of the Neoliberal Order, de Gary Gerstle, o Reaganland, de Rick Perlstein, para construir una imagen más completa de estas décadas críticas.

Historicizando a austeridade

En este sentido, aunque el libro describe hábilmente los procesos que transformaron el mundo y la economía global entre 1973 y 1991, se dedica poco tiempo a explicar cómo surgieron las condiciones estructurales iniciales que impulsaron el final de la Guerra Fría. Se prescinde de estos antecedentes en unas pocas frases. Tampoco se ocupa de cómo se aseguró la hegemonía neoliberal en la década de 1990.

En general, la política del libro es más implícita que explícita: el análisis es crítico en todo el sentido de la palabra, pero se centra en destacar los procesos, no en proponer alternativas. Esto no es un defecto, The Triumph of Broken Promises es inequívocamente más fuerte por su ajustado enfoque. Sin embargo, obliga al lector a situar el libro en un marco más amplio que el propio.

Uno de esos marcos es la historia económica más larga de una economía mundial capitalista cada vez más integrada, que, en la década de 1970, estableció los términos globales en los que se tomaban las decisiones económicas, incluso en los países socialistas. Desde este punto de vista, el libro de Bartel cuenta la historia de otro capítulo de la larga batalla entre el capital y el trabajo, cuando los intereses financieros hicieron retroceder las ganancias que los trabajadores habían conseguido tras la Gran Depresión.

Fueron, decididamente, los trabajadores y el trabajo organizado los que llevaron el peso de los cambios que describe Bartel, alimentando la explosiva desigualdad de principios del siglo XXI. Para construir un mundo más justo, es necesario revertir este proceso, y no se puede exagerar la importancia de restaurar el trabajo organizado para hacerlo (el libro de Gerstle, por ejemplo, hace un gran trabajo enfatizando cómo los momentos más igualitarios del New Deal fueron impulsados por acciones específicas y dramáticas de los sindicatos estadounidenses).

Además, en una época en la que ha vuelto la alta inflación, y en la que los ejecutivos del Bank of America son sorprendidos en prensa deseando una disminución del poder de negociación de los trabajadores, las políticas antinflacionistas que emanan de Washington deberían ser tratadas, aunque sea, con un profundo escepticismo.

Otro relato más amplio en el que se podría situar el libro de Bartel es la historia medioambiental y social de los últimos trescientos años. Se trata de los problemas planteados por la humanidad industrial que ha llegado a los límites de lo que puede arrancar del planeta para garantizar la continuidad de los modelos de consumo capitalistas occidentales, un problema que se ha agudizado con la descolonización y la destrucción de las lógicas del dominio imperial.

Éstas habían negado injustamente al Sur Global el derecho o la capacidad de alcanzar la modernidad capitalista, pero su eliminación no ha abierto ningún camino verdadero para un homo consumptor globalizado. En cambio, está cada vez más claro que el planeta simplemente no puede proporcionar lo suficiente para que todos utilicen los recursos a este nivel, distribuidos equitativamente o no. La crisis del petróleo de los años 70 fue solo el primer aviso de que las cuentas de la humanidad empezaban a estar sobredimensionadas: le seguirán las batallas por otros productos esenciales, aunque cada vez menos, no renovables.

Al situar el libro de Bartel en este contexto más amplio, nos damos cuenta de que, incluso con una mayor justicia e igualdad, un futuro mejor requiere un cambio fundamental en la forma en que se ha conceptualizado la «buena vida» en la modernidad.

Colaborador

Escritor, professor e historiador americano. Ele é o autor de "Disunited Nations: US Foreign Policy, Anti-Americanism, and the Rise of the New Right" (LSU Press).

27 de agosto de 2022

Chile esquenta clima para plebiscito de nova Constituição com manifestações

Pesquisas indicam rejeição da proposta, e governo de Gabriel Boric já trabalha em plano B

Sylvia Colombo


Chilenos participam de protesto em apoio à nova Constituição do país - Martin Bernetti - 20.ago.22/AFP

A uma semana da votação em que os chilenos decidirão se aprovam ou rejeitam a nova Constituição, as ruas das principais cidades do país tornaram-se palco de manifestações. São esperados 15 milhões de votos no plebiscito, no qual a participação é obrigatória.

Com a população dividida —porém inclinada a votar contra a proposta, segundo as pesquisas mais recentes—, o que se vê nos atos são grupos focados em discutir questões pontuais do novo texto. Nos últimos dias, por exemplo, milhares foram às ruas de Santiago pedindo o "sim" para a Carta pela garantia de acesso à habitação.

Foram realizadas marchas de mulheres defendendo os artigos da nova Constituição que preveem acesso ao aborto e a paridade de gênero na administração pública. Estudantes e indígenas se organizaram em passeatas em apoio à cláusula que define o Chile como um Estado plurinacional e intercultural e reconhece a soberania das nações indígenas —os povos nativos correspondem a 12% da população, mas nem sequer são mencionados na Constituição vigente, herdada da ditadura de Augusto Pinochet.

Grupos de ambientalistas se manifestaram andando de bicicleta, e muitos portavam bandeiras defendendo a aprovação do texto, com reivindicações de pautas ecológicas e símbolos dos mapuches, o grupo indígena mais numeroso do país. A redação da nova Carta preconiza que "a natureza tem direitos" e que "o Estado e a sociedade têm o dever de protegê-los e respeitá-los".

Os que afirmam rejeitar a proposta também fazem campanha nas ruas do Chile. Em Puente Alto, um dos bairros mais pobres de Santiago, um grupo de mulheres carregou faixas em que se liam frases contra o texto.

"Nossa vontade não está expressa na Carta", afirma Marcela Sepúlveda, líder da Corporação de Mulheres e das Tradições Chilenas. "Não aprovamos as novas leis de gênero e queremos deixar isso claro, queremos nossas tradições respeitadas."

O texto que pode se tornar a nova Constituição também encontra forte oposição no sul do país, onde há conflitos violentos entre grupos mapuches e proprietários de terra. As marchas na região marcam posição contra artigos relacionados à soberania indígena, acesso à educação nos idiomas originários e a Justiça indígena, que permitiria a grupos nativos manter sistemas jurídicos ligados a tradição ancestral de cada tribo —modelo semelhante ao adotado na Bolívia, por exemplo.

Para a cientista política Claudia Heiss, há um descompasso entre o "sim" e o "não" no que tange à maneira como essas pautas são apresentadas à opinião pública.

"A campanha pela aprovação carece de verbas, há poucas doações e pouca propaganda pública, mas isso está sendo compensado pelas manifestações nas ruas, pela ação de organizações civis e estudantis, que estão promovendo eventos culturais e de conscientização." Já o movimento pela rejeição, segundo Heiss, conta com forte apelo de propaganda nas ruas e nos meios de comunicação.

Esse pode ser um dos fatores que explicam a mudança nas intenções de voto nos últimos meses. Em janeiro, 56% dos chilenos diziam que votariam a favor da nova Carta, ante 33% que votariam contra, de acordo com pesquisa do instituto Cadem. A diferença foi diminuindo e, desde abril, o cenário se inverteu, com o "não" em vantagem sobre o "sim" —o último levantamento permitido pela legislação eleitoral aponta 46% contra, 37% a favor e 17% indecisos.

Há nuances, porém, de ambos os lados. Entre os eleitores que querem enterrar de vez a Constituição da era Pinochet, há grupos defendendo que, depois da promulgação do novo texto, alguns pontos sejam reformados. Movimento semelhante se dá também no outro campo: parte dos que devem votar pela rejeição não se opõe a todas as cláusulas, de modo que há uma intersecção entre os dois extremos.

"A rejeição deve ganhar, não para que se enterre todo o esforço, mas para que voltem a ser debatidos temas que foram colocados no texto às pressas, quase como um rascunho", diz Carol Brown, legisladora que pertence ao partido de direita UDI.

O governo do esquerdista Gabriel Boric, que se posiciona a favor da proposta, foi forçado a pensar em um plano B diante da potencial rejeição. Uma vez que a Constituição atualmente em vigor já foi reprovada no plebiscito de 2020, o mandatário afirma que há espaço para negociar uma nova redação do texto —movimento que já recebeu o aval dos principais partidos da direita chilena.

Quem vem explicando como será o plano é o secretário da Presidência, Giorgio Jackson. "Teremos de chegar a um consenso, por meio do Congresso, para estabelecer o mecanismo para a renegociação dos artigos que causam rejeição, além de um novo sistema de aprovação. Haverá ajustes necessários que devem ser debatidos e aprovados pelas vias institucionais", afirmou.

Campanha de Lula tem bate-cabeça para acertar tom com evangélicos

PT prefere martelar agenda econômica, mas tema religioso acaba voltando ao debate

Anna Virginia Balloussier
Catia Seabra
Victoria Azevedo


O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) durante comício com apoiadores em São Paulo - Marlene Bergamo-20.ago.2022/Folhapress

Se você digitasse no Google "Lula vai fechar igrejas", o primeiro link que aparecia neste sábado (27) era um anúncio pago do PT. "A verdade é que Lula é cristão — Lula não vai fechar as igrejas", dizia a chamada para o site da campanha do ex-presidente.

A preocupação em desmontar a fake news que mais tem ganhado tração nas igrejas evangélicas, déjà vu de um boato que rondou o petista em 1989, coloca na berlinda um tema espinhoso no partido: como dialogar com os evangélicos nesta eleição?

Nos bastidores, petistas admitem certo clima de barata-voa. Ainda não há fórmula eficaz para deter o avanço do presidente Jair Bolsonaro (PL) sobre o grupo. A campanha está tentando baixar a temperatura do debate religioso, e líderes do PT chegaram, inclusive, a aconselhar que o ex-presidente não aborde esse tema em discursos.

Não que ele escute sempre. Um exemplo é sua fala no comício no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, que desagradou ao comando da campanha.

O petista disse que, quando quer conversar com Deus, não precisa "de padres ou de pastores", declaração agora usada contra ele por líderes bolsonaristas. Correligionários acham que Lula deveria ter defendido o Estado laico e parado por aí.

O QG lulista prefere focar na economia e remover a fé do tablado eleitoral, mas ela continua lá. Redes sociais do candidato destacaram no sábado que ele assinou a Lei da Liberdade Religiosa no primeiro ano de seu mandato, e em 2009 sancionou a lei que criou o Dia Nacional da Marcha para Jesus.

Lula ainda evocou Deus na estreia de sua propaganda eleitoral no rádio, pedindo que Ele "ilumine esta nação e nos ajude a reconstruir o Brasil".

Para parte de sua equipe, melhor seria se o petista se esquivasse da arapuca bolsonarista e não reagisse a cada provocação, deixando a agenda moral em segundo plano.

O argumento: o eleitor evangélico também sofre com a carestia, o desemprego, e precisa ser relembrado de que se vivia melhor sob o governo Lula.

Não há, contudo, confiança de que só bater na tecla econômica vá bastar. Aliados batem cabeça aqui, sem saber se vale a pena reativar canais com pastores que, no passado, ficaram ao lado do PT, mas hoje dizem abominar o partido.

O nome do bispo Samuel Ferreira, da Assembleia de Deus Madureira, foi citado em reunião do conselho político da campanha, no mês passado. Ele, que a princípio marcha com Bolsonaro em 2022, teria interesse em conversar.

Lula ainda avalia se o encontro não teria justamente o efeito que tenta evitar, de trazer o tema religioso para o centro da disputa.

Alguém sugeriu que a interlocução ficasse a cargo de Geraldo Alckmin (PSB), vice de Lula apoiado, nos tempos tucanos, por vários pastores que hoje orbitam o bolsonarismo. Alckmin disse que colaboraria, mas que não teria condições de coordenar essas articulações. Lembrou que era católico.

Segundo um integrante da cúpula petista, não existe uma pessoa em especial escalada para fazer a ponte com evangélicos. Há ações pulverizadas, como a criação de perfis virtuais endereçados ao segmento, nenhum deles com engajamento relevante por ora.

Há ainda vídeos em que Lula pede que o eleitor "não se deixe levar por falsos profetas" e crava: "Quem acredita em Deus não precisa ficar falando toda hora".

Mas a máquina bolsonarista não tem a menor intenção de tirar Deus da reta eleitoral.

Foi-se o tempo em que evangélicos eram tidos como trocado eleitoral. Essa fatia populacional já responde por 1 em cada 4 votos e dá a Bolsonaro 17 pontos de vantagem nesse segmento no primeiro turno sobre o petista, segundo pesquisa Datafolha.

Mesmo no eleitorado mais pobre, onde lidera com folga no quadro geral, o petista consegue no máximo um empate técnico com Bolsonaro entre os adeptos dessa fé.

Lula não tem muitos evangélicos em seu entorno, o que atravanca a comunicação com esse eleitorado. O deputado André Janones (Avante-MG) entra na cota da exceção.

Ex-presidenciável que saiu do páreo para ajudar o petista, com destaque nas redes sociais, ele se converteu em 2016. Sua igreja, a Batista da Lagoinha, já recebeu três Bolsonaros em púlpito só neste ano: Jair, Michelle e Eduardo.

Janones, portanto, tem o conhecimento de causa que falta à maioria do núcleo duro lulista. E engrossa a turma dos que preferem que Lula não seja tragado para pelejas religiosas. A melhor estratégia na internet, diz, "é não responder nada, porque o algoritmo não sabe se você fala bem ou mal, só sabe que você está falando desse assunto".

Quando você entra na pilha do seu adversário —ainda que para desmentir que Lula vai fechar igrejas—, colabora para que a pauta moral continue em evidência nas redes. Exatamente o que o bolsonarismo deseja. Lula tem que pautar Bolsonaro, e não ser pautado por ele, afirma.

O deputado dá como exemplo a live que fez com o ex-presidente na véspera do Dia dos Pais. O petista prometeu ali continuar com o auxílio de R$ 600 caso vença, e foi esse trunfo econômico, segundo Janones, que dominou as redes —isso no mesmo dia em que Bolsonaro se juntou aos pastores Silas Malafaia e Cláudio Duarte na Marcha para Jesus carioca.

A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, também acha cilada enveredar pelo discurso religioso. "Isso seria até desrespeitoso da nossa parte, se a gente entrasse nessa pauta do Bolsonaro de discutir o valor e a crença das pessoas."

Tanto Gleisi quanto Janones, contudo, compartilharam a montagem de alta carga proselitista que, entre uma foto em preto e branco do presidente e outra iluminada do seu oponente, diz: "Bolsonaro usa Deus, Deus usa Lula!".

A imagem teve recepção interna cautelosa. Além de arrastar a religião de volta para o debate, tudo o que a campanha não quer, há o temor que soe inautêntico entre evangélicos.

A deputada Benedita da Silva é o quadro mais histórico do PT no segmento. Não raramente dirigentes petistas empurram a discussão para seu colo, justificando que quem tem "lugar de fala" é ela.

A presbiteriana Benedita não circula tanto pelo meio pentecostal, que alavanca a popularidade de Bolsonaro nos templos. Ela define o bolsonarismo como "uma seita, e com seita não tem diálogo", e não acredita que é preciso dar tratamento diferenciado para o voto evangélico.

Gosta da agenda econômica. "Na igreja tem muitos pobres", diz. "Tem muita gente que não compra gás nem come carne há muito tempo."

Soaria forçado, segundo a deputada, se Lula adotasse um palavrório evangelizador a essa altura do campeonato. "Ele vai falar de religião, discutir gênese e apocalipse? Ele não é teólogo."

Benedita sugere que o ex-presidente reforce como sua gestão tratou os mesmos evangélicos que hoje lhe viram as costas.

"O homem ficou oito anos governando e não fechou uma igreja. Será que o mal que ele fez foi sancionar a [Lei da] Marcha para Jesus, ou levar o Bolsa Família, para muitos evangélicos que precisavam?"

"Não vamos usar os mesmos métodos bolsonaristas nem cair na armadilha da guerra santa entre o bem e o mal", diz o pastor presbiteriano Luis Sabanay, da coordenação nacional do Núcleo de Evangélicos do PT.

Há, contudo, dúvidas sobre o alcance dessas iniciativas evangélicas que partem da legenda e de aliados da esquerda. Haveria vícios de militância em alguns casos, ou mesmo linguajar progressista sem eco nas igrejas. Como falar em "desgoverno fascista" em atos voltados a religiosos.

O pastor Paulo Marcelo Schallenberger é um dos que critica a falta de um projeto mais focado nos evangélicos. Ele vem do Gideões Missionários da Última Hora, congresso pentecostal que projetou vozes como a do deputado Marco Feliciano, seu amigo.

Em fevereiro, a Folha o acompanhou numa reunião na sede nacional do PT. Dois meses antes, ele se encontrou com Lula. Combinaram que ajudaria na campanha. Veio a ideia de fazer um podcast voltado a evangélicos, que nunca foi para frente.

Candidato a deputado pelo Solidariedade, partido na coligação lulista, sua presença gerou ruído no PT. Há quem questione se sua influência entre pentecostais é tão relevante quanto dá a entender.

Fato é que ele tem sido escanteado, e propostas que tenta colocar de pé, como levar Lula a um culto pentecostal, ainda não prosperaram.

O pessimismo brutal de Michel Houellebecq

O autor francês Michel Houellebecq é um dos críticos mais virulentos e petulantes do século XX. Suas afinidades com a Direita são claras, mas, como romancista, ele merece ser lido.

Ryan Napier


Michel Houellebecq apresenta Existence à basse altitude durante o festival de música Printemps de Bourges, 20 de abril de 2022. (Guillaume Souvant / AFP via Getty Images)

Resenha de Intervenções por Michel Houellebecq (Polity, 2022)

“Não acordaremos, após o lockdown, em um novo mundo”, escreveu o romancista francês Michel Houellebecq em maio de 2020; “será o mesmo mundo, mas um pouco pior.” Essa ideia – a mesma, mas pior – resume o famoso pessimismo de Houellebecq. Vencedor do Prix Goncourt e da Legião de Honra, Houellebecq é um dos escritores mais proeminentes e contenciosos da França, conhecido por romances satíricos, como As partículas Elementares, que registram seu desgosto com a alienação e o vazio espiritual da vida moderna. “Sou o escritor de uma era niilista e do sofrimento associado ao niilismo”, diz Houellebecq no recém-publicado Intervenções, uma coleção de ensaios, entrevistas e outras não-ficções, traduzidas para o inglês por Andrew Brown.

No início de sua carreira, Houellebecq foi frequentemente associado à esquerda por sua crítica implacável ao individualismo neoliberal, mas desde a virada do século, ele se tornou uma figura mais ambígua. Em 2002, um tribunal francês acusou Houellebecq de incitar o ódio religioso e racial depois que ele chamou o Islã de “estúpido” e o Alcorão de “mal escrito” (ele foi absolvido). Mais polêmica veio, em 2015, com a publicação de Submissão, sobre um partido político muçulmano transformando a França em um estado islâmico. Os escritos e declarações recentes de Houellebecq (incluindo seus pontos de vista sobre as mulheres) levaram a algumas críticas da esquerda. “De um jovem escritor altamente lúcido sobre a sociedade, Houellebecq tornou-se uma espécie de tio velho rabugento completamente sobrecarregado por seu tempo”, proclamou Les Inrockuptibles, a revista de esquerda que originalmente publicou alguns dos textos que aparecem em Interventions 2020.

Outros foram mais longe, vendo Houellebecq como um “profeta da extrema direita” nos moldes de Steve Bannon e Tucker Carlson. Embora alguns de seus comentários sejam certamente – para usar seu próprio termo – “estúpidos”, Houellebecq não é tão fácil de classificar como reacionário ou excêntrico, como mostra esta nova coleção. Intervenções 2020 é um livro desigual que, no entanto, concretiza nossa concepção de um grande escritor contemporâneo, complicando a imagem de Houellebecq como um direitista e iluminando a visão pessimista no coração de sua obra.

Intervenções reúne uma variedade de textos – ensaios, cartas, prefácios, entrevistas, até mesmo o roteiro de uma instalação de arte contemporânea – criados entre 1992 e 2020. Assemelha-se a uma coleção de lados B e outtakes em vez de um todo coerente. Os momentos mais reveladores do livro estão nas entrevistas e nas conversas transcritas, onde Houellebecq se beneficia de ter um parceiro para desenvolvê-lo. Ele não é um daqueles romancistas, como George Orwell ou Virginia Woolf, cujo talento se presta a argumentos precisos e lúcidos; os ensaios neste volume tendem a ser dispersos e impressionistas. Isso pode ser encantador, como em sua breve apreciação de Neil Young (“É tão bom, às vezes, ouvir um homem reclamar humildemente, com uma vozinha triste, por ter sido abandonado por uma mulher”). Mais frequentemente, no entanto, os ensaios encontram Houellebecq fazendo gestos exagerados em vez de argumentos. “Leaving the Twentieth Century”, por exemplo, ataca a literatura “comprometida” de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, esclarecendo as próprias ideias de Houellebecq ao repreender seus predecessores, à la critica de Woolf aos eduardianos em "Mr. Bennett e a Sra. Brown". Mas enquanto Woolf analisa cuidadosamente os limites da geração anterior, Houellebecq oferece uma hipérbole petulante: o século XX, diz ele, foi um “século de merda, que não inventou nada... intelectualmente falando, nada restaria da segunda metade do século XX se não fosse a ficção científica”.

Muitos dos textos dizem respeito à política, e as afinidades de Houellebecq com a direita são claras: ele reclama da “escória esquerdista” e expressa elogios qualificados ao comentarista e político reacionário Éric Zemmour. Mas como um todo, Intervenções mostra que Houellebecq não se encaixa facilmente em nenhum quadro ideológico específico. Ele fala com carinho do passado católico, mas também do comunismo: “Não foi ruim. Não era uma forma de anomia, era bastante alegre. Se eu gostasse de nostalgia, sentiria falta.” Enquanto ele considera as feministas “estúpidas amáveis”, ele escreve com apreço sobre Valerie Solanas, autora do SCUM Manifesto, que pediu, entre outras coisas, a eliminação dos homens; Solanas, diz Houellebecq, "estava praticamente sozinha em sua geração a ter a coragem de manter uma atitude progressista e racional, de acordo com as mais nobres aspirações do projeto ocidental... isto é, para estabelecer o reino universal do amor".

As reformas políticas que Houellebecq expõe em uma entrevista – abolir o parlamento francês, decidir o orçamento por meio de uma pesquisa enviada a todos os cidadãos, eleger um presidente vitalício, mas poder destituí-lo por referendo – têm mais em comum com a antipolítica do Movimento Cinco Estrelas ou dos Partidos Piratas do que qualquer coisa da esquerda ou direita tradicional. Mesmo um dos ensaios mais provocativos, “Donald Trump é um bom presidente”, não é tão direto quanto o título; Trump é um bom presidente, afirma Houellebecq, em parte porque sua eleição sinaliza o declínio da hegemonia do livre comércio e o declínio das ambições imperiais dos Estados Unidos: “Os americanos estão desistindo de nós. Os americanos estão nos deixando em paz.”

Sua idiossincrasia é mais aparente quando Houellebecq tem um interlocutor conservador, como Geoffroy Lejeune, editor da revista de direita Valeurs actuelles. Enquanto Lejeune profere ortodoxias sobre os perigos da descristianização e do relativismo, Houellebecq argumenta que a Igreja “deve limitar suas intervenções em áreas que não estão diretamente dentro de sua alçada”, incluindo “pesquisa científica, governo dos estados [e] amor humano”. “Admito que sinto um verdadeiro constrangimento”, diz ele, “quando ouço diferentes prelados protestando contra o uso de preservativos, AIDS ou não; em nome dos céus, isso é da porra da conta deles?”

Fúria autoral

Houellebecq, então, não pode ser simplesmente representado como uma figura da direita. Seus romances às vezes caem em uma crítica de direita ao neoliberalismo, mas também contêm um diagnóstico mais penetrante da atomização contemporânea.

Os melhores momentos de Intervenções encontram Houellebecq refletindo sobre a visão política que alimenta sua ficção. No centro dessa visão está a raiva contra os efeitos degradantes do neoliberalismo: “Vivemos não apenas em uma economia de mercado”, escreve Houellebecq, “mas, de maneira mais geral, em uma sociedade de mercado, ou seja, um espaço de civilização onde todos as relações humanas e, da mesma forma, todas as relações humanas com o mundo, são mediadas por um simples cálculo numérico”.

É claro que Houellebecq não é único em seu ódio à cultura de mercado. Até mesmo partes da direita americana começaram a se voltar contra o capitalismo, já que o veem dissolvendo “valores tradicionais”. (Eles estão apenas um século e meio atrasados ​​em chegar a essa percepção: “Todas as relações fixas e congeladas, com sua série de preconceitos e opiniões antigas e veneráveis, são varridas” pelo capitalismo, escreveram Karl Marx e Friedrich Engels em 1848.) Os “conservadores nacionais” – e os anticapitalistas de direita em geral – odeiam o mercado porque ele mina formas familiares de hierarquia e domínio; sua solução geralmente é reafirmar essas formas de hierarquia e domínio sem tocar nas realidades econômicas determinantes abaixo delas, levando a regimes extravagantes como a Hungria de Viktor Orbán, que cobrem a mesma velha exploração e anomia com um verniz de conservadorismo cultural.

Houellebecq ocasionalmente se desvia para esse tipo de anticapitalismo conservador e fácil. Por exemplo, como argumentou Carole Sweeney, a crítica de Houellebecq ao feminismo geralmente depende de estereótipos preguiçosos sobre a feminilidade; ele ataca o neoliberalismo por destruir essas características supostamente essenciais e romantiza as mulheres que mantêm sua feminilidade “natural”. Não é coincidência que o tratamento das mulheres por Houellebecq seja uma das partes mais fracas de sua ficção. Suas personagens femininas são tipicamente limitadas e clichês – por exemplo, as trabalhadoras do sexo tailandesas inocentes e submissas em Plataforma que incorporam, como diz Sweeney, a feminilidade “natural” que as mulheres ocidentais perderam. Nesse aspecto de seu trabalho, Houellebecq deixa a voz do conservadorismo cultural tomar conta, lamentando a destruição das hierarquias naturais pelo capitalismo sem questionar o quanto dessa natureza é em si produto da dominação – “a cicatriz”, como Adorno a chama, "da mutilação social".

Muitas vezes, porém, Houellebecq tem uma visão mais convincente de como o capitalismo estrutura a vida social. O que distingue seu trabalho, em sua forma mais forte, é o senso das forças do mercado como totalizantes, tudo-controladoras. Não há como viver decentemente nessas condições, reconhece. “O Ocidente não foi feito para uma vida humana”, diz Houellebecq. “Na verdade, há apenas uma coisa que você pode realmente fazer no Ocidente, e isso é ganhar dinheiro.”

Um dos heróis literários de Houellebecq é Honoré de Balzac. Ambos os escritores são realistas dedicados, como disse Engels sobre Balzac, “a reprodução fiel de personagens típicos em circunstâncias típicas”, particularmente em circunstâncias materiais. Esta é a fonte do pessimismo de Houellebecq: enquanto Balzac observava a ascensão do capitalismo, Houellebecq escreve na era de seu domínio total. Embora tenha começado a publicar poesia e ensaios em meados da década de 1980, Houellebecq não publicou seu primeiro romance, Extension du domaine de la lutte, até 1994 – é como se sua visão ficcional não pudesse começar até o fim da história.

Esse pessimismo economicamente determinado impede que a ficção de Houellebecq abrace totalmente a fantasia reacionária – ou realmente qualquer política. Nas entrevistas em Intervenções, Houellebecq expressa alguma simpatia pelo ideal reacionário de um retorno à monarquia católica, mas diz que “há poucas chances de essa estrutura ser recriada”. O reacionário acredita que um passado idealizado e hierárquico pode ser restaurado; Houellebecq rejeita totalmente a possibilidade de mudança.

Esse pessimismo é a chave para seu livro mais controverso e incompreendido, Submissão, que imagina um partido islâmico vencendo as eleições presidenciais francesas de 2022. Embora indubitavelmente islamofóbico em seu enquadramento, Submissão não é ao estilo de O Campo dos Santos alertando contra a “Eurábia” que alguns pensavam que fosse. “Você não pode realmente dizer que há uma representação do Islã em Submissão”, diz Houellebecq em Intervenção. “Isso é o que é tão terrível sobre este livro, a maioria dos personagens não são realmente muçulmanos. ... Mesmo o presidente muçulmano - não achamos que ele seja muito piedoso. ... Ele é um homem ambicioso que usou o Islã como uma tática.” O partido islâmico de Submissão é muçulmano apenas de nome, operando sob a mesma lógica de mercado dos partidos seculares que o precederam: Mohammed Ben Abbes, o presidente muçulmano, tem o cuidado de adotar uma “linha moderada” e evitar a “esquerda anticapitalista”, embarcando em vez disso, em um programa de austeridade e privatização semelhante ao de Macron. “Ele entendeu”, diz o narrador do romance, “que a direita pró-crescimento havia vencido a 'guerra de ideias', que os jovens de hoje se tornaram empreendedores e que ninguém via alternativa ao livre mercado”. Por trás da mudança aparentemente importante, insiste Houellebecq, está simplesmente mais do mesmo: a máquina geradora de miséria no coração da sociedade permanece intocada. Como Orbán e seus imitadores, o partido islâmico de Submissão é apenas um neoliberalismo com uma face diferente. Em outras palavras, nem o ideal dos reacionários (um renascimento dos valores tradicionais) nem seu pesadelo (uma tomada muçulmana) podem superar a anomia individualista da sociedade de mercado.

Uma arte do negativo?

Houellebecq não é menos crítico do liberalismo utópico que se tornou dominante na década de 1960, que buscava minar o capitalismo liberando o indivíduo para perseguir seus desejos. "Estamos mergulhando na 'água gelada do cálculo egoísta' desde a nossa infância", escreve Houellebecq em Intervenções, citando O Manifesto Comunista. “Podemos conviver com esta situação, podemos tentar sobreviver; também podemos nos deixar afundar. Mas o que é impossível de imaginar é que liberar apenas os poderes do desejo provavelmente derreterá o gelo.”

Se o mundo não pode ser mudado, pelo menos pode ser recusado; isso, diz Houellebecq, é o ponto da ficção – “a rejeição radical do mundo como ele é”. Várias vezes em Intervenções, os entrevistadores pressionam Houellebecq por uma alternativa ou solução, mas ele insiste que o objetivo de seus romances é incorporar pura negatividade:

Escrever envolve tomar para si o negativo, todo o negativo do mundo, e descrevê-lo, de modo que o leitor possa se sentir aliviado por ter visto essa parte negativa expressa. O autor, que se encarrega de expressá-lo, obviamente corre o risco de se identificar com essa parte negativa do mundo. É isso que torna a escrita uma atividade às vezes difícil: assumir todo o negativo.

Isso soa sombrio, e os romances de Houellebecq costumam ser perturbadores, mas nunca viciantes: o leitor, como ele diz, fica “aliviado”.

Como uma arte puramente negativa produz tal reação? Houellebecq às vezes é descrito como um misantropo; isto está errado. Sua “rejeição radical do mundo como ele é” vem de um amor pelos humanos e uma raiva ao que o mercado nos reduziu. Presente em todas as melhores obras de Houellebecq está algo que, como um buraco negro, é invisível, mas distorce tudo por sua gravidade: “o reino universal do amor”, como ele coloca no ensaio sobre Solanas – ou seja, outro mundo melhor, contra qual o presente compara tão mal.

E a universalidade desse reino faz de Houellebecq um cristão mais verdadeiro – no sentido do Novo Testamento – do que muitos de seus admiradores conservadores e reacionários que veem o cristianismo como uma hierarquia civilizacional particular a ser defendida contra os bárbaros refugiados nos portões. “Sociedades animais e humanas”, diz Houellebecq em Intervenções,

estabelecem diferentes sistemas de diferenciação hierárquica, que podem ser baseados no nascimento (o sistema aristocrático), riqueza, beleza, força física, inteligência, talento e assim por diante. Na verdade, todos esses sistemas me parecem quase igualmente desprezíveis; a única superioridade que reconheço é a bondade.

Isso pode ser ingênuo, mas é a ingenuidade de Cristo e de São Paulo, que declara que “não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher”. Seu reino não é deste mundo – e certamente não é das fantasias brutais dos reacionários.

Houellebecq quer nos mostrar o mundo melhor esfregando nossos rostos no pior. Um dos entrevistadores de Intervenções pergunta a Houellebecq se ele é um escritor católico. “Não apenas católico”, responde Houellebecq, “judeu também!” Ele descreve o encontro com um de seus leitores que decidiu se tornar um rabino por causa de seus romances; Houellebecq está satisfeito que seus livros tenham inspirado alguém a “recuar do horror” do mundo como ele é e “escapar desse niilismo”. É assim que uma arte como a de Houellebecq pode nos libertar do que Lauren Berlant chamou de “otimismo cruel”: sua negatividade nos choca para fora da ilusão deprimente de que a sociedade de mercado e suas instituições podem fornecer o que precisamos e revela, naquilo que não pode retratar, o que nós podemos ser.

Colaborador

Ryan Napier escreve ficção e ensina a escrever em Massachusetts.

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