29 de agosto de 2022

Crime e castigo

Seis meses depois, guerra entre Rússia e Ucrânia põe Ocidente na defensiva

Pedro Donizete da Costa Júnior

Valdir da Silva Bezerra


Soldados russos nas ruínas do teatro de Mariupol, cidade que foi objeto do mais sangrento cerco da guerra até aqui e caiu para Moscou - Alexander Nemenov - 12.abr.22/AFP

Após os eventos de 2014 na Ucrânia, Vladimir Putin enxergou o país vizinho como uma "plataforma" utilizada pelo Ocidente para minar a segurança da Rússia. Baseando suas alegações em elementos históricos, filosóficos e religiosos, Putin deixou claro que o movimento da Ucrânia em direção ao Ocidente (e especialmente em direção à Otan) seria algo inaceitável (uma"red line") à medida que minaria a "unidade espiritual e cultural" existente entre russos, bielorrussos e ucranianos.

Por outro lado, durante as décadas de 1990 e 2000, a ascensão de sentimentos nacionalistas nas ex-repúblicas soviéticas, e particularmente na Ucrânia, foi enxergada de forma positiva pelo Ocidente, uma vez que representava a perspectiva de uma democratização regional e de seu afastamento da Rússia enquanto polo de poder regional.

Logo Putin afirmava que Kiev fora arrastada para um perigoso jogo geopolítico que visava transformar a Ucrânia numa barreira entre a Europa e a Rússia, um trampolim (de ataque) contra o país, motivo que levou o Kremlin a crer que a Ucrânia estava servindo aos interesses geopolíticos do Ocidente, não aos interesses de seu próprio povo. Assim, Putin não somente enxergou a soberania ucraniana como essencialmente frágil como passou a exigir garantias por parte da Otan de que a Ucrânia não seria incluída futuramente na organização militar.

Nesse contexto, durante as primeiras semanas de 2022, enquanto mantinha conversações com diversos estadistas europeus, Putin e seu ministro das Relações Exteriores, Serguei Lavrov, enfatizavam as preocupações do Kremlin sobre a chamada "política de portas abertas" da Otan, mencionando que o descaso demonstrado pela liderança ocidental quanto à posição russa de que "uma possível admissão da Ucrânia na aliança atlântica seria inadmissível" foi uma das principais razões por trás da crise de confiança surgida entre a Rússia e a aliança atlântica.

Enquanto, por um lado, essa "política de portas abertas" da Otan ressaltava o direito de cada Estado escolher livremente seus arranjos de segurança, a Rússia enfatizava a necessidade de se atentar para que "nenhum Estado fortaleça sua própria segurança em detrimento da segurança dos demais". Segundo a liderança russa, uma eventual adesão da Ucrânia à Otan representaria uma ameaça militar ao país à medida que a aliança atlântica poderia colocar em solo ucraniano mísseis balísticos (500 km a 5.500 km) capazes de atingir importantes cidades russas, como Moscou e São Petersburgo, em questão de minutos —ao mesmo tempo em que forneceria terreno para o estacionamento de tropas da Otan nas fronteiras meridionais da Rússia. Além de tudo, perder a Ucrânia para a Otan seria, para os russos, o mesmo que perder uma parte de sua própria origem.

Fato é que com o fiasco das negociações entre o Kremlin e líderes europeus a respeito de "garantias de segurança" e sob a justificativa de defesa das populações de Lukansk e de Donetsk contra "as agressões do exército ucraniano", Putin decidiu tomar a controversa decisão de iniciar a guerra na Ucrânia, evitando aquele movimento que se aprofundava ao longo dos últimos anos em que a Rússia se via novamente como alvo de uma política de "cerco" empregada pelo Ocidente. Na prática, tinha início então uma nova guerra em território europeu contra o poder da hegemonia ocidental, que agora chega à marca de seis meses. Durante esse tempo, os olhos do mundo se voltaram para a Ucrânia, e os destinos de milhões de pessoas, assim como da própria ordem mundial, nunca mais seriam os mesmos.

Do ponto de vista sistêmico, seis meses após o início da guerra, pela primeira vez em 30 anos o Ocidente, liderado pela Otan e sob a hegemonia dos EUA, está na defensiva. "A Parceria sem Limites" assinada por Rússia e China em 4 de fevereiro, e aprofundada desde então, evidencia não só os interesses e as implicações regionais do conflito, mas um cisma muito maior do ponto de vista da geopolítica e da geoeconomia do poder: a imposição de uma eurásia nesta nova ordem mundial policêntrica, pela força, da parte russa, e pela economia, da parte chinesa. Afinal, como escreveu Dostoiéski, "em tudo há uma linha além da qual é perigoso cruzar; pois uma vez que você a atravessa, é impossível voltar atrás".

Colaboradores

Pedro Donizete da Costa Júnior

Doutorando da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP), é autor de "O Poder Americano no Sistema Mundial Moderno: Colapso ou Mito do Colapso?" (ed. Appris)

Valdir da Silva Bezerra

Mestre em relações internacionais pela Universidade Estatal de São Petersburgo (Rússia), é membro do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais sobre Ásia (Nupri-Geasia) e do Grupo de Estudos sobre os Brics (Gebrics) da USP

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