Igor Gielow
As arcadas da Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco, no centro de São Paulo - Eduardo Knapp/Folhapress |
Quarenta e cinco anos após a leitura da "Carta aos Brasileiros", as arcadas da Faculdade de Direito da USP, no centro de São Paulo, voltam a ser palco de evento fulcral na cronologia da turbulenta democracia do país.
Na manhã desta quinta (11), serão lidos dois manifestos que alertam para os riscos ao Estado Democrático de Direito, sob ataques sistemáticos do presidente Jair Bolsonaro (PL) e do arcabouço de aliados de ocasião que angariou.
Eles foram gestados nas últimas semanas, após Bolsonaro expor ao mundo, por meio de uma convocação inaudita e insólita de embaixadores, sua visão abertamente golpista acerca do processo eleitoral que o permitiu frequentar a Câmara dos Deputados por três décadas e o Palácio do Planalto, desde 2019.
A sociedade civil está representada pelas mais de 870 mil assinaturas do texto "Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito". O empresariado, no manifesto "Em defesa da democracia e da Justiça", assinado por 107 entidades coordenadas pela Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo).
São textos cautelosos, visando driblar a radicalização política do período eleitoral até a eleição de outubro. Não que isso seja totalmente possível na prática: Bolsonaro já tentou reduzir o movimento a "cartinhas", enquanto seu principal rival na disputa deste ano, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), apressou-se em assinar ambos os textos.
É uma questão lateral, ao fim. O centro do debate é o que levou o país a ter de se mobilizar como fizera havia 45 anos, quando o Brasil se arrastava na etapa intermediária da ditadura instaurada em 1964, "manu militari".
Que Bolsonaro, capitão reformado do Exército que deixou a Força com fama de indisciplinado e amotinado, era uma viúva da ditadura, disso não havia dúvidas. Na campanha anômala de 2018, quando a política tradicional estava desarticulada após quatro anos de bombardeio pelas descobertas da Operação Lava Jato, o então candidato declarou que sua leitura de cabeceira era o livro de Carlos Brilhante Ustra, um notório torturador.
No poder, houve na classe política a esperança de que a presença maciça de oficiais-generais da reserva blindaria a administração da influência dos elementos radicais daquilo que se convencionou chamar de bolsonarismo.
Durante o primeiro ano de mandato, houve até um embate dessas alas concorrentes no poder. Sempre que podia, contudo, Bolsonaro explicitava seu desagrado com o status quo. Em outubro de 2019, por exemplo, fez analogias entre protestos de rua no Chile e a situação brasileira. Eram incomparáveis, mas o temor na realidade se justificava sob sua ótica.
Afinal, os chilenos acabaram levando sua insatisfação social à eleição de um governo de esquerda no ano passado.
Exaurida a gordura política, simbolizada na reforma da Previdência aprovada em meados daquele primeiro ano de gestão, o embate com governadores em torno de temas econômicos começou a se insinuar, assim como o fomento à sublevação de polícias —como ocorreu no Ceará em 2020.
A pandemia da Covid-19 escancarou o projeto. Ao longo dela, Bolsonaro bateu de frente com estados, São Paulo em particular, e com o Judiciário. Declarou-os inimigos de sua visão de mundo entronizada na defesa da cloroquina, remédio ineficaz contra a infecção pelo Sars-CoV-2.
Logo, tal visão de saúde pública foi confundida com valores de liberdade individual, algo irônico para um defensor da tortura como método válido. O discurso foi evoluindo, abarcando críticas ao establishment judicial, que tentou acomodar a situação.
Talvez o resumo mais claro desse período seja o infame vídeo da reunião ministerial de 22 de abril de 2020, no qual a ideia presidencial de armar o máximo possível de pessoas ("povo armado jamais será escravizado") acompanhou candidamente discussões amorais sobre a gestão.
O padrão de crise foi estabelecido. Após cada sístole, uma diástole na forma do alívio com um recuo que nunca se mostrou perene, afetando inclusive os militares, atores políticos trazidos de volta aos holofotes por Bolsonaro. O serviço ativo buscou separar-se dos fardados.
Mas acabou vendo a parede ser derrubada quando Bolsonaro demitiu o então ministro da Defesa e três comandantes militares de uma só vez, algo inédito, em março de 2021. Dali para a frente, a resistência dos insatisfeitos com a instrumentalização operada pelo presidente ficou cada vez mais em conversas de bastidor e medidas indiretas.
A crise de 2021 atingiu seu zênite com os atos antidemocráticos no 7 de Setembro. Ali ficou evidente não só a intenção decalcada do manual aplicado pelo ídolo de Bolsonaro, Donald Trump, na crise que desembocou na invasão do Capitólio em janeiro do ano passado, mas a dificuldade de operá-la.
O centrão veio em socorro com a alegação de risco de impeachment e tomou o governo de assalto, ao mesmo tempo em que os novidadeiros mecanismos de controle do Orçamento pelo Congresso estabeleceram uma nova e disfuncional forma de gestão.
Antigos vilões, os líderes do grupo agora são parceiros de projeto de Bolsonaro, que tem aliados na Procuradoria-Geral da República e em setores do Judiciário. Nesse sentido, a distensão que veio com aquela normalização apenas antecedeu a contração ora em curso.
Ela se baseia no sem-número de dificuldades econômicas do país e, principalmente, no fato de hoje estar a 18 pontos de Lula na disputa de primeiro turno, segundo a mais recente pesquisa do Datafolha. Isso fez recrudescer a campanha contra as urnas eletrônicas e os ministros do Tribunal Superior Eleitoral que também integram o Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes em particular.
O novo 7 de Setembro golpista foi anunciado pelo presidente Bolsonaro sob a mesma justificativa libertária. Ele vem acompanhado de sinais preocupantes de violência política Brasil afora, encorpando o temor sobre o armamentismo estimulado.
Até aqui, não parece haver espaço para uma aventura golpista à moda antiga. Mas não ajuda a acalmar os ânimos o ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, usado como ponta de lança na campanha contra as urnas eletrônicas.
O TSE, que já errara ao trazer os militares para a discussão da transparência eleitoral, agora tenta uma saída salomônica para as demandas.
Com isso e a sempre presente sombra da radicalização de forças estaduais, o movimento enunciado nesta quinta nas arcadas do largo de São Francisco ganha importância histórica —mesmo que o país não viva sob uma ditadura.
Em 1964, o grosso do empresariado, da sociedade civil e dos militares apoiou o golpe. Desta vez, seja em qual formato for a ideia de ruptura, a unanimidade está do outro lado: até os Estados Unidos, fiadores da quartelada 58 anos atrás, manifestaram-se publicamente em favor do sistema eleitoral brasileiro e admoestaram o general Nogueira em uma conferência em Brasília.
A excepcionalidade das reações dá a medida do ineditismo do risco percebido, seja por convicção ou por necessidade de sobrevivência de negócios em um mundo com regras transnacionais. Autoritarismos e princípios de governança saudáveis são imiscíveis —a retirada da Rússia do sistema internacional devido à invasão da Ucrânia é apenas um exemplo extremo desse contexto.
Na manhã desta quinta (11), serão lidos dois manifestos que alertam para os riscos ao Estado Democrático de Direito, sob ataques sistemáticos do presidente Jair Bolsonaro (PL) e do arcabouço de aliados de ocasião que angariou.
Eles foram gestados nas últimas semanas, após Bolsonaro expor ao mundo, por meio de uma convocação inaudita e insólita de embaixadores, sua visão abertamente golpista acerca do processo eleitoral que o permitiu frequentar a Câmara dos Deputados por três décadas e o Palácio do Planalto, desde 2019.
A sociedade civil está representada pelas mais de 870 mil assinaturas do texto "Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito". O empresariado, no manifesto "Em defesa da democracia e da Justiça", assinado por 107 entidades coordenadas pela Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo).
São textos cautelosos, visando driblar a radicalização política do período eleitoral até a eleição de outubro. Não que isso seja totalmente possível na prática: Bolsonaro já tentou reduzir o movimento a "cartinhas", enquanto seu principal rival na disputa deste ano, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), apressou-se em assinar ambos os textos.
É uma questão lateral, ao fim. O centro do debate é o que levou o país a ter de se mobilizar como fizera havia 45 anos, quando o Brasil se arrastava na etapa intermediária da ditadura instaurada em 1964, "manu militari".
Que Bolsonaro, capitão reformado do Exército que deixou a Força com fama de indisciplinado e amotinado, era uma viúva da ditadura, disso não havia dúvidas. Na campanha anômala de 2018, quando a política tradicional estava desarticulada após quatro anos de bombardeio pelas descobertas da Operação Lava Jato, o então candidato declarou que sua leitura de cabeceira era o livro de Carlos Brilhante Ustra, um notório torturador.
No poder, houve na classe política a esperança de que a presença maciça de oficiais-generais da reserva blindaria a administração da influência dos elementos radicais daquilo que se convencionou chamar de bolsonarismo.
Durante o primeiro ano de mandato, houve até um embate dessas alas concorrentes no poder. Sempre que podia, contudo, Bolsonaro explicitava seu desagrado com o status quo. Em outubro de 2019, por exemplo, fez analogias entre protestos de rua no Chile e a situação brasileira. Eram incomparáveis, mas o temor na realidade se justificava sob sua ótica.
Afinal, os chilenos acabaram levando sua insatisfação social à eleição de um governo de esquerda no ano passado.
Exaurida a gordura política, simbolizada na reforma da Previdência aprovada em meados daquele primeiro ano de gestão, o embate com governadores em torno de temas econômicos começou a se insinuar, assim como o fomento à sublevação de polícias —como ocorreu no Ceará em 2020.
A pandemia da Covid-19 escancarou o projeto. Ao longo dela, Bolsonaro bateu de frente com estados, São Paulo em particular, e com o Judiciário. Declarou-os inimigos de sua visão de mundo entronizada na defesa da cloroquina, remédio ineficaz contra a infecção pelo Sars-CoV-2.
Logo, tal visão de saúde pública foi confundida com valores de liberdade individual, algo irônico para um defensor da tortura como método válido. O discurso foi evoluindo, abarcando críticas ao establishment judicial, que tentou acomodar a situação.
Talvez o resumo mais claro desse período seja o infame vídeo da reunião ministerial de 22 de abril de 2020, no qual a ideia presidencial de armar o máximo possível de pessoas ("povo armado jamais será escravizado") acompanhou candidamente discussões amorais sobre a gestão.
O padrão de crise foi estabelecido. Após cada sístole, uma diástole na forma do alívio com um recuo que nunca se mostrou perene, afetando inclusive os militares, atores políticos trazidos de volta aos holofotes por Bolsonaro. O serviço ativo buscou separar-se dos fardados.
Mas acabou vendo a parede ser derrubada quando Bolsonaro demitiu o então ministro da Defesa e três comandantes militares de uma só vez, algo inédito, em março de 2021. Dali para a frente, a resistência dos insatisfeitos com a instrumentalização operada pelo presidente ficou cada vez mais em conversas de bastidor e medidas indiretas.
A crise de 2021 atingiu seu zênite com os atos antidemocráticos no 7 de Setembro. Ali ficou evidente não só a intenção decalcada do manual aplicado pelo ídolo de Bolsonaro, Donald Trump, na crise que desembocou na invasão do Capitólio em janeiro do ano passado, mas a dificuldade de operá-la.
O centrão veio em socorro com a alegação de risco de impeachment e tomou o governo de assalto, ao mesmo tempo em que os novidadeiros mecanismos de controle do Orçamento pelo Congresso estabeleceram uma nova e disfuncional forma de gestão.
Antigos vilões, os líderes do grupo agora são parceiros de projeto de Bolsonaro, que tem aliados na Procuradoria-Geral da República e em setores do Judiciário. Nesse sentido, a distensão que veio com aquela normalização apenas antecedeu a contração ora em curso.
Ela se baseia no sem-número de dificuldades econômicas do país e, principalmente, no fato de hoje estar a 18 pontos de Lula na disputa de primeiro turno, segundo a mais recente pesquisa do Datafolha. Isso fez recrudescer a campanha contra as urnas eletrônicas e os ministros do Tribunal Superior Eleitoral que também integram o Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes em particular.
O novo 7 de Setembro golpista foi anunciado pelo presidente Bolsonaro sob a mesma justificativa libertária. Ele vem acompanhado de sinais preocupantes de violência política Brasil afora, encorpando o temor sobre o armamentismo estimulado.
Até aqui, não parece haver espaço para uma aventura golpista à moda antiga. Mas não ajuda a acalmar os ânimos o ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, usado como ponta de lança na campanha contra as urnas eletrônicas.
O TSE, que já errara ao trazer os militares para a discussão da transparência eleitoral, agora tenta uma saída salomônica para as demandas.
Com isso e a sempre presente sombra da radicalização de forças estaduais, o movimento enunciado nesta quinta nas arcadas do largo de São Francisco ganha importância histórica —mesmo que o país não viva sob uma ditadura.
Em 1964, o grosso do empresariado, da sociedade civil e dos militares apoiou o golpe. Desta vez, seja em qual formato for a ideia de ruptura, a unanimidade está do outro lado: até os Estados Unidos, fiadores da quartelada 58 anos atrás, manifestaram-se publicamente em favor do sistema eleitoral brasileiro e admoestaram o general Nogueira em uma conferência em Brasília.
A excepcionalidade das reações dá a medida do ineditismo do risco percebido, seja por convicção ou por necessidade de sobrevivência de negócios em um mundo com regras transnacionais. Autoritarismos e princípios de governança saudáveis são imiscíveis —a retirada da Rússia do sistema internacional devido à invasão da Ucrânia é apenas um exemplo extremo desse contexto.
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