15 de outubro de 2025

Guerra interna e paralisação nacional no Equador

A paralisação nacional em curso no Equador abre uma fenda no muro do medo erguido pelo presidente Daniel Noboa com sua retórica de guerra interna. Sua força reside em ter devolvido ao povo a capacidade de nomear a violência e de politizar a (des)obediência.

Soledad Stoessel


A invenção da "guerra interna" no Equador: do horror das crianças de Las Malvinas à paralisação nacional dos povos. (AP / Dolores Ochoa)

Na madrugada de 8 de dezembro de 2024, uma patrulha militar interceptou quatro crianças negras que jogavam futebol no setor Las Malvinas, ao sul de Guayaquil. Horas depois, elas desapareceram. Dias mais tarde, na véspera do ano novo, seus corpos foram encontrados carbonizados no recinto militar de Taura. Foi comprovado que Ismael, Josué, Nehemías e Steven foram torturados por integrantes das Forças Armadas, submetidos a espancamentos e simulações de execução.

O governo de Daniel Noboa oscilou entre declará-los “heróis nacionais” durante o período de desaparecimento e manter silêncio após a identificação dos corpos, promovendo posteriormente uma campanha oficial de justificativa e estigmatização das vítimas e de suas famílias. O ministro da Defesa, Giancarlo Loffredo, passou de negar os fatos a reconhecer a detenção, oferecendo desculpas públicas por ordem judicial ao mesmo tempo em que ameaçava punir a juíza que exigiu justiça.

Desde os primeiros dias, o caso foi atravessado por narrativas racistas e classistas disseminadas em redes sociais e meios de comunicação privados, que desumanizaram as vítimas, culparam suas famílias e legitimaram a violência estatal sob o pretexto do “conflito armado interno”, decretado por Noboa em janeiro de 2024. Essa declaração, sem qualquer base jurídica sólida, marcou o início de um regime de exceção permanente e de violações sistemáticas de direitos humanos: detenções arbitrárias, torturas, execuções e desaparecimentos com impacto diferenciado sobre jovens negros e pobres.

Segundo a Anistia Internacional, a Human Rights Watch, o Comitê Permanente pela Defesa dos Direitos Humanos e a própria Procuradoria do Estado, desde então foram registradas mais de 40 desaparecimentos, 25 execuções extrajudiciais e mais de 100 assassinatos — “alvos neutralizados”, segundo o governo —, entre os quais estão crianças e adolescentes. Essas organizações também denunciam a opacidade judicial, torturas, detenções sem garantias legais e a estigmatização de defensores de direitos humanos, em um país onde a exceção se tornou forma de governo.

Quando se acreditava que esse crime de Estado aberrante havia sido o último degrau na ascensão do autoritarismo neoliberal militarizado que hoje governa o Equador, a paralisação nacional iniciada em 22 de setembro — que entra em sua quarta semana — trouxe cenas ainda mais graves. A imagem de um corpo infantil reduzido a restos em nome da ordem se tornou a partitura que hoje ecoa a cada bomba de gás lacrimogêneo disparada contra os manifestantes da paralisação nacional.

Entre os gritos de “Fora Noboa, fora” e “Não somos terroristas”, e o rugido metálico dos comboios militares blindados, o eco daquelas crianças retorna como advertência: assim começou a guerra interna — não contra o crime organizado, mas contra o povo despojado de seus direitos fundamentais.

No dia 28 de setembro de 2025, já no contexto da terceira paralisação nacional em seis anos, o comunero indígena Efraín Fuérez foi assassinado por integrantes das Forças Armadas equatorianas durante uma mobilização pacífica no cantão Cotacachi, província de Imbabura (região que deu seu voto a Noboa nas duas últimas eleições). A imagem de seu corpo estendido enquanto um companheiro tenta socorrê-lo e é agredido e apontado com armas pelos militares se transformou em símbolo do novo rosto interno da guerra: uma política belicista que identifica manifestantes como inimigos.

Diversos testemunhos e organizações de direitos humanos confirmam que Fuérez, membro de uma comunidade Kichwa, recebeu disparos letais no tórax enquanto as tropas liberavam uma estrada que havia sido bloqueada em protesto contra o decreto que eliminou os subsídios aos combustíveis e traiu as promessas de campanha.

Apesar de os manifestantes não portarem armas, o governo classificou o ocorrido como um “confronto”, inserindo sua morte na narrativa oficial do terrorismo interno. A CONAIE, a Aliança de Organizações pelos Direitos Humanos e o CDH de Guayaquil denunciaram o assassinato como uma execução extrajudicial e exigiram punição aos responsáveis, apontando que esse crime exemplifica a repressão sistemática e o uso ilegítimo da força militar contra a manifestação social.

Dias depois, na madrugada de 5 de outubro, forças combinadas da Polícia e do Exército invadiram Otavalo, detendo arbitrariamente doze camponeses, jovens e líderes comunitários. Acusados de “terrorismo” e “associação ilícita”, foram transferidos para prisões de segurança máxima. Com essas detenções exemplares, o regime enviou uma mensagem clara: protestar é crime, e sua punição é o isolamento — a pedagogia autoritária de um Estado que governa com base no medo.

O assassinato dos quatro meninos de Las Malvinas e de Efraín Fuérez, junto com os desaparecimentos e detenções arbitrárias, não são fatos isolados nem efeitos colaterais de uma guerra interna — inventada —, mas o resultado de decisões deliberadas do poder político. Eles expressam a deriva autoritária e militarizada do Estado sob um regime que reproduz o que os cientistas políticos dos anos 1970 chamaram de “Estado cívico-militar”, forma característica adotada pelas ditaduras do Cone Sul.

Aqueles regimes buscavam restaurar o controle oligárquico e garantir a acumulação por meio do despojo, através da despolitização social, da exclusão das organizações populares e da institucionalização do autoritarismo (supressão de liberdades, censura, perseguição a sindicatos e movimentos sociais, desaparecimento e assassinato sistemático de pessoas), tudo sob a égide da Doutrina de Segurança Nacional, na qual o inimigo era o próprio povo. Quarenta anos depois, o Equador de Noboa repete esse roteiro.

Crise estatal e neoliberalismo militarizado

A atual crise estatal equatoriana tem raízes profundas em um processo de desmantelamento institucional iniciado durante o governo de Lenín Moreno (2017–2021). Sob o discurso e com o objetivo de “descorreizar” o Estado, Moreno reverteu as conquistas sociais do ciclo progressista e restaurou o poder das elites econômicas. A consulta popular de 2018 e a Lei de Fomento Produtivo abriram caminho para o perdão de dívidas empresariais, para a subordinação do Estado às elites econômicas locais e ao capital financeiro internacional, e para a proscrição política do correísmo como força política.

Essa “corporativização para cima” se aprofundou a partir do acordo com o FMI em 2019, que consolidou o ajuste neoliberal: redução dos gastos públicos, flexibilização trabalhista e eliminação de subsídios. A paralisação indígena e popular de outubro de 2019 revelou o alcance dessa restauração: uma resposta estatal violenta que resultou em mortos, centenas de feridos e detidos. A democracia foi sacrificada em nome da estabilidade fiscal e da obediência ao mercado.

O sucessor de Lenín Moreno, Guillermo Lasso (2021–2023), aprofundou esse esvaziamento institucional por meio de uma coalizão anticorreísta que governou com decretos e estados de exceção permanentes. Em meio à crise carcerária, à expansão do narcotráfico, ao aumento da taxa de homicídios e à perda de legitimidade, o Estado se dissolveu em sua própria impotência.

Nesse vazio emergiu Daniel Noboa em 2023, jovem representante da nova direita empresarial, pertencente à família mais rica do país, que transformou a insegurança no núcleo de sua governabilidade. A declaração, via decreto, de “conflito armado interno” no país e a aliança aberta com as Forças Armadas consolidaram um regime cívico-militar que combina neoliberalismo e militarização: ajuste econômico com repressão e suspensão de direitos. O Estado já não se concebe como garantidor do bem comum, mas como aparelho de guerra interna.

Nesse sentido, o governo de Noboa representa a fase superior do neoliberalismo autoritário, onde a política se subordina à lógica do medo e os interesses oligárquicos são protegidos por meio da exceção. A chegada de Daniel Noboa ao poder, em novembro de 2023, aprofunda a crise estatal equatoriana, a normalização do regime de exceção e a consolidação da deriva autoritária e militarista. Se durante o breve governo de Guillermo Lasso já se vislumbravam os sinais de um Estado governado pela emergência — repressão seletiva, uso discricionário da força e paralisia institucional — com Noboa essa tendência se institucionaliza, dando lugar a um “regime cívico-militar”.

Na campanha das eleições antecipadas de 2023, o jovem empresário construiu um discurso despolarizador e conciliador, prometendo “unidade nacional” e moderação econômica. No entanto, apenas dois meses após assumir o cargo, reativou a velha cisão correísmo–anticorreísmo como eixo de legitimidade política, reinstaurando a lógica do inimigo interno e a perseguição judicial e midiática como instrumentos de governo.

O episódio que marcou definitivamente a deriva de seu governo foi a invasão da Embaixada do México, em 5 de abril de 2024, para deter o ex-vice-presidente (do governo Correa) Jorge Glas, então asilado político. Esse ato sem precedentes violou o direito internacional e demonstrou até que ponto o Executivo concebia o conflito político como uma guerra.

Mas o ponto de inflexão já havia ocorrido em janeiro de 2024, quando, após uma escalada de violência organizada nas prisões e nas ruas, Noboa declarou por decreto a existência de um “conflito armado interno”, estendeu o estado de exceção a todo o território nacional e concedeu poderes extraordinários às Forças Armadas. O medo social provocado pelos acontecimentos e amplificado pela mídia permitiu que amplos setores aceitassem essa narrativa: ou se estava com o governo, ou se era cúmplice do narcotráfico. Assim, a segurança tornou-se a nova linguagem da obediência.

Sob o marco do conflito armado interno, o governo consolidou a suspensão permanente de direitos e transferiu para o âmbito militar a gestão da vida civil. A consulta popular de abril de 2024 referendou essa política ao aprovar, em nove das onze perguntas, a ampliação das prerrogativas das Forças Armadas e do Executivo, incluindo a imunidade penal para militares em operações internas. Com esse respaldo plebiscitário, Noboa aprofundou sua política de “bukelização”, baseada na concentração de poder, na perseguição à dissidência e no uso sistemático do estado de exceção.

As Forças Armadas do Equador deixaram de ser instituições subordinadas ao mandato constitucional para se tornarem atores políticos com capacidade de veto e de arbitragem, inclusive nos processos eleitorais. Tudo isso ocorre dentro do alinhamento geopolítico com os Estados Unidos de Donald Trump, um vínculo de subordinação estratégica que opta por replicar os objetivos de Washington — segurança, controle migratório e contenção da China — em vez de implementar qualquer política soberana equatoriana. O resultado é um Estado que governa pela força, um neoliberalismo armado que transforma a segurança em ideologia e a guerra em forma de governo.

Nessa deriva, o Equador de Noboa guarda inquietantes semelhanças com a experiência colombiana das últimas duas décadas, em que a militarização do Estado sob a lógica do neoliberalismo extrativista articulou-se com economias ilícitas e com a criminalização dos setores populares. Durante os governos de Álvaro Uribe (2002–2010), o discurso da “segurança democrática” promovido (para não dizer imposto) pelos Estados Unidos legitimou uma expansão sem precedentes das Forças Armadas e a instauração de um estado de exceção de fato, que naturalizou as execuções extrajudiciais conhecidas na Colômbia como “falsos positivos”: camponeses, jovens e pobres assassinados e apresentados como guerrilheiros para demonstrar resultados na “guerra contra o terrorismo”.

Em ambos os casos, a política de segurança opera como dispositivo de disciplinamento social e de restauração da ordem oligárquica, a serviço de um modelo de acumulação baseado na espoliação dos territórios, na expropriação e no medo. Se a Colômbia foi o laboratório de um neoliberalismo armado sob o patrocínio de Washington, o Equador aparece hoje como uma reedição adaptada ao novo ciclo de crise estatal, em um cenário hemisférico reconfigurado pelo trumpismo e pela estratégia estadunidense de recolonização geopolítica que busca reposicionar a América Latina como seu “quintal” sob o pretexto do combate ao narcotráfico e da segurança regional.

"Guerra interna", pacto cívico-militar e racismo institucional

Após concluir seu breve mandato, Daniel Noboa voltou a se impor nas eleições presidenciais de 2025, revalidando por via eleitoral o regime cívico-militar construído durante seu primeiro período. A apropriação autoritária do medo — como antecipou Norbert Lechner nos obscuros anos 1970 — e a instrumentalização da “guerra interna” permitiram a Noboa transformar a insegurança em fonte de legitimidade política. Mesmo com um processo eleitoral repleto de ilegalidades[1], Noboa conseguiu plebiscitar o belicismo e aprofundar um modelo de neoliberalismo militarizado, no qual a violência estatal e o ajuste econômico se justificam mutuamente.

A política da guerra tornou-se, assim, o marco legitimador do ajuste estrutural, apresentado como uma necessidade fiscal para garantir a segurança. Desde os primeiros meses de governo, Noboa impulsionou medidas emblemáticas dessa nova ordem. Por meio do Decreto Executivo 198, estabeleceu um aumento de três pontos percentuais no IVA (Imposto sobre Valor Agregado), medida que classificou como um “sacrifício patriótico” para financiar o combate ao crime organizado.

Os dados do INEC mostram que a cesta básica familiar passou de US$ 764,71 em janeiro de 2023 para mais de US$ 813 em 2025, afetando especialmente os lares de renda baixa e média. Entre abril e junho de 2024, o governo assinou um novo acordo com o FMI, com duração de 48 meses, que definiu a cartilha do ajuste: eliminação dos subsídios aos combustíveis, reformas trabalhistas regressivas e perdão de dívidas empresariais (incluindo as do grupo econômico Nobis, pertencente à família do presidente). Essas políticas detonaram a terceira paralisação nacional, que já dura mais de vinte dias e tem sido reprimida com uma violência sem precedentes.

Embora o governo tenha enquadrado essas decisões na “necessidade” de estabilizar as finanças públicas, reduzi-las ao FMI seria uma leitura simplista. Noboa não apenas aplica um programa neoliberal em sintonia com o organismo internacional, mas consolida um projeto oligárquico-patrimonial que transforma o Estado em instrumento de benefício familiar e de articulação com o narco-neoliberalismo global. Nesse modelo, a segurança torna-se ideologia de governo, a militarização se naturaliza como forma de gestão e o medo converte-se na condição política da obediência.

O autoritarismo não é um desvio do neoliberalismo, mas seu complemento funcional. O ajuste requer ordem, e a ordem se impõe com medo. Desde 2024, o governo transformou a “guerra contra o crime” em estratégia fiscal: cada decreto de exceção vem acompanhado de um novo imposto; cada operação militar justifica a redução dos gastos sociais. A repressão é financiada pelo aumento da pobreza. A “bukelização” do Equador não reduziu a violência; apenas a deslocou para os mais vulneráveis. Enquanto os grupos dedicados ao narcotráfico seguem controlando portos e prisões, os bairros populares são ocupados por patrulhas que operam sem controle judicial. O “inimigo interno” é o mesmo de sempre: o pobre racializado.

A deriva equatoriana se insere em uma onda hemisférica de neoliberalismo punitivo. Bukele em El Salvador, Milei na Argentina, Bolsonaro anteriormente no Brasil, compartilham a mesma gramática: medo, inimigo, exceção. Todos prometem ordem, todos produzem desigualdade. Noboa já citou Bukele como inspiração, mas seu modelo também remete aos “Estados burocrático-autoritários” descritos por Guillermo O’Donnell nos anos 1970: regimes nos quais a aliança entre elites civis e Forças Armadas garante a estabilidade do capital e a exclusão política das maiorias. A diferença é que agora a repressão é transmitida ao vivo, e a violência deixou de ser clandestina para se tornar performática e exemplar.

O inimigo já não é o narcotráfico, mas sim o “terrorista interno”: estudantes, líderes indígenas, jornalistas críticos, coletivos de mulheres, professores, médicos, qualquer um que ouse questionar a ausência de recursos públicos para atender às necessidades fundamentais. A etiqueta de “terrorismo” funciona hoje como o marco legitimador da repressão. Assim como em 2019 e 2022 se espalhou a narrativa de um ilusório comunismo como orquestrador das paralisações nacionais e se pediu que os “índios” voltassem aos seus páramos, e em 2024 se afirmou que as crianças assassinadas “não eram anjinhos” e estavam ligadas a grupos criminosos, agora, a partir do governo, seus corifeus midiáticos racistas e o núcleo duro anticorreísta de cidades como Quito e Guayaquil classificam os manifestantes como “terroristas”.

Com a criminalização social como política de Estado e o poder civil mimetizado com o militar, um Noboa cercado por baionetas, comboios militares e uniformes governa por decreto e aprova leis como a de Solidariedade Nacional (que permite indultos a militares), ignorando não apenas as demandas populares, mas também outros poderes do Estado, como a Corte Constitucional. O “pacto cívico-militar” tornou-se a própria arquitetura do governo: um Estado securitário neoliberal em que a autoridade moral se mede pela capacidade de infundir medo.

Esse entrelaçamento entre neoliberalismo, militarização e economias ilícitas delineia um tipo de Estado capturado pela lógica narco-autoritária. Assim como na Colômbia a expansão territorial do narcotráfico tornou-se parte constitutiva da ordem neoliberal, por meio do controle violento de recursos, rendas e territórios, no Equador a captura institucional por redes político-empresariais e narcofinanceiras configura uma forma de regime cívico-militar “narcoprivatizado” que utiliza a guerra como estratégia de espoliação.

Em ambos os cenários, a repressão não busca eliminar o crime, mas administrar a violência para sustentar a acumulação; e o inimigo interno — seja um camponês, um estudante ou uma criança afrodescendente — ocupa o lugar simbólico daquele que ameaça a ordem. A guerra interna equatoriana, como antes a colombiana, é menos uma resposta ao narcotráfico do que uma estratégia de controle social e de reorganização autoritária do capitalismo em tempos de crise.

Paralisação nacional e memória democrática

A paralisação nacional iniciada em 22 de setembro de 2025 foi convocada pela CONAIE, por organizações sindicais como a Frente Unitária de Trabalhadores, coletivos de estudantes e mulheres, e associações de bairros. Suas reivindicações, longe de estarem vinculadas a bandeiras partidárias conjunturais, expressam o mal-estar acumulado após anos de degradação do Estado e empobrecimento social. Reverter a eliminação dos subsídios, revogar o aumento do IVA, interromper as demissões no setor público, rejeitar o autoritarismo e exigir a saída de Noboa estão entre as múltiplas demandas que ecoam em todo o território nacional.

Diferentemente das paralisações anteriores, desta vez o movimento adotou uma tática descentralizada: manter bloqueios e concentrações em diversos pontos do país sem se deslocar massivamente para Quito. A decisão foi fruto de uma leitura estratégica do contexto atual, marcado pela militarização do espaço público e pela vigência permanente do estado de exceção. Marchar até a capital — como em 2019 — significaria se expor a uma repressão em grande escala e a uma possível chacina anunciada.

A territorialização da paralisação transformou cada província, comunidade e estrada em cenário de resistência. Ao distribuir os focos de protesto, o movimento obrigou o Estado a dispersar sua capacidade repressiva, revelando que o descontentamento não é setorial nem regional, mas nacional. A ação coletiva sustentou-se em redes comunitárias, cozinhas solidárias e guardas indígenas que garantiram o caráter pacífico das mobilizações.

Em vez de cair na armadilha do confronto urbano, o movimento optou por uma resistência de baixa intensidade, mas de longa duração, articulada à defesa dos territórios. Não se mobilizar até Quito não representa recuo, mas uma realocação da luta nos territórios onde o Estado só chega com violência ou abandono. A estratégia do movimento indígena e popular combina resistência prolongada e defesa territorial, desmontando a narrativa governamental que associa protesto com terrorismo e devolvendo às comunidades a capacidade de fazer política desde baixo, em tempos de repressão e guerra interna.

O governo respondeu à paralisação com uma nova estratégia de controle e militarização. Transferiu temporariamente a sede do Executivo para a cidade de Latacunga (na região central da serra) e decretou estado de exceção por sessenta dias em sete províncias (Carchi, Imbabura, Pichincha, Azuay, Bolívar, Cotopaxi e Santo Domingo), suspendendo o direito de reunião. Em paralelo, reforçou o aparato policial e militar para conter as mobilizações e ocupar os territórios em protesto. Realizou patrulhas conjuntas com diplomatas alinhados à direita global e regional, sob o pretexto de entregar “ajuda humanitária”, enquanto construía narrativas sobre supostas tentativas de magnicídio.

A resposta estatal também incluiu ameaças a líderes sociais, detenções em massa — inclusive dentro de comunidades indígenas — sob acusações de terrorismo e sabotagem, além do uso de tanques, drones e cercos militares para intimidar as populações mobilizadas, invadindo inclusive espaços educativos e culturais que historicamente foram refúgios humanitários, como a Universidade Central do Equador e a Casa da Cultura Equatoriana em Quito.

O dia 12 de outubro revelou um dos rostos mais cruéis do autoritarismo em curso. Amparado no estado de exceção, o governo nacional submeteu a capital a um cerco militar e policial, bloqueou o transporte público para impedir a mobilização social e atropelou as competências do governo municipal de Quito.

Nos meios oficiais, a narrativa se concentrou em criminalizar o protesto e reforçar o discurso da ordem. As transmissões nacionais repetem que a paralisação prejudica “os cidadãos que querem trabalhar” e que o governo “não cederá diante da ameaça”. O ministro da Defesa alertou que “os violentos serão tratados como inimigos”, e o próprio Noboa declarou: “Antes que queiram me fazer recuar, prefiro morrer”. A máquina de comunicação do regime cumpre assim um papel central: ao rotular os manifestantes de “terroristas” ou “sabotadores”, transforma a repressão em defesa nacional. Em noticiários e cadeias públicas, as operações são narradas com uma épica militar, exibindo armas apreendidas e uniformizados em ação. A linguagem da guerra colonizou o senso comum e naturalizou a violência estatal como política de governo.

Em vinte e dois dias de paralisação, foram registradas mais de 100 pessoas presas, mais de 60 feridas e uma assassinada por disparos militares. O caso das crianças afrodescendentes revelou que o Estado escolhe suas vítimas segundo hierarquias raciais e de classe. Hoje, esse padrão se repete na repressão à paralisação: os mortos, feridos, desaparecidos e presos pertencem a comunidades indígenas, bairros populares e estudantes de universidades públicas. A necropolítica neoliberal se disfarça de “segurança nacional”. A vida digna se torna um privilégio; a morte, um aviso. Governa-se por meio da exceção, mesmo quando a paralisação reivindica medidas básicas (subsídios, tarifas, empregos, segurança).

Mas a paralisação revelou também algo mais profundo: o retorno do povo — ainda que sem forma ou direção definida — como ator político. As marchas indígenas que avançam por todo o país, especialmente na serra central, onde Noboa havia obtido os votos decisivos para sua vitória; as cozinhas comunitárias nos bairros; as mobilizações cidadãs em Quito e Cuenca, que transcendem a organização indígena; as mulheres indígenas formando guardas para proteger seus filhos dos gases... todos esses atos nascem da indignação e das redes de solidariedade enraizadas na memória recente.

Essas ações lembram que o país real não é feito de gabinetes nem quartéis, ao mesmo tempo em que constroem uma pedagogia distinta: a da empatia frente à crueldade, a do cuidado diante da militarização, a da igualdade real contra o poder que confisca vidas. Compõem também uma cartografia de resistência que revive a memória de outubro de 2019 e expressam atos que não apenas evocam o passado, mas prefiguram outro futuro. Todo regime autoritário precisa de um espelho moral que lhe mostre até onde está disposto a ir. No Equador de Noboa, esse espelho são os corpos das crianças de Las Malvinas, Efraín Fuérez e os centenas de feridos, presos e desaparecidos no marco da paralisação nacional.

Se o Estado pôde desaparecer, torturar e queimar crianças sem que sua legitimidade ruísse, então tudo é possível. Até que o povo imponha um limite. Esse ato, esse limiar de compreensão do presente, não é uma resposta ao crime organizado, mas uma política deliberada de disciplinamento social e de declaração de guerra ao povo. O horror de Las Malvinas nos ensinou que a paz não se decreta com fuzis e bombas de gás lacrimogêneo. Hoje, quando a repressão recai sobre a paralisação nacional, esse limiar volta a iluminar a cena: os mesmos uniformes, o mesmo discurso, a mesma impunidade.

O Equador precisa de um novo pacto democrático. Assim como o caso Restrepo, nos anos 1980, obrigou o reconhecimento da violência estatal e deu origem a uma Comissão da Verdade, o caso das crianças de Las Malvinas e a repressão à paralisação deveriam conduzir a um Nunca Mais equatoriano: nunca mais guerra contra o povo, nunca mais crianças carbonizadas pelo Estado, nunca mais manifestantes tratados como terroristas, nunca mais oligarquias saqueando repúblicas. Esse Nunca Mais não será obra do governo, mas da sociedade que hoje resiste nas ruas e que, apesar das adversidades e ameaças impostas pelo regime cívico-militar, constitui o único reservatório possível de vida democrática.

A paralisação nacional está abrindo uma fenda no muro do medo que Daniel Noboa tentou erguer com sua retórica de guerra interna. Para além dos resultados imediatos que os setores mobilizados possam alcançar, sua força histórica reside em ter devolvido ao povo a capacidade de nomear a violência e de politizar a (des)obediência. Essa politização encontra agora um cenário decisivo: a consulta popular convocada para 16 de novembro, cujo verdadeiro propósito é plebiscitar o autoritarismo.

Por trás de perguntas aparentemente técnicas — instalação de bases militares para combater o crime organizado, redução do número de parlamentares, financiamento de partidos políticos — esconde-se a pretensão de Noboa de legitimar por via eleitoral esse regime cívico-militar e perpetuar um modelo de espoliação social. Qualquer vitória em uma dessas perguntas será usada para aprofundar tal modelo, especialmente a que trata da instalação de uma assembleia constituinte. Votar “sim” em qualquer uma delas equivaleria a referendar a guerra contra o povo, a repressão aos protestos e o neoliberalismo armado que sustenta seu governo.

Por isso, o voto no “não” em toda a consulta não é uma consigna partidária momentânea, mas um ato de consciência democrática e memória coletiva. A paralisação mostrou que ainda existe um país disposto a resistir. A consulta será a oportunidade de transformar essa resistência em uma decisão política, um “não” retumbante que diga não ao medo, não à militar. A consulta será a oportunidade de transformar essa resistência em uma decisão política — um “não” contundente que diga não ao medo, não à militarização, não ao autoritarismo. Em um Equador onde a exceção se tornou norma, votar “não” é uma forma de recuperar a palavra, a política democrática e a dignidade.

Notas

[1] Como o uso de recursos públicos e do aparato estatal para fins proselitistas, a falta de pedido de licença por parte do presidente-candidato Noboa, quatorze benefícios (bônus, bolsas, pagamentos) anunciados em 2025 no valor de mais de 518 milhões de dólares, além de operações de segurança “midiáticas” com Erik Prince, da empresa privada de segurança Blackwater; a interferência e a pressão do Executivo sobre o Conselho Nacional Eleitoral, reduzindo sua autonomia eleitoral; e a declaração de Estado de exceção às vésperas da eleição presidencial, entre muitas outras.

Soledad Stoessel

Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Nacional de La Plata (Argentina) e professora na Universidade Central do Equador.

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