31 de dezembro de 2018

A ordem mundial do neoliberalismo

Desde seu início, o neoliberalismo buscou não demolir o Estado, mas criar uma ordem internacional forte o suficiente para substituir a democracia a serviço da propriedade privada.

Adam Tooze

Pascal Lamy, ex-diretor-geral da Organização Mundial do Comércio, lidera uma reunião de ministros da OMC, julho de 2008 (© WTO / Flickr)

Globalists: The End of Empire and the Birth of Neoliberalism
por Quinn Slobodian
Harvard University Press, 2018, 400 pp.

O neoliberalismo tem muitas histórias. Milton Friedman, a escola de Chicago, a revolução de mercado de Pinochet, Thatcher e Reagan, o ajuste estrutural do FMI e os programas de transição de terapia de choque para os estados pós-comunistas são todos elementos fixos na narrativa da virada neoliberal. Se dermos corda no relógio de volta ao rescaldo da Segunda Guerra Mundial, podemos ver os precursores do ordoliberalismo da Alemanha Ocidental e do encontro do Monte Pèlerin de 1947. Se for solicitado a citar um momento fundador, pode-se apontar para o Colloque Walter Lippmann de agosto de 1938 em Paris. Aqueles com um interesse particular na história do pensamento econômico podem dar um passo além no "debate do cálculo socialista" lançado pelo economista austríaco Ludwig von Mises em 1920, no qual ele articulou uma crítica fundamental da possibilidade lógica do planejamento central socialista.

Tudo isso é familiar aos estudiosos. Globalists, do historiador de Wellesley Quinn Slobodian, é importante porque fornece um novo quadro para a história desse movimento. Para Slobodian, o tipo mais antigo e autêntico de neoliberalismo foi, desde o início, definido por sua preocupação com a questão da integração e desintegração econômica mundial. Na década de 1970, os defensores do neoliberalismo ajudaram a desencadear a onda de globalização que varreu o mundo. Mas, como mostra Slobodian, sua defesa do livre comércio e da liberalização do movimento do capital remonta aos momentos de fundação do neoliberalismo na esteira da Primeira Guerra Mundial. O movimento nasceu como uma reação apaixonadamente conservadora a um momento pós-imperial - não nos anos 1950 e 1960, mas em meio às ruínas do império dos Habsburgos. Dividido pela autodeterminação, o colapso da Monarquia Dual Austro-Húngara em 1918 não foi apenas o fracasso de uma complexa política multinacional. Aos olhos de von Mises e seus aliados ideológicos, isso colocou em questão a ordem da propriedade privada. Foram a Primeira Guerra Mundial e a Grande Depressão que deram origem a Estados-nação democráticos, que não mais apenas protegiam a propriedade privada, mas reivindicavam o controle de uma economia nacional concebida como um recurso a ser supervisionado pelo Estado. A propriedade privada que antes fora assegurada por um soberano imperial remoto, mas imparcial, estava agora à mercê da democracia nacional.

Diante dessa transformação chocante, os neoliberais decidiram não demolir o Estado, mas criar uma ordem internacional forte o suficiente para conter as forças perigosas da democracia e encerrar a economia privada em sua própria esfera autônoma. Antes de se reunirem em Mont Pèlerin, von Mises hospedou as reuniões originais dos neoliberais na Câmara de Comércio de Viena, onde ele e seus colegas pediram a reversão do socialismo austríaco. Eles não achavam que o fascismo oferecia uma solução de longo prazo, mas, diante da ameaça de revolução, deram as boas-vindas a Mussolini e aos camisas negras. Como von Mises observou em 1927, o fascismo "salvou, no momento, a civilização europeia". Mesmo no final dos anos 1930, Wilhelm Röpke, outro importante neoliberal, declararia descaradamente que seu desejo por um Estado forte o tornava mais “fascista” do que muitos de seus leitores imaginavam. Não devemos tomar isso como um gracejo despreocupado.

Os neoliberais eram lobistas do capital. Mas eles nunca foram apenas isso. Trabalhando ao lado de von Mises, o jovem Friedrich Hayek e Gottfried Haberler foram empregados na pesquisa econômica empírica. E foram as redes de pesquisa do ciclo econômico entre as guerras que atraíram figuras-chave de Viena a Genebra, então sede da Liga das Nações. O idílio suíço é o local de grande parte do restante da narrativa de Slobodian, dando seu nome à marca de neoliberalismo globalista que ele rotula de "escola de Genebra". Na década de 1930, a Liga das Nações era um ponto de encontro de conhecimentos econômicos de todo o mundo. Mas, como mostra Slobodian, o que marcou a escola neoliberal de Genebra foi uma crise intelectual coletiva. Em face da Grande Depressão, eles não só começaram a duvidar do poder preditivo da pesquisa do ciclo de negócios, mas também a ver o próprio ato de enumerar e contar "a economia" como uma ameaça à ordem da propriedade privada. Foi quando se concebeu a economia como um objeto, seja para fins de investigação científica ou de intervenção política, que você abriu as portas para uma política econômica redistributiva e democrática. Seguindo seus próprios decretos, depois de esmagar o movimento trabalhista, a próxima linha de defesa da propriedade privada seria, portanto, declarar a economia incognicível. Para os neoliberais austríacos, isso exigia uma reinvenção. Eles pararam de fazer economia e se refizeram como teóricos do direito e da sociedade.

Evidentemente, isso os colocava profundamente em conflito com o espírito tecnocrático do momento da metade do século. A expressão mais famosa dessa alienação foi The Road to Serfdom (1944), de Hayek, que ocupa surpreendentemente pouco espaço no relato de Slobodian. Em parte, isso sem dúvida se deve ao foco do ataque de Hayek ao totalitarismo europeu e ao plano de Beveridge para o estado de bem-estar social britânico no pós-guerra. Os neoliberais da Escola de Genebra de Slobodian, por outro lado, concentraram sua atenção na economia política global. No rescaldo da Segunda Guerra Mundial, eles lutaram para defender a mobilidade de capital contra as restrições de Bretton Woods. Na década de 1960, eles investiram contra a ordem pós-colonial, se uniram ao Apartheid e fizeram o possível para minar as visões de uma Nova Ordem Econômica Internacional mais justa e regulamentada, impulsionada pelo Sul global. A ideia de um sistema de troca regulado pelo governo dominado por produtores de commodities era um anátema para o neoliberalismo.

Slobodian nos dá não apenas uma nova história do neoliberalismo, mas uma imagem muito mais diversa dos debates sobre política global após 1945. Mesmo no apogeu do keynesianismo e das políticas desenvolvimentistas, os neoliberais nunca foram silenciados. O neoliberalismo sempre fez parte da discussão, embora não fosse o projeto secreto da história do século XX. Como Slobodian observa, a partir dos anos 1930, muitas idéias neoliberais eram deliberadamente utópicas. Eles não pretendiam mudar a política, pelo menos não imediatamente. Suas intervenções eram polêmicas destinadas a abrir o debate.

Ludwig von Mises e Gottfried Haberler estavam entre os participantes de uma conferência de 1936 sobre pesquisa de ciclos econômicos em Viena

Foi na década de 1980 que a longa marcha dos neoliberais pelas instituições da governança econômica global finalmente venceu. Nisso Slobodian concorda com a narrativa mais familiar. Mas, em vez de se concentrar em programas nacionais de monetarismo, privatizações e combate a sindicatos, Slobodian se concentra na dimensão transnacional: a UE e a OMC. Os protagonistas de sua história são pessoas de quem você nunca ouviu falar, estudantes de segunda geração dos fundadores austro-alemães originais, formados como advogados, não como economistas - homens como Ernst-Joachim Mestmäker e Ernst-Ulrich Petersmann, que moldaram a agenda em Bruxelas e ajudou a orientar a política comercial global.

É uma medida do sucesso dessa história fascinante e inovadora que ela impõe a pergunta: após a reinterpretação de Slobodian, onde fica a crítica ao neoliberalismo?

Em primeiro lugar, Slobodian sublinhou o profundo conservadorismo da primeira geração de neoliberais e sua hostilidade fundamental à democracia. O que ele expôs, além disso, é seu profundo compromisso com o império como uma restrição ao estado-nação. Notavelmente, no caso de Wilhelm Röpke, isso foi reforçado por um racismo antinegro arraigado. Ao longo da década de 1960, Röpke atuou em nome da África do Sul e da Rodésia em defesa do que considerava os últimos bastiões da civilização branca no mundo em desenvolvimento. Ainda na década de 1980, membros da Mont Pèlerin Society argumentaram que a minoria branca na África do Sul poderia ser melhor defendida ponderando o sistema de votação pela proporção dos impostos pagos. Se isso era liberalismo, não era tanto neo- quanto paleo.

Se a hierarquia racial era um dos fundamentos da ordem global imaginada pelo neoliberalismo, a outra limitação fundamental do estado-nação era o livre fluxo dos fatores de produção. Foi isso que tornou a restauração da mobilidade do capital na década de 1980 um triunfo. Seguindo os passos do jurista e historiador Samuel Moyn, pode-se observar que não foi por acaso que o advento da mobilidade radical do capital coincidiu com o advento dos direitos humanos universais. Ambos reduziram a soberania dos Estados-nação. Slobodian rastreia essa associação intelectual e política até a década de 1940, quando os economistas da escola de Genebra formularam o argumento de que um pilar essencial da liberdade liberal era o direito dos ricos de movimentar seu dinheiro através das fronteiras sem ser impedido pela regulamentação do governo nacional. O que eles exigiam, brinca Slobodian, era o direito humano à fuga de capitais.

Essa ironia coalha um pouco quando recordamos o contexto histórico. Depois de 1933, o direito humano à fuga de capitais não era uma piada neoliberal. O dinheiro era a restrição obrigatória tanto para a capacidade dos judeus alemães e austríacos de deixar o Terceiro Reich quanto para serem aceitos por potenciais países de refúgio. Pode ser típico da hipérbole neoliberal que os defensores da mobilidade do capital acusem o governo dos EUA de recorrer a métodos da "Gestapo" para rastrear a riqueza de "estrangeiros inimigos". Mas não foi por acaso que Reinhard Heydrich, futuro chefe da Gestapo e arquiteto do Holocausto, ganhou destaque no regime nazista em 1936 como chefe da divisão de investigação cambial do Plano de Quatro Anos de Hermann Göring. Os neoliberais estão certos ao insistir nas interconexões entre os movimentos de dinheiro e pessoas. Certamente restringir o primeiro é uma maneira segura de restringir o último, especialmente em um mundo de bem-estar nacional, onde o direito de entrada depende da prova de que você não precisa de assistência social nem de emprego.

Foram esses emaranhados de falta de liberdade que o Caminho da Servidão dissecou com tanta eficácia, o que nos leva à delicada questão de seu autor. Na década de 1990, dificilmente se pode negar que o neoliberalismo era o modo dominante de política na UE, OCDE, GATT e OMC. Mas que tipo de neoliberalismo era esse e o que Hayek tem a ver com isso? Slobodian trabalha duro em seu capítulo final sobre o GATT e a OMC nas décadas de 1980 e 1990 para nos trazer de volta ao tema central hayekiano da impossibilidade de representar a economia mundial como um todo. No caso do pessoal-chave da OMC, ele pode apresentar linhagem neoliberal direta. Como uma questão de biografia intelectual, isso faz sentido. Mas, como Slobodian sabe muito bem, há um contra-argumento óbvio para qualquer alegação de que tais organizações representam o hayekianismo em ação - o profundo ceticismo de Hayek em relação a qualquer coisa que cheire a política econômica convencional, growthmanship ou, de fato, a própria ideia da economia como tal. Isso não impede que os neoliberais práticos façam suas coisas, assim como seus discípulos não estão presos à letra ou ao espírito da Teoria Geral do Emprego de Keynes. Grande parte do sucesso político do neoliberalismo depende da disposição de seus praticantes de descartar ideias-chave de seus pensadores puristas. O que resta no neoliberalismo real, "realmente existente", é precisamente sua ênfase implacável no crescimento e na competitividade como a medida de todas as coisas.

O resultado, no que diz respeito a Hayek, é profundamente irônico. Depois de 1989, ele foi festejado como o padrinho do renascimento capitalista global. Sem dúvida, como anticomunista de longa data, ele teve satisfação com o fim do regime soviético. Mas para Hayek, a Guerra Fria nunca foi mais do que uma "competição tola" na qual ambos os lados tomavam uma medida quantitativa bruta da economia como referência de sucesso e ofereciam a seus cidadãos essencialmente as mesmas promessas. O turbocapitalismo da variedade friedmanite-reagnite era, para Hayek, "tão perigoso" quanto qualquer coisa que Keynes já propôs.

Em um mundo enquadrado pelo que, de acordo com Slobodian, deveria ser considerado uma contradição em termos - o growthmanship neoliberal - como a esquerda deveria responder?

A ênfase esmagadora na prioridade da "economia" e seus imperativos leva muitos da esquerda a adotar uma posição que espelha a de Hayek. Seguindo pensadores como Karl Polanyi, eles criticam a forma como “a economia” assumiu uma autoridade quase divina. Também não é por acaso que a esquerda libertária compartilha a aversão de Hayek pela política econômica de cima para baixo, o que o cientista político James Scott chamou de “ver como um estado”. Como os neoliberais perceberam na década de 1930, o estado-nação e a economia nacional são gêmeos. Se isso permanece um tanto velado nas histórias de países como a França e o Reino Unido, a emergência conjunta do poder estatal e do imperativo desenvolvimentista ficou estampada na face do mundo pós-colonial.

Tais críticas podem ser radicalmente esclarecedoras ao expor os fundamentos de conceitos-chave da modernidade. Mas para onde eles levam? Para Hayek, isso não era uma pergunta. O objetivo era silenciar o debate político. Ao se concentrar em questões amplas da constituição econômica, em vez dos detalhes dos processos econômicos, os neoliberais procuraram proibir questões curiosas sobre como as coisas realmente funcionavam. Foi quando você começou a pedir estatísticas e montar planilhas que deu o primeiro passo perigoso para politizar “a economia”. Em sua crítica ao neoliberalismo, a esquerda desafiou essa despolitização. Mas ao deixar de investigar o funcionamento real do sistema, a esquerda aceitou a injunção de Hayek de que o debate sobre política econômica se limita ao nível mais abstrato e geral. De fato, a preocupação intelectual com a crítica do neoliberalismo é em si sintomática. Concentramo-nos em elucidar a lógica intelectual e a história das ideologias e modos de governo, em vez de investigar os processos de acumulação, produção e distribuição. Estamos, portanto, jogando com os neoliberais em seu próprio jogo.

Dada a associação do neoliberalismo com a globalização, pode ser tentador ver a recuperação da economia nacional como uma saída para essa armadilha. Este é o impulso que está por trás de “Lexit”, que, na melhor das hipóteses, é um apelo por um retorno à ambiciosa social-democracia de esquerda dos anos 1970. Dado que este foi o momento que provocou os neoliberais em seu contra-ataque mais cruel, pode-se ver a atração. A questão é se é uma possibilidade real. Afinal, o Sul global na década de 1970 não propôs uma série de soluções nacionais isoladas, mas uma Nova Ordem Econômica Internacional. E naquele momento, o Sul global poderia recorrer à energia do primeiro surto de política pós-colonial. As paixões desencadeadas no Reino Unido e nos Estados Unidos desde 2016 são de uma safra mais rançosa.

Enquanto permanecer no nível dos gestos abstratos de “retomar o controle", o impulso de resistência espelha aquilo a que se opõe. Ainda não estamos nos envolvendo com os mecanismos reais de poder e produção. Para ir além de Hayek, o que precisamos reviver não é simplesmente a ideia de soberania econômica, seja em escala nacional ou transnacional, mas seus verdadeiros inimigos: o impulso de saber, a vontade de intervir, a liberdade de escolher não privadamente, mas como um corpo político. Uma história anti-hayekiana do neoliberalismo seria aquela que recusa o nível deliberadamente elevado do discurso do neoliberalismo e se dirige, em vez disso, ao que a conversa aérea do neoliberalismo sobre ordens e constituições procura obscurecer: ou seja, os motores grandes e pequenos através dos quais a realidade social e econômica é constantemente feito e refeito, suas ferramentas de poder e conhecimento vão desde indicadores de custo de vida até orçamentos de carbono, testes de emissões de diesel e avaliações escolares. É aqui que encontramos o neoliberalismo real, realmente existente - e talvez esperemos combatê-lo.

Adam Tooze é professor de História Kathryn e Shelby Cullom Davis na Columbia University, onde também dirige o European Institute. Seu livro Crashed: How a Decade of Financial Crises Changed the World será publicado em agosto de 2018.

Segurança pública militarizada

Segmentos do aparato estatal seguirão autoritários

Jorge Zaverucha

Folha de S.Paulo

O cientista político Jorge Zaverucha, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco, no escritório de sua casa, em Recife. Heudes Regis/Folhapress

As transições latino-americanas para a democracia procuraram desmilitarizar a política, tentando levar os militares a se concentrar em suas atividades, como a defesa das fronteiras do Estado. Este processo vem fracassando no Brasil. Os militares federais estão cada vez mais envolvidos em atividades de segurança pública.

A indicação de um general para a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo acordou os paulistas para essa questão. Algo similar só ocorreu quando o coronel do Exército Erasmo Dias esteve à frente dessa pasta durante o regime militar (1974-1978). Em outros estados da Federação, todavia, isso já era uma prática comum. Em Pernambuco, o primeiro titular da recém-criada Secretaria de Defesa Social, em 1999, foi um general de brigada.

Este processo, na verdade, remonta à Constituição de 1988. Esta conservou a falta de uma das principais características do Estado moderno: a clara separação entre a força responsável pela guerra externa (Exército) e a Polícia Militar, encarregada da manutenção da ordem interna.

A PM brasileira, ao contrário de outros países, é força auxiliar do Exército em atividades de segurança pública. E o Exército é, crescentemente, chamado pelo poder civil para executar Operações de Garantia da Lei e da Ordem, que incluem ações de segurança pública, como a ocorrida na intervenção no Rio de Janeiro.

A Constituição de 1988 cometeu, também, o erro de reunir, em um mesmo Título V (Da Defesa do Estado e das Instituições), três capítulos: o Capítulo I (Do Estado de Defesa e do Estado de Sítio), o Capítulo II (Das Forças Armadas) e o Capítulo III (Segurança Pública). As polícias continuaram, mesmo em menor grau, a defender mais o Estado que o cidadão.

Chegou-se a ponto de apagar do texto constitucional a expressão "policial militar", sendo substituída por "militar estadual". Algo que nem o regime militar ousou fazer. Hoje os conceitos sobre segurança nacional e segurança pública tornaram-se, praticamente, sinônimos. Mormente, com o crescimento do poder bélico das facções que compõem o crime organizado.

O termo Polícia Militar é um oxímoro. Doutrinariamente, polícia como órgão incumbido de prevenir a ocorrência da infração penal e, se ocorrida, exercendo as atividades de repressão, é uma instituição de caráter civil. Não há necessidade de acrescentar a palavra militar ao substantivo polícia. No mundo democrático, as polícias militares são conhecidas como Carabineros, Carabinieri, Gendarmería, Polícia Montada, Guarda Republicana etc. E na Espanha, particularmente, por Guardia Civil. No sentido de guardar o cidadão.

A militarização é crescente quando os valores das Forças Armadas se aproximam dos valores da sociedade. Decepcionada com o desempenho de seus políticos e de suas polícias estaduais, boa parte da sociedade enaltece os valores castrenses tais como disciplina, ordem, honestidade, organização e patriotismo.

A incapacidade da elite civil de gerir o Brasil de uma forma não cleptocrática e inclusiva faz com que a presença militar na política e na segurança se avolume. As perspectivas são de que, tal como nos anos anteriores, segmentos do aparato estatal continuarão autoritários no futuro governo. Em contraste com o Chile, Uruguai e Argentina, onde o controle civil sobre os militares se afirma dia após dia.

Sobre o autor


Doutor em ciência política pela Universidade de Chicago e professor titular do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco

29 de dezembro de 2018

O lado esquerdo da igreja

A igreja é responsável por uma série de injustiças - e hoje a retórica cristã é usada para defender um capitalismo neoliberal violento. Mas a gloriosa tradição da teologia da libertação não pode ser esquecida.

Hugh McDonnell

Jacobin

A entrada do centro comunitário serve como lembrete e homenagem ao trabalho e vida do arcebispo Oscar Romero, Colonia Dolores, San Salvador, El Salvador. Alison McKellar / Flickr.

Tradução / O ano de 1968 ocasionou muita reflexão sobre esse momento crucial do século XX. Apesar da imagem que tipicamente retrata aquele ano de revolta ser a de estudantes montando barricadas nas ruas de Paris ou dos protestos em Berkeley contra a Guerra do Vietnã, 1968 também foi marcado por desafios aos poderes político e social em todo o mundo. Curiosamente esquecida, no entanto, é a Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano — um evento crucial no desenvolvimento da Teologia da Libertação em toda a América Latina. As declarações da conferência abriram novos caminhos ao expandir a noção de “libertação” teológica para implicar um processo humanizador positivo e atacar as estruturas políticas, sociais e econômicas que mantiveram milhões de latino-americanos empobrecidos e oprimidos.

Recordar a rejeição do papel tradicional da igreja pela Teologia da Libertação como baluarte de reação e resistência em vez de uma “opção preferencial para os pobres” ganha uma importância adicional, dada a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2019. Apelando para a defesa da “civilização cristã” como um apoio ideológico ao racismo e à guerra de classes de cima para baixo, o presidente eleito ecoa a retórica da ditadura militar de 1964-1985 — regime que exalta abertamente — junto às justificativas apresentadas por figuras como Jorge Rafael Videla e Augusto Pinochet pelo assassinato em massa de suspeitos de dissidência em todo o continente.

Se tem um episódio histórico que rivaliza o fetiche de Bolsonaro pelo Estado e pela igreja é a ditadura, da qual ele lembra com tanto carinho. O jovem padre Frei Betto foi preso, torturado e preso por esse regime no início da década de 1970 devido ao seu trabalho de apoio a militantes de esquerda, incluindo o escritor marxista, político e guerrilheiro Carlos Marighella. Betto foi repreendido pelo interrogador da polícia: “Como pode um cristão colaborar com um comunista?”

Betto respondeu que “para mim, os homens são divididos não entre crentes e ateus, mas entre opressores e oprimidos, entre aqueles que querem manter essa sociedade injusta e aqueles que lutam por justiça”. Pressionando seu prisioneiro, o policial respondeu: “Você esqueceu que Marx considerava a religião o ópio do povo?” Por sua vez, Betto insistiu: “É a burguesia que transformou a religião em ópio do povo, rezando para um Deus lá no Céu, enquanto toma posse da Terra para o seu próprio benefício”.

O ativismo de Betto fazia parte da tendência mais ampla da igreja brasileira, que unia esforços junto aos pobres, oprimidos e desprezados do país, paralelamente aos movimentos sociais na América Latina catalisados pela Conferência de Medellín. Sua trajetória também exemplifica o ponto crucial de que a Teologia da Libertação estava muito longe de uma reconsideração de doutrina rarefeita e desapegada.

Ao contrário, devido a sua interconexão inextricável com movimentos populares por justiça política e social obscenamente reprimidos, seria mais adequado falar sobre “cristianismo libertacionista”, pedindo emprestado o termo de Michael Löwy. Sem reduzir a complexidade e a variação do cristianismo liberacionista, o diálogo de Betto era indicativo de três linhas comuns nessa influente minoria da igreja latino-americana.

Primeiro, uma concepção de fé ou crença com ênfase na observação contemplativa de ritos e na adesão a um corpo de doutrina e prática ritualística não era mais sustentável. Em vez disso, foi apresentado um entendimento alternativo, que reconcebia as demandas da fé como, antes de tudo, um compromisso com os oprimidos e com o sofrimento.

Nessa visão, os cristãos libertacionistas não se entendiam como tendo um conhecimento superior para transmitir ao mundo, como se, condescendentemente, seus camaradas ateus de esquerda fossem cristãos sem saber. Da mesma forma, o alvo dos teólogos da libertação não era explicitamente o ateísmo, mas a idolatria — os novos ídolos da morte adorados pelos faraós, césares e Herodes contemporâneos: riqueza, mercado, segurança nacional, Estado, força militar, “civilização cristã ocidental”.

Em segundo lugar, a caridade foi reconcebida para livrar o conceito de associações remanescentes com a hierarquia paternalista e a auto-justificação associadas ao sistema que produziu a necessidade da caridade em primeiro lugar. Como afirmou o cardeal Dom Helder Câmara: “Enquanto eu pedia às pessoas que ajudassem os pobres, fui chamado de santo. Mas quando perguntei: por que há tanta pobreza? Fui chamado de comunista.”

O cristianismo libertacionista, por sua vez, encontrou na resolução marxista de solidariedade com os oprimidos em sua auto-emancipação uma conceituação apropriada de caridade. O envolvimento com o conceito marxista de proletariado não foi, no entanto, uma redução a ele — ao contrário dos críticos da Teologia da Libertação dentro da igreja.

O termo “pobretariado”, cunhado por ativistas sindicais marxistas cristãos em El Salvador, captura claramente as tentativas do cristianismo libertacionista de abranger a experiência especificamente latino-americana do capitalismo periférico dependente. Esses pobres crucificados, portanto, incluíam não apenas classes exploradas, mas também excluídas do sistema formal de produção, raças desprezadas e culturas marginalizadas e, como enfatizaram figuras como Gustavo Gutiérrez, as mulheres, uma categoria social duplamente oprimida.

Uma terceira inovação foi a rejeição da separação tradicional entre religião e política. A religião estática e privatizada e a concepção burguesa truncada de amor foram rejeitadas em favor da luta contra estruturas políticas e econômicas desumanizadoras. A teoria da dependência galvanizou uma compreensão do “pecado estrutural” e um anticapitalismo mais profundo do que o de muitos dos partidos e movimentos de esquerda estabelecidos no continente. Como Gutiérrez, um dos teólogos da libertação mais influentes e principal consultor de Medellín, colocou em 1971:

negar a realidade da luta de classes significa, na prática, assumir uma posição a favor dos setores sociais dominantes. A neutralidade nesta questão é impossível. [O que é necessário é] eliminar a apropriação feita por alguns das mais-valias produzidas pelo trabalho da grande maioria, e não apelos líricos a favor da harmonia social. Precisamos construir uma sociedade socialista mais justa, mais livre e mais humana, e não uma sociedade de falsa conciliação e aparente igualdade.

Como surgiu a Teologia da Libertação e como ela se manifestou nas lutas políticas e sociais? E qual é o sua situação hoje, principalmente em vista da maré reacionária na América Latina e no mundo?

Primórdios

“De uma maneira simbólica”, sugere Löwy, “pode-se dizer que a corrente cristã radical nasceu em janeiro de 1959 no momento em que Fidel Castro, Che Guevara e seus camaradas marchavam para Havana, enquanto em Roma João XXIII emitia seu primeiro pedido de convocação do Concílio [Vaticano II]”. De maneira mais ampla, esse momento foi caracterizado pela industrialização da América Latina sob a hegemonia do capital multinacional e, nas palavras de André Gunder Frank, “desenvolveu o subdesenvolvimento” — cujos sintomas eram maior dependência, aprofundamento da divisão social, êxodo rural e um crescente empobrecimento e marginalização da população urbana pobre.

Nesse contexto, a Revolução Cubana desencadeou um novo ciclo de lutas sociais intensificadas, o advento de movimentos de guerrilha, uma sucessão de golpes militares e uma crise de legitimidade do sistema político em todo o hemisfério.

Visto o tradicional papel da igreja latino-americana como bastião de apoio a esse sistema, não era de forma alguma esperado que ela interviesse do lado das lutas sociais emergentes. O fato de uma minoria influente ter feito isso pode ser atribuído ao surgimento da teologia crítica no início do século XX e à abertura para as ciências sociais na tentativa de modernização da Igreja pelo Vaticano II.

Teólogos alemães como Karl Rahner e franceses como Emmanuel Mounier, que se apoiaram no pensamento anticapitalista francês, foram particularmente importantes. Tendências heterodoxas dentro do marxismo, como a filosofia da esperança de Ernst Bloch e a Escola de Frankfurt, também inspiraram os teólogos da libertação, assim como a sociologia e a economia marxista de forma mais ampla — as quais caracterizaram as declarações da Conferência de Medellín.

Fundamentalmente, porém, a Teologia da Libertação não se tratava simplesmente de uma extensão das inovações teológicas européias ou de uma retomada da antiga antipatia católica conservadora pelo capitalismo. A Teologia da Libertação envolveu a criação de uma nova cultura religiosa para expressar as condições específicas da América Latina: capitalismo dependente, pobreza maciça, violência institucionalizada, religiosidade popular. Ela rejeita as concepções eurocêntricas da história encontradas até mesmo no pensamento progressista, com sua visão otimista a partir de uma narrativa presunçosa de progresso e avanço tecnológico. Em vez disso, a Teologia da Libertação pensa a história do ponto de vista inverso daquele que enxerga derrotados e excluídos, considerando os pobres como verdadeiros portadores da universalidade e da redenção.

Um momento icônico no desenvolvimento do cristianismo libertacionista foi a morte de Camilo Torres, um padre que organizou um movimento popular militante e depois se juntou ao Exército de Libertação Nacional (ELN), um movimento guerrilheiro castrista na Colômbia, em 1965. Para Torres, “a revolução não é apenas permitida, mas obrigatória para os cristãos.” Ele foi morto em 1966 em um confronto com o Exército, mas seu martírio teve um profundo impacto emocional e político nos cristãos latino-americanos.

Sacerdotes radicalizados se organizaram em todo o continente — o Movimento Sacerdotes para o Terceiro Mundo na Argentina em 1966, a Organização Nacional para a Integração Social (ONIS) no Peru em 1968, o Grupo Sacerdotal de Golcanda na Colômbia, também em 1968, os Cristãos pelo Socialismo no Chile de Allende em 1971 — enquanto um número crescente de cristãos se envolvia ativamente nas lutas populares. Esses sacerdotes reinterpretaram o Evangelho à luz dessa prática e muitas vezes viam no marxismo uma chave para a compreensão da realidade social e um guia para mudá-la.

Brasil

A igreja brasileira é a única igreja no continente onde a Teologia da Libertação e seus seguidores pastorais ganharam influência decisiva. Muitos dos movimentos populares brasileiros que obtiveram ganhos impressionantes em relação à justiça social nas últimas décadas são, em grande parte, produto da atividade popular de cristãos comprometidos, agentes pastorais leigos e comunidades de base cristã: a Central Única dos Trabalhadores (CUT), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), as associações de bairros pobres — e sua expressão política, o Partido dos Trabalhadores (PT).

Dadas as relações culturais particularmente estreitas com a França, a teologia progressista francesa avançou mais rapidamente no Brasil do que em qualquer outro lugar do hemisfério, sendo também uma ferramenta prontamente disponível para entender as correntes desencadeadas pela Revolução Cubana. Já em 1960, a Juventude Universitária Católica (JUC) se radicalizou e avançou muito rapidamente em direção a ideias socialistas e de esquerda.

No início da década de 1960, surgiram ideias sobre as especificidades da situação brasileira à luz de desenvolvimentos políticos e teológicos mais distantes. Um aspecto importante do desenvolvimento do cristianismo libertacionista no Brasil foi a educação popular. Envolvendo-se com a pedagogia revolucionária de Paulo Freire, o Movimento pela Educação Básica (MEB) foi a primeira tentativa católica de uma prática pastoral radical entre as classes populares. O MEB visava não apenas levar a alfabetização aos pobres, mas também conscientizá-los e ajudá-los a assumir o controle da sua própria trajetória.

Em abril de 1964, os militares tomaram o poder para salvar a “civilização cristã ocidental” do “comunismo ateísta” — em suma, para defender a oligarquia dominante ameaçada pelo surgimento de movimentos sociais sob o presidente eleito João Goulart. Não surpreendentemente, a nova ditadura foi rapidamente endossada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em junho de 1964: “ao rendermos graças a Deus, que atendeu às orações de milhares de brasileiros e nos livrou do perigo comunista, agradecemos aos militares, que, com grave risco de suas vida, se levantaram em nome dos supremos interesses da nação.”

Esse sentimento, no entanto, não foi compartilhado por muitos ativistas e padres cristãos, muitos dos quais estavam entre as primeiras vítimas da reação das autoridades à “ameaça vermelha”.

Se a esquerda cristã foi inicialmente fragmentada pela repressão e pela marginalização, nos anos seguintes, um número crescente de cristãos, inclusive alguns bispos, começou a apoiar a oposição à ditadura conforme ela reprimia a sociedade civil. Alguns deles se radicalizaram e, em 1967–68, um grande grupo de dominicanos, incluindo Frei Betto, resolveu apoiar a resistência armada e ajudar movimentos clandestinos como o ALN (Ação Libertadora Nacional) — um grupo guerrilheiro fundado por Carlos Marighella, ex-líder da Partido Comunista Brasileiro, — escondendo militantes ou ajudando alguns deles a fugir do país.

Em breve, vários deles seriam presos e torturados pelos militares, e o movimento de guerrilha destruído. A opressão contra os ativistas cristãos foi intensificada, e sua “subversão” brutalmente reprimida com prisões, estupros, tortura e assassinato — particularmente depois que as liberdades civis e garantias jurídicas restantes foram cerceadas em dezembro de 1968.

A instituição da igreja, Inicialmente cautelosa ao desafiar essa repressão, mudou de rumo em 1970 com a adesão do novo arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns, conhecido por seu compromisso com a defesa dos direitos humanos e sua solidariedade com os ativistas religiosos presos. Tamanha foi a reviravolta que, durante a década de 1970, após a aniquilação da esquerda clandestina, a igreja se tornou, tanto para amigos quanto para inimigos, a principal oposição ao regime. Nessa época, a igreja ofereceu proteção a ativistas de direitos humanos, intelectuais, movimentos trabalhistas, sindicatos, camponeses e repreendeu o regime por sua violência, ilegalidade e supressão da democracia.

Suas críticas se estenderam a uma denúncia do modo de desenvolvimento imposto pelos militares e de sua suposta “modernização” como desumana, injusta e baseada na marginalização e opressão social e econômica dos pobres. Em 1973, por exemplo, os bispos e líderes estaduais de várias ordens religiosas no nordeste e centro-oeste do Brasil emitiram declarações que denunciavam não apenas a ditadura, mas o próprio capitalismo como “a raiz do mal”.

Nicarágua

O cristianismo libertacionista também se enraizou no solo fértil da América Central, embora muito mais tarde do que no Brasil. Foi um componente vital da luta sandinista e da revolução de 1979 na Nicarágua. A derrubada da ditadura de Somoza, apoiada pelos EUA, foi a primeira revolução nos tempos modernos em que os cristãos — leigos e clérigos — desempenharam um papel essencial, tanto na base como nos níveis de liderança do movimento.

Antes da Conferência de Medellín, a igreja nicaraguense era uma instituição tradicionalista e socialmente conservadora, que apoiava abertamente a dinastia dominante de Somoza. Em 1950, por exemplo, seus bispos emitiram uma declaração proclamando que toda autoridade deriva de Deus e que, portanto, os cristãos deveriam obedecer ao governo estabelecido.

Após a Conferência de Medellín, houve um desenvolvimento muito mais amplo das comunidades de base, estabelecido através da solidariedade e da auto-organização consciente de classe, que também se valeu dos importantes esforços de organização do clero e das ordens religiosas europeias e estadunidenses, incluindo figuras como Maura Clarke, que seria morta pelos militares de El Salvador em 1980. As comunidades de base se expandiram numericamente no campo e nas favelas de Manágua ao mesmo tempo em que se radicalizavam cada vez mais.

A organização de base e a radicalização dessas comunidades levaram muitos de seus membros a se tornarem ativistas ou simpatizantes da Frente Sandinista de Liberacíon Nacional (FSLN). O movimento guerrilheiro marxista fundado no início dos anos 1960 por Carlos Fonseca e Tomás Borge combinou as tradições do nacionalismo agrário radical, do marxismo guevarista e do cristianismo revolucionário. O movimento recebeu com entusiasmo esses jovens radicais cristãos, sem tentar impor condições ideológicas. As fileiras da FSLN também atraíram números significativos do crescente movimento universitário católico, muitas vezes através do Movimento Revolucionário Cristão.

Isso não quer dizer que a igreja como um todo tenha abraçado a revolução. Esquematicamente, pode-se apontar a hostilidade dos bispos, o apoio de ordens religiosas e a divisão do clero diocesano entre esses dois campos, com a maioria apoiando os bispos. No entanto, mesmo os principais membros da igreja nicaraguense se tornaram cada vez mais críticos ao regime de Somoza, que mergulhou em uma crise na década de 1970.

Com a insurreição sandinista descarrilando a ditadura durante as insurreições de 1978-1979, a fuga de Somoza e a vitória dos sandinistas em julho de 1979, as autoridades da igreja apoiaram o FSLN, emitindo uma condenação geral da violência.

No entanto, muitos cristãos, particularmente jovens e pobres, participaram ativamente do levante sandinista, ignorando o conselho das autoridade eclesiásticas. As áreas em que a luta foi mais intensa e a ação mais eficaz e melhor organizada foram justamente aquelas em que comunidades de base e cristãos radicais haviam atuado nos anos anteriores. Além disso, muitos padres, religiosos (especialmente capuchinhos e jesuítas) e freiras deram apoio direto aos sandinistas, fornecendo comida, abrigo, remédios e munição.

A novidade histórica da enorme contribuição cristã para a revolução não se perdeu na Frente Sandinista, que reconheceu em sua Declaração sobre a Religião em outubro de 1980 que “os cristãos têm sido parte integrante de nossa história revolucionária em um grau sem precedentes em qualquer outro movimento revolucionário da América Latina e possivelmente do mundo…. Nossa experiência mostrou que é possível ser crente e ao mesmo tempo consistentemente revolucionário, e que não há contradição irreconciliável entre os dois”. Essa confiança foi confirmada com a participação de três padres no governo sandinista.

El Salvador

Como na Nicarágua, foi somente após a Conferência de Medellín que as coisas começaram a mudar na igreja salvadorenha. Sob a influência da nova orientação adotada em 1968 pelos bispos da América Latina e dos primeiros escritos da Teologia da Libertação, um grupo de padres iniciou o trabalho missionário entre os camponeses pobres da diocese de Aguilares em 1972–73.

A figura central desse grupo era o padre Rutilio Grande, um jesuíta salvadorenho que lecionava no seminário de San Salvador, mas decidiu deixar a cidade para viver com os pobres da zona rural.

A equipe missionária dos padres (muitos deles jesuítas) viveu entre os camponeses e iniciou comunidades de base estabelecidas através do entendimento do plano de Deus como uma rejeição das relações humanas opressivas. Um objetivo central da instrução bíblica era romper com o que eles consideravam ser a passividade da religião camponesa tradicional. Foi dito aos paroquianos que, em vez de apenas “adorar” a Jesus, era mais importante seguir seu exemplo e lutar contra o mal no mundo. Isso envolveu a auto-organização para lutar contra o que eles identificaram como pecado social — acima de tudo, a exploração capitalista. Eles também promoveram autoconfiança entre os camponeses, gerando o advento de uma nova liderança eleita pela comunidade.

A oposição à Teologia da Libertação foi ainda mais aguda na igreja salvadorenha do que na Nicarágua. Uma exceção importante foi Óscar Romero, que havia sido nomeado arcebispo de San Salvador em 1977 como uma escolha conservadora segura.

Como ele diria mais tarde aos seus amigos, ele foi escolhido como o mais provável de neutralizar os “padres marxistas” e as comunidades de base, além de melhorar as relações entre a igreja e o governo militar, que se deterioraram sob seu antecessor. Gillo Pontecorvo, diretor do icônico filme A Batalha de Argel, comentou certa vez que esperava fazer um filme sobre Romero para explorar sua atípica conversão de conservador para radical.

Essa conversão foi inicialmente ocasionada pelo assassinato de Rutilio Grande, que havia sido um grande amigo de Romero em sua chegada, apesar de suas diferentes orientações políticas. Após 1978, Romero foi profundamente influenciado pelo teólogo da libertação espanhol Jon Sobrino. O arcebispo entrou em crescente conflito com os bispos conservadores, o núncio apostólico, os militares, a oligarquia e, finalmente, com o próprio Papa. Romero se reunia regularmente com padres radicais e com as comunidades de base, e mais tarde com sindicalistas e militantes.

Seus sermões de domingo eram assistidos por milhares de fiéis, enquanto centenas de milhares ouviam sua mensagem sobre a auto-emancipação dos pobres pela rádio da igreja. Em fevereiro de 1980, Romero publicou sua carta ao presidente estadunidense Jimmy Carter, implorando que não fornecesse ajuda militar ao regime salvadorenho e não interferisse no destino de seu povo.

Um mês depois, ele fez um discurso especial para os soldados não obedecerem a seus superiores, lembrando-lhes que os camponeses que eles mataram eram seus irmãos e irmãs, e que não tinham a obrigação de seguir tais ordens. No dia seguinte, o próprio Romero foi morto pelos esquadrões da morte paramilitares. Após sua morte, ele se tornou um símbolo carismático para cristãos comprometidos na América Latina.

Sementes plantadas

Muitos analistas têm apontado para uma recessão no destino da Teologia da Libertação nos últimos anos. Uma fonte da contrariedade tem sido a ascensão do cristianismo evangélico na América Latina, através do grande apoio dos EUA, principalmente a partir da década de 1980. Com importantes exceções, o evangelismo latino-americano geralmente promove a prática religiosa apolítica, se não a reação direta e a celebração subserviente da prosperidade. É, notavelmente, uma base fundamental do apoio de Bolsonaro.

A igreja rebelde também não deixou de ser tocada pela maré do liberalismo triunfante de 1989, embora não tenha sido associada à rigidez e crueldade do comunismo ao estilo soviético. A derrota do governo sandinista nas eleições do ano seguinte foi, igualmente, um grande golpe ao cristianismo radical em toda a América Latina.

Recentemente, o interesse na Teologia da Libertação foi regenerado, dada a posição de figuras como Betto como conselheiro do ex-presidente Lula e da importância atribuída à Teologia da Libertação pelo ex-presidente equatoriano Rafael Correa em sua própria formação política. Um dos obstáculos mais consistentes ao avanço do cristianismo libertacionista tem sido a suspeita ou hostilidade total do Vaticano. Assim, a adesão do Papa Francisco e suas exortações contra a injustiça do capitalismo e a canonização de Romero naturalmente contribuíram para a renovação do interesse pelo fenômeno.

Contra os prognósticos de que é uma força gasta, Löwy argumenta que “uma semente foi plantada pelo cristianismo libertacionista no centro da cultura política e religiosa da América Latina, que continuará a crescer e florescer nas próximas décadas e ainda tem muitas surpresas na manga”. A Teologia da Libertação ainda tem uma contribuição importante a fazer na reparação do destino deprimido da onda progressista na América Latina — na recusa de um status quo consensual e inaceitável, e na militância paciente e reflexiva ao lado dos oprimidos.

No mínimo — dado o registro sórdido da perpetuação de injustiças monstruosas por parte da igreja e a prevalência da retórica cristã a serviço do capitalismo neoliberal e suas consequências: as desigualdades desenfreadas, o empobrecimento e violência — a Teologia da Libertação é uma tradição que vale a pena lembrar.

Sobre o autor

Hugh McDonnell é doutor em História pela Universidade de Amsterdã.

Sem imprestáveis

O socialismo de estado foi a prova: quando as mulheres têm independência econômica dos homens, elas não ficam em relacionamentos ruins.

Kristen R. Ghodsee


Um cartão postal de 1975 da Alemanha Oriental. PK / Flickr.

Tradução / Em seu novo livro Por que as mulheres tem melhor sexo sob o socialismo, a etnógrafa Kristen Ghodsee relata uma piada popular que é contada em muitas línguas do Leste Europeu:

No meio da noite, uma mulher grita e salta da cama, com os olhos cheios de terror. Seu marido assustado a observa correndo para o banheiro e abre o armário dos remédios. Em seguida, ela corre para a cozinha e inspeciona o interior da geladeira. Finalmente, ela abre uma janela e olha para a rua abaixo do apartamento deles. Ela respira fundo e volta para a cama.

"O que há de errado com você?", diz seu marido. "O que aconteceu?"

"Tive um pesadelo terrível", diz ela. "Sonhei que tínhamos o remédio que precisávamos, que nossa geladeira estava cheio de comida e que as ruas lá fora estavam seguras e limpas".

"E por que isso seria um pesadelo?"

A mulher sacode a cabeça tremendo e diz: "pensei que os comunistas estavam de volta ao poder".

Centenas de milhões de europeus orientais, incluindo muitos que abominavam a realidade política por trás da Cortina de Ferro, relatam que seu padrão básico de vida era mais alto sob o "socialismo autoritário" do que sob o capitalismo de livre mercado contemporâneo. Pegando a deixa deles, o livro de Ghodsee parte da premissa de que alguns aspectos da vida eram melhores sob o socialismo de Estado do século XX do que são hoje. Admitir as partes ruins não significa ignorar as partes boas: é o que ela pensa. Pode-se reconhecer simultaneamente os horrores da polícia secreta e o conforto de uma forte rede de seguridade social.

Uma das características mais positivas do socialismo de Estado, argumenta Ghodsee, é que ele deu às mulheres independência econômica dos homens. Nos antigos países soviéticos, as mulheres podem não ter participado de algumas "eleições livres" ou encontrado uma diversidade de bens de consumo, mas lhes foi garantida educação pública, empregos, moradia, assistência médica, licença maternidade, auxílio social para crianças, creche e muito mais. Este arranjo não apenas libertou mulheres e homens de ansiedades e pressões do nadar-ou-morrer do capitalismo, mas também significou que as mulheres tinham muito menos probabilidade de depender dos parceiros homens para a satisfação de necessidades básicas. Isso, por sua vez, significava que as relações românticas das mulheres heterossexuais com os homens eram mais opcionais, menos constrangidas por considerações econômicas, e muitas vezes mais igualitárias. Como Ghodsee escreve em seu livro:

Quando as mulheres usufruem de suas próprias fontes de renda, e o Estado garante a seguridade social na velhice, doença e incapacidade, as mulheres não têm nenhuma razão econômica para permanecer em relacionamentos abusivos, não satisfatórios ou não-saudáveis em geral. Em países como Polônia, Hungria, Tchecoslováquia, Bulgária, Iugoslávia e Alemanha Oriental, a independência econômica das mulheres se traduziu em uma cultura na qual as relações pessoais poderiam ser liberadas das influências do mercado. As mulheres não precisavam se casar por dinheiro.

Para debater mais sobre esse assunto, a escritora da Jacobin Meagan Day conversou com Ghodsee sobre as perspectivas da mulher sob o socialismo e o capitalismo.

Meagan Day

Nos antigos países socialistas de Estado, as mulheres hoje são muito mais propensas do que suas companheiras do Ocidente a trabalhar na Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática (as áreas chamadas de "Exatas" ou "STEM"). Por que isso acontece?

Kristen R. Ghodsee

Isso é resultado da educação e treinamento intencionais que as mulheres tiveram nesses campos sob o socialismo de Estado.

Neste momento, a Bulgária e a Romênia têm a maior porcentagem de mulheres que trabalham em tecnologia da União Europeia. A razão é que havia políticas em vigor que permitiam que as mulheres entrassem em campos que no Ocidente permanecem dominados pelos homens. Houve um esforço conjunto por parte dos governos socialistas de Estado, remontando aos anos 30 na União Soviética e aos anos 50 na Europa Oriental, para integrar as mulheres nos setores antes mais masculinos da economia – direito, medicina, universidade, bancos. As mulheres eram até treinadas nas Forças Armadas, como pilotas, franco-atiradoras e paraquedistas.

Mesmo assim, uma nova divisão de trabalho baseada no gênero surgiu sob o socialismo do século XX. As economias socialistas valorizavam o trabalho físico em detrimento do que poderíamos pensar como trabalho "de escritório". Os homens eram mais propensos a realizar o primeiro e as mulheres o segundo.

O emprego masculino era frequentemente melhor remunerado. Mas, por outro lado, os salários não importam tanto quando o Estado fornece uma enorme gama de serviços sociais. O Estado garantia empregos, moradia, assistência médica, educação e coisas como creche e licença maternidade prolongada e remunerada. As mulheres não eram compensadas tão bem quanto os homens, mas ainda tinham um grau maior de independência econômica em relação aos homens hoje em dia.

As feministas socialistas de Estado – e eu deveria colocar o termo “feminista” entre aspas, porque na realidade elas eram ativistas mulheres – entenderam que as mulheres tinham necessidades diferentes dos homens e procuraram implementar políticas para atender a essas necessidades. Não estamos falando de gênero ou igualdade sexual exatamente da forma como foi articulada pelas feministas ocidentais da segunda onda. A ideia era, ao invés disso, que homens e mulheres ambos faziam contribuições valiosas para a sociedade, mas de maneiras diferentes. O papel da mulher como mãe era frequentemente presumido. Para esse fim, foram implementadas muitas políticas estatais para lidar com as questões de equilíbrio trabalho-família com as quais as mulheres ainda debatem hoje no Ocidente.

Meagan Day

Os governos socialistas de Estado tentaram socializar não apenas o acesso à saúde, moradia e educação, mas também o trabalho doméstico e os cuidados infantis. Qual foi o pensamento por trás desse esforço?

Kristen R. Ghodsee

Esta ideia de que devemos socializar o trabalho doméstico para torná-lo valioso remonta à socialista utópica Flora Tristan, na França, nos anos 1840. Décadas depois, a socialista alemã Lily Braun teve a ideia do que ela chamou de seguro de maternidade, e a socialista alemã Clara Zetkin desenvolveu mais a ideia de socializar o cuidado infantil e o trabalho doméstico.

A teoria se tornou uma realidade depois de 1917 na União Soviética, com o apoio de Lenin e especialmente de Alexandra Kollontai, que era a comissária do bem-estar social. Kollontai tentou colocar em prática a socialização do cuidado infantil na criação dos lares de crianças. Ela queria criar cantinas públicas onde as pessoas pudessem comer. Ela queria criar lavanderias públicas. Ela também queria criar cooperativas para conserto de roupas, porque naquela época essa era uma tarefa enorme que as mulheres tinham que fazer em casa e ela achava que seria mais eficiente se fosse feita coletivamente, reduzindo a carga sobre as mulheres individualmente.

Tudo isso foi tentado no início dos anos vinte. O problema é que o Estado soviético não era suficientemente rico e entrou em colapso. Todas estas leis foram revertidas até 1936 porque Stalin disse: “Temos que pegar nossos recursos e colocá-los na economia industrial, e é muito mais acessível para nós colocar estas mulheres fazendo este trabalho em casa de graça”. Mas, o mais importante, essas mesmas políticas que Kollontai tentou implementar nos anos 20 ressurgiram na Europa Oriental depois de 1945.

Meagan Day

Que efeito essas mudanças estruturais tiveram nas relações entre os indivíduos homens e mulheres nos países socialistas de Estado? Estou pensando em um exemplo de seu livro de homens observando que as mulheres na Alemanha Oriental eram mais difíceis de conquistar com um salário atraente. “Você tinha que ser interessante”, lembrou um homem.

Kristen R. Ghodsee

O que vemos é que quando as mulheres têm independência econômica em relação aos homens – no sentido de que podem sustentar filhos fora do casamento, têm empregos, têm pensões, têm acesso à moradia e suas necessidades básicas como serviços públicos e alimentação subsidiados – elas não ficam em relacionamentos insatisfatórios. Quando podem sair, não ficam com homens que não as tratam bem.

Portanto, se um homem é heterossexual e quer ter um relacionamento com uma mulher, não é tão fácil conseguir uma mulher fornecendo a segurança econômica que ela não possui, ou comprando-lhe algo que ela precisa. Ele tem que ser gentil, atencioso, atraente de outras maneiras. E acontece que quando os homens têm que ser “interessantes” para atrair as mulheres, eles o são. Na verdade, eles acabam sendo homens melhores. Não é um conceito assim tão difícil. Não sei por que as pessoas ficam tão chocadas com isso.

Mais uma vez, quero ter cuidado para não idealizar a vida por trás da Cortina de Ferro. Havia alguns aspectos muito negativos, obviamente. Mas, por outro lado, houve alguns efeitos sociais demonstravelmente positivos da emancipação econômica das mulheres. Também podemos ver esses mesmos efeitos sociais hoje em dia em países mais sociais-democratas como a Suécia, a Noruega ou a Dinamarca.

Meagan Day

As feministas ocidentais são profundamente apegadas ao projeto de reformar ou civilizar homens individualmente. Isso não é necessariamente um objetivo mal orientado, uma vez que o comportamento dos homens muitas vezes apresenta problemas reais para as mulheres. Se esse comportamento é o problema número um que as mulheres enfrentam ou não é uma questão à parte. Mas mesmo que você pense que é, e que abordar o comportamento dos homens seja seu principal projeto político, então o que esta história nos mostra é que mudanças econômicas estruturais podem realmente ser uma maneira melhor de lidar com isso.

Kristen R. Ghodsee

Suponho que para muitas pessoas a missão civilizatória individual pareça mais viável do que uma mudança estrutural, de modo que se sintam compelidas a concentrar sua energia limitada dessa forma. Mas penso que em uma cultura onde as mulheres têm mais oportunidades econômicas, os homens se auto civilizam de certa forma porque percebem que se querem ter relações com as mulheres não podem ser abusivos, não podem tomar as mulheres como um direito adquirido.

Havia feministas socialistas brilhantes nos anos 70, pessoas como Silvia Federici e outras, que defendiam que grandes mudanças estruturais iriam reorganizar as relações entre homens e mulheres. O que aconteceu é que, como escreveu Nancy Fraser, o feminismo foi amplamente cooptado pelo capitalismo neoliberal. Assim, acabamos recebendo uma espécie de feminismo ao estilo de Sheryl Sandberg, que tem tudo a ver com o sucesso individual e cria condições para que um punhado de mulheres seja tão podre de rica quanto um punhado de homens.

A ideia de um feminismo socialista evaporou com o retrocesso geral global contra o marxismo e a ascensão do neoliberalismo. Ainda estamos sobrevivendo a isso.

Meagan Day

Você escreveu que o colapso do socialismo de Estado na Europa Oriental “criou um laboratório perfeito para investigar os efeitos do capitalismo sobre a vida das mulheres”. Você documenta alguns dos efeitos mais duros nesta passagem:

“Hoje, noivas russas por correspondência, trabalhadoras sexuais ucranianas, babás moldavas e criadas polonesas inundam a Europa Ocidental. Intermediários sem escrúpulos colhem cabelos loiros de adolescentes pobres da Belorússia para os fabricantes de perucas de Nova Iorque. Em São Petersburgo, as mulheres frequentam escolas para aspirantes a esposas-troféu. Praga é um epicentro da indústria pornográfica européia. Traficantes de pessoas percorrem as ruas de Sófia, Bucareste e Chișinău à procura de meninas infelizes que sonham com uma vida mais próspera no Ocidente.”

Os ocidentais em geral têm consciência do empobrecimento das mulheres dos antigos Estados soviéticos e da intensificação da opressão de gênero consequente. Mas quando se pergunta por quê, acho que a explicação padrão é que a culpa é do comunismo. Seu livro traz uma argumentação extensa sobre como, na verdade, a culpa é do capitalismo. Então, por que o capitalismo, e não o socialismo, é o culpado por esta situação?

Kristen R. Ghodsee

Quando o socialismo de Estado foi desmantelado, isso significou a privatização e a liquidação das empresas estatais e a erosão do estado de bem-estar social. Muitos recursos para as mulheres desapareceram – licença maternidade paga, centros infantis, creches e jardins de infância, salário-família e assim por diante. As mulheres foram lançadas à mercê dos mercados capitalistas e, ao mesmo tempo, empurradas de volta para dentro de casa e forçadas a arcar com o fardo do trabalho de cuidado não remunerado.

Quando fazemos pesquisas e estudos, muitas mulheres da Europa Oriental falam sobre como elas tinham mais oportunidades sob o socialismo de Estado. Apesar da falta de bens de consumo, das restrições às viagens, da censura e da polícia secreta, elas ainda dizem que tinham mais oportunidades de vida do que as jovens da Europa Oriental têm hoje.

Os países do mundo com as populações mais encolhidas estão na Europa Oriental, em parte porque as mulheres não têm filhos – porque não há economia para sustentar uma família – e em parte por causa da emigração. Na ausência de segurança econômica, as mulheres estão usando as ferramentas que dispõem para fazer uma vida melhor, incluindo a comercialização de suas relações com os homens. É por isso que quando você digita “mulheres ucranianas” no Google, a primeira coisa que aparece são anúncios para noivas virtuais.

Meagan Day

Tá bom, então o capitalismo não tem tratado bem as mulheres nos países pobres. E as mulheres que vivem sob o capitalismo em países ocidentais mais ricos? Será que funciona para nós?

Kristen R. Ghodsee

A forma específica como o capitalismo é estruturado historicamente é que os empregadores só contratarão uma mulher se ela for mais barata que um homem. Isto porque, entre outras razões, é provável que ela tire tempo da força de trabalho para realizar trabalhos de cuidado doméstico, especialmente quando ela tem filhos. Por que você empregaria alguém não confiável a menos que pudesse pagar um salário mais baixo?

Você acaba tendo esse ciclo vicioso onde o trabalho de cuidado é necessário mas não remunerado, então alguém tem que tirar tempo da força de trabalho para fazê-lo, e essa pessoa é sempre a que ganha o salário mais baixo, o que significa que são as mulheres, o que reforça a idéia de que elas podem e devem receber menos. Sob o capitalismo, portanto, há um equilíbrio onde as mulheres estão permanentemente em desvantagem no mercado de trabalho.

As feministas socialistas sempre argumentaram que a única maneira de resolver estruturalmente este problema em um mercado de trabalho capitalista é através da entrada do Estado e do apoio social ao trabalho de cuidado.

Por uma série de razões, o trabalho de cuidado para idosos ou doentes, ou certamente para crianças, muitas vezes cai no colo das mulheres. Dado que este trabalho tem que ser feito, as sociedades têm uma escolha: podem reduzir a carga do trabalho de cuidado das mulheres transferindo-o do indivíduo para a sociedade, ou podem desvalorizá-lo completamente e empurrá-lo para a esfera privada onde as mulheres o fazem de graça.

Se você quer reduzir os impostos para os super-ricos, se essa é sua prioridade, você vai empurrar todo esse trabalho para a esfera privada. Alternativamente, você poderia trazê-lo para a esfera pública. Sistemas universais de saúde, cuidado infantil, educação pública. Os super-ricos neste país usam o Estado para promover seus interesses – por que as pessoas comuns não deveriam fazer a mesma coisa? Há países ao redor do mundo com redes de segurança robustas, e eles não estão deslizando em direção ao gulag.

Meagan Day

Parece-me que um dos propósitos de seu livro é desafiar as ideias ocidentais não apenas sobre gênero e socialismo, mas sobre a vida sob o socialismo de Estado em geral. Como os ocidentais imaginam a vida sob o socialismo de Estado, e de que maneiras o estereótipo erra o alvo?

Kristen R. Ghodsee

Não devemos ignorar os expurgos, os gulags e a violência do Estado, mas temos que ser claros de que não foi sempre assim. Há centenas de milhões de pessoas vivas hoje que cresceram sob o socialismo e têm uma impressão muito diferente dele. Como sou uma etnógrafa que faz trabalho de campo na Europa Oriental há vinte anos, conheço muitas pessoas que lhe dirão que a vida era muito mais rica e complexa, e não tão esmagadoramente negativa quanto os ocidentais imaginam. Certamente nem todos estavam marchando com a cabeça raspada, ou passando fome nas ruas e implorando por um par de calças jeans.

Os jovens que estão chegando a ideias socialistas hoje em dia, são automaticamente espancados na cabeça com o cacetete dos crimes socialistas do século XX na Europa Oriental. Se você diz algo sobre um sistema de saúde financiado pelo Estado, as pessoas começam a gritar sobre expurgos e gulags. Temos que ser capazes de ter uma conversa moderada, atenciosa e enriquecedora sobre o passado. A reação anticomunista que você tem hoje em dia torna difícil ter essa conversa. Espero que meu livro torne isso um pouco mais fácil.

Colaboradores

Kristen R. Ghodsee é professora de Estudos Russos e do Leste Europeu e membro do grupo de pós-graduação em antropologia da Universidade da Pensilvânia. Seus artigos e ensaios foram publicados em publicações como Dissent, Foreign Affairs, Washington Post, New Republic e New York Times. Ela é autora de seis livros sobre gênero, socialismo e pós-socialismo no Leste Europeu, incluindo Why Women Have Better Sex Under Socialism: And Other Arguments for Economic Independence.

Meagan Day faz parte da equipe de articulistas da Jacobin. Ela é coautora de Bigger than Bernie: How We Go from the Sanders Campaign to Democratic Socialism.

27 de dezembro de 2018

A armadilha dos juros

Concentração bancária ainda parece ser condição necessária para taxas altas

Laura Carvalho


Foto: Edilson Dantas/Folhapress

A Febraban (Federação Brasileira dos Bancos) lançou neste mês de dezembro o livro e a campanha publicitária "Como fazer os juros serem mais baixos no Brasil".

O documento propõe uma lista de medidas que, por reduzir custos administrativos, operacionais e tributários para o setor, possibilitariam a cobrança de taxas de juros mais próximas das que vigoram em outros países.

De acordo com a federação, a alta concentração na mão dos cinco maiores bancos do país não é a causa fundamental dos spreads elevados.

O documento apresenta alguns exemplos de países cujo grau de concentração é similar ao nosso, mas onde as margens são bem menores, como a Holanda ou a Finlândia.

O problema é que, embora a alta concentração bancária não seja mesmo uma condição suficiente para que os spreads sejam tão elevados, ainda parece ser uma condição necessária.

Estudos indicam que os ganhos com a redução do risco de inadimplência gerada por medidas já adotadas, como a Lei de Falências ou o cadastro positivo (dos bons pagadores), não foram inteiramente repassados para os tomadores de crédito.

Nada garante, portanto, que as propostas feitas pela Febraban para reduzir seus custos, caso implementadas, não sirvam apenas para elevar a lucratividade no setor. Lucratividade essa que, segundo o documento, estaria em linha com a de outros países emergentes, mas que o próprio gráfico apresentado no livro mostra ser das maiores do mundo.

Chama a atenção também que os lucros dos bancos brasileiros se mantenham em tal patamar mesmo quando a economia vai mal, como destacou um artigo da revista britânica The Economist publicado em agosto deste ano.

Há outro problema no argumento central do texto, que atribui à inadimplência o papel de "vilã número 1" para a cobrança de juros elevados.

Embora seja verdade que os riscos de inadimplência tenham um efeito importante, pois os bons pagadores acabam tendo de arcar com os prejuízos gerados pelos maus pagadores, a evidência apresentada de que os custos com a inadimplência são muito maiores no Brasil do que em outros países também pode estar refletindo a causalidade contrária.

Será que a inadimplência alta explica os juros escorchantes ou são os juros escorchantes que dificultam o planejamento financeiro dos consumidores, elevando muito a probabilidade de calote? O debate lança luz sobre um aspecto relevante da armadilha em que estamos na atual conjuntura.

De um lado, o desemprego elevado, a estagnação econômica e a inflação baixa permitiram uma redução substancial da taxa básica de juros pelo Banco Central nos últimos anos.

De outro, quanto maior o desemprego e menor a renda, maior é a taxa de inadimplência no mercado de crédito, dificultando uma redução maior da taxa de juros cobrada dos consumidores.

Ou seja, parte do estímulo que a queda da taxa Selic poderia dar para a economia em meio à crise acabou sendo neutralizada.

Tampouco é possível reduzir o risco de inadimplência sem aumentar o número de operações de crédito: se menos gente toma emprestado, fica mais difícil diluir o risco, fazendo com que os bancos cobrem juros maiores.

Se a inadimplência é mesmo a vilã, a crise, o desemprego e as desigualdades parecem obstáculos maiores do que a falta de educação financeira destacada pela Febraban. Mas, para isso, parece faltar agenda para 2019.

Sobre a autora

Professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, autora de "Valsa Brasileira: do Boom ao Caos Econômico".

Declaração Universal: 70 anos de direitos e deveres

Documento é um guia de conviver bem em sociedade

Belisário dos Santos Jr.

Folha de S.Paulo

Belisário dos Santos Jr, ex-secretário de Justiça de SP, em entrevista à Folha, em 2017. Zanone Fraissat/Folhapress

É significativo lembrar, que meses antes da proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, foi adotada a Declaração Americana dos Direitos e Deveres Humanos, no âmbito da Nona Conferência Internacional Americana, que se reuniu em Bogotá (Colômbia), em 1948, com a participação de 21 Estados --e, ao mesmo tempo, adotou-se a Carta da Organização dos Estados Americanos, o Tratado Americano sobre Soluções Pacíficas ("Pacto de Bogotá").

No âmbito americano, era de certa forma mais esperada uma declaração desse tipo. Desde 1889, os Estados americanos se reuniam com periodicidade, criando um sistema de normas e instituições.
Assim, em Bogotá, no preâmbulo da Carta tem-se que os direitos não se desprendem dos deveres correspondentes, de respeito a quem os exerce e de incentivo a seu exercício.

O artigo 28 da Declaração Americana traz a dimensão da alteridade e do inter-relacionamento necessários que fundamentam a convivência humana: "Os direitos do homem estão limitados pelos direitos do próximo, pela segurança de todos e pelas justas exigências do bem-estar geral e do desenvolvimento democrático."

Esta noção se expande para o capítulo dos deveres da Declaração Americana, trazendo em primeiro lugar o dever da convivência com suas consequências. Essas consequências necessárias da convivência virão na forma dos deveres que se elencaram em seguida: o dever do trabalhar, segundo os limites de cada qual, o dever de se educar e educar os filhos, o dever de pagar impostos, o dever de votar e colaborar com os serviços civil e militar, conforme as leis de seu país.

Em suma, a Declaração Americana, até porque anterior e oriunda de um sistema mais estruturado de convivência democrática, proporciona uma forma interessante e pedagógica de se ler a Declaração Universal como também sendo uma carta de direitos e deveres.

Sim, a Declaração Universal não é um simples rol de direitos. Equivocam-se aqueles que dessa forma criticam esse magnífico exemplo do patamar de civilização que atingimos, agora com a experiência de seus 70 anos.

A Declaração Universal é, antes de tudo, um guia de conviver bem em sociedade, respeitando a dignidade do outro. Essa declaração tem 30 artigos. Curiosamente, o primeiro e os dois últimos dessa declaração de direitos falam explicitamente em deveres humanos. O artigo 1º diz que todos os homens nascem livres, iguais em dignidade e direito. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação aos outros com espírito de fraternidade.

A dignidade é um valor. Ele se impregnou em todos nós e contra isso não pode haver atentado. À dignidade humana está ínsito o dever de respeitar a dignidade do próximo.

O artigo 29 da Declaração Universal fala exatamente da responsabilidade de todo ser humano para com a comunidade. A comunidade precisa que seus integrantes se eduquem, trabalhem para sua prosperidade, se apropriem dos valores culturais de cada povo. E assim por diante.

De outra parte, a necessidade da participação política, partidária ou não, ajudando a construir ou defender a democracia, bem como dos valores da liberdade, da igualdade e da solidariedade a ela inerentes.

O dever de votar. O dever de cada cidadão de participar do desenvolvimento da sociedade, rumo ao seu próprio bem-estar, mas também colaborando com a busca da felicidade por outras pessoas. O dever da solidariedade. O dever de resistir ao autoritarismo, tão fundamental que ocupou um dos considerandos do preâmbulo.

O artigo 30 diz que as pessoas não podem agir contra essa expectativa de dignidade, nem por meio de lei.

E, por fim, o dever de defender as ideias expressadas na Declaração Universal, por representarem um ideal de civilização a ser buscado sempre e progressivamente.

Sobre o autor


Advogado, membro da Comissão Internacional de Juristas, presidente da Comissão da Verdade da OAB/SP e ex-secretário de Justiça do Estado de São Paulo (1995-2000, governo Covas)

24 de dezembro de 2018

A luta de classes no Polo Norte

O que está por trás da sangrenta ascensão do Papai Noel? Três destacados líderes sindicais élficos nos oferecem uma análise de classe em torno da "economia da dádiva" do Polo Norte.

Alcaçuz Tronco-de-Chocolate, Torta-Melaço Cepo-Estrelado, e Batuque Dedos-Verdes


Tradução / O Grupo de Estudos do Trabalho no Polo Norte foi constituído por um grupo de duendes natalinos em outono de 2008. As oficinas do Papai Noel estavam sofrendo com a recessão econômica global. A sensação de descontentamento entre nossas fileiras era palpável. Desde então, nos reunimos quinzenalmente para desenvolver uma análise concreta de nossas condições como trabalhadores, além de debater estratégias de resistência.

A seguir, é apresentado um documento que estamos enviando ao grupo com o espírito de aprofundar nossa análise.

A primavera árabe e o movimento Occupy radicalizaram muitos duendes. Porém, está claro que ainda há incerteza sobre o que será necessário para desafiar o sistema de exploração em que vivemos. Acreditamos que a confusão em torno da estratégia política é, pelo menos em parte, produto de uma análise equivocada da estrutura de classes e da dinâmica de nosso sistema econômico.

Qual é a verdadeira natureza das relações entre os duendes, o Papai Noel e suas renas? Como essas relações se constituíram inicialmente e como elas são reproduzidas?

Para responder a essas perguntas, primeiro precisamos entender a dinâmica de nossa suposta “economia da dádiva” em torno dos presentes. Embora seja verdade que os presentes que produzimos não são vendidos, eles são governados por mais do que normas e costumes sociais. Biscoitos quentes podem sustentar a cintura do Papai Noel, mas um fabricante não pode sobreviver apenas com açúcar e farinha (a menos que ele esteja vendendo biscoitos, é claro). Ele ainda precisa de dinheiro para expandir sua oficina e para comprar novos equipamentos ou para dar manutenção aos equipamentos mais antigos.

Outra questão é que nossas oficinas dependem de recursos que não estão disponíveis imediatamente no Polo Norte. Por muito tempo, o Papai Noel podia simplesmente explorar nossas reservas naturais de madeira e de combustíveis fósseis; contudo, à medida que novas linhas de produtos foram introduzidas, materiais adicionais precisam ser comprados no mercado global.

No lugar de brinquedos de madeira, cada vez mais tivemos de adotar o plástico para competir efetivamente no mercado de Natal. Isso tem tanto a ver com a demanda dos consumidores quanto com os custos unitários da mão-de-obra. Embora o Papai Noel possa querer pensar que vive em uma bolha de presentes, uma parte crescente dos presentes anuais de Natal tem sido privatizada desde o início da era neoliberal, o que foi possibilitado pelo aumento da concorrência de preços com a próspera indústria chinesa.

No entanto, a concorrência não fez com que o Papai Noel necessariamente aumentasse a produtividade de cada trabalhador. Em vez disso, ele conseguiu reduzir os custos unitários de produção por meio de uma agressiva campanha para tirar mais suor da mão de obra que ele já emprega, ou simplesmente adicionando mais trabalhadores para reduzir o tempo que a oficina fica ociosa. Enquanto ele tiver mão de obra excedente de duendes, como certamente ainda o faz, não podemos esperar que ele se preocupe muito com as queixas de saúde e de segurança que apresentamos à gerência.

Além disso, a gratidão só pode levar um empresário até certo ponto. O Papai Noel, como único proprietário, é capaz de manter suas finanças em segredo, mas aqueles que tiveram a infelicidade de trabalhar em seu escritório relataram que cartas do Vaticano e de Washington chegam regularmente dias antes do Papai Noel anunciar planos trimestrais de produção. Podemos supor que o apoio financeiro dessas fontes, juntamente com suas estimativas anuais de crianças “boazinhas”, sejam o que realmente sustenta nossa economia. É através desses financiamentos externos que o Papai Noel é capaz de fornecer os doces e o abrigo pelos quais precisamos trocar nossa força de trabalho.

Mas como foi que ele veio a ter tanto poder sobre nós? Foi através de uma engenhosidade superior ou foi algo mais sinistro?

A ascensão do Papai Noel

Devemos lembrar que o Papai Noel começou sua vida como um pequeno produtor de brinquedos de madeira. Ele era um mestre artesão da madeira, treinado por alguns dos melhores duendes do Pólo Norte. No entanto, enquanto outros se contentavam em trocar seus produtos de madeira nos mercados locais, o Papai Noel começou a vendê-lo em cidades próximas.

Por sorte, o clero de algumas cidades industriais que ele visitou enxergaram nessas mercadorias escassas os meios para gerar disciplina moral no crescente número de crianças das classes mais baixas que inundavam suas ruas.

O clero arrecadou fundos de patronos ricos, bem como das classes medias, para compensar generosamente o Papai Noel por entregar seus brinquedos de madeira como presentes para um grupo seleto de crianças.

À medida que as populações urbanas se expandiam e os problemas enfrentados pela classe dominante pioravam, o Papai Noel ficou sobrecarregado pelo aumento da demanda por seus brinquedos feitos à mão. Ele inicialmente procurou expandir a produção explorando sua própria família, mas logo teve de procurar mão de obra excedente em outros lugares. Mas, por mais que tentasse se aproveitar de histórias sobre servir o bem maior e ajudar os pobres em terras distantes, ele não foi capaz de compelir as quantidades necessárias entre nós para trabalhar em sua oficina.

Finalmente, depois de um experimento fracassado com o arrendamento e distribuição da produção doméstica, o Papai Noel recorreu à violência como o único meio pelo qual poderia nos coagir ao seu emprego. Isso não teria sido possível sem o apoio do clero e da crescente burguesia nas cidades. Com a ajuda deles, o Noel organizou uma subclasse de renas, que historicamente mantinham relações tensas com os duendes, prometendo a elas segurança econômica e status social.

Gangues de renas foram enviadas para as aldeias dos duendes para destruir suas terras agrícolas, para o que elas eram muito adequadas devido às suas galhadas. As constantes interrupções na produção de alimentos deixaram muitos dos nossos sem escolha a não ser trabalhar para o Papai Noel.

Enquanto isso, a classe dominante nas cidades inventava uma história para combater os relatos que chegavam às cidades sobre a violência no interior. Apontando para os presentes que ele dava às crianças da cidade, eles ligaram o Papai Noel ao bispo Nicolau de Esmirna – um homem rico que era conhecido por ser generoso com as crianças – e retrataram as renas como criaturas nobres.

Mas o Papai Noel não é nenhum santo e as renas não são nossas amigas. O Noel reconstruiu violentamente a antiga estrutura de classes em torno de seus interesses estreitos. Ele nos separou de nossos principais meios de subsistência através da ameaça coercitiva dos chifres, uma estratégia que tem de manter até hoje para proteger sua posição de classe.

Compreender os diferentes interesses de classe em nossa sociedade é essencial para desenvolvermos uma estratégia eficaz de resistência contra nossa exploração. Armados com essa análise, podemos explicar a nossos irmãos e irmãs por que as declarações recentes sobre algumas “maçãs podres” entre as renas são vazias. Eles permanecem “Nossos Inimigos de Chifres”, enquanto servirem como baluarte do poder em nossa sociedade.

Uma análise de classe também contraria a narrativa dominante que sempre ouvimos sobre o porquê dos duendes de Natal estarem tão dispostos a trabalhar por uma remuneração tão magra. Não não entramos na oficina do Noel por termos “disposições inatas que se ajustam bem à produção de brinquedos”. Também não deixamos nossas plantações por preferirmos doces a tubérculos.

Esse é um ponto crucial. O conhecimento popular sobre nós diz que trabalhamos com prazer em troca de doces – mas isso não foi por escolha nossa. Antes das renas devastarem nossos lotes familiares, cultivávamos uma variedade diversificada de vegetais adequados para a terra nas imediações. Até éramos reconhecidos mundialmente como especialistas no armazenamento de colheitas nos meses mais quentes para consumo durante o ano todo. Tudo isso agora está perdido.

Nossa dependência do açúcar importado é resultado de condições sociais além do nosso controle. E, nesse sentido, temos muito mais em comum com os trabalhadores nos campos de cana de açúcar do que com o explorador de grandes dimensões que se beneficia de nosso sangue, suor e trabalho.

Algumas pessoas concluíram que o velho slogan “Trabalhadores do mundo, uni-vos!” estaria desatualizado demais para a nova realidade pós-industrial. Eles têm dito que a classe trabalhadora já não seria o agente da transformação social. Mas acreditamos que essa conclusão ignora as condições que continuam a prevalecer nas oficinas do Papai Noel e para além dela.

Esperamos que o texto acima exposto ajude a elucidar um pouco daquilo que consideramos crucial para uma análise correta das classes no Polo Norte. Deixemos que a “guerra ao Natal” recomece sobre uma base mais científica.

Sobre os autores

Alcaçuz Tronco-de-Chocolate, Torta-Melaço Cepo-Estrelado, e Batuque Dedos-Verdes prepararam este documento em nome do Grupo de Estudos do Trabalho no Polo Norte.

22 de dezembro de 2018

A partir de janeiro, um ciclo termina, outro começa

Sobreviventes do terremoto que varreu a política terão de atuar em novas condições

Andre Singer

Folha de S.Paulo

Evaristo Sá / Folha de S.Paulo

A crise política se iniciou em 2015, com o estelionato eleitoral de Dilma Rousseff, e concluiu-se em 2018, com a vitória de um capitão reformado de extrema direita, passando pelo impeachment sem crime de responsabilidade. A sucessão de catástrofes acabou no pior cenário: a ascensão de um admirador da ditadura militar.

Olhada em conjunto, a etapa que deixaremos para trás em 31 de dezembro próximo corresponde à tentativa, com sucesso, de destruir o modelo erguido à sombra da Constituição de 1988. Sempre é bom registrar que o principal agente demolidor foi a Operação Lava Jato, apoiada na maciça e simpática cobertura da mídia.

O sistema anterior, que era também socioeconômico, foi varrido pela combinação de piora material com profusão de escândalos. Nas duas dimensões, o campo popular, comandado por Lula, não deu as respostas necessárias para manter a maioria conquistada em 2002. Os sobreviventes do terremoto —como é o caso do lulismo —podem até dar a volta por cima, mas terão que atuar em condições transformadas.

O espectro ocupado pelo centro e pela direita, por sua vez, deixou-se levar pela tentação do golpe parlamentar e foi tragado pelo candidato que encarnava o verdadeiro espírito golpista.

Agora não adianta chorar sobre o leite derramado: um novo ciclo se abre. A extrema direita ganhou o direito de implementar o seu modelo por pelo menos quatro anos.

Um misto improvisado, bizarro e lúgubre de trumpismo, pinochetismo e olavismo de carvalho está no ar. O anverso propositivo da Lava Jato inaugura-se em 1º de janeiro e o seu perfil ainda é difícil de entender.

No entanto, dois pontos merecem atenção.

O projeto contrarreformista da Lava Jato só conseguiu pleno êxito por ter atuado no terreno da forte baixa econômica. Estivesse o PIB em alta, como 2010, o efeito das descobertas pilotadas desde Curitiba teria sido outro. Decorre que o desempenho da economia continuará a ser chave na etapa que se inaugura dentro de dez dias.

Em segundo, o trabalho de desmontagem da Lava Jato segue o seu curso, agora ameaçando o próprio resultado do processo anterior. A razão é simples. Parlamentar do baixo clero por 27 anos, o atual presidente eleito certamente deve ter participado de todos os hábitos do sistema que depois resolveu implodir.

Na qualidade de vidraça, o presidente da República a partir de janeiro vai levar muita estilingada. Aos que não gostam do programa ora vencedor, resta ter o discernimento de construir, em meio aos estilhaços que vão voar, propostas alternativas para o país.

Sobre o autor


Professor de ciência política da USP, ex-secretário de Imprensa da Presidência (2003-2007). É autor de “O Lulismo em Crise”.

21 de dezembro de 2018

Gosta do direito de voto? Agradeça a um socialista

A classe dominante nunca quis dar aos trabalhadores o direito de votar. Mas os primeiros socialistas lutaram com unhas e dentes para expandir a franquia.

Adam J. Sacks

Jacobin

Military surveillance in Stockholm during the 1909 Swedish general strike. Wikimedia Commons

Traduções / Eleições roubadas, estruturas de voto decrepitas, leis de identificação draconianas. Os recentes ataques ao direito de voto nos EUA parecem ser um desenvolvimento de pura luta partidária – o desespero de um partido minoritário a usar qualquer meio para se aguentar no poder político. No entanto, a tentativa desesperada do Partido Republicano para restringir o acesso ao voto (de Afro-Americanos, em particular) deve ser vista, também, como um sintoma de uma doença que tem afligido as elites: uma oposição recalcitrante à democracia, direito de voto incluído.

Desde a criação do estado moderno, que as classes dominantes tentam restringir o poder de voto dos trabalhadores e daqueles que não são “bem nascidos”. Ao contrário da história convencional que com o capitalismo, a democracia nasceu naturalmente, as grandes potências europeias do século XIX restringiram o voto tanto quanto puderam. Foi apenas quando foram confrontadas com mobilizações de massa – ou quando a guerra limpou massivamente os trabalhadores-homens – é que se tornou claro que o direito de voto não podia ser negado por muito mais tempo.

As especificidades dos diferentes países europeus variaram. Em certas nações, seguidas de lutas intensas, os trabalhadores ganharam reformas limitadas para o sufrágio masculino antes da Primeira Guerra. Em grande parte destas, os direitos ao sufrágio mais amplos apareceram só depois da guerra.

Os actores mais consistente que puxaram pelo sufrágio universal, foram: os sindicatos e, crucialmente, os partidos socialistas. Na verdade, o que tem sido chamado de “avanço democrático” do século XIX, pode muito bem ser chamado de “avanço socialista”.

Bélgica
No dia 10 de Agosto de 1890, 75 mil homens e mulheres tomaram as ruas de Bruxelas para se manifestarem pelo sufrágio universal. Como todas as outras nações putativamente democráticas da altura, o voto na Bélgica só era permitido a homens com propriedade. O trabalhadores eram completamente impedidos de participar na vida política do país. Durante os próximos 25 anos isso mudaria – mas não até uma série de greves gerais terem tremido o país e da Primeira Guerra ter dilacerado o país.

Em 1890, no ano da primeira greve geral, as elites dominantes temiam que se ao conferir o direito de voto à classe trabalhadora, daria-se ao ascendente movimento socialista um instrumento para pressionar a cidade autocrática. Embora tenha sido fundado apenas 5 anos antes, o Partido Ouvrier – como os seus partidos irmãos da Segunda Internacional – estava a crescer gradualmente, unindo trabalhadores num poderoso e coerente bloco político. Os líderes partidários tinham esperança de poderem seguir um caminho paciente e reformista, ganhando direitos laborais e de voto sem recorrer a uma estratégia revolucionária de greves em massa.

No entanto, a teimosia da realidade – os poderes que resolutamente bloquearam medidas pró trabalhadores no parlamento – e a militância dos trabalhadores forçaram os líderes partidários a conceder que uma acção mais radical era necessária.

Em 1893, depois da acção das massas 3 anos antes, o Conselho de Trabalhadores declarou uma greve geral. Iniciaram-se grandes manifestações em várias cidades, os mineiro cortaram o telégrafo e as linhas telefónicas, e os soldados perseguiram líderes partidários pelas ruas com baionetas. Mulheres lançaram pedras e cerâmicas contra a polícia por detrás de barricadas construídas por mineiros.

A acção militante resultou. Restrições à propriedade foram abolidas. Os líderes do Partido Ouvrier, incluindo um trabalhador do mármore, chamado Lous Bertrand, que ajudou a fundar o partido, foram convidados para o parlamento.

O progresso não ocorreu linearmente. As eleições do ano seguinte enviaram ondas de choque por toda a Europa, onde dúzias de deputados socialistas foram eleitos para o parlamento, quando ninguém esperava. O partido começou a trabalhar imediatamente, elaborando leis que para apoiar sindicatos e estabelecendo pensões e seguros para quem sofria de deficiência. As elites dominantes, percebendo o seu erro, forçaram sobre um sistema de “voto plural” que deu um peso adicional aos cidadãos que viviam em bastiões do partido conservador, o partido Católico.

Os trabalhadores – muitas vezes contra os líderes partidários – continuaram a pressionar. Quando o governo tentou aprofundar as desigualdades no direito de voto, o movimento socialista declarou greve, em 1902. Cerca de 300 mil trabalhadores invadiram as ruas.

A confiança continuou. Os partidos católicos, ainda apoiados pelo sistema de voto plural, fortaleceram a sua maioria em 1912 e atacaram o sufrágio universal na legislatura do ano seguinte. Líderes socialistas, ao tentar balançar as políticas dos trabalhadores rurais e de políticos social-democratas urbanos, ainda tinham esperança que o parlamento promulgasse o sufrágio universal-

Em vez disso, em 1913, conduziu-se outra greve geral – a maior na história da Europa Ocidental. Os fundos de greve foram estabelecidos através de cupões e foram organizadas cooperativas e creches para as crianças da classe trabalhadora. Le Peuple, um diário socialista, publicou receitas para “sopas comunistas” para serem cozinhadas nas cozinhas comunitárias. Exibições de arte, visitas a museus, e passeios no campo juntaram famílias da classe trabalhadora, oferecendo descanso mas também uma oferta cultural.

A greve não atingiu o objectivo do sufrágio universal e igualitário. Foi apenas depois da Primeira Guerra, em 1919, que o sistema de voto plural finalmente caiu. As mulheres não receberam o direito de voto até 1948.

Ainda assim, estas batalhas tiveram um enorme impacto na consciência de outros movimentos socialistas pelo continente fora – o Partido Ouvrier, disse Rosa Luxemburgo, inspirou a Segunda Internacional a “falar belga”.

Império Russo
Durante a greve geral na Bélgica, em 1902, a cidade de Louvain foi alvo de um massacre assustador: doze trabalhadores, eventualmente, morreram depois de funcionários do estado terem aberto fogo. Mais para leste, outro massacre liderado pelo governo despoletou uma greve geral – a Revolução Russa de 1905.

Vários desempenhos teatrais foram interrompidos, irrompendo na solidariedade de milhares de estudantes e profissionais liberais com os trabalhadores. O clube dos comerciantes, dificilmente um baluarte de radicalismo, barraram as suas portas aos guardas pelo seu envolvimento no massacre.

No espaço de duas semanas, metade dos trabalhadores Russo-Europeus e 93 por cento de todos os trabalhadores da Polónia ocupada entraram em greve. Em Lodz, os grevistas mantiveram o governador num hotel como refém. Ao longo do império, a rede ferroviária parou.

A revolução estava no ar. Nos próximos meses testemunhou-se a primeira celebração aberta do Primeiro de Maio, dia do trabalhador, e o lendário motim de Poremkin nas costas de Odessa, mais tarde imortalizado pelo cineasta Sergei Eisentsein. No final de Outubro, o czar relutantemente assinou o manifesto que criou a Duma – e estendeu o voto em direcção ao sufrágio universal masculino.

Noutros lados do Império Russo, acções radicais pelo voto tiveram ainda maiores consequências. A greve geral na Finlândia em 1905 não levou apenas à adopção do sufrágio universal masculino e a um sistema parlamentar de câmara única, mas também ao direito de voto das mulheres e de contestar eleições – o primeiro país europeu a fazê-lo. Na próxima década, os trabalhadores do país iriam usar esses direitos – antes da greve, apenas oito porcento da população podia votar – para pressionar reformas cada vez mais revolucionárias.

Suécia
Entre liberais norte-americano, é popular imaginar a Suécia como uma utopia social-democrata, uma nação onde valores iluminados venceram sobre o egoísmo. No entanto, a história do movimento laboral da Suécia é um testamento para a tenacidade da classe dominante – incluindo a obstinada resistência aos direitos de voto.

A expressão política do movimento laboral, o Partido Social-Democrata Sueco (PSDS), fundado em 1889, durante a onde de uma reorganização maior de organização laboral. Como noutros lados, aqueles que não tinham propriedade, careciam de direitos políticos básico. O objectivo do movimento socialista sueco era, primeiramente, ganhar a democracia política.

Em 1902, uma greve geral de dois dias pelo sufrágio universal serviu de aviso ao estridente governo de direita. Chamado por partidos políticos sem a intenção de durar mais de dois dias, a greve produziu uma forte impressão no governo devido ao seu impressionante nível de apoio das massas. Ainda assim, a greve não teve a participação crucial dos sindicatos.

Isto viria em parte com a greve geral de 1909, que durou um mês e juntou quase meio milhão de pessoas. No início, o objectivo era combater os bloqueios aos trabalhadores e o congelamento de salários. Mas como presidente dos transportes dos trabalhadores, Charles Lindley, recordou “Naquela altura havia uma fé quase ilimitada na greve geral como um meio decisivo para se obter o sufrágio universal”. A greve inspirada por motivos económicos reflectiu cada vez mais as aspirações dos trabalhadores por direitos políticos democráticos.

A greve fechou todas as indústrias cruciais do país e os trabalhadores tentaram estendê-la. Os patrões responderam com uma táctica padrão: importaram fura-greves. Num destes casos, três trabalhadores sueco desempregados, independentemente, organizaram-se para bombardear um navio onde estavam fura-greves alojados, vindos da Grã-Bretanha.

Como os dias se tornaram em semanas, os líderes da greve foram forçados a retirar-se, enfrentados com fundos de greve escassos e a perspectiva de terem que desviar fundos de outros trabalhadores numa recessão económica. Os liberais começaram a virar-se contra os grevistas quando os tipógrafos se juntaram, vendo a sua participação como um ataque à “liberdade de expressão”. As famílias dos trabalhadores debateram-se poderosamente com a crescente privação de recursos. A Associação Sueca de Patrões estava, assim, posicionados no final para ditar os termos – e assim o fizeram.

Embora a greve tenha sido, de várias maneiras, representado um passo atrás, é universalmente reconhecido hoje que esta preparou o terreno para democratização da sociedade sueca. Mais tarde nesse ano, todos homens do país, independentemente da sua propriedade, ganharam o direito de voto pelo menos numa câmara do governo federal. A democracia política no seu pleno, embora distante, estava agora no horizonte.

Alemanha
Quase dois terços da Alemanha no final do século dezanove encontravam-se sob o Reino da Prússia, que tinha imposto a unificação dos estados alemães em 1871. Apesar de terem promulgado nesse ano o direito de voto geral, igual e secreto para todos os homens acima dos vinte e cinco anos de idade, a Prússia manteve um sistema vindo de 1849 que dividia os votantes em três categorias, baseados nos seus escalões de imposto.

Esta disposição obviamente desigual – o novo líder socialista, Whilhelm Liebknecht, referiu-se ao Reichstag como a “folha de figo absolutista” – criou uma situação onde os quatro porcento do primeiro escalão detinham tantos votos como os do terceiro escalão, que constituíam oitenta e dois porcento da população que podia votar. Havia também outra restrição ao poder dos trabalhadores: a câmara alta, o Reichsrat, podia bloquear quaisquer mudanças constitucionais passadas pela câmara directamente eleita do Reichstag. O Segundo Reich, afirmou Marx, era um “policiado, nepotismo militar, embelezado com formas parlamentares”.

De alguma fora, o Partido Social Democrata Alemão (SPD), floresceu apesar destas condições adversa. Era o maior partido socialista no continente, o partido da Segunda Internacional por excelência. O Programa Erfurt do SPD, ratificado em 1891, declarou “ A luta da classe trabalhadora contra a exploração capitalista é necessariamente uma luta política. A classe trabalhadora não pode continuar a sua luta económica e desenvolver a sua organização económica sem direitos políticos”. No topo das exigências do partido estavam : “direito de voto universal, igual e secreto para todos os cidadãos acima dos vinte anos de idade, independentemente do sexo”.

As elites do país não estavam contentes. A seguir ao desenvolvimento de um movimento nacional grevista, os patrões insistiam que o Kaiser rescindisse o voto de todos aqueles que estivessem afiliados com a Social-Democracia e que limitasse as greves legalmente. O Kaiser, não mostrando qualquer aversão, ele próprio, à retórica despótica, disse a um grupo de novos recrutas militares em Potsdam, Novembro de 1891:

O SPD foi agitando e organizando-se, pacientemente, até se tornar no maior partido do parlamento Prussiano em 1908. Eles lideraram repetidos protestos de massas pelo direito pleno ao sufrágio universal, que encontrava, inexoravelmente, uma repressão brutal.

Grã-Bretanha
De todos os países europeus da Segunda Internacional, a Grã-Bretanha tinha o sistema de voto menos democrático – a proporção de homens acima dos vinte e um anos de idade que podia votar no início da Primeira Guerra era menor do que oito dos nove países onde os dados completos estão disponíveis.

A privação de direitos em massa estava profundamente enraizada no sistema político do país. No início do século dezanove, num sistema eleitoral completamente deteriorado por falsificações eleitorais, apenas quatro porcento da população podia votar. Em meados do século, as demonstrações a favor do sufrágio por parte dos Cartistas – o primeiro movimento de massas dos trabalhadores na história europeia – encontrou muita antipatia por parte da elite. Tão tarde como 1884, o acesso ao voto permaneceu desigual entre as cidades e o campo – e depois das reformas alterarem os impedimentos democráticos, os votante elegíveis ainda tinham que provar uma base de pagamento em renda para se qualificarem para votar.

A classe dominante não podia simplesmente apoiar uma medida que eles pensava que daria à “ralé” poder político: sufrágio universal, na estima do estadista Thomas Babington Macauly, era “incompatível com a propriedade… e consequentemente incompatível com a civilização” em si.

Contra Macaulay estava a classe trabalhadora com o seu movimento a crescer. O Partido Trabalhista, firmemente cometido com o sufrágio universal, agitou pela democracia política e foi capaz de tirar algumas concessões antes da Primeira Guerra. Em 1911, pressionaram pelo fim ao direito de veto da Câmara dos Lordes.

Finalmente, nos calcanhares de uma guerra em todo o continente, o sufrágio universal masculino foi estabelecido, enquanto que as mulheres ganharam o voto em 1928.

A ordem política que, nas palavras de Lenine, tinham aprisionado as massas trabalhadores num “bem equipado sistema de adulação, mentiras e fraude” estava abertamente a fracturar-se.

Os combatentes pela democracia
A sua dedicação era tanto ética como prática. Por um lado, estavam determinados a derrubar as estruturas de dominação e desigualdade onde quer que ela existisse. Na esfera política, os trabalhadores eram vassalos, sujeitos a decisões de uma burocracia que não tinham escolhido.

No lado mais prático, os primeiros socialistas reconheciam o potencial das urnas. A sua luta pelo direito ao sufrágio universal congregava as lutas políticas e económicas, transformando o voto num instrumento das tácticas radicais e do ímpeto revolucionário. Amarrava as diferentes facções do movimento na procura de uma ferramenta (o voto) de que os trabalhadores poderiam usar como parte de uma luta de classes mais ampla. O seu objectivo era criar uma “verdadeira democracia”, de base, na tradição de Marx

Hoje, entre as lutas nos EUA para manter o funcionamento básico de um sistema de voto democrático, os socialistas não podem esquecer o seu papel histórico na pela democracia política. Muitos, mesmo dentro do campo liberal, vieram a reconhecer as batalhas travadas pelos socialistas contras os resquícios feudais do Velho Regime e da nova oligarquia capitalista.

Com apenas um século – e só para homens de descendência europeia – o direito universal ao voto ainda está na sua infância e em necessidade de estreita vigilância. Sombras actuais do Jim Crow, seja na Georgia ou nos estados de Dakota, revelam uma ameaça persistente à sua existência, tal como a tensão oligárquica e anti-democrática que opera na república americana que ainda não aceitou o sufrágio universal.

Devíamos rejeitar os falsos pronunciamentos radicais que dispensam o voto como inconsequente e, em vez disso, fundir o direito ao sufrágio universal com a luta pelo socialismo e democracia radical. O voto foi uma conquista histórica para a classe trabalhadora. Continua a ser o “papel de pedra” nas mãos dos marginalizados.

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...