1 de dezembro de 2018

O enigma do crescimento chinês

O desenvolvimento econômico e o sucesso da China têm sido amplamente mal compreendidos e tratados com perplexidade. Este panorama da economia chinesa fornece uma análise dos motores do crescimento e das crises do país, incluindo a industrialização e a questão agrária.

Zhiming Long e Rémy Herrera



Por que falar de enigma?

Tradução / O sucesso evidente da economia chinesa, expresso especialmente por uma acelerada taxa de crescimento do produto interno bruto (PIB) – de fato, em média, a mais elevada do mundo ao longo das últimas três décadas –, mas também pelo papel de líder que hoje tende a ocupar no seio dos países do Sul, é muitas vezes comentado na mídia e na literatura acadêmica. Entretanto, um mistério continua a cercar esse fenômeno, particularmente porque o conteúdo e as vezes a própria realidade dos debates entre os economistas chineses (ainda que muito controversos e abrangendo o espectro político completo, que vai do marxismo ao neoliberalismo) não são percebidos na sua justa medida pelos comentadores ocidentais (Lau e Ping 2003). Estes últimos são obrigados a confiar em dados estatísticos e fontes de informação geralmente elaboradas por instituições ocidentais (ou multilaterais, mas sempre dominadas pelas potências ocidentais), que traduzem visões externas à China. Esta perspectiva centrada no ocidente, ideológica por natureza, é deformadora – pelo menos tanto, há que reconhecer, quanto aquela com que são tratados os discursos oficiais das autoridades chinesas.

Somado a isso, também há dificuldades decorrentes das incertezas que transmitem certos termos utilizados acerca da China (como o de “emergência), ou de certas categorias ambíguas (como a dos “BRICS”), assim como à indeterminação – para não dizer confusão – que acompanha as tentativas de caracterização do sistema político-econômico em curso nesse país. Estas dificuldades, complexas como se vê, explicam que, fora da China, as opiniões sobre a evolução dessa sociedade, por vezes muito categóricas, são frequentemente mal documentadas e pouco embasadas. À direita, o que é celebrado é o triunfo aparente de um capitalismo vigoroso em território chinês, mesmo que se considere aberrante sua combinação com a “ditadura comunista”. À esquerda – ou, digamos, sobretudo entre marxistas –, talvez mais do que em qualquer outro tema, o leque de desacordos está amplamente aberto, indo da franca desaprovação frente às gritantes desigualdades de riqueza trazidas por esse dinamismo econômico até à esperança, finalmente reencontrada, de uma nova superpotência capaz de se contrapor ao hegemonismo estadunidense. O poderio crescente da China intriga, fascina, provocando aqui admiração, ali inquietação, mas, para todos, o crescimento da sua economia permanece um enigma no fundo.

É nesse contexto singularmente nebuloso que, no ocidente, parece estar estabelecido um consenso, no seio das instituições da ideologia dominante, quanto a certas “evidências” sobre a China. Uma das mais enraizadas é a ideia segundo a qual a China teria “emergido” e seu crescimento econômico “decolado”, após as “reformas” ditas de “abertura” do fim dos anos 1970, ou seja, de fato após a morte do presidente Mao Zedong em 1976. O presente artigo pretende por em causa este consenso e fornecer elementos de reflexão para desenredar o “enigma” deste crescimento chinês – sem pretender dissipar, longe disso, toda a complexidade.

Acumulação de capital, crescimento da produção e "emergência" de longo prazo

Uma das ideias mais difundidas sobre a China é, então, que ela teria "emergido" recentemente. O conceito de "emergência" - tal como aquele de "BRICS", forjado pelos think tanks da finança estadunidense - sugere que um "descolamento" seria possível no quadro da mundialização, apesar de as disfunções do sistema mundial capitalista ser tão desfavoráveis aos países do Sul. Entretanto, ao aceitar essa ideia de que a economia chinesa teria "emergido" ou "descolado" exatamente após - e somente após - o desaparecimento de Mao, adere-se, implicitamente, a uma das variantes da seguinte argumentação.

Em primeiro lugar, a economia chinesa teria somente começado a se desenvolver graças à sua “reorientação” e sua “abertura” ao sistema mundial capitalista, adotadas sob a influência do número um chinês, Deng Xiaoping, na sequência do 11º Congresso do Partido Comunista Chinês (PCC) em dezembro de 1978 – e, por acaso, algumas semanas mais tarde, do reconhecimento diplomático da República Popular pelos Estados Unidos (EUA), em janeiro de 1979. Em segundo lugar: seria óbvio que a economia chinesa não teria feito outra coisa senão estagnar durante o período maoísta do socialismo – como estagnaria de fato, pela sua natureza por assim dizer, toda economia socialista. E, terceira variante desse mesmo raciocínio, acrescenta-se o argumento segundo o qual a China se teria políticos terem decidido abandonar, se não a etiqueta de “comunismo”, pelo menos as instituições do socialismo, para orientá-las rumo a formas do sistema capitalista.

Ora, assim fazendo, três realidades fundamentais ficam ocultadas ao mesmo tempo. A primeira, ainda agora grandiosa, é a profundidade milenar da história. Pois se é incontestável que a China de fato “emergiu” na cena mundial, isso não foi há 40 anos, como repete o leitmotiv absurdo da mídia dominante, mas, enquanto civilização importante e Estado-nação, há vários milhares de ano. O peso da China pôde atingir um terço do PIB mundial no começo do século XIX (Maddison, A., 2001). E é preciso manter presente que não foi senão graças à vitória da revolução maoísta, em outubro de 1949, que foi possível por fim ao século de guerras que havia dilacerado o país continuamente, desde a agressão britânica na Guerra do Ópio, em 1842, e aos assaltos lançados pelas potências ocidentais que haviam desmembrado o país. A segunda realidade deixada de lado é que quando na China o crescimento do PIB começou a ultrapassar regularmente a marca dos 10%, na década de 1980 (contra 3% registados nos Estados Unidos), o essencial das estruturas e instituições do socialismo ainda estavam em vigor. O terceiro fato que se precisa lembrar, muito frequentemente esquecido na literatura, é a rapidez relativamente forte da taxa de crescimento do PIB chinês antes da morte de Mao. modernizado quase imediatamente depois (por magia?) de seus altos dirigentes.

Esse último ponto é suficientemente importante, e esquecido, para que nele insistamos por um instante. É verdade que o crescimento econômico acelerou-se a partir dos anos 1980 – a ponto de colocar a China, a partir dessa época, e apesar de seu nível bastante fraco de rendimento per capita, longe dos outros países ditos “socialistas” ou de “economia historicamente planificada” durante essa mesma década. Ainda seria preciso reconhecer que o crescimento do produto material líquido (ancestral do PIB) já havia sido muito elevado no decorrer dos dez anos que antecederam a decisão de “reformar” a economia para abri-la ao sistema mundial (MARER, P. et al, 1992).

Segundo os dados fornecidos pelo Banco Mundial, expressos em preços constantes (base 1980) e em médias decenais, a taxa de crescimento econômico da China atingia 6,8% entre 1970 e 1979 – ou seja, mais do dobro daquela dos Estados Unidos nesse período (de 3,2%, a preços constantes de 1980) (World Bank, vários anos). E se se examina as séries oficiais de PIB publicadas pelo National Bureau of Statistics (NBA) da China nos seus China Statistical Yearbooks, fonte de qualidade e confiável desde a sua criação (em 1952) até os nossos dias, expressos em preços constantes com base em 1952 e homogeneizados para levarem em conta rupturas estatísticas que assinalaram a transição da contabilidade do Material Product System (MPS, de tipo soviético) para o System of National Accounts (SNA, “moderno”) (UNSTATS, 2008), observamos que a taxa de crescimento do PIB chinês, que foi de 8,3% em média de 1952 a 2015, foi, por subperíodos, de 6,3% de 1952 e 1978 – o que é forte – e de 9,9% de 1979 a 2015 – o que é muito forte. Mas se se puser entre parênteses todos os primeiros anos da República Popular, que vão de 1952 a 1962 (ou seja, entre o cumprimento da unificação do território continental e o período muito perturbado da ruptura com a União Soviética), a taxa de crescimento média é de 8,2% entre 1963 e 1978 – o que reflete um crescimento muito rápido, considerando que este período compreende a Revolução Cultural.

Mas e quanto à acumulação de capital na China? Essa acumulação pode ser medida. Num artigo que os autores destas linhas publicaram recentemente, nos EUA, na revista científica de referência especializada sobre a China (China Economic Review), chegamos a construir várias séries temporais originais do estoque de capital físico, em período longo (1952-2015) (Long, Z. e Herrera, R, 2016), para utilizar essa nova base em outras investigações, mas também porque, no momento atual, os institutos chineses de estatísticas ainda não puseram à disposição do público dados oficiais de estoque de capital (PEN WORLD TABELS, 2013; Chow, G, 1993). Nossas séries, calculadas pelo método do inventário permanente, podem ser consideradas de boa qualidade em relação àquelas que existem na literatura (na PAC, por exemplo), por várias razões: nossos estoques iniciais são estimados a partir de um procedimento de cálculo mais rigoroso da razão capital-output do que as das outras bases; os fluxos de investimento são estritamente consistentes com o alcance estatístico dos estoques; nossos esforços são concentrados na construção de índices de preços dos investimentos, adaptados ao conteúdo exato desses estoques; e as taxas de depreciação retidas são avaliadas por tipo de bens de capital a fim de deduzir uma taxa de depreciação total da estrutura de conjunto do capital.

Ora, se examinarmos atentamente nossa nova base de dados, constatamos que as taxas de crescimento médio do estoque de capital que chamamos “produtivo” (compreendendo todos os equipamentos, máquinas, ferramentas, instalações industriais, mas não os edifícios residenciais nem o valor das suas terras) foram de fato muito próximas nos dois subperíodos 1952-1978 e 1979-2015: 9,7% para a primeira e 10,9% para a segunda. E se adotarmos um estoque de capital produtivo ampliado, incluindo igualmente os estoques em geral presentes na linha de produção(importantes para calcular a velocidade de rotação do capital circulante em economia marxista), vemos que o ritmo médio de acumulação desse estoque de capital amplo foi ligeiramente mais elevado durante o subperíodo 1952-1978 (10,41%) do que no decorrer do subperíodo 1979-2015 (10,39%). E se selecionamos um capital ainda mais extenso, integrando também os edifícios residenciais e suas terras – portanto componentes não diretamente produtivos –, a taxa de crescimento desse estoque de capital muito amplo ainda era rápida no subperíodo 1952-1978, em média de 9,1% contra 10,9% de 1979 a 2015.

É claro, portanto, que o esforço de acumulação de capital não é um fenômeno recente, mas o que foi decidido e planificado continuamente pelas autoridades chinesas durante as seis décadas decorridas. E é esse esforço prolongado de acumulação – permitido especialmente por transferências de excedente das zonas rurais – que explica o sucesso da industrialização e, em grande medida, a fortíssima taxa de crescimento do PIB.

Despesas de educação e de investigação

Entretanto, outros fatores jogaram certamente um papel nesse dinamismo da economia. Trata-se, em particular, dos investimentos realizados na educação e na pesquisa. Como medi-los? A tarefa não é fácil, mas tentamos fazê-la num outro artigo publicado numa revista acadêmica de Londres (LONG, Z e HERRERA, R., 2018). Nós reconstruímos em séries temporais longas (1949-2015) indicadores de níveis de recursos em educação da população chinesa. Pois tais séries não existem nos anuários oficiais, e as séries relativas aos estoques de “capital humano” existente na literatura, como aquelas das Penn World Tables (2013) ou de Barro e Lee (1993), apresentam graves limites.

Propusemos nossas próprias séries de estoques de formação da população esforçando-nos por trazer elementos de respostas a essas insuficiências. Assim, permanecemos fieis à definição que o NBS dá do nível de educação atingido pela população (o que conduz a integrar não só as pessoas com diplomas, mas também aquelas que ainda se encontram na escola e mesmo aquelas que a ela renunciaram no decorrer de seus estudos). Nós igualmente levamos em conta as mudanças de duração dos ciclos de educação decididos na sequência das reformas educativas sucessivas e levamos em consideração a influência das campanhas de alfabetização e de formação dos adultos. Determinamos, portanto, estoques de recursos em educação, assim como seus respectivos acréscimos – o que requer calcular os números médios de anos de estudos das pessoas por categoria de educação e os pesos desses indivíduos na população.

Nossas estimativas ressaltam que as taxas de crescimento médio do estoque total de recursos em educação chinesa foram extremamente próximas nos subperíodos 1949-1978 (de 4,19%) e no 1979-2015 (4,22%). E se considerarmos o estoque em educação “produtivo”, efetuando os cálculos a partir da população ativa (e não a total, como anteriormente), então as taxas de crescimento médio desse estoque foram de 5,07% de 1949 a 1978 e 3,55% de 1979 a 2015, ou seja, mais elevado no subperíodo que antecedeu as reformas de 1978.

Por consequência, o investimento no setor da educação deve também ser analisado como um processo de longo prazo, que foi importante desde os primeiros anos da República Popular, porque visa a massificação da educação. E isso ocorreu paralelamente à generalização do sistema de saúde pública e à ampliação da infraestrutura a todo o território nacional. Trata-se de um dos pilares centrais da estratégia conduzida pela revolução no longo prazo, que decididamente contribuiu para a solidez e o dinamismo da economia atual.

Mas e quanto aos fluxos de despesas com pesquisa e desenvolvimento (P&D)? A China somente integrou o sistema de contabilidade internacional das atividades em P&D em 1986. Isso não significa que o país tenha começado a investir em P&D senão a partir de 1986, mas que antes desta data, é impossível ter acesso a dados homogêneos sobre o assunto. Diante desse constrangimento, elaboramos séries temporais originais, desta vez para os fluxos de despesas com P&D, voltando tanto quanto possível no passado (1949-2015). Nós consideramos todos os orçamentos, oriundos de entidades econômicas públicas (centro de investigação, universidades, empresas, etc) ou privadas, ainda que a proporção da P&D que provenha dessas últimas nos orçamentos totais permaneça, até o presente, relativamente menor. Recordamos que somente em 1984 uma empresa privada foi autorizada a funcionar na República Popular e que a primeira legislação relativa à atividade das diversas atividades do sector privado data de 1988. Quanto aos anuários do NBS, as “despesas de P&D das indústrias de médio e grande porte” ainda correspondiam a menos de 6,5% do conjunto das despesas de pesquisa do país em meados dos anos 2000.

E os cálculos que efetuamos a partir da base dessas séries reconstruídas dão taxas médias de crescimento das despesas de P&D da ordem dos +14,5% ao ano no período 1949-2015, mas convém observar que o ritmo médio de acréscimo destas despesas de P&D foi claramente mais forte no subperíodo 1949-1978 do que no seguinte (1979-2015). Claramente, os níveis tecnológicos dos primeiros anos e os de hoje são diferentes e, além disso, o sistema de pesquisa pública teve de ser construído a partir do zero – o que explica em parte o crescimento muito rápido das despesas de P&D dos primeiros anos. Entretanto, é preciso compreender que os esforços efetuados pela China em matéria de P&D estão longe de terem sido insignificantes no início da revolução e que eles devem ser analisados como uma estratégia construída pacientemente e continuamente que deu os seus frutos no longo prazo.

Em outras palavras, a China, cujo nível de desenvolvimento científico e tecnológico não tem nada a invejar em relação aos mais avançados países industrializados capitalistas, não começou a promover suas atividades de pesquisa com sua recente integração na mundialização, mas sim muito antes – de fato, desde a vitória da revolução, ainda que a natureza dessas atividades tenha consideravelmente se refinada nesses últimos anos. Em termos simples, o que dizemos é que a estratégia de desenvolvimento da revolução dispôs as condições do sucesso atual da economia e que esse êxito se inscreve na continuidade do passado, ao invés de contradizê-lo.

Comparações internacionais

Para bem capturar que a dinâmica e a potência atuais da economia chinesa não são simples resultantes “naturais” da abertura à mundialização (e em particular da adesão à Organização Mundial do Comércio, em 2001), parece importante ver isso em termos de comparações internacionais. Para assim fazer, utilizaremos uma fonte padrão que ninguém suspeita de favoritismo em relação ao poder comunista: o guia das Historically Planned Economies do Banco Mundial. Este anuário, publicado em 1992 por P. Marer e seus co-autores, permite comparar a China antes de 1991 com uma trintena de países socialistas (que hoje são na maior parte ex-socialistas).

E o que se revela da leitura desse documento é novamente que a economia chinesa era já dinâmica, em seu conjunto, em relação a outros países socialistas, antes (e em torno) da morte de Mao. Este foi o caso, por exemplo, para a taxa de crescimento do sector industrial, que atingiu em média 7,9% na década de 1970, ou seja, o segundo lugar dos países de economia administrada, na frente da URSS (6,2%) e amplamente superior a todos os outros (salvo a Iugoslávia, para a indústria). A velocidade de cruzeiro da economia chinesa foi, portanto, atingida muito tempo antes da sua adesão à OMC. No decorrer dos anos 1980, com efeito, quando o país ainda dispunha da maior parte das instituições socialistas, ela registava taxas de crescimento muito fortes em todos os setores em comparação com os outros países ditos "socialistas". Assim, de 1980 a 1989, a China já se classificava no primeiro lugar desse grupo para o crescimento da agricultura (6,3%), da indústria (12,6%), da construção (12,%) e mesmo dos serviços (10,6%); resultados frequentemente situados claramente adiante dos outros países (Op. Cit., p. 50-51).

Enquanto que um pouco por toda a parte, na academia ou nas mídias dominantes, se lê e se entende que a “decolagem” seria devida à abertura à mundialização, nós pensamos que é útil agregar – o que é raramente o caso – que tal crescimento somente teria sido possível graças aos esforços e realizações implantadas sob Mao. É por ter sido submetida aos imperativos internos de satisfação dos objetivos e necessidades domésticos (e plenamente integrada a uma estratégia de desenvolvimento cuja coerência é sem equivalente nos países do Sul, que esta abertura pôde produzir efeitos positivos sobre a China. Sem esta estratégia, que é a obra do PCC – como esquecê-lo? – a abertura ao sistema mundial capitalista, como em tantos outros lugares no Sul e no Leste, teria inevitavelmente implicado a desestruturação, mesmo a própria destruição, da economia nacional.

Além dos progressos sociais e do êxito do processo de industrialização já mencionados, um elemento essencial que também contribuiu ao desenvolvimento extraordinário da economia foi a resposta dada à questão agrária. Queremos aqui insistir no fato de que a China é um dos raros países do mundo a ter assegurado – e continuar a assegurar –, na lei, o acesso à terra para a vasta maioria das massas camponesas. Este fato é sem igual junto aos seus vizinhos asiáticos – com exceção daqueles que efetuaram uma reforma agrária radical associada a uma revolução socialista, como o Vietnam. Múltiplas violações do direito e tentativas destinadas a limitar esse acesso têm sido observadas nos últimos anos (especialmente pelo viés de cessões indevidas de terras públicas por autoridades locais, seguidas de expropriações de famílias), mas face a esses casos abusivos, certamente numerosos, surgiram resistências camponesas.

Esses fatos dão uma ideia da importância da questão agrária nos debates internos da liderança política chinesa e naqueles que atravessam a sociedade atual no seu conjunto. Percebe-se aqui a impossibilidade de compreender as evoluções profundas desse país sem colocar o campesinato no centro da análise. Pois o constrangimento maior que pesa sobre a China permanece o de dever alimentar mais de 20% da população mundial com menos de 7% das terras aráveis do planeta. Isso corresponde a um quarto de hectare de terra cultivada por habitante, na China, contra o dobro na Índia (e 100 vezes mais nos Estados Unidos). Esse desafio alimentar, imenso, não pôde ser enfrentado senão graças à afirmação do acesso à terra ao campesinato, que continua, até o presente, a contribuição mais preciosa da herança revolucionária maoísta.

Apesar de os modos atuais de organização, de produção e de distribuição do setor agrícola estarem totalmente penetrados pelos mecanismos de mercado e já não terem grande coisa a ver com os da época maoísta, a propriedade fundiária, na China, ainda hoje permanece estatal ou coletiva – ainda que formas degradadas sejam frequentemente encontradas, por vezes mesmo com um controle privado efetivo sobre certas terras. Mas é esta persistência da propriedade pública que é uma chave que permite distinguir a situação – e o sucesso – da China em relação a outros países que têm uma dimensão continental comparável e são pretensamente “emergentes”, tais como a Índia ou o Brasil, ou países regionalmente dominantes (África do Sul), para os quais a questão agrária está longe de ter encontrado condições, mesmo parciais, de solução.

Identificação de uma sucessão de "crises" e identificação da tese de Pr. Wen

Mas, se o crescimento da China foi muito forte durante várias décadas, será que tal fenômeno se realizou sem dificuldades, suavemente? Para responder, retomemos a base de dados do PIB do NBS. O que se constata? Primeiro, vemos que, desde 1952, a evolução do PIB chinês a em preços constantes tem a aparência de uma curva exponencial. E em escala logarítmica, observamos uma situação situada em torno de uma tendência linear fortemente ascendente. Mas se olhamos essa dinâmica do PIB no presente, surgem flutuações, ainda que sua amplitude tenda a reduzir-se com o tempo, e para quatro períodos precisos, surgem taxas de crescimento negativas. À parte esses períodos, todos os outros anos registam um crescimento positivo do PIB mais ou menos pronunciado. Esses quatro períodos com valores negativos são identificáveis para sete anos (dos 64 incluídos na amostra estudada [1952-2015], ou seja, apenas mais de 10% do tempo: de 1960 a 1962 (com, respectivamente, -1,3%, -27,8% (o ano de 1961 apresenta, de longe, o mais forte recuo sofrido pelo país em seis décadas); e -9,2%), associados ao choque provocado pela ruptura das relações com a URSS; depois em 1967-68 (-4,4% e -2,9%), que corresponde ao início da Revolução Cultural; em 1976 (-2,0%), data da morte de Mao; e, finalmente, em 1989 (-4,3%), no momento dos acontecimentos de Tiennamen. Podemos, portanto, identificar “a olho nu”, e num contexto de tendência ascendente da taxa de crescimento econômico, quatro períodos de “crises” no sentido tradicional do termo, ou seja, caracterizadas por uma taxa de crescimento negativa, portanto por uma diminuição do PIB a preços constantes: 1960-62, 1967-68, 1976 e 1989.

Entretanto, essa abordagem é insuficiente para dar conta das dificuldades atravessadas ao longo das seis décadas decorridas desde o início da revolução. Vamos, agora, para além das aparências. Para aprofundar a análise, e tornar mais complexo o conceito de “crise”, optamos por recorrer a indicadores da taxa de lucro para a China. O método que consiste em calcular a taxa de lucro é habitual entre os marxistas para estudar as dinâmicas de acumulação do capital características dos países capitalistas, mas não, em geral, dos países “socialistas”, ou cujas autoridades políticas se reclamam do socialismo. Ora, é inteiramente possível utilizar a taxa de lucro em economia socialista se sua construção e interpretação sejam distintas das dos países capitalistas (HERRERA e LONG, 2017). Construímos, portanto, vários indicadores da taxa de lucro do sector industrial chinês de 1952 a 2015, a partir das nossas séries anteriores de estoques de capital físico. Esses indicadores relacionam, no numerador, um lucro ou excedente, correspondente à diferença entre o PIB e as remunerações dos trabalhadores (diretos e indiretos) e, no denominador, o capital avançado, isto é, o capital fixo tal como o havíamos definido e/ou o capital ao qual é acrescentado um capital circulante calculado a partir de uma estimativa da velocidade de rotação do capital (graças aos estoques em processo).

Pode-se, então, utilizando-se de um método de filtragem, decompor a taxa de lucro em tendência de longo prazo e em ciclos de curto prazo. Duas observações podem ser feitas. A primeira destaca uma tendência à queda da taxa de lucro chinesa de 1952 a 2015, seja qual for o indicador adotado. Se se efetua uma decomposição econômica da taxa de lucro, distinguindo as evoluções respectivas da composição do capital, da produtividade do trabalho e da parte dos lucros, vê-se que o fenômeno mais determinante na explicação da queda da taxa de lucro é a alta da composição orgânica do capital (ou seja, a relação entre as partes constante e variável do capital).

A segunda observação refere-se aos ciclos de curto prazo que marcam as evoluções da taxa de lucro. Verifica-se uma alternância regular de flutuações para a alta e para a baixa e constata-se que essas variações cíclicas reduzem-se claramente entre os anos 1950 e o início da década de 2000, mas que a magnitude dos ciclos tende sensivelmente a acentuar-se novamente no fim do período – ou seja, desde o fim dos anos 2000 e no período atual.

Na amostragem completa (1952-2015), uma sucessão regular de momentos de variações negativas da taxa de lucro pode, assim, ser assinalada. Os anos de recessão encontrados pelas taxas de lucro, marcados por crescimentos dos componentes cíclicos da taxa de lucro com valores negativos, são observados uma trintena de vezes no decorrer dos 64 anos estudados. Mais precisamente, um sinal negativo é assinalado em 1952, 1957, 1960-1963, 1968, 1978-1982, 1985-1987, 1990-1991, 1998-2003, 2009 e 2012-2015. Assim, vemos que já não são apenas quatro períodos que estão identificados (como sugeria o estudo rápido anterior da taxa de crescimento do PIB), mas 10 períodos com valores negativos, registados dessa vez pela taxa de crescimento das componentes cíclicos das taxas de lucro, cobrindo, no total, cerca da metade da amostragem temporal examinada.

Reconhecem-se, através dessas sequências recessivas, as desacelerações que sucessivamente afligiram a história econômica da China desde a fundação da República Popular. Depois das enormes dificuldades que o povo chinês enfrentou após 1949, essencialmente devidas às destruições causadas pelas guerras e convulsões que o país atravessou nas décadas que antecederam a Revolução, encontramos o traço da recessão que começa em 1952 – e cujo ponto baixo foi 1957. A grave crise do início dos anos 1960 – a pior sob a era maoísta, perceptível, sobretudo, em 1961 – provinha dos efeitos combinados da interrupção da ajuda da URSS após a degradação do conflito sino-soviético, do fracasso relativo do Grande Salto à Frente e de catástrofes naturais. O ano de 1968, outro ponto baixo, coincide com o endurecimento da Revolução Cultural, lançada dois anos antes. Os problemas enfrentados, entre 1978 e 1982, traduzem as dificuldades da transição pós-Mao e da implantação das reformas estruturais de “abertura”. O período 1985-1986 é aquele da implantação da reforma fiscal de 1984 – um dos pontos de virada rumo à economia de mercado. Depois, no momento da queda do bloco soviético, foi tentada uma breve experiência que se pode qualificar de “neoliberal”, cujo resultado foi o recuo brusco da economia em 1990-1991, acompanhada de uma explosão da corrupção. Finalmente, num contexto de forte dinamismo do PIB chinês, os declínios dos componentes cíclicos da taxa de lucro a partir de 1998 são cada vez mais atribuíveis ao impacto de choques exógenos importados, ligados à difusão dos efeitos de crises regionais ou globais sofridos pela China: crise “asiática” (1998-1999), depois crises da “nova economia” e “pós 11 de Setembro” (2001-2003), crise nomeada crise “financeira dos subprimes”, em 2008, (na realidade crise sistêmica do capitalismo), cujos efeitos foram sentidos na China em dois tempos: em 2009 e, novamente, de modo mais durável e profundo, de 2012 a até os nossos dias (Op. Cit.).

Paradoxalmente, estes 10 momentos de “crises” são mais frequentemente identificáveis quando, ao mesmo tempo, o crescimento do PIB atingia taxas elevadas – e por vezes muito elevadas, como é o caso, por exemplo, em contextos diferentes, nos anos 1963, 1978, 1986, 1991 e 2003. Em outras palavras, no caso chinês, crescimento não quer necessariamente dizer ausência de dificuldades e, inversamente, crise não significa forçosamente recessão do PIB. Num país como a China, caracterizada por poderosas contradições, não nos pareceu necessário recorrer a um conceito mais amplo de “crise” para dar conta de períodos no curso dos quais surgiam dificuldades estruturais – isso, apesar das aparências de um forte crescimento do PIB, pode fazer crer que tudo vai bem.

À guisa de conclusão

Neste artigo, quisemos sublinhar a importância da análise de longo prazo para compreender os motores profundos do desenvolvimento econômico da China há mais de 60 anos: os progressos sociais, a industrialização ou a resposta à questão agrária. Para aprofundar a reflexão sobre as dificuldades encontradas pela economia chinesa, para além do forte crescimento do seu PIB, propusemos fazer o exame desta última à luz das taxas de lucro industriais, que construímos a partir de séries originais de estoques de capital físico chinês, considerado indicador chave de nosso raciocínio. Ao observar as evoluções das taxas de lucro ao longo de mais de seis décadas, percebemos que a trajetória de crescimento econômico da China, excepcional tanto pela sua forma como pela sua escala, não se operou sem dificuldades. Esta é a razão porque escolhemos qualificar de “crises” os períodos paradoxais, caracterizados por variações negativas das taxas de lucro, mas também por taxas de crescimento do PIB positivas, por vezes muito elevadas.

Referências

Barro, R. e LEE, J.W. Educational Attainment Dataset, 2012. Disponível em: www.barrolee.com. Acesso em 02/03/2018

Chow, G. “Capital Formation and Economic Growth in China,” Quarterly Journal of Economics, 108(3), 809-842. Oxford University Press, Oxford, 1993.

Herrera R. e Long, Z. “Capital Accumulation, Profit Rates and Cycles in China’s Economy from 1952 to 2014,” Journal of Innovation Economics and Management, 2(23), 2017.

Lau, K.C. e Ping, H. (orgs.). China Reflected. Hong Kong: ARENA Press, 2003.

Long, Z. e Herrera, R. “Building Original Series of Physical Capital Stocks for China’s Economy: Methodological Problems, Proposals of Solutions and a New Database,” China Economic Review, 40(9), 33-53, 2016.

Long, Z. e Herrera, R. “Contribución a la explicación del crecimiento económico en China,” Spanish Journal of Economics and Finance (Elsevier, London), 41(115), 1-18, 2018.

Maddison, A. The World Economy: A Millennial Perspective, Paris: OECD Development Centre Studies, 2001.

Marer P. et al. Historically Planned Economies: A Guide to the Data. Washington D.C.: World Bank, 1992.

NBS - National Bureau of Statistics of China, various years, China Statistical Yearbook, NBS, Beijing.

Penn World Tables, disponível em www.rug.nl/research/ggdc/data/ptw. Acesso em 10/04/2018 UNSTATS. System of National Accounts 2008. https://unstats.un.org/unsd/nationalaccount/sna2008.asp. Acesso em 10/04/2018.

PEN ARTS & SCIENCES, (PAC), POLITICAL SCIENCE DEPARTMENT. University of Pennsylvania. Disponível em https://ptw-sas.upenn.edu. Acesso em 10/04/2018.

World Bank. World Development Indicators. Washington D.C.: World Bank, vários anos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...