28 de fevereiro de 2019

Os Brasis da nova Previdência

Reforma teria os idosos mais ricos na capitalização e os mais pobres na renda básica

Laura Carvalho


Pedro Ladeira/Folhapress

O texto da Nova Previdência tem pontos positivos e negativos. A despeito da gravidade de nossos problemas fiscais atuais e das iniquidades remanescentes no sistema previdenciário em vigor, a proposta deve ser analisada sobretudo naquilo que supõe e que constrói para o futuro do país.

Nesse sentido, a pergunta a ser feita é menos "qual a economia gerada nos próximos anos", e mais, "quais tendências socioeconômicas o sistema previdenciário desenhado na proposta permitiria acomodar"?

A resposta mais óbvia é o envelhecimento populacional: quanto maior é a expectativa de sobrevida das pessoas após a aposentadoria, maior é o total de benefícios recebidos em relação às contribuições de quem está na ativa.

Para acomodar essa mudança demográfica, os sistemas ao redor do mundo têm sido reformados em três direções: adiar a idade de aposentadoria, reduzir o valor dos benefícios e/ou aumentar a contribuição de quem está na ativa.

Nos casos do aumento da idade mínima, com regra automática atrelada à expectativa de sobrevida, e das alíquotas progressivas de contribuição dos servidores, por exemplo, esse objetivo é cumprido sem prejudicar tanto os mais pobres.

Afinal, a criação de uma idade mínima atinge sobretudo quem hoje se aposenta por tempo de contribuição, ou seja, os trabalhadores que ficaram muito tempo em empregos formais.

Dado o enorme dualismo de nosso mercado de trabalho, os mais pobres já costumam se aposentar por idade (aos 65 anos para homens e 60 para mulheres), pois não conseguem acumular tempo de contribuição suficiente.

O problema é que diversos elementos da proposta não atuam apenas no sentido de se adaptar a mudanças demográficas, e sim a outras tendências —não desejáveis e tampouco inexoráveis— observadas em nossa economia nos últimos tempos, como o desemprego, a queda no grau de formalização das relações de trabalho e um dualismo cada vez maior na relação dos indivíduos com o Estado (educação e saúde privadas versus públicas, etc).

Ao aumentar o tempo mínimo de contribuição de 15 para 20 anos, o novo sistema impediria a aposentadoria de uma massa de trabalhadores pobres, sobretudo mulheres, que, além de passar muito tempo no mercado informal de trabalho, também costumam parar de trabalhar por alguns anos para cuidar dos filhos. Hoje as mulheres que se aposentam com um salário mínimo têm, em média, 15 anos de contribuição apenas.

Mas a aparente contradição entre exigir mais tempo de contribuição quando há queda no grau de formalização é denunciada em outro ponto do texto: a ideia é transferir uma massa cada vez maior de trabalhadores com menor tempo de vínculo formal de trabalho da atual aposentadoria por idade (com benefício de um salário mínimo) para o BPC (Benefício de Prestação Continuada), com valor de R$ 400 até os 70 anos e de um salário mínimo depois.

Do outro lado do abismo, a reforma abre espaço para que os mais ricos optem por poupar exclusivamente para a sua própria aposentadoria por meio de um sistema de capitalização de caráter obrigatório para quem aderir (em vez de apenas complementar), reduzindo assim a base de arrecadação do sistema de repartição e, eventualmente, o valor dos benefícios.

No dualismo abissal do Brasil previsto e estimulado pela nova Previdência, conviveriam, de um lado, os idosos mais ricos, que conseguirem poupar no regime de capitalização, e os mais pobres, que passariam a depender de uma espécie de renda básica não universal.

Sobre a autora

Professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, autora de "Valsa Brasileira: do Boom ao Caos Econômico".

27 de fevereiro de 2019

O antirracismo seletivo de Macron

Emmanuel Macron descreveu o anti-sionismo como uma nova forma de anti-semitismo. No entanto, ao associar todos os judeus franceses ao Estado de Israel, corre o risco de alimentar o ressentimento entre as vítimas do racismo.

Uma entrevista com
Maxime Benatouil


O presidente francês, Emmanuel Macron, chega à Cimeira do Euro de outubro, em 17 de outubro de 2018, em Bruxelas, Bélgica. Sean Gallup/Getty Images

Uma entrevista de 
David Broder

Tradução / Se acreditarmos na palavra de Emmanuel Macron, a França tem um problema crescente com o antissemitismo. O presidente se dirigiu ao Conselho Representativo das Organizações Judaicas do país na semana passada, declarando um aumento do antissemitismo “sem precedentes desde a Segunda Guerra Mundial”. Já em 11 de fevereiro, seu ministro do Interior informou que em 2018 houve um aumento de 74% nos ataques a judeus. Fontes do governo também associaram esse desenvolvimento aos protestos dos gilets jaunes, pois os ministros culparam essa “praga marrom” pela vandalização racista de uma loja de bagels em Paris e pelos recentes ataques a jornalistas.

No entanto, muitos judeus franceses criticam essa tentativa de transformar as alegações de antissemitismo em uma arma. As denúncias de envolvimento dos gilets jaune no ataque à loja de bagels logo se mostraram infundadas, e a tentativa do presidente de considerar o antissionismo uma nova forma de antissemitismo obscureceu a distinção entre judeus e Israel. Ao mesmo tempo, os judeus antirracistas enfatizaram os perigos de uma abordagem de dois pesos e duas medidas que não leva a islamofobia e o racismo contra os negros tão a sério quanto o antissemitismo.

Para Maxime Benatouil, um dos principais membros da União Franco-Judaica pela Paz (UJFP), a luta contra o antissemitismo deve ser combinada com uma defesa consistente das minorias. Ele conversou com David Broder, da Jacobin, sobre a presença de atitudes antissemitas entre os protestos dos gilets jaunes, a tentativa de Macron de transformar os ataques aos judeus em armas e o perigo de colocar as minorias umas contra as outras.

David Broder

O filósofo Bernard-Henri Lévy afirmou que o antissemitismo está no centro do movimento dos gilets jaunes. Suas observações se encaixam em uma narrativa mais ampla em que os ministros e a imprensa pró-Macron pintaram o movimento como de extrema direita ou liderado por fascistas. Há alguma evidência de que ideias anti-establishment ou conspiratórias entre os gilets jaunes estejam ligadas ou não a temas antissemitas?

Maxime Benatouil

Os comentários de Bernard-Henri Lévy são sintomáticos da reação contra os gilets jaunes. Esse é um movimento social real das classes trabalhadoras e populares e surgiu fora das estruturas políticas estabelecidas que tradicionalmente enquadram suas atividades. É verdade que houve sinais de antissemitismo nesse movimento, no qual a mídia francesa se concentrou especialmente, e também houve figuras nos protestos, como o ex-comediante Dieudonné [conhecido por usar a saudação quenelle e promover temas antissemitas].

Mas não há antisemitismo específico entre os gilets jaunes como tal, assim como não há no restante da sociedade francesa. E mesmo que o movimento reflita a sociedade em geral, à medida que cresceu, ele se tornou mais politizado e houve mais resistência entre as fileiras dos gilets jaunes contra o racismo, o sexismo, a homofobia e, de fato, o antissemitismo. Nesse sentido, o desenvolvimento político do movimento tem sido realmente surpreendente.

David Broder

Mas há evidências de ataques crescentes contra os judeus, ilustrados de forma mais clara pelo assassinato, no ano passado, da sobrevivente do Holocausto Mireille Knoll. De fato, foi relatado que houve um aumento de 74% nos incidentes antissemitas na França. O que você acha que está por trás disso?

Maxime Benatouil

É terrível que ocorram tantos incidentes antissemitas – foi relatado que houve 531 incidentes desse tipo no ano passado. Mas não tenho certeza se é uma boa ideia apresentar esses números dessa forma. Embora os números que o Ministério do Interior forneceu à mídia francesa tenham relatado um aumento de 74% em relação ao ano anterior, na verdade, há dez anos, o número de incidentes desse tipo era de cerca de 800 por ano, muito maior do que agora. Talvez a decisão de falar de um aumento sem dar uma ideia da tendência geral tenha sido um erro, ou talvez haja motivos políticos para querer pintar esse quadro.

O governo está tentando sugerir que há um aumento nos incidentes antissemitas relacionados aos gilets jaunes – por exemplo, quando houve uma pichação racista em uma loja de bagels em Paris, o fato de ter sido feita com tinta amarela foi considerado pelo governo como prova de que era proveniente desses manifestantes dos “coletes amarelos”, e os ministros tuitaram nesse sentido. Mas descobriu-se que a pichação havia aparecido dois dias antes da manifestação em questão e, de qualquer forma, não estava em seu trajeto.

David Broder

Houve uma tempestade na mídia depois que o escritor Alain Finkielkraut foi chamado de “sionista sujo” na cara por um gilets jaune. Embora a palavra “sionista” possa ou não ser usada como um código para “judeu”, você não acha que esse tipo de incidente deixa o movimento aberto a críticas ou, pelo menos, dá a impressão de não demonstrar solidariedade aos judeus diante do antissemitismo?

Maxime Benatouil

Finkielkraut é um conhecido escritor conservador e é de fato um sionista, com um longo histórico de polêmicas antipalestinas. Mas chamá-lo de “sionista sujo” ou dizer “volte para Tel Aviv” pode claramente ter uma dimensão antissemita.

Além de reconhecer isso, também vale a pena esclarecer duas coisas sobre Finkielkraut e esse incidente. Ele imediatamente procurou instrumentalizá-lo como se ele próprio fosse um antirracista. Mas não foi como se algum cidadão judeu aleatório, talvez usando um kipá, estivesse passando pela manifestação e fosse assediado pelos gilets jaunes.

Pelo contrário, Finkielkraut é uma figura pública bem conhecida. Na verdade, ele próprio é conhecido por ataques racistas, por exemplo, em uma entrevista ao Ha’aretz há alguns anos, na qual chamou o time de futebol francês de “preto-preto-preto” [subvertendo uma descrição comum de seu caráter multirracial, “branco-negro-árabe”], reclamando que não havia jogadores brancos suficientes.

Finkielkraut trabalha para uma das principais estações de rádio do país e convidou para seu programa um polêmico judeu ainda mais conservador, Éric Zemmour. Zemmour encobriu o legado do regime de Vichy do marechal Pétain, alegando que ele havia tentado salvar os judeus franceses e coisas do gênero.

Portanto, é claro que esses incidentes são ruins e não deveriam acontecer, mas dificilmente podem ser usados por essas figuras para caracterizar os gilets jaunes como propagadores do antissemitismo.

David Broder

Após o incidente com Finkielkraut, na última terça-feira, houve dois protestos diferentes contra o antissemitismo em Paris: o que os dividiu?

Maxime Benatouil

Eles representaram duas concepções muito diferentes do que significa “antirracismo”. Anteriormente, falei sobre instrumentalização política e, de fato, um dos protestos foi convocado pelo Parti Socialiste (PS), em uma aparente tentativa de angariar apoio para si mesmo. O PS foi um partido importante por muito tempo, mas caiu para 6% dos votos na eleição presidencial de 2017 e foi forçado até mesmo a abandonar sua sede histórica.

Buscando reavivar sua base, convocou uma manifestação que incluiu os principais partidos, ou pelo menos La République en Marche, de Emmanuel Macron, e os Républicains, de direita. O comício foi um veículo para reunir os partidos do centro político e da direita.

Não apenas o Rassemblement National (ex-Front National) de Marine Le Pen não foi convidado, mas também, a princípio, o La France Insoumise. Essa foi uma tentativa de instrumentalizar o antissemitismo, com o objetivo de dar a impressão de que o partido de Jean-Luc Mélenchon é indiferente a esse problema. No entanto, figuras conservadoras e racistas foram incluídas na marcha convocada pelo Parti Socialiste, incluindo Éric Ciotti, um parlamentar dos Républicains que queria introduzir medidas para proibir o uso de símbolos religiosos, principalmente por mulheres que usam hijab e acompanham crianças em atividades fora da escola.

Para nós da União Judaico-Francesa pela Paz (UJFP) – uma organização judaica antirracista e antissionista – não faz sentido nos manifestarmos lado a lado com pessoas como essas. Ao mesmo tempo, as forças de esquerda – a France Insoumise, o Partido Comunista, mas também aquelas como o Parti des Indigènes de la République, cuja porta-voz Houria Bouteldja vem enfrentando há anos ataques infundados e difamatórios, provavelmente por ser uma mulher árabe que defende a justiça – não devem se envolver em um debate sem sentido sobre se são “antissemitas”, como já foi feito nos contextos britânico e americano.

Na terça-feira, nós da UJFP ajudamos a organizar uma manifestação separada que insistiu na necessidade de tornar a luta contra o antissemitismo parte de um antirracismo consistente. A manifestação no distrito de Menilmontant, em Paris, foi realizada em conjunto com o Novo Partido Anticapitalista e outras organizações, como os Indigènes de la République e outros grupos que representam trabalhadores árabes e pessoas de ascendência africana.

Não podemos combater o racismo de uma forma que simplesmente absolva o Estado de sua própria responsabilidade pela promoção do antissemitismo, da islamofobia, do racismo contra negros e ciganos e, de fato, da dinâmica destrutiva criada quando se tenta priorizar o combate a uma forma de racismo em detrimento das outras.

David Broder,

Enzo Traverso apontou para o sentimento de discriminação que pode surgir quando o Estado leva o racismo contra algumas minorias menos a sério do que outras, fazendo com que elas se sintam menos valorizadas e protegidas. No entanto, ao mesmo tempo em que o Estado francês proclama sua luta contra o antissemitismo, é notável o quão pouco seus líderes têm se manifestado contra a ideia de que os judeus não estão seguros na França, por exemplo, quando, após os ataques de Paris em novembro de 2015, o premiê israelense Benjamin Netanyahu afirmou que os judeus franceses deveriam se mudar para Israel para ter segurança real. Como o antirracismo pode ser desvinculado da “vitimização competitiva” ou de colocar as minorias umas contra as outras?

Maxime Benatouil

Em 2017, Emmanuel Macron organizou a primeira homenagem aos ataques “Vel d’Hiv”, em que os judeus foram reunidos em um velódromo em Paris antes de serem transportados para os campos de extermínio na Alemanha. Escandalosamente, ele fez isso junto com Benjamin Netanyahu, de modo que o chefe de uma potência estrangeira foi retratado como se fosse um representante dos judeus franceses e, portanto, como se esses últimos cidadãos fossem menos franceses. Nesse evento, Netanyahu ficou muito satisfeito, no entanto, ao ouvir Macron retratar o antissionismo e a campanha de boicote, desinvestimento e sanções (BDS) como uma nova e perigosa forma de antissemitismo.

O que gostaríamos é que a sociedade francesa e o Estado francês levassem todo racismo tão a sério quanto o antissemitismo. A luta contra os ataques aos judeus não pode ser realizada de uma forma que também alimente a islamofobia ou vise outras minorias. Portanto, estamos tentando criar um espaço antirracista onde possamos colaborar e traçar estratégias com outros movimentos antirracistas de uma forma que não se limite a responder ao último ultraje antissemita e depois não dizer mais nada sobre racismo.

Para citar um exemplo disso, quando a sobrevivente do Holocausto Mireille Knoll foi assassinada e houve uma manifestação contra o antissemitismo, certamente não tivemos vontade de participar de uma manifestação que também incluísse a Frente Nacional (FN). De fato, naquela ocasião, até mesmo a Liga de Defesa Judaica, uma organização de extrema direita e ultrassionista, também não quis ficar em silêncio sobre a presença do FN. A forma particular do Estado de combater o antissemitismo, desconsiderando outros racismos e apresentando qualquer ataque a um cidadão judeu como um ataque a toda a República Francesa, pode, em parte, alimentar o pensamento conspiratório e o ressentimento contra os judeus, se eles forem vistos como protegidos de uma forma que outros não são. Estamos fazendo muito mais para combater o antissemitismo quando lutamos contra todo o racismo do que quando o tratamos de forma totalmente isolada.

DB

Nos últimos dias, Emmanuel Macron propôs classificar o “antissionismo” como uma forma de antissemitismo. Houve até a sugestão de que isso poderia levar a uma nova legislação para criminalizar algumas formas de crítica a Israel. Que medidas exatas você espera que isso envolva?

Maxime Benatouil

O antissionismo e a oposição a Israel são uma opinião política que não deve, de forma alguma, ser restringida por lei. É claro que o antissionismo é uma ideia que pode ter muitos significados diferentes, desde a oposição generalizada entre os judeus ao projeto sionista, antes do estabelecimento do Estado de Israel em 1948, até a posição daqueles que não querem destruir Israel, mas sim transformá-lo em um Estado de todos os seus cidadãos, incluindo os cerca de 20% da população que são árabes-palestinos. Recentemente, é claro, a lei do estado-nação, em vez disso, retirou o status oficial do árabe em Israel e impôs uma discriminação ainda mais severa contra os palestinos.

Emmanuel Macron foi convidado a discursar no jantar do Conselho de Organizações Representativas dos Judeus (CRIF), que, apesar de um passado mais progressista, tornou-se uma força pró-Israel de extrema direita entre os judeus franceses – quase como uma segunda embaixada israelense -, embora a mídia francesa muitas vezes a apresente como a voz de toda a “comunidade judaica”. Ela é muito mais direitista e branda com os neonazistas até mesmo do que a AIPAC.

Podemos ver isso em sua completa falta de reação à iniciativa de Netanyahu de oferecer cargos importantes aos kahanistas (supremacistas judeus, que resistem firmemente às críticas à matança de palestinos) com a sua reeleição.

O CRIF tem pressionado para que o antissionismo seja classificado como antissemita e, quando Macron discursou em seu jantar, disse que, por trás da oposição à existência de Israel, havia “a negação do judeu”. Ele disse que a definição de antissemitismo apresentada pela Aliança Internacional para a Lembrança do Holocausto (IHRA) deveria ser adotada como lei, incluindo os exemplos específicos que ela lista. Esses últimos já causaram polêmica no Partido Trabalhista da Grã-Bretanha, pois especificam que é antissemita dizer que “a existência de um estado de Israel é um empreendimento racista”.

Isso implicaria que um crítico do colonialismo exercido pelos assentados poderia ser considerado um “antissemita” pelo fato de se opor ao “direito do povo judeu à autodeterminação”. Não se sabe ao certo quais medidas específicas serão tomadas. Mas como Macron falou em inserir a definição do IHRA no código penal, isso criminalizaria e impediria ainda mais o trabalho da campanha francesa do BDS e o movimento de solidariedade na Palestina.

Até o momento, os partidos de esquerda - como o France Insoumise (LFI) e o Partido Comunista Francês – mantiveram silêncio sobre suas críticas a essa medida, porque não querem ser arrastados para outra disputa sobre o assunto. Eles não demonstraram muita coragem. Adrien Quatennens, um jovem e brilhante parlamentar do LFI, disse que “não é uma ideia muito boa”.

Mas nós, como organização judaica antissionista, estamos respondendo com mais firmeza. Nós, juntamente com nossos aliados, resistiremos a esse ataque à liberdade de expressão. Como oponentes consistentes do antissemitismo e antirracistas consistentes, defenderemos o direito de criticar Israel e, acima de tudo, de demonstrar solidariedade aos palestinos.

Colaborador

Maxime Benatouil é um membro líder da União Francês-Judaica para a Paz (UJFP).

David Broder é historiador do comunismo francês e italiano. Ele está atualmente escrevendo um livro sobre a crise da democracia italiana no período pós-Guerra Fria.

26 de fevereiro de 2019

O pior diplomata do mundo

O principal arquiteto da política externa de Jair Bolsonaro combina retórica nacionalista raivosa com submissão patética aos Estados Unidos.

Andre Pagliarini

O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, discursa em conjunto com o secretário de Estado dos EUA, Michael R. Pompeo, em Brasília, Brasil, em 2 de janeiro de 2019. Departamento de Estado dos EUA / Flickr.

Tradução / O novo presidente protofascista do Brasil tem tido dificuldade em controlar a narrativa em seu primeiro mês no cargo. Jair Bolsonaro emitiu várias decisões controversas, apenas para recuar logo depois; seu vice-presidente o contradisse publicamente em várias ocasiões; e ele fez feio em sua primeira aparição internacional no Fórum Econômico Mundial em Davos, Suíça. Esta última foi particularmente humilhante para um país como o Brasil, que anseia por reconhecimento internacional.

Segundo várias análises, o público exclusivo de plutocratas e filantropos em Davos não ficou impressionado pelos comentários chocantemente curtos e forçados do presidente. Heather Long, correspondente do Washington Post em Davos, chamou o desemprenho de Bolsonaro de um "grande fracasso", notando que "ele tinha o mundo inteiro assistindo e sua melhor fala foi chamar as pessoas para vir de férias ao Brasil". Outro jornalista compartilhou a reação de um amigo presente ao discurso de Bolsonaro: "Nunca passei por nada assim com um presidente aqui... Realmente bizarro". Investidores ansiosos para capitalizar com o novo clima de negócios do Brasil esperavam um comprometimento firme com a Reforma da Previdência do país, entre outras medidas regressivas, mas ficaram decepcionados pela apresentação amadora do presidente. Bolsonaro, em vez de tentar consertar o dano, foi ao Twitter celebrar a notícia de que o deputado de esquerda gay Jean Wyllys fugiu do país por temer por sua vida.

Enquanto Bolsonaro tropeçava fora do país, escândalos políticos acumulavam-se em casa. Relatos de transações financeiras suspeitas envolvendo a esposa do presidente e o assessor de um de seus filhos, senador recém-eleito, apareciam nas manchetes nacionais desde antes da posse de Bolsonaro. Então, enquanto Bolsonaro jantava com executivos e políticos proeminentes na Suíça, um dos principais jornais do Brasil ligava seu filho Flávio a membros de um esquadrão da morte do Rio de Janeiro conhecido como Escritório do Crime. A mesma milícia estava supostamente envolvida no assassinato de Marielle Franco, uma vereadora negra assassinada em março de 2018.

Apesar da atenção crescente da mídia nesses escândalos, o projeto político amplo do clã Bolsonaro permanece intocado. Sua agenda imensamente reacionária é definida por um componente nacional que tem sido amplamente coberto e um componente de política externa que geralmente tem recebido menos atenção.

O componente nacional é sem dúvida o aspecto mais ameaçador da Presidência de Bolsonaro. Porém vale a pena analisar a política externa para entender o que revela do papel que o Brasil está estabelecendo para si num momento em que forças da direita radical juntam mais poder real no mundo do que em qualquer ponto das últimas décadas. Isto é especialmente importante considerando o papel de liderança do Brasil na América Latina e tudo o que está em jogo agora que a era da chamada "Maré Rosa" chega ao fim. O novo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, é o ator principal neste drama.

Cruzada da décima primeira hora

Desde que assumiu, Araújo descartou qualquer pretensão de conciliação com os críticos internacionais de Bolsonaro. Pelo contrário, está ansiosamente traduzindo as opiniões reacionárias do presidente em uma política externa grosseira e imprudente. Já alterou as relações internacionais do Brasil de formas que acenderam alertas entre parceiros-chave de comércio e aliados antigos --com a notável exceção dos Estados Unidos, que vê Bolsonaro como um parceiro natural. Araújo busca satisfazer o fervor reacionário que tomou de assalto o corpo político brasileiro confirmando uma nova visão para o Brasil no cenário mundial. Desse jeito, ele machuca a posição global do país em nome de um projeto nacional radical cujo exemplo perfeito, mas incompleto, é a belicosidade rasa de Bolsonaro.

Como Rosana Pinheiro-Machado e Lucia Mury Scalco notaram na Jacobin, Bolsonaro "emprega o ódio como mobilizador político e até incita a violência diretamente contra seus competidores políticos". Araújo, que se imagina um pensador profundo, tem em mente algo um pouco diferente. Na sua visão, a presidência de Bolsonaro é uma cruzada de última hora para firmar o edifício de uma civilização ocidental sob sítio.

Não teve pejo em articular o que está em jogo conforme sua visão de mundo. Num artigo de opinião publicado na Bloomberg logo depois de sua posse, Araújo criticou ferozmente o filósofo anglo-austríaco Ludwig Wittgenstein por apresentar uma "desconstrução pós-moderna avant-la-lettre do sujeito humano" que estabeleceu "as raízes filosóficas de nossa ideologia totalitária globalista atual". Entender as idiossincrasias intelectuais de Araújo é a chave para entender o radicalismo simplório e a depravação intelectual do Brasil de Bolsonaro.

Prerrogativas imperialistas

A evolução da política externa de Araújo é uma rejeição maciça da abordagem implementada pelos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) no poder de 2003 a 2016. A partir do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), o Brasil assumiu um papel proativo nos assuntos globais, rompendo com o neoliberalismo da década anterior, quando o governo vendeu ativos valiosos do Estado e abraçou a austeridade em troca de um pacote de resgate de US$ 41,5 bilhões do Fundo Monetário Internacional.

O governo de Lula foi particularmente ativo na América Latina. Em 2005, o Brasil bloqueou a proposta Área de Livre Comércio das Américas (Alca), um projeto americano de longa data para ligar a América do Norte e do Sul e o Caribe (exceto Cuba) em um acordo comercial como o Nafta. As forças progressistas na América Latina resistiram ao que reconheceram como uma imposição neoliberal dos Estados Unidos.

O governo Lula, com um importante aliado na Argentina de Néstor Kirchner, tinha capital político suficiente para fechar o acordo. Em vez de aceitar uma estrutura de livre comércio desenhada por Washington, Lula optou pela integração regional. Trabalhou para fortalecer o Mercosul, um bloco comercial sul-americano a que temerosos políticos brasileiros prestaram pouca atenção desde sua criação em 1991.

Enquanto o PT no poder apoiava inequivocamente outros governos progressistas da "Maré Rosa" --Venezuela, Equador, Argentina, Bolívia, Uruguai, entre outros-- dedicou tanta atenção à América Latina que alguns dos vizinhos do Brasil se queixaram de uma tendência arrogante e quase imperialista. "É óbvio que o Brasil quer apenas nossos recursos", disse Marco Herminio Fabricano, membro do grupo indígena Mojeño da Bolívia, em 2011. "[O presidente] Evo [Morales] acha que pode nos trair para seus aliados brasileiros."

Além destas objeções, os governos do PT enfrentaram críticas crescentes por não terem contemplado um horizonte além de um modelo de desenvolvimento puramente extrativista, uma abordagem que se tornou ainda mais aguda com a sucessora de Lula, Dilma Rousseff (2011-2016). Finalmente, em 2016, as tentativas do PT de mitigar o conflito de classes por meio da cooptação de membros-chaves da elite industrial e financeira entraram em colapso.

Sob o PT, o Brasil também aprofundou seus laços comerciais, culturais e políticos com a África. Como observou Benjamin Fogel, "até o final do segundo mandato de Lula, o Brasil tinha 37 missões diplomáticas na África, a maioria depois dos Estados Unidos, França, Rússia e China, enquanto o comércio africano subiu de US$ 4 bilhões para US$ 24 bilhões". O papel global brasileiro como parte do bloco geopolítico do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) trouxe reconhecimento internacional. Ao mesmo tempo, Brasil chegou a ser visto com certa reticência pelo establishment conservador dos Estados Unidos.

Em 2012, Dov Zakheim, escrevendo para o National Interest de Henry Kissinger, se preocupava que não estava se considerando o suficiente "a herança brasileira do manto do Império Português na África, facilitada por sua crescente influência econômica". Zakheim, que trabalhou no Departamento de Defesa sob os presidentes Ronald Reagan e George W. Bush, não viu "nenhuma indicação que o senso de império, e do direito que o acompanha, está diminuindo [no Brasil]".

Desde a Guerra Fria, os arquitetos da política externa dos EUA sempre desconfiaram da diplomacia sul-sul independente, particularmente quando esta foi a política oficial de uma nação tão grande e economicamente importante quanto o Brasil. De fato, avaliações alarmistas da liderança do Brasil em assuntos globais eram evidentes tanto na administração republicana de George W. Bush quanto na administração democrata de Barack Obama, revelando uma continuidade das prerrogativas imperiais americanas disfarçadas sob discursos oficiais nominalmente tão diferentes.

Enquanto Bush se incomodou com a independência do Brasil na América Latina, Obama irritou-se com o engajamento do Brasil no Oriente Médio, que o então presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad disse que poderia "ajudar na promoção da paz e da estabilidade". Quaisquer que sejam suas falhas e sucessos, a política externa do PT era sem dúvida assertiva, uma qualidade que, através das respostas que provocava, expunha as inseguranças do imperialismo americano do século 21.
Passe "Hail Mary"

Depois do golpe parlamentar que instalou o vice-presidente trapaceiro de Rousseff, Michel Temer, o Brasil deu um gigantesco passo atrás no cenário global. Isto em nome de uma política externa supostamente mais realista.

"A solidariedade pragmática para com os países do Sul global continuará sendo uma importante estratégia da política externa brasileira", declarou, em maio de 2016, o então ministro das Relações Exteriores, José Serra, referindo-se a uma nova abordagem que abandonaria projetos políticos mais amplos --por exemplo, a ideia de que os Brics pudessem eventualmente servir como um contrapeso para a hegemonia global dos EUA-- em favor de uma interpretação mais estreita do interesse nacional. "Esta é a estratégia certa Sul-Sul e não a que foi praticada para fins publicitários, com baixos benefícios econômicos e altos investimentos diplomáticos", argumentou Serra.

Em agosto de 2016, o Secretário de Estado dos EUA, John Kerry, encontrou-se com Serra no Rio de Janeiro e expressou seu entusiasmo com a mudança da guarda política produzida pelo impeachment: "Eu acho que é apenas uma declaração honesta dizer que ao longo dos últimos anos, as discussões políticas aqui no Brasil não permitiram o pleno florescimento, por assim dizer, do potencial dessa relação".

A disposição de Temer em adotar um papel bem menor para o Brasil, sem surpresa, agradou aos Estados Unidos. De fato, a política externa de Temer, enfatizando os interesses materiais imediatos sobre supostos compromissos ideológicos, prefigurava a postura supostamente "não ideológica" de Araújo nos assuntos globais.

Ao contrário de seus antecessores, Donald Trump dificilmente enfrentará um governo brasileiro que desafie suas preferências políticas. Durante a campanha, Bolsonaro não demonstrou esforço algum para reavivar a trajetória independente que caracterizou a política externa do Brasil sob o PT e Araújo saudou Trump como o passe "Hail Mary da Civilização Ocidental", referindo-se a uma jogada de desespero no futebol americano que é a última esperança de um time vencer ou empatar um jogo e que normalmente acontece nos últimos segundos de uma partida.

Durante a campanha presidencial, Araújo buscou as boas graças dos Estados Unidos ao propor uma aliança entre os três maiores países cristãos do mundo --Brasil, Estados Unidos e Rússia-- para combater o que ele chamou de "eixo globalista" formado por China, Europa e a esquerda norte-americana.

Outros gestos simbolicamente importantes incluem a retirada do Brasil do Pacto Global pela Migração da ONU; ambiguidade quanto a abandonar o acordo climático de Paris; a intenção declarada de mudar sua embaixada em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, preocupando importantes parceiros comerciais no mundo árabe; e sua participação na agressiva campanha internacional para isolar e, finalmente, remover o venezuelano Nicolás Maduro. A nova disposição do Brasil de ceder sua liderança no hemisfério está ligada ao desejo de se submeter aos Estados Unidos liderados por Trump.

Mas, além dessas considerações, as tendências ideológicas pessoais de Araújo são visivelmente bizarras. Ele representa a epidemia de falsidades explosivas --por exemplo, que o PT queria forçar educação sexual explícita a jovens estudantes ou que a esquerda proibiria carne vermelha e relações heterossexuais-- que tem dominado a política brasileira, disseminada por canais não regulamentados como WhatsApp e Facebook. A orientação ideológica asinina de Araújo parece ser o que lhe rendeu o emprego. O extremista, em resumo, foi elevado exatamente por ser um extremista.
"Nada menos que um milagre"

Aos 51 anos, Araújo é excepcionalmente jovem, nos padrões brasileiros, para o cargo de ministro das Relações Exteriores. Embora tenha sido diplomata por quase 30 anos, ocupando alguns cargos importantes ao longo de sua carreira, nunca administrou uma embaixada no exterior. De acordo com vários relatos, a hierarquia do Itamaraty aparentemente não ficou feliz com o fato de uma figura tão inexpressiva receber o cargo mais importante.

Araújo pode não ter as credenciais tradicionais para o papel que ocupa agora. Mas ele é um ávido discípulo de Olavo de Carvalho, o guru pseudointelectual da extrema-direita do Brasil que trafega há décadas nas conspirações que ajudaram a impulsionar a ascensão de Bolsonaro. No atual clima político do Brasil, essa conexão vai longe. De fato, em seu primeiro discurso oficial, Araújo disse que, "depois do presidente Jair Bolsonaro, [Carvalho] talvez seja o homem mais responsável pela imensa transformação que o Brasil está passando".

Carvalho concorda plenamente com os relatos de sua própria importância: "Isso nunca aconteceu na história do mundo --um escritor que exerça esse tipo de influência sobre o povo", disse ele a Brian Winter, editor da America's Quarterly. "Isso só poderia acontecer no Brasil."

Carvalho escolheu a dedo Araújo para ser o Ministro das Relações Exteriores de Bolsonaro (também ajudou a aprovar ou vetar nomes para outras nomeações no governo de Bolsonaro). De forma improvável, por meio de seu engajamento com o governo brasileiro, o mundo tem que encarar agora as ideias absurdas de um eremita que não vive no Brasil, onde seu papel decisivo neste governo poderia ser examinado mais de perto, mas em Virgínia, Estados Unidos.

Carvalho já comentou sobre tantos assuntos diferentes que é difícil chegar a uma teoria unificadora de sua visão de mundo. Mas dois aspectos inter-relacionados das falas de Carvalho em particular se tornaram comuns na direita brasileira nos últimos anos: (1) uma definição excessivamente elástica de comunismo combinada com uma insistência na relevância continuada dessa ideologia como ameaça sociopolítica; (2) um pânico fervilhante sobre o "marxismo cultural", uma nebulosa teoria da conspiração que postula que insidiosos esquerdistas exercem controle total sobre quase todos os aspectos do pensamento na sociedade moderna.

Não é exatamente de todo claro por que as ideias de Carvalho se tornaram tão preponderantes, mas há alguns elementos a serem considerados. O primeiro e indiscutivelmente mais decisivo fator é a gradual radicalização de direita que ocorreu ao longo dos 13 anos de poder do PT.

Depois que o partido de Lula venceu quatro eleições presidenciais consecutivas, milhões de brasileiros passaram a desconfiar abertamente dos processos democráticos, seja porque achavam que as eleições estavam sendo manipuladas ou que os demagogos populistas haviam efetivamente comprado a lealdade dos eleitores indecisos por meio dos programas sociais do governo.

Como notou o psicólogo social Sander van der Linden, "uma série de estudos mostrou que a crença em teorias conspiratórias está associada a sentimentos de impotência, incerteza e falta generalizada de agência e controle". Tais sentimentos certamente floresceram entre um número considerável de eleitores anti-PT e elites conservadoras desde pelo menos 2010. De fato, no início do segundo mandato da Dilma, essa multidão passou a contestar abertamente os resultados de eleições livres.

Uma explosão no acesso à internet é outro fator que explica a proliferação das teorias conspiratórias de Carvalho. Carvalho é um ávido youtuber, postando frequentes críticas na plataforma que a socióloga Zeynep Tufekci chama de "um dos mais poderosos instrumentos de radicalização do século 21".

Por último, o aumento da educação superior nos governos do PT também pode ter produzido um público maior para argumentos pseudointelectuais históricos e sociológicos. Há muito mais a ser dito sobre como Carvalho conquistou o alcance que tem hoje, mas sua influência é agora uma realidade que progressistas no Brasil precisam enfrentar de frente.

O argumento de que as forças progressistas exercem influência decisiva sobre as normas e costumes cotidianos prosperou apesar, ou talvez por causa, do recuo real da esquerda desde pelo menos o fim da Guerra Fria. Enquanto o PT se deslocou gradativamente para o centro para conseguir uma vitória histórica em 2002, seus inimigos inveterados alegaram que ele havia simplesmente desenvolvido uma camuflagem mais eficaz para sua agenda subversiva. Mais recentemente, a noção de que os marxistas ganharam furtivamente a guerra cultural se tornou um auto de fé unificador para os movimentos de direita em todo o mundo.

Mas Carvalho não é um mero imitador. Ele tem protestado contra a ameaça supostamente iminente do comunismo na América Latina há décadas. De acordo com Carvalho, a manifestação mais insidiosa dessa ofensiva secreta é o Foro de São Paulo, uma conferência de partidos políticos de esquerda de mais de 20 países da América Latina e do Caribe estabelecida em 1990. Steve Bannon, o guru do Donald Trump que tem se aproximado do clã Bolsonaro, também critica abertamente o marxismo cultural, buscando formar uma união transnacional de movimentos identitários cristãos brancos para resistir.

Uma reunião de cúpula recente entre Bannon e Carvalho representou um encontro de dois tipos distintos, embora ligados, do reacionarismo histérico. Curiosamente, Bannon tratou Carvalho como o estadista naquele encontro, sugerindo que as teorizações paranoicas de Carvalho estão tendo um impacto orgânico na política global. Da forma como é atualmente invocado pelos conservadores, o marxismo cultural é uma reconstituição da ameaça existencial que o fascismo sempre precisou para florescer. Por causa de seus textos numerosos e presença no YouTube, Carvalho deveria figurar de forma proeminente em qualquer análise futura da atual conjuntura.

Araújo canalizou a escrita prolífica de Carvalho e seus vídeos do YouTube em um blog pessoal que ele manteve antes de se tornar ministro das Relações Exteriores. Nele, Araújo se referiu ao globalismo como um produto do marxismo cultural (uma conexão com claras nuances antissemitas). Para o ministro das Relações Exteriores, Carvalho destaca-se como "talvez a primeira pessoa no mundo a enxergar o globalismo como resultado da globalização econômica, entender seus horríveis propósitos e começar a pensar em como derrubá-lo. Por muitos anos ele também foi a única pessoa no Brasil a usar a palavra 'comunismo' para descrever a estratégia do PT e tudo o que estava acontecendo no país, numa época em que todos pensavam que o comunismo era apenas uma espécie de coletivismo que havia morrido com a União Soviética, cega para a sua sobrevivência em muitas outras formas na cultura e em questões globais".

Araújo também vincula explicitamente Carvalho a Bolsonaro, proclamando em um artigo para a revista conservadora New Criterion que "graças ao boom da internet e, especialmente, à revolução das redes socias, as ideias [de Carvalho] de repente começaram a percorrer todo o país, atingindo milhares de pessoas que haviam sido alimentadas apenas com os mantras oficiais. Essas ideias romperam todas as barreiras e convergiram com a postura corajosa do único político verdadeiramente nacionalista brasileiro dos últimos cem anos, Jair Bolsonaro, dando-lhe um nível totalmente inédito de apoio popular".

Esse foi o ímpeto que o Brasil precisava para se transformar em um "país nacionalista conservador e antiglobalista".

Ele também observou a importância de investigações anticorrupção como a Operação Lava Jato, cujo rosto público, o juiz Sergio Moro, foi nomeado ministro da Justiça de Bolsonaro após presidir um julgamento intensamente político que levou à prisão do ex-presidente Lula. "A investigação sobre o esquema de corrupção do PT --talvez o maior empreendimento criminoso já evoluiu e começou a esclarecer as profundezas da tentativa do PT de destruir o país e tomar o poder absoluto", afirmou Araújo, relatando o que se tornou a linha padrão dos eleitores conservadores que buscavam demonstrar que estavam motivados por fatores além da simples hostilidade ao PT.

Para Araújo, a crescente circulação das reflexões de Carvalho produziu algo como uma libertação nacional: "Vivemos por muito tempo frustrados pelo discurso globalista de esquerda. Agora podemos viver em um mundo onde criminosos podem ser presos, onde pessoas de todos os estratos sociais podem ter as oportunidades que merecem e onde podemos nos orgulhar de nossos símbolos e praticar nossa fé. O sistema de controle psicológico está acabado, e isto é nada menos que um milagre ".

O que Araújo vê como previsão na obra de Carvalho é, na verdade, teoria de conspiração elementar. Em um estilo que o ministro das Relações Exteriores claramente imita, Carvalho invoca tantas referências esotéricas e obscuras nas suas falas que seus argumentos podem ser difíceis de identificar. A intenção, certamente, é exatamente essa: ao parecer abastecer-se facilmente de um poço profundo de conhecimento, Carvalho imbui uma pátina de sofisticação para o que é essencialmente clichê reacionário.

Identificar o PT no poder como uma aventura comunista, por exemplo, é afirmar que palavras não têm significado. A campanha presidencial de 2018 estava infestada desse tipo de niilismo ideológico, com uma parte esmagadora de eleitores incapazes ou indispostos a defender Bolsonaro nos méritos de suas propostas desumanas, mas ansiosos para atacar Fernando Haddad, o candidato do PT, com acusações absurdas. É nesse contexto que a política externa brasileira está sendo elaborada agora.
"Eu sei quem sou"

A ironia em tudo isso é nítida: a direita brasileira há muito tempo acusou o PT de politizar a burocracia federal e conduzir as relações exteriores de forma ideológica. Agora, no entanto, Araújo está afastando o Brasil de praticamente todos os grandes países industrializados, exceto os Estados Unidos, reivindicando para si mesmo o manto de políticas racionais e imparciais, apesar das questões existenciais que o chanceler invoca em seus pronunciamentos.

Em nome de um antiglobalismo obscuro, o fervoroso ministro das Relações Exteriores que quer ser visto como uma mão firme atraiu críticas tanto dos neoliberais da Economist quanto dos liberais do New York Times. Os investidores internacionais que veem o Brasil principalmente como um mercado expansivo e produtor de matérias-primas esperam que o ministro da Economia, Paulo Guedes, economista neoliberal treinado na Universidade de Chicago, possa implementar reformas favoráveis aos negócios, apesar da sede de sangue autoritária de Bolsonaro e a cruzada civilizacional imaginada por Araújo.

Ao desenhar um papel global reacionário para o Brasil, Araújo está claramente tentando marcar pontos políticos em casa, já que o conservadorismo descarado invade o mainstream brasileiro como nenhum momento desde o fim da ditadura. A aposta de Araújo é bastante alta, sendo que "a luta pró ou contra a ordem global tornou-se uma luta pelo controle da ordem global", como Quinn Slobodian recentemente colocou. A onda reacionária transnacional com a qual Araújo comprometeu o Brasil pode muito bem já ter atingido seu auge. Enquanto isso, ele não tem demonstrado a capacidade de trazer o Brasil de volta da beirada radical caso os ventos da diplomacia internacional começarem a mudar.

Que fará ele, por exemplo, se Trump não vencer a reeleição em 2020? Os relacionamentos em que o Brasil aposta hoje poderiam facilmente tornar o país um pária amanhã. Além disso, Araújo pode enxergar uma luta civilizacional que coloca o Brasil ao lado dos Estados Unidos, mas os presidentes americanos nunca trataram a maior nação da América Latina como um parceiro igual. Trump se preocupa pouquíssimo com a América Latina. Não obstante o entusiasmo do senador da Flórida Marco Rubio pelo governo Bolsonaro, Araújo está se iludindo se acha que os Estados Unidos vão colocar de lado um histórico imperialista para travar uma guerra conjunta contra valores progressistas.

Araújo usa seu ministério para proclamar em voz alta um novo papel internacional para o Brasil (e para si mesmo). "Nós nos tornamos diplomatas que só fazem coisas que são importantes para outros diplomatas", argumentou ele em seu primeiro discurso oficial. "Isso deve parar. Vamos parar de olhar no espelho e olhar pela janela. Ou melhor ainda, vamos ao Brasil real. Não tenhamos medo do povo brasileiro. Nós somos parte do povo brasileiro."

O compromisso de Araújo de sacudir a cultura oficial do Brasil não é inerentemente uma má ideia --o Itamaraty é tão elitista quanto qualquer outra instituição em uma sociedade desigual como o Brasil. Mas, ao apelar para um "senso comum", Araújo está alinhando a política externa brasileira com as premissas reacionárias do presidente e do Olavo de Carvalho.

Nesse sentido, o discurso de posse de Araújo ofereceu uma destilação de sua visão emocional de política externa: "Aqueles que dizem que não há homens e mulheres são os mesmos que dizem que os países não têm o direito de proteger suas fronteiras, os que afirmam que o feto humano é um monte de células descartáveis, o mesmo que diz que a humanidade é uma doença que deve desaparecer para salvar o planeta".

Ele continuou com talvez a mais sucinta articulação já vista da onda reacionária que assola o mundo: "Quando adolescente, ouvi muitas pessoas dizendo: 'O mundo está marchando inexoravelmente em direção ao socialismo'. Mas isso não aconteceu. Não marchou porque alguém foi lá e parou. Hoje ouvimos que a marcha do globalismo é irreversível. Mas isso não é irreversível. Vamos lutar para reverter o globalismo e empurrá-lo de volta ao ponto inicial".

Há muito os brasileiros debatem o equilíbrio adequado entre a autoafirmação nacionalista no cenário mundial e o consentimento dos ditames das potências estrangeiras. A ditadura que governou o país de 1964 a 1985, por exemplo, deferiu inteiramente para Washington em seus primeiros anos, com o embaixador do Brasil nos Estados Unidos proclamando que "o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil". Setores mais vigorosamente nacionalistas das Forças Armadas prevaleceram e procuraram fazer o país uma potência hemisférica por conta própria. Araújo combina o discurso agressivo dessa segunda corrente com a essência submissa da primeira.

É possível que, no caos que provavelmente definirá a presidência de Bolsonaro, Araújo caia. Sua autoimportância fumegante encaixa bem com o objetivo de Bolsonaro de alterar drasticamente a orientação da política externa do Brasil --de fato, ambos compartilham a crença de que homens durões e assertivos podem facilmente resolver problemas complexos. Mas é difícil imaginar Araújo conquistando apoio político independentemente de seu presidente ou de seu venerado guru intelectual. Um golpe potencialmente fatal para Araújo, então, será se Carvalho ou suas ideias forem efetivamente desacreditadas nos próximos anos.

Os militares também poderiam pôr em perigo o emprego de Araújo. Desentendimentos com as Forças Armadas já ameaçam reduzir sua influência. Não há dúvida de que em um confronto direto entre Araújo, o guerreiro cultural que se lança em uma luta civilizacional, e os pragmáticos de sangue-frio nas Forças Armadas, Bolsonaro ficaria com os últimos. Afinal, os militares agora ocupam vastos setores do alto escalão no atual governo. Ainda assim, a visão de política externa grosseiramente conspiratória de Araújo já se tornou parte central da imagem nacional e internacional do Brasil sob Bolsonaro. Este é exatamente o rosto que o atual governo parece querer apresentar ao mundo.

Em seu discurso de posse como ministro das Relações Exteriores, Araújo relatou uma lição que aprendeu com Dom Quixote por meio de Olavo de Carvalho. Em certo ponto no clássico de Cervantes, o protagonista encontra-se deitado à beira da estrada em algum lugar em La Mancha, delirante e derrotado. Nesse triste estado, Quixote confunde um camponês com o marquês de Mântua. O camponês exasperado responde que ele não é aristocrata, que ele é vizinho de Quixote e o conhece há anos. O camponês, então, lembra o homem prostrado de ele não é Dom Quixote, como ele afirma, mas Alonso Quixano. Dom Quixote para, pensa e responde: "Eu sei quem eu sou".

Para Araújo, a moral da história é clara: "Alguns dirão que o Brasil não é tudo o que o presidente Bolsonaro acredita que é, e creio que é, dirão que o Brasil não pode influenciar o destino do mundo, defender os mais altos valores da humanidade, que devemos apenas exportar bens e atrair investimentos, porque afinal somos um país bom, quieto e pacífico, mas impotente. Eles dirão que o Brasil é apenas Alonso Quixano. Mas o Brasil responderá: Eu sei quem eu sou". Não sabemos ainda se Araújo conhece o fim da história de Dom Quixote.

Colaborador

Andre Pagliarini é professor assistente visitante de história latino-americana moderna na Universidade Brown. Está atualmente preparando um manuscrito sobre nacionalismo brasileiro no século XXI.

PEC da crueldade social

Na essência, proposta resultará em mais excluídos

Folha de S.Paulo

Humberto Costa e Paulo Pimenta


Marcos Correa/Xinhua

A PEC (Proposta de Emenda à Constituição) da reforma da Previdência de Bolsonaro tem como meta “reformar para excluir”. A proposta é cruel! Afirma que combate privilégios, mas, na essência, produzirá mais pobres e excluídos do sistema de proteção social.

A proposta institui o regime de capitalização para quem começa a trabalhar após a reforma. Na prática, extingue o modelo solidário da Previdência atual, consagrado na Constituição de 1988. O regime de capitalização foi aplicado no Chile e se revelou um desastre.

Ao elevar de 15 para 20 anos o tempo mínimo de contribuição, a reforma impedirá o acesso à Previdência de quem já vive em trabalho precário e maior rotatividade. Atualmente, metade dos ocupados já está na informalidade. Dos trabalhadores urbanos que se aposentaram por idade em 2014, mais de 60% estariam excluídos da Previdência caso vigorasse a regra proposta.

A PEC eleva a idade mínima para 65 anos para homens e 62 para mulher, desconsiderando diferenças sociais e regionais. Isso, porém, não basta para eles: a proposta exige 40 anos de trabalho para a aposentadoria integral.

A reforma inviabiliza a aposentadoria especial rural, ao exigir a comprovação da efetiva contribuição e não mais da condição de trabalhador rural, que cumpria suas obrigações previdenciárias na venda da produção. Além disso, eleva de 15 para 20 anos o tempo mínimo de contribuição. Ainda, a agricultora é mais afetada pela equiparação da idade mínima entre homens e mulheres.

Da mesma forma, professoras passam a ter idade mínima para aposentadoria de 60 anos, bem como tempo de contribuição de 30 anos, sem qualquer distinção de gênero.

Uma das maiores crueldades da proposta se refere ao fim do Benefício de Prestação Continuada (BPC). Se aprovada, os idosos em situação de extrema pobreza só teriam direito a um salário mínimo a partir dos 70 anos. Entre 60 e 70 anos, teriam uma renda de apenas R$ 400.

O legado da proposta de Bolsonaro será um sistema excludente e injusto. Ela não traz qualquer medida voltada a militares e não amplia as fontes de receitas previdenciárias por meio da taxação do andar de cima, como os bancos.

Para garantir a sustentabilidade da Previdência, é essencial rever a política de desonerações que devem ultrapassar R$ 300 bilhões em 2019. É preciso, ainda, retomar os investimentos públicos e privados para movimentar a economia, gerando empregos e o aumento da arrecadação.

Além disso, é necessário enfrentar a impunidade que estimula a sonegação. É preciso acabar com a extinção da punibilidade, um verdadeiro perdão para fraudadores caso paguem os tributos devidos mesmo depois de condenação. Tudo isso a reforma não faz, o que demonstra a falsidade do discurso do combate aos privilégios.

O destempero da PEC é tamanho que desobriga os empregadores de depositar o FGTS e pagar multa rescisória para aposentados que voltarem a trabalhar. É o reflexo do imaginário do governo Bolsonaro: trabalhadores pagam a conta do ajuste, empresários são premiados com redução de suas obrigações.

Até 2015, a Previdência urbana era superavitária. Entre 2014 e 2017, o regime geral perdeu mais de 6 milhões de contribuintes, diante da crise econômica que aumentou o número de desempregados. A arrecadação previdenciária despencou sob as circunstâncias adversas da economia.

O resultado geral da PEC será a diminuição da renda dos mais pobres.

Em vez de reformar para excluir, o Brasil precisa seguir outro caminho, no qual a sustentabilidade da Previdência seja construída à luz da inclusão social.

Sobre os autores


Humberto Costa é líder do PT no Senado Federal.

Paulo Pimenta é líder do PT na Câmara dos Deputados.

25 de fevereiro de 2019

Punição, reparação e mudança

Após um mês, dimensão dos danos ainda é imensurável

Antônio Sérgio Tonet



Na tarde de 25 de janeiro, uma sexta-feira, espalhou-se pelo país uma notícia que, em um primeiro momento, soou a cada brasileiro como inverossímil, pois custava-nos acreditar que reviveríamos uma catástrofe como a ocorrida há apenas três anos. Confirmada a informação, ainda alimentamos a esperança de que os relatos seguintes nos afastariam de tamanho horror.

Com o passar das horas, foram se revelando as dramáticas dimensões humanas, sociais e ambientais causadas pelo rompimento da barragem da mina do Córrego do Feijão, de propriedade da Vale, em Brumadinho (MG). Proporções que, na realidade, até este momento —um mês após o desastre— ainda não podem ser mensuradas.

Se os danos ainda não são integralmente conhecidos, cristalina é a definição que se deve dar ao episódio: criminoso! E assim tem sido tratado pelo Ministério Público de Minas Gerais. Custa-nos crer que, no contexto das atividades de uma das maiores mineradoras do mundo, haja espaço para desastres dessa natureza.

Desde o primeiro instante, o Ministério Público mineiro passou a articular a atuação das instituições responsáveis pelo enfrentamento da tragédia. Ministérios Públicos Federal e do Trabalho, Defensorias Públicas da União e do Estado, Advocacias-Gerais da União e do Estado, Polícias Civil, Militar e Federal, Corpo de Bombeiros e Defesa Civil —todos reunidos com a missão de garantir uma resposta efetiva e imediata, evitando a dispersão de iniciativas.

Foi com esse trabalho conjunto e coordenado que se garantiu o bloqueio de mais de R$ 10 bilhões da empresa já nos primeiros dias da tragédia, graças, inclusive, à célere resposta do Judiciário. Medida importantíssima para resguardar recursos voltados ao cumprimento de ações emergenciais e reparadoras, bem como para futuras indenizações.

Pontos fundamentais nessa articulação têm sido o envolvimento dos atingidos e a promoção de uma negociação coletiva para que se alcance uma reparação justa pelas perdas pessoais, afetivas e materiais que sofreram com a tragédia. Uma atenção especial foi dada às crianças e aos adolescentes afetados. O cuidado com a fauna e com o patrimônio histórico e cultural também esteve presente nesse trabalho.

O Ministério Público vem adotando estratégias de atuação para priorizar ações voltadas a um diagnóstico socioeconômico que subsidie as medidas emergenciais de redução de vulnerabilidade dos atingidos, o levantamento para recuperação dos danos ambientais e a apuração de responsabilidades pela tragédia. A investigação na área criminal tem avançado rapidamente, com algumas prisões temporárias, decretadas pelo Judiciário, que têm se mostrado imprescindíveis à elucidação dos fatos.

A Promotoria tem exigido de igual forma que a empresa assuma publicamente suas responsabilidades e enfrente, de forma coerente e célere, as consequências sociais, ambientais e econômicas decorrentes do rompimento da barragem.

Na última semana, após sucessivas reuniões para discutir os termos de acordo preliminar em ação judicial, foi ajustado o pagamento de verba emergencial a toda a população de Brumadinho, afetada pelo desastre.

Pelo acordo, a Vale terá de pagar o valor correspondente a um salário-mínimo, a título de renda de manutenção, a todas as pessoas residentes no município e nas localidades que estiverem a até aproximadamente um quilômetro do leito do rio Paraopeba. Foi a primeira batalha vencida.

A tragédia reacendeu a luz sobre uma questão primordial: a necessidade de alterações profundas no marco legal que regulamenta a atividade de mineração no país.

A Assembleia Legislativa mineira acabou de aprovar o projeto de lei Mar de Lama Nunca Mais, defendido pelo MPMG e fruto da reunião de mais de 60 mil assinaturas de cidadãos. Cabe ao Congresso Nacional seguir o exemplo e aprovar um marco regulatório nacional.

Neste momento de grande abalo, podemos avançar muito nessa questão. Até lá, seguiremos atuando com firmeza, para que os responsáveis sejam punidos, os danos, reparados e as pessoas possam reconstruir suas vidas.

Sobre o autor


Procurador-geral de Justiça de Minas Gerais desde 2016

24 de fevereiro de 2019

Trabalhando até morrer na FedEx

Mortes recentes em unidades da FedEx sugerem um sério problema de segurança. No entanto, Trump ainda está tentando confirmar um executivo da FedEx para a mais importante posição de segurança do trabalho no país. 

Joe Allen

Jacobin

A FedEx plane at McCarran airport in Las Vegas. Tómas Del Coro / Flickr.

Tradução / William L. Murphy, 69 anos, um motorista da FedEx Freight, foi encontrado morto no centro de distribuição da empresa em East Moline, Illinois, na manhã de 31 de janeiro. Ele morreu, segundo o médico legista, de uma lesão traumática na cabeça depois de cair entre dois trailers de semi-reboque. De acordo com a FedEx Freight, o centro foi fechado devido ao histórico clima frio. Nas proximidades de Moline, por exemplo, a temperatura caiu para 36 graus abaixo de zero, uma das mais baixas já registradas na região.

Murphy foi descoberto por um colega de trabalho às 9:30 da manhã. A polícia local foi chamada e chegou logo depois. Por quantas horas Murphy ficou deitado lá, ferido e inconsciente ou semiconsciente, não se sabe. Mas certamente foi uma maneira horrível para Murphy morrer, gravemente ferido no clima mais mortal que qualquer um de nós já experimentou.

A UPS, a FedEx e a Target, juntamente com outras corporações, foram criticadas por fazer com que seus funcionários comparecessem ao trabalho durante o vórtice polar, com suas temperaturas frias letais exacerbadas pelos ventos uivantes. Muitas das grandes empresas de logística limitaram suas entregas e operações de recolhimento – não por causa de uma profunda preocupação por seus funcionários, disseram vários funcionários de logística de Chicago, mas porque muitos de seus clientes estavam fechados. A UPS, por exemplo, ainda exigia que os funcionários de centros de distribuição, os motoristas de entrega de pacotes e os motoristas de longas distâncias comparecessem para trabalhar e dirigir suas rotas.

O serviço postal dos Estados Unidos (USPS), de acordo com uma transportadora local, não fez entregas nos dias 30 e 31 de janeiro, em grande parte devido à pressão pública, mas pediu a todos que reportassem às estações dos correios para organizar suas rotas.

Vinte e uma pessoas do meio-oeste morreram durante o vórtice. Ninguém deveria estar do lado de fora por nenhum motivo.

A FedEx haver sido examinada sobre suas práticas no local de trabalho é algo excepcional. Ao contrário dos Correios, UPS ou Amazon, todos criticados no passado por suas condições de trabalho horrendas, as práticas de trabalho da FedEx raramente estão sob os holofotes. Mas a empresa tem visto uma série de mortes no local de trabalho desde 2014.

A horrível morte de Murphy aponta para um sério problema de segurança do trabalho na FedEx. E acontece exatamente quando o presidente Donald Trump nomeou, pela terceira vez, Scott Mungo, da FedEx Ground, como chefe da Occupational Safety and Health Administration – OSHA (em tradução livre, Administração de Segurança e Saúde Ocupacional), a posição mais importante que supervisiona a segurança dos trabalhadores nos Estados Unidos.

A origem da FedEx
A FedEx inventou o negócio de transporte noturno nos Estados Unidos. Foi ideia do seu fundador, Frederick W. Smith, que continua sendo o presidente e diretor executivo do conselho quase cinquenta anos depois. Depois de deixar Yale, ele completou duas viagens no Vietnã para o Corpo de Fuzileiros Navais, onde foi treinado não como piloto, mas com pilotos para coordenar a ação terrestre. Smith voou mais de 200 missões nas quais ele “observou cuidadosamente os procedimentos militares de aquisição e entrega”, de acordo com um perfil, “com o objetivo de algum dia realizar seu sonho de uma vasta rede dedicada à entrega durante a noite”. Esta não foi a primeira nem a última vez que a logística militar impactou os negócios civis, e vice-versa.

Em 1971, ele fundou a Federal Express Corporation, mais tarde encurtada para a FedEx. Os escritores de negócios Mike Brewster e Frederick Dalzell viram que a Federal Express e a UPS haviam revolucionado a indústria de entrega de pacotes:

No início dos anos 1980, a FedEx havia revolucionado o negócio de frete aéreo e se estabelecido como o principal fornecedor de entregas noturnas. O que a UPS fez para o fornecimento consolidado em terra nas décadas de 1920 e 1930, a FedEx fez para as operações aéreas do dia seguinte nos anos 1970 e início dos anos 1980.

A partir da década de 1980, a intensa concorrência entre a FedEx e a UPS reformularia a indústria e a estrutura e os serviços de ambas as empresas. Seus destinos se entrelaçaram.

Muitas pessoas ainda pensam na FedEx principalmente como um serviço de entregas noturnas, com suas vans de correio brancas que pontilham os distritos comerciais das principais cidades dos Estados Unidos. Mas a FedEx se transformou em muito mais do que isso desde sua fundação, com subsidiárias que incluem o FedEx Office, Express, Ground, Freight, Supply Chain, Custom Critical e Trade Networks Services.

São realizados voos para 220 países todos os dias. Sua receita bruta em 2018 foi superior a US$ 65 bilhões, com mais de US$ 4 bilhões em lucros. Hoje, a FedEx emprega mais de 425.000 funcionários em todo o mundo, com sede em Memphis, Tennessee, que é também a localização de seu vasto “Supernúcleo“.

A FedEx é uma cria da era neoliberal e da revolução logística que remodelou a economia capitalista mundial nas últimas quatro décadas. Ao contrário de antigas empresas de entrega de cartas, pacotes ou fretes, as empresas que precisaram se ajustar ao novo mundo do ‘faça ou morra’ que seguiu a desregulamentação das indústrias de aviação e caminhões no final dos anos 1970, a FedEx era mais experiente em tecnologia – muito mais do que a UPS, USPS ou DHL. Enquanto outras empresas ainda trabalhavam com papel, a FedEx usou a mais recente tecnologia de computadores e códigos de barras para rastrear pacotes.

Também foi pioneira na publicidade televisiva para a indústria naval, com os comerciais de televisão no final da década de 1970 que acabaram se tornando memoráveis – “Quando, definitivamente, certamente tem que estar lá de um dia para o outro” – e hilariantes. A FedEx tinha uma imagem glamorosa em seus primeiros dias, com jatos elegantes entrecruzando o país em comparação com os caminhões marrons de entrega por terra da UPS. Até mesmo os primeiros uniformes dos pilotos da FedEx foram feitos para dar a impressão de “pilotos em terra”.

Em 1988, Fred Smith ridicularizou a imagem enfadonha e a estratégia de negócios da UPS no Wall Street Journal: “A UPS é como – não digo isso desrespeitosamente – o Politburo. E com esses zilhões de caminhões marrons, como o exército russo.”

Mas a resposta lenta da UPS à FedEx não demorou. Com enormes concessões concedidas à UPS na década de 1980 pelos Teamsters – criando, entre outras coisas, uma estrutura salarial permanente de dois níveis para funcionários de meio expediente nos tradicionais manipuladores e separadores em suas operações terrestres e posteriormente em sua divisão aérea – a UPS assumiu a FedEx. Seguiu-se uma luta de wrestling em toda a indústria, chamada “Package Wars” pela mídia de negócios.

Enquanto cada um tentava obter a vantagem, a FedEx e a UPS começaram a se espelhar na estrutura e nos serviços. A FedEx entrou no negócio de entrega de pacotes no final dos anos 1990 com a compra do Roadway Package Service (RPS), que foi concebida como um concorrente de entrega a domicílio de baixo custo para a UPS. Tornou-se o FedEx Ground. Com a compra da American Freightways e da Viking, a FedEx mudou-se para o setor de frete.

A integração vertical de ambas as empresas foi concluída na primeira década do século XXI com a compra de lojas de varejo. A FedEx comprou a Kinko’s, mais tarde renomeada como FedEx Office, que lidava exclusivamente com o envio da FedEx.

FedEx e sindicatos
A FedEx tem sido muito inteligente ao longo dos anos, manipulando leis federais para frustrar os esforços de sindicalização e mantendo suas várias divisões separadas umas das outras. Muitas vezes teve sucesso, mas nem sempre. Por ter começado como uma companhia aérea, os pilotos da FedEx foram cobertos pelo Railway Labor Act, que é favorável ao empregador. Apesar disso, os cerca de cinco mil pilotos da FedEx são os únicos trabalhadores sindicalizados da empresa. A força de trabalho em massa remanescente da FedEx não é sindicalizada, em contraste com os 280.000 trabalhadores da UPS representados pelo Teamsters.

Em 2005, James P. Hoffa, o presidente geral do Teamsters, rompeu com a AFL-CIO para se juntar a uma nova federação de trabalhadores chamada Change to Win. Ele prometeu mais organização. “O que deveria ser feito na AFL-CIO não está funcionando”, disse Hoffa. “Nós vamos fazer algo novo.”

Com mais de 15.000 motoristas da FedEx Ground em 2006, que entregam pacotes para residências e empresas, Hoffa declarou que “a FedEx [Ground] é um alvo importante para nós”. Muitos esforços do Teamsters estavam em pequenos centros regionais onde a administração da FedEx possuía vantagem e havia demitido dezenas de apoiadores do sindicato. Hoffa reclamou que a FedEx Ground estava usando “táticas antissindicais que surgiram na década de 1930”.

Em Brockton, Massachusetts, 2011, os apoiadores do sindicato sindicalizaram 75% dos carregadores no centro da FedEx Ground e pareciam ter uma vitória. No último momento, o Teamsters cancelou a eleição. Por quê? Os membros da Socialist Alternative, um pequeno grupo socialista cuja figura pública mais proeminente atualmente é Kshama Sawant, membro do Conselho da Cidade de Seattle, estavam desempenhando um papel de liderança na campanha de organização. Um dos principais organizadores da campanha fracassada em Brockton me disse que achava que o anticomunismo do Teamsters era um fator motivador para o sindicato cancelar a eleição.

Os esforços do Teamsters na FedEx Freight, apesar das resoluções aprovadas em várias convenções do Teamsters, foram ainda mais frustrantes. Como o USA Today relatou em outubro de 2017:

a FedEx Freight disse na sexta-feira que o National Labor Relations Board revogou a certificação do sindicato para motoristas em uma instalação em Monmouth Junction, Nova Jersey, depois que o Teamsters Local 701 negou interesse em representar os motoristas. A empresa disse que a revogação ocorre depois que motoristas em outras instalações em Croydon, na Pensilvânia, e em Charlotte, na Carolina do Norte, votaram contra o sindicato.

Na última década e meia, em vez de “algo novo”, o Teamsters continuou com um velho e familiar padrão de falha na FedEx Freight ou na FedEx Ground, semelhante à sua campanha fracassada na gigante de transporte de cargas XPO. A principal falha no coração de todas essas campanhas fracassadas é tentar organizar um local de cada vez nesses gigantes logísticos em vez de buscar uma estratégia nacional de organização.

Mortes nas unidades da FedEx
Em 2018, a FedEx foi listada como um dos melhores lugares para se trabalhar pela Fortune. Ela participou da lista treze vezes nos últimos vinte e um anos. No entanto, uma série de mortes no local de trabalho diz algo sobre o quão perigoso é um lugar para trabalhar e o quão pouco a FedEx pensa de seus funcionários.

Não surpreendentemente, as mortes estão concentradas no Supernúcelo da FedEx em Memphis, Tennessee, o centro de suas operações globais. Nas primeiras horas da manhã do Dia de Ação de Graças de 2017, o corpo de Ellen Gladney, uma popular líder de equipe e avó, foi encontrado sob um sistema de esteira transportadora móvel. Dois anos antes, Christopher Higginbottom, um veterano de dezoito anos da FedEx e pai de meninos gêmeos, foi esmagado até a morte por um rebocador, um veículo motorizado puxando carrinhos. Em 2014, Chandler Warren foi esmagado até a morte por um elevador de carga. Em cada caso, multas de vários milhares de dólares cobradas pela Tennessee Occupationl Safety and Health Administration -TOSHA (em tradução livre, Administração de Saúde e Segurança Ocupacional do Tennessee) foram apeladas pela FedEx e reduzidas.

Enquanto isso, os denunciantes da FedEx foram perseguidos pela empresa, embora recentemente tenham ganhado uma ação histórica contra a companhia. De acordo com a NBC Los Angeles:

um ex-funcionário e dois atuais funcionários da locadora LAX da FedEx receberam coletivamente milhões de dólares depois que um júri considerou que foram indevidamente disciplinados pela gigante dos correios depois de divulgar suas alegações de que a empresa colocou os lucros acima da segurança, não estando consistente com os requisitos de segurança da FAA.

Com um registro como esse, não é de admirar que a nomeação de Scott Mungo, vice-presidente de Segurança, Sustentabilidade e Manutenção de Veículos da FedEx Ground em Pittsburgh e ex-diretor da FedEx Express Corporate Safety, Health e Fire Protection em Memphis, para liderar a OSHA, levantou bandeiras vermelhas. Os democratas continuam a bloquear a indicação de Mungo no início de fevereiro, mas esta é a terceira vez que Trump o nomeou. Trump claramente quer Mungo na função.

A morte de William L. Murphy é a última de uma série de mortes no trabalho na FedEx. Essas mortes devem levantar sérias dúvidas sobre as qualificações de Mungo para liderar a agência federal mais importante em proteger a vida dos trabalhadores. Sua nomeação deve ser oposta pelo movimento trabalhista. O impacto de alguém como Mungo trabalhando para desmantelar uma agência já subfinanciada seria devastador para a segurança do trabalho e só levaria a mais mortes de trabalhadores como a de Murphy.

Sobre o autor

Joe Allen's latest book is The Package King: A Rank and File History of United Parcel Service.

23 de fevereiro de 2019

Calendário

Com PEC que muda o regime previdenciário, Bolsonaro definiu cronograma político até 2020

André Singer


Presidente Jair Bolsonaro entrega ao Congresso proposta de reforma da Previdência. Marcos Correa/Xinhua.

Com a oficialização da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que muda o regime previdenciário na quarta (20/2), Bolsonaro praticamente definiu o cronograma político dos próximos dois anos. Durante 2019, o assunto será o quanto a reforma vai custar aos assalariados. Em 2020, as eleições para prefeitos e vereadores refletirão o impacto das perdas.

Entre um e outro evento, dois fatores podem potencializar ou amenizar a pancada nas aposentadorias. O primeiro é o desempenho econômico geral. Se confirmadas previsões registradas pela Folha em 17/2, o crescimento neste ano ficará em torno de 2%, insuficiente para aliviar o sofrimento das camadas populares.

Com 12 milhões de desempregados, o PIB precisaria ter o dobro de impulso para fazer a fila andar. No passo atual, a sensação nas periferias será a de que nada mudou com o bolsonarismo. Para que a decepção não se reflita nas urnas municipais, precisaria haver forte investimento no segundo semestre.

Diante da incerteza, Bolsonaro deixou na manga uma segunda cartada: o pacote anticrime e anticorrupção amarrado por Sergio Moro. Embora advertido pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), de que não há espaço legislativo para a tramitação paralela de tantas alterações, o Planalto fez questão de enviar ao Congresso na terça (19/2) dois projetos de lei e um de lei complementar. Flexibilização da legítima defesa, prisão em segunda instância e criminalização do caixa dois encontram-se entre os pontos abordados.

Caso o quadro econômico siga anêmico, o bolsonarismo tentará infundir vigor às candidaturas oficiais (já se fala na de Janaína Paschoal a prefeita de São Paulo) no setor da segurança. Tolerância zero, se obtiver resultados, pode render votos. Em que pese os custos em direitos humanos que tende a acarretar.

Para além da tuitagem furiosa do presidente da República e seus parentes, a massa de votantes se guia por ganhos objetivos. Renda no fim do mês, tranquilidade para ir e vir, saúde e educação. O Executivo precisa entregar melhorias, ou perderá sufrágios.

Ainda é cedo para dizer com qual cacife os vencedores de 2018 chegarão aos pleitos locais. Mas já se vê em que terrenos os que estão com as brancas decidiram jogar. Caberá às oposições (que não conseguem unidade) apresentar, nos campos indicados, suas alternativas ao distinto público caso queiram, de fato, constituir uma nova maioria em 2022.

P.S. A análise acima pode ser afetada por acontecimentos excepcionais, como um impensável conflito militar entre Brasil e Venezuela. Até onde a razão alcança, porém, a loucura não chegará a tal ponto.

Sobre o autor

Professor de ciência política da USP, ex-secretário de Imprensa da Presidência (2003-2007). É autor de “O Lulismo em Crise”.

21 de fevereiro de 2019

A Teoria Monetária Moderna não está ajudando

Os defensores da MMT falam dela como se fosse uma nova maneira radical de se compreender o dinheiro e a dívida. No entanto, será necessário ir além do que pressionar algumas teclas para mudar a economia.

Doug Henwood

Jacobin


“Quando a gente sonha, quando a gente sonha, quando a gente sonha
A gente vai sonhar, sonhar de graça, dinheiro de graça
dinheiro grátis, dinheiro grátis, dinheiro grátis,
dinheiro grátis, dinheiro grátis, dinheiro grátis” 
— Patti Smith

Tradução / Agora que políticas públicas popularizadas por Bernie Sanders nos EUA, como um sistema público de saúde e universidades gratuitas, e outras propostas mais novas, como um Green New Deal, estão se infiltrando no debate político dominante, seus defensores sempre se deparam com a pergunta: “como você pagaria por isso?” Muito embora existam boas respostas para “essa questão”, que poderiam até ser reduzidas a um tamanho e um vocabulário amigável para o ambiente da TV, nem sempre elas estão disponíveis. Mesmo pessoas que se descrevem como socialistas parecem ter dificuldade para dizer a palavra “impostos”. Como seria bom se a gente pudesse simplesmente dispensar essa pergunta como uma distração irrelevante, né?

Convenientemente, há uma doutrina econômica que nos permite fazer exatamente isso: a Teoria Monetária Moderna ( ou “MMT”, na sigla em inglês). A deputada Alexandria Ocasio-Cortez é no mínimo curiosa sobre a MMT e essa teoria está por toda parte, em grupos de leitura marxistas e nos diretórios locais dos Socialistas Democráticos da América. Ela está até mesmo se infiltrando na imprensa de negócios – Joe Weisenthal, da Bloomberg, tem simpatia pela doutrina. James Wilson, do New York Times, twittou recentemente: “A velocidade com que jovens militantes estão migrando para a MMT, tanto na esquerda quanto na direita, vai ter um efeito profundo sobre a política dos EUA nas décadas de 2020 e 2030”.

Embora os adeptos professem de maneira extenuante que a MMT é mais sutil e complexa do que isso, seu principal atrativo é como os governos não precisam de impostos ou contrair dívidas para gastar – eles podem simplesmente criar dinheiro a partir do nada. Algumas teclas pressionadas em um computador e todo mundo recebe um plano de saúde, as dívidas estudantis desaparecem e também podemos salvar o clima, sem toda aquela confusão que envolve o conflito de classes.

Essa descrição foi um pouco caricatural, mas, como veremos, não está tão distante da realidade.

No coração da MMT está um pequeno grupo de acadêmicos, reforçados por um exército fervoroso de acólitos nas redes sociais. Os principais nomes acadêmicos incluem L. Randall Wray, agora no Levy Institute da Bard College; Stephanie Kelton, na Stony Brook; Scott Fullwiler, na Universidade do Missouri em Kansas City (a UMKC, que serviu como o Vaticano da MMT – tanto Wray quanto Kelton passaram muitos anos por lá); Pavlina Tcherneva, também da Bard. Embora não seja um membro central do clube, James Galbraith, da Universidade do Texas, proeminente economista progressista, é um companheiro de viagem. Pairando acima, por detrás e ao redor deles está a figura de Warren Mosler, que administra um fundo de cobertura, costuma discursar sobre a MMT e assinar cheques vultosos em apoio à causa. Mosler, a quem Galbraith descreveu como um “tesouro nacional”, não é afligido por falsa modéstia: ele chama seu blog de “o centro do universo” e nele cita uma descrição de seu módico livro “Economia de Moedas Fracaas” como “o livro mais importante já escrito.” Ele mora nas Ilhas Virgens dos EUA porque é um paraíso fiscal com um clima agradável, um ponto que vale a pena manter em mente quando analisamos mais de perto os pensamentos dos MMTistas sobre tributação.

Dois dos documentos que fundaram a MMT saíram em 1998: o livro de Wray “Compreendendo a Moeda Moderna” e o artigo de Kelton “Os Impostos e Títulos de Dívida Podem Financiar os Gastos do Governo?”. Ambos defendem vários pontos que permanecem centrais para a MMT atualmente: os governos designam a moeda oficial de um país ao aceitar apenas essa unidade para o pagamento dos impostos; e um governo “monetariamente soberano” pode emitir essa moeda sem limites – os EUA são um, a Grécia não por causa do euro; o status do Brasil é ambíguo já que emite sua própria moeda, mas não chega nem perto de possuir o poder ou a autonomia dos EUA -. Como Wray coloca, “o governo não ‘precisa’ do ‘dinheiro do público’ para gastar; em vez disso, o público precisa do ‘dinheiro do governo’ para pagar seus impostos. Uma vez que isso seja compreendido, fica claro que nem os impostos e nem os títulos da dívida pública ‘financiam’ os gastos do governo.” Você pode estar se perguntando onde nisso tudo se encaixa a renda ganha no trabalho, mas o mundo da produção não desempenha um papel amplo nessa teoria.

No entanto, depois de explicar como funciona o pensamento de que os impostos seriam dispensáveis, Wray puxa o anzol. Como existe o risco de que o excesso de gastos do governo faça disparar o gatilho da inflação, o governo pode precisar dar uma esfriada nas coisas, o que significa criar uma recessão – apesar de Wray fugir do uso da palavra – através do aumento de impostos. Os impostos, sustenta a MMT, devem ser usados como ferramentas de gestão econômica, mas nunca devem ser pensados como se “financiassem” o governo. Pensar isso seria ceder a uma superstição ortodoxa.

O artigo de Kelton prenunciou aquilo que se tornaria uma marca registrada nos escritos da MMT: exercícios contábeis detalhados projetados para mostrar o que acontece, de maneira mecânica, quando o governo gasta o dinheiro. Esses exercícios são mobilizados para perguntar “por que o governo precisaria tirar do setor privado o dinheiro… que só ele é capaz de criar?… De fato, todo o processo de tributação e de gastos deve, por uma questão de lógica, ter começado com o governo primeiro criando (e gastando) um novo dinheiro.” O governo seria como um Deus, gerando a vida econômica através de seus gastos: até que ele gaste, nós não temos dinheiro. Impostos e empréstimos não passariam de meios para administrar o nível das reservas no sistema bancário.

Grande parte da literatura da MMT é uma elaboração da aritmética das reservas bancárias, o dinheiro que os bancos reservam como uma barreira contra uma situação de “corrida aos bancos”, na forma de dinheiro em cofre ou depósitos mantidos no banco central. A contabilidade das reservas é importante se você for um economista financeiro ou se trabalhar no banco central, mas é um assunto de relevância limitada para qualquer pessoa preocupada com questões econômicas num nível mais geral. Ausente do artigo de Kelton, do livro de Wray, e da maior parte da literatura subseqüente da MMT, está qualquer senso sobre o que o dinheiro significa na economia privada, onde os trabalhadores trabalham, os capitalistas lucram com a sua labuta e competem uns com os outros para maximizar aquele lucro – uma complexa rede de relações sociais mediadas pelo dinheiro.

Embora a política da MMT penda para a esquerda, o ângulo dessa inclinação é difícil de ser medido com precisão. Mosler foi descrito por um colega como um “agnóstico político”; Yves Smith, do blog “Capitalismo Despido”, que promove a escola, o descreveu como um “conservador”. Wray disse que o MMT é compatível com uma visão de mundo “libertária” (de direita) e favorável a um governo pequeno. Kelton, em uma entrevista com a militante e jornalista Nomiki Konst, na qual descreve a MMT como uma “marca”, graciosamente admite que “Marx foi importante, em algum momento”.

Apesar de anunciar a sua modernidade já no nome, a MMT possui raízes que remontam a mais de um século. Seu primeiro precursor foi o livro “A Teoria Estatal da Moeda”, do economista alemão de direita Georg Friedrich Knapp, publicado em 1905. É um livro estranho. Usando uma chuva de termos como “hilolepsia” e “sincartismo”, Knapp argumenta que o Estado nomeia a moeda por lei, e pela prática de apenas aceitar pagamentos de impostos denominados nessa moeda. Essa doutrina, conhecida como cartalismo, em certo sentido não tem nada de controverso; os Estados de fato possuem sentimentos muito intensos com relação à sua moeda: eles punem quem a falsifica; você deve pagar impostos na moeda oficial ou vai para a cadeia; nenhum país moderno que não estivesse em crise toleraria múltiplas moedas circulando dentro de suas fronteiras (embora o dólar não tenha se tornado a única moeda legal dos EUA até 1863). No entanto, a maneira pela qual essa moeda oficial se relaciona com o resto da sociedade quase não é abordada.

Um segundo ancestral da MMT, frequentemente citado pelos seus proponentes, é um artigo de 1946 do conselheiro do New Deal e empresário Beardsley Ruml, que apareceu na revista American Affairs: a Quarterly Journal of Free Opinion(“Questões Americanas: Um Periódico Bimestral de Opinião Livre”, em tradução livre), uma publicação do na época bem conservador National Industrial Conference Board. O excêntrico Ruml, identificado nas notas da revista sobre os colaboradores como “um pensador audacioso”, declarou no título de seu ensaio que “os impostos para a receita estão obsoletos“. A alegação central está nesta passagem:

“A necessidade de um governo cobrar impostos para manter tanto a sua independência quanto sua solvência é verdadeira para os governos estaduais e municipais, mas não é verdadeira para um governo nacional... A liberdade final em relação ao mercado monetário doméstico existe para todos os Estados nacionais soberanos onde exista uma instituição que funcione à maneira de um banco central moderno e cuja moeda não seja conversível em ouro ou em alguma outra mercadoria. Os Estados Unidos são um Estado nacional, que possui um sistema bancário central – o sistema do Federal Reserve, e cuja moeda, para fins domésticos, não é conversível em qualquer mercadoria. Segue-se que o nosso governo federal possui liberdade final em relação ao mercado monetário para o cumprimento de suas necessidades financeiras”.

É uma declaração inicial do tópico favorito dos MMTistas: os impostos podem ser úteis para mexer com a distribuição de renda, para desencorajar vícios, ou para combater a inflação, drenando o poder de compra da economia. Mas os governos não precisam de verdade dessa receita – eles podem simplesmente imprimir o dinheiro.

Como o ensaio de Ruml é baseado em pura afirmação assertiva, seu status como oráculo entre os MMTistas parece vir de seu papel como presidente do Federal Reserve Bank de Nova York. Mas esse posto é sobretudo honorário. (Sua ocupante atual é Sara Horowitz, fundadora do Sindicato dos Freelancers.) Ele não tinha nenhum conhecimento especial sobre o gerenciamento de bancos centrais ou sobre política fiscal. Na década de 1920, Ruml distribuiu dinheiro para a Fundação Rockefeller. Em 1926, ele doou parte desse dinheiro ao Instituto de Genebra, um think tank suíço que viria a se tornar, nas palavras do historiador Quinn Slobodian, “um importante eixo institucional para os futuros neoliberais”. O emprego de Ruml na época em que escreveu o ensaio para a American Affairs era como presidente da Macy’s, um papel que assumiu depois de anos de serviço como seu tesoureiro.

Um tema ocasional para perfis na revista New Yorker durante as décadas de 1940 e 1950, Ruml também atuou em vários conselhos corporativos, incluindo o da Muzak, cujo produto auditivo ele recomendou a um repórter do “Talk of the Town” como uma ótima maneira de melhorar a produtividade em 18% para as pessoas realizando trabalhos “monótonos”. Talvez não por coincidência, mais da metade de seu ensaio na American Affairs é dedicada a denunciar o imposto sobre lucros corporativos como “maligno” – parte da campanha de Ruml para eliminá-lo, delineada em um perfil em três partes na New Yorker, em 1945.

Os MMTistas em geral se esquecem desta parte da obra de Ruml: embora Warren Mosler, escrevendo no Huffington Post, tenha reconhecido que Ruml “escreveu sobre os méritos dos impostos corporativos”, ele não reproduziu a caracterização de Ruml sobre os impostos como um mal, o que poderia alienar os leitores progressistas da publicação.

Além de Knapp e Ruml, os MMTistas se inspiram no trabalho do economista Abba Lerner – em particular em seu artigo de 1943, “Finanças Funcionais e a Dívida Federal” – que não é nem bizarro, nem de direita. Esse artigo foi escrito no meio da Segunda Guerra Mundial, quando a prudência fiscal não passou apenas a ocupar um papel secundário em relação ao esforço de guerra – ela sequer era considerada. Por causa da experiência de guerra, todas as velhas regras da ortodoxia fiscal sobre orçamentos equilibrados pareciam completamente antiquadas, e crescia a convicção de que uma administração fiscal inteligente poderia domar o ciclo econômico e minimizar o desemprego.

A frase de abertura no artigo de Lerner expressa um desejo para o mundo pós-guerra: “Além da necessidade de vencer a guerra, não há tarefa tão importante diante da sociedade atual quanto a eliminação da insegurança econômica.” A doutrina de finanças funcionais que ele propunha sustentava que “a política fiscal do governo, seus gastos e impostos, as dívidas que contrai e o reembolso dos empréstimos, a sua emissão de dinheiro novo e a sua retirada de dinheiro, tudo deve ser feito tendo em vista apenas os resultados destas ações sobre a economia e não qualquer doutrina tradicionalmente estabelecida sobre o que seria seguro ou não.” Em outras palavras, se o desemprego estiver aumentando, o governo deveria adotar uma política mais solta (impulsionar os gastos, cortar os impostos, reduzir as taxas de juros) e, se a inflação estiver aumentando, uma política mais apertada (o inverso). À primeira vista, parece completamente razoável; mas, pensando melhor, é muito mais complicado que isso.

Por um lado, muitas vezes leva tempo para se entender o que está acontecendo na economia, e leva ainda mais tempo para mudar a política econômica – e, às vezes, como na década de 1970, tanto o desemprego quanto a inflação estão subindo, e não é óbvio que políticas devem ser adotadas em resposta. Qualquer um que já tenha assistido ao Congresso se contorcendo por causa da política tributária e de gastos precisa se perguntar como alguém poderia acreditar que a política fiscal poderia ser ajustada com a rapidez e a precisão necessárias.

Os MMTistas estendem essa arrogância sobre a precisão e o poder da formulação de políticas para o reino das taxas de juros, que eles pensam estar sob controle completo do banco central e que devem ser mantidas o mais próximo de zero possível. (Mosler acha que as taxas deveriam de fato ser zero). Embora os MMTistas tendam a falar casualmente sobre “a” taxa de juros, na verdade existem muitas. Os títulos do governo de longo prazo, por exemplo, quase sempre vão carregar taxas mais altas do que as de curto prazo, porque muitas coisas imprevisíveis podem acontecer antes que o título atinja a maturidade. E ambos vão render menos do que um empréstimo bancário de maturidade semelhante a um prospector de petróleo ou à bodega da esquina, devido ao maior risco de inadimplência.

Sem taxas de juros mais altas para compensar o maior risco de inadimplência ou os prazos mais longos, simplesmente não haveria ninguém disposto a comprar os títulos da dívida ou a conceder os empréstimos. A isso, os MMTistas responderiam que, ao invés, o banco central poderia comprar os títulos; no entanto, se levado a extremos, isso traria o risco de gerar uma inflação descontrolada – e, ainda assim, não ajudaria o prospector ou o dono da bodega. Os MMTistas não falam muito sobre até que ponto esse processo poderia ser levado em frente.

Isso nos leva ao próximo problema: a inflação. Quando as impressoras de dinheiro funcionam livremente, não são só os reacionários que pensam que corremos o risco de uma espiral de preços. Enquanto pesquisava para este artigo, muitas pessoas a quem descrevi a MMT, de democratas a marxistas, levantaram essa preocupação. Os MMTistas são discretos sobre esse tópico – eles nunca dizem o quanto de inflação seria demais, e professam grande confiança em sua capacidade de controlá-la. Em um artigo criticando a MMT, o economista keynesiano de esquerda Thomas Palley diz que ouviu de um dos “principais” MMTistas que uma inflação menor que 40% seria “sem custos”. Isso é quase três vezes o recorde estadunidense moderno de quase 15% em 1980, que foi amplamente considerado – e não apenas pelos detentores de títulos – como uma crise. Como os salários costumam ficar aquém das mudanças nos preços, a inflação pode levar a quedas reais nos padrões de vida.

Embora dizer isso possa escandalizar alguns progressistas, é perigoso ser otimista em relação à inflação. As pessoas a veem como um fator desestabilizante; ela alimenta um desejo por ordem. O crescimento da inflação durante os anos 1970, que culminou naquele recorde de 15%, ajudou a pavimentar o caminho para Reagan. A inflação extrema da Alemanha de Weimar na década de 1920 contribuiu para a ascensão de Hitler. Como um diplomata britânico alocado na embaixada em Berlim escreveu aos seus chefes durante a hiperinflação: “A população está pronta para aceitar qualquer sistema baseado na firmeza ou qualquer homem que pareça saber o que quer e que emita comandos em voz alta e vigorosa.”

A visão padrão sobre a inflação de Weimer diz que a economia alemã, severamente danificada pela Primeira Guerra Mundial e forçada a pagar enormes indenizações aos vencedores, não estava à altura dessa tarefa – ela simplesmente não tinha a capacidade produtiva para isso e seus cidadãos não estavam dispostos e nem podiam pagar os impostos necessários. Então, em vez disso, o governo apenas imprimia dinheiro e o gastava, não apenas para pagar suas próprias contas, mas para dar suporte aos empréstimos bancários para o setor privado. (As impressoras estavam tão sobrecarregadas que não conseguiam acompanhar a demanda por novas cédulas. Pelo menos, a liberação de dinheiro por computador não enfrentaria esse problema.) A inflação atingiu seu ápice em 29.500% em outubro de 1923, o que significa que os preços dobravam a cada quatro dias. O valor do marco desmoronou de 320 por dólar no início de 1922 para mais de 4 trilhões por dólar no final de 1923, o que significa que o marco perdeu 99,999999992% do seu valor em um ano e meio. O valor do salário real, se é que é possível ser medido em meio a uma inflação tão rápida, caiu mais de 80%, conforme os pagamentos iam ficando cada vez mais atrás em relação aos aumentos nos preços.

Em “Quando Morre o Dinheiro”, uma clássica história popular da inflação de Weimar, Adam Fergusson escreveu que o rebaixamento feroz nos padrões de vida trouxe “fome, doença, miséria e às vezes morte” às massas de alemães. A hiperinflação só foi interrompida com um profundo programa de austeridade – cortes nos gastos do governo, demissões, cortes salariais, o de sempre. Os pagamentos de impostos foram ligados ao valor do ouro, e não às notas sem valor chegando das impressoras. O desemprego disparou – mas a inflação acabou.

A explicação de Wray para a hiperinflação de Weimar, uma das mais incríveis de todos os tempos, é estranha. Os déficits, explicou Wray em seu livro, teriam sido causados pela inflação, e não o contrário. No final, “a Alemanha adotou uma nova moeda e, apesar dela não ter curso legal, foi designada como aceita para o pagamento de impostos. A hiperinflação acabou.” Praticamente nada sobre as impressoras – ele rejeita as explicações sobre “impressão de dinheiro” como “simplistas demais” – e absolutamente nada sobre o programa de austeridade. Não, teria ocorrido apenas uma intervenção monetária (sobre a qual ele não dá explicação), ligada de alguma maneira ao pagamento dos impostos. A Alemanha de Weimar pode ser um caso extremo, mas uma vez que ela é um exemplo frequentemente apontado pelos críticos da MMT – “toda essa liberação de dinheiro digital não vai levar à inflação, como na Argentina ou em Weimar?” -, é uma questão para a qual eles precisam ter uma boa resposta. A relutância de Wray em enfrentar os riscos da impressão de dinheiro faz com que a gente se pergunte o quanto ele realmente confia em sua própria teoria.

Outro sério problema com a MMT é o fato dela estar inserida na perspectiva de um país rico e, em particular, no excepcionalismo estadunidense – neste caso, como um ministro da Fazenda francês disse certa vez, o “privilégio exorbitante” de emitir a moeda dominante no mundo. Os países em todo o mundo mantêm as suas reservas (basicamente, os fundos para dias difíceis, numa escala enorme, mantidos pelos governos nos seus bancos centrais) em dólares, o que os torna na prática um mercado cativo para os títulos do Tesouro dos EUA (que é como esses dólares são mantidos). Além disso, as principais mercadorias, como o petróleo, são precificadas em dólares, forçando os países a acumular a moeda para pagar por importações essenciais. Isso significa que os Estados Unidos, excepcionalmente, podem incorrer em déficits gigantescos e tomar empréstimos em grande escala, com poucas restrições (até agora). Tampouco precisamos nos preocupar com o valor do dólar (pelo menos por enquanto, embora a gente tenha de se perguntar sobre quanto tempo durará esse privilégio exorbitante num mundo onde o domínio dos EUA está se desgastando).

No entanto, países menos privilegiados precisam se preocupar com investidores estrangeiros despejando seus títulos no mercado e reduzindo o valor de suas moedas, o que elevaria as taxas de juros e a inflação. O governo de Salvador Allende ampliou muito os gastos e aumentou a renda dos mais pobres no Chile no início dos anos 70; isso funcionou bem por um tempo, mas depois a inflação decolou. Allende não estava operando com base nos manuais da MMT, mas apenas recorrendo a políticas adotadas por muitos governos progressistas enfrentando oposição política e restrições de recursos. Contudo, tais experimentos raramente terminam bem, e problemas similares desafiariam um país pobre que tentasse estimular seu caminho para a prosperidade atualmente, como vemos agora na Venezuela.

Em comparação com os Estados Unidos, esses países desfrutam de menos “soberania monetária” – um conceito central da MMT. Um Estado monetariamente soberano é aquele que pode gastar sua moeda à vontade, inclusive apenas pressionando algumas teclas. Os EUA gozam de muita soberania monetária; o mesmo ocorre com Canadá, Japão e Grã-Bretanha, embora num grau menor. Esses países precisam, por exemplo, importar coisas com preços em dólares, como petróleo, e o valor de suas moedas tem um efeito direto sobre os padrões de vida – algo de que os estadunidenses estão protegidos porque podem imprimir a moeda em que esse petróleo é precificado. O Brasil, por sua vez, possui ainda menos liberdade; ele precisa de moedas mais fortes, como dólares e euros, para importar mercadorias e bens manufaturados avançados; e os países mais pobres, como Bolívia ou Gana, possuem ainda menos liberdade nesse sentido. Para comprar importações essenciais, esses países muitas vezes precisam tomar empréstimos nessas moedas fortes; para pagar os empréstimos, precisam receber moeda estrangeira por meio de exportações.

A MMT tem muito pouco de útil a dizer sobre essa situação – de fato, seus defensores às vezes parecem querer dar sermões sobre como o endividamento externo é arriscado, o que é verdade – mas às vezes é a única maneira de comprar usinas de energia e locomotivas. MMTistas como William Mitchell e Wray escrevem como se contrair empréstimos no exterior fosse apenas uma escolha ruim, e não algo que as economias subordinadas se veem forçadas a fazer. Quando perguntei a Mosler o que a MMT tinha para oferecer à Turquia, um país cuja moeda vinha perdendo valor nos últimos quatro anos e que passou por uma crise financeira no verão de 2018, ele respondeu de maneira um pouco irrisória: “Sem a nossa receita para a Turquia, eles são um pato morto.” (Na verdade, a Turquia vinha adotando políticas fiscais e monetárias expansionistas, às quais a MMT é simpática, incluindo garantias estatais para a dívida corporativa privada, e a inflação estava em torno de 11–12% e aumentando). Não satisfeito com aquela resposta, eu disse que embora entendesse os riscos de se tomar empréstimos em moeda estrangeira – algo que a Turquia havia feito, e muito – não há muito equipamento sofisticado de capital à venda em liras turcas. Mosler respondeu, erroneamente, que você poderia na verdade comprar “muito” desses bens em liras, e que “qualquer nação pode sustentar o pleno emprego doméstico sem importações de bens de capital” – ignorando por completo o ponto de que um país que busque ascender na hierarquia econômica do mercado global vai precisar de bens de investimento que são feitos apenas em países como a Alemanha ou o Japão.

Os países membros do euro são em si um argumento. A Grécia e os outros devedores na periferia do continente possuem pouca soberania – eles têm grandes dívidas externas em uma moeda que não podem imprimir. A Grécia poderia ter deixado o euro, como muitos da Esquerda insistiram, mas isso teria sido uma ruptura imensa, e mesmo deixando isso de lado, não teria tratado as fraquezas estruturais de longa data do país, como um Estado subfinanciado e uma infraestrutura industrial subdesenvolvida. Sintomático dessa fraqueza relativa: nos vinte anos anteriores à introdução do euro, o dracma perdeu 88% de seu valor. A inflação nesse período esteve em média acima de 14% ao ano. Em 1980, o PIB per capita grego era de 73% o dos EUA; em 2002, havia caído para 60%. Em outras palavras, os problemas econômicos da Grécia são muito anteriores ao euro. E, embora não possam literalmente imprimir sua moeda, os países centrais da zona do euro, como a Alemanha e a Holanda, dificilmente sofreriam pela sua falta formal de soberania monetária. O que importa muito mais é o seu lugar na cadeia econômica global – e essa condição pode ser irritantemente estática.

A dependência da MMT em relação ao privilégio exorbitante dos Estados Unidos – Mitchell é o único MMTista de alto perfil fora do país -, apesar de não ser aceita por eles, quase nunca é abordada por seus proponentes.

***

A MMT é fruto de uma escola de Economia conhecida como pós-keynesiana. Na verdade, vários dos seus principais teóricos se conheceram em uma lista eletrônica de discussão pós-keynesiana no final dos anos 90. O pensamento econômico pós-keynesiano possui várias sub-escolas, e não faz muito sentido nos aprofundarmos aqui sobre cada uma delas, mas há alguns elementos gerais sobre ele que são relevantes para uma discussão sobre a MMT. A maioria dos pós-keynesianos está à esquerda do centro e alguns até são socialistas; eles deploram a guinada ortodoxa de muitos keynesianos tradicionais, que vêem como técnicos do ciclo de negócios desinteressados de questões estruturais mais profundas. Eles enfatizam a importância do dinheiro e do crédito, especialmente as suas possibilidades desestabilizantes por meio de bolhas especulativas, muito mais do que o pessoal mais próximo das linhas econômicas dominantes, que tende a acreditar que o sistema se encaminha para o auto-equilíbrio e que o comportamento do dinheiro não causa muitos estragos por si mesmo.

Uma vertente interessante do pensamento é a teoria da moeda endógena, que é o oposto da teoria monetarista tornada famosa por Milton Friedman. Os monetaristas acreditam que o banco central controla a oferta monetária através do seu poder de criar e disseminar a moeda por meio do sistema bancário: o banco central injeta dinheiro no sistema financeiro ao comprar títulos do Tesouro das mãos de detentores privados (não do próprio Tesouro) e então os bancos ficariam livres para emprestar esses recursos monetários recém-criados. Já os teóricos da moeda endógena, pelo contrário, acreditam que a criação de moeda é impulsionada pela demanda por crédito proveniente dos atores privados, como empresas e consumidores. Os bancos fazem empréstimos e depois se viram para financiá-los. Na maior parte do tempo, o banco central acomoda a demanda dos bancos por dinheiro novo ao injetar fundos no sistema financeiro (exceto quando ele está tentando provocar uma recessão, ao frustrar os desejos deles por novas divisas). Para quem se importa, essa visão de moeda endógena é semelhante à teoria do dinheiro de Marx; também é consistente com a maneira como muitos gestores de bancos centrais veem as coisas. Em tempos normais, o banco central injeta no sistema dinheiro suficiente para manter as rodas do comércio girando, mas não é isso o que o faz girar – e sim a atividade da produção e da distribuição.

Os MMTistas descartam muitas das coisas mais interessantes no pensamento econômico pós-keynesiano. Ao contrário de Joan Robinson, uma das primeiras a contribuir com a tradição pós-keynesiana, eles raramente refletem sobre aquela que ela chamava de “a maior de todas as questões econômicas… para que serve o crescimento?” (Ou, como ela disse em outro lugar: “Agora que todos concordamos que os gastos do governo podem manter o nível de emprego, deveríamos discutir sobre em que deveriam ir esses gastos. ”) Inspirados pela teoria cartalista de Knapp, eles minimizam o papel da demanda por crédito privado na condução da economia; como Friedman, eles acreditam que o governo conduz a criação de dinheiro (para Friedman, através do banco central; para a MMT, por meio de gastos federais). Wray, que chegou a escrever um livro sobre o assunto, agora descarta a moeda endógena como um “avanço trivial”, perto da MMT.

Os MMTistas mostram uma estranha falta de interesse na especificidade do capitalismo – em como a produção e a distribuição são organizadas; em como a demanda por crédito surge no curso do comércio; como as pessoas ganham a vida e sob quais condições – e a sua rejeição ao trabalho pós-keynesiano anterior sobre a moeda torna quase invisível qualquer ligação entre o dinheiro e as coisas ou entre o dinheiro e as pessoas (ou entre as pessoas e as coisas, por meio do dinheiro). Marx dizia que um homem carrega seu vínculo com a sociedade no seu bolso, um reconhecimento de que o dinheiro é um dos nossos principais modos de organização e controle social. Ou, como Antonio Negri colocou num de seus momentos mais lúcidos, o dinheiro tem apenas uma face, a do chefe. Se você não trabalha e não faz o que te mandam, vai ficar sem dinheiro e passar fome.

Através da fantasia do dinheiro sem esforço, a um pressionar de teclas de distância, todas essas relações de necessidade e de poder supostamente seriam varridas para longe. Contudo, não é a imposição de uma escassez de dinheiro o que produz essas relações.

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A falta de interesse da MMT na relação entre o dinheiro e a economia real faz com que os seus adeptos negligenciem a conexão entre tributação, gastos e alocação de recursos. Temos pessoas sem-teto nas ruas de São Francisco, a algumas quadras de distância das sedes do Twitter e do Uber; temos pontes desmoronando; trens saindo dos trilhos; escolas caindo aos pedaços – toda a estrutura de opulência privada e miséria pública, como John Kenneth Galbraith disse há muito tempo, porque o setor público passa fome de recursos. A tributação tira esses recursos das mãos privadas e os coloca em mãos públicas, com pelo menos o potencial de que sejam gastos em atividades mais humanas. Menos Lamborghinis, mais trens-bala; menos mansões, mais moradia pública.

A criação nos EUA de um sistema público de saúde, por exemplo, não é apenas uma questão de se acrescentar alguns bilhões ao pressionar os botões num computador; significa desmantelar o aparato administrativo absurdo do sistema de saúde estadunidense, transformar os valores pagos às seguradoras privadas em gastos públicos; mudar o modelo de negócios da indústria farmacêutica, hoje baseado em preços extorsivos; e cuidar dos trabalhadores deslocados por essa renovação.

Pode-se dizer algo semelhante sobre as mudanças climáticas. Kelton, por exemplo, escreveu em seu Twitter:

“Como imagino a conversa entre as duas últimas pessoas na [emoji para a Terra] 
“Havia planos para salvar a humanidade, mas os custos não batiam.” 
“Eles deveriam ter aprendido a #MMT.”

É só pressionar algumas teclas e salvaremos a Terra! (Só que não). Precisamos de uma reestruturação completa dos nossos sistemas de energia e de transporte, da organização espacial das nossas cidades e dos processos fundamentais da produção industrial e agrícola. Para fazer isso, precisaremos pisar na liberdade de investimento do capital privado, o que será um golpe no coração do poder da classe dominante.

Os MMTistas às vezes dizem que querem taxar os ricos porque são ricos demais, mas em uma conferência recente Wray disse que não vê sentido em se enquadrar a questão como taxar os ricos para expandir os serviços públicos – presumivelmente, porque o governo não precisa dos impostos para gastar. Em outros lugares, ele escreveu que taxar os ricos seria uma “tarefa de tolo” por causa do seu poder político. Ele disse à revista Bloomberg Businessweek que estava “um pouco desapontado” pela deputada Alexandria Ocasio-Cortez ter ligado o New Deal verde a aumentos de impostos; certa vez ele culpou impostos altos demais pela devastação da cidade de Camden, no estado de New Jersey, nos EUA – o que torna difícil explicar a riqueza da cidade de Nova York, com os seus impostos maiores; a verdadeira Camden cobra impostos bem baixos e depende demais de auxílio estadual.

Parece que muita gente na esquerda estadunidense contemporânea ainda está sob o feitiço imposto-fóbico legado pela política pós-Reagan, que faz com que a MMT pareça atraente – uma resposta fácil para “como você vai pagar por isso?” Pouco antes de sua eleição para o Congresso, Alexandria Ocasio-Cortez ficou perplexa com essa pergunta em uma entrevista na TV com Jake Tapper. Depois disso, ela se encontrou com Kelton e passou a dizer coisas agradáveis sobre a MMT.

Os defensores da AOC rapidamente notaram, corretamente (e como ela mesma já havia feito), que ninguém faz essa pergunta quando se trata de financiar o Pentágono ou cortes de impostos para os ricos. Mas há uma boa razão pela qual os cortes de impostos para os mais abastados e os recursos para o Pentágono tenham passe livre em relação à polícia fiscal: Mísseis cruzadores e tornar os plutocratas ainda mais ricos são coisas que reforçam as hierarquias sociais existentes; já um sistema público de saúde ou universidades gratuitas são coisas que as enfraquecem. Depender de empregadores para se ter acesso a um plano de saúde torna os trabalhadores mais flexíveis; forçar os alunos a pedir empréstimos pesados para pagar suas mensalidades torna mais provável que eles sigam na linha depois da graduação. Os chefes e seus escribas pagos não querem criar “novos direitos”, mesmo que um bom sistema público possa cortar seus custos em planos de saúde. A última coisa que eles querem é encorajar a população a fazer novas exigências. É muito melhor manter as massas no seu pé de trás, como dizem os britânicos.

A tributação pode não ser e expropriação por completo, mas é a melhor coisa que temos depois dela, neste mundo decaído. É uma forma de socialização, mesmo que branda – transformar o investimento e o consumo privado em investimentos públicos. Além disso, divorciar a tributação dos ricos da provisão de serviços públicos joga de lado as vantagens, no sentido material e de agitação, de se travar a guerra de classes pela política fiscal. Os ricos teriam muito mais dificuldade para reclamar sobre seu dinheiro ser usado para educar as crianças e salvar o planeta do que se ele for tomado apenas porque eles são ricos demais.

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Uma parte crítica da agenda da MMT é um programa de garantia de emprego, uma política sob a qual o governo federal se torna o empregador de última instância. Diferente da teorização monetária da MMT, a garantia de emprego não tem nada a ver com o conceito cartalista no cerne da escola, e lida diretamente com um aspecto crucial da economia real – o mercado de trabalho. Com um programa de garantia de emprego, os desempregados crônicos poderiam encontrar um trabalho decente, e os desempregados temporários seriam acomodados até encontrarem um trabalho permanente.

Para um resumo da garantia de emprego, podemos recorrer a um artigo de Pavlina Tcherneva, que tem sido a especialista nessa proposta na escola da MMT. Com os níveis recentes de desemprego nos EUA, Tcherneva estima que entre 10 e 15 milhões de pessoas poderiam ser empregadas em um programa de garantia de emprego (o que representaria um aumento em torno de 6% a 10% além daqueles que já estão trabalhando por remuneração). A renda adicional recebida pelos participantes do programa, ao aumentar a demanda por bens e serviços, provavelmente impulsionaria o emprego para mais uns 4 milhões, usando os padrões dos modelos econômicos. Isso traria a parcela de empregados da população estadunidense para níveis recordes por uma margem confortável, mesmo que ainda a deixasse abaixo das taxas suecas ou islandesas.

Para Tcherneva os empregos pagariam $ 15 por hora, com todos os benefícios (plano de saúde, creche, licença remunerada e aposentadoria; seu colega Mosler, como bom gestor de fundos de cobertura que é, estabeleceria um salário bem mais baixo). Isso resultaria em uma renda anual de $ 31.200, próxima do nível mediano de renda pessoal nos EUA.

Pelas estimativas dela e de seus colegas de MMT, o programa de garantia de empregos custaria de 1% a 2% do PIB, embora esse valor fosse parcialmente compensado pela redução nos gastos com benefícios para desempregados e em programas de combate à pobreza. Essa estimativa provavelmente está abaixo do valor real, mas quaisquer que sejam os números exatos, os custos orçamentários não seriam nem de longe esmagadores.

O trabalho de cuidados seria uma grande parte do seu modelo de garantia de emprego, não só por causa da necessidade social, mas também para atingir “os grupos menos qualificados e mais marginalizados no mercado de trabalho”. O trabalho tradicional em infraestrutura emprega homens de maneira desproporcional e isso não seria adequado para tarefa da garantia de emprego. Ela imagina os trabalhadores no programa sendo empregados para cuidar do meio ambiente (se inspirando em modelos do New Deal nos EUA, como os “Corpos Civis de Conservação”, bem como abordando preocupações mais modernas como a redução de desertos alimentares); para cuidar das comunidades (remoção de lixo, hortas escolares, bibliotecas de empréstimo de ferramentas, aulas, restauração de locais históricos) e para cuidar das pessoas (idosos, programas pós-aulas, auxílio a ex-prisioneiros). Por razões não totalmente declaradas, Tcherneva e seus companheiros na MMT querem proteger o setor privado da competição do programa de garantia de empregos. Não está claro se os trabalhadores do setor público estariam protegidos pelo mesmo escudo; pode ser tentador, afinal, substituir a mão de obra sindicalizada e bem remunerada nesse setor por trabalhadores passando pelo programa.

Um programa de garantia de empregos poderia existir sem o resto do aparato da MMT. O toque especial da escola nessa ideia é conceber o programa como parte integrante da regulação macroeconômica. Como outros economistas por todo o espectro político, os MMTistas acreditam que quando a economia excede o nível de pleno emprego, isso resultaria em inflação (embora sejam vagos nos detalhes sobre quando aconteceria o “pleno emprego” ou a “inflação”). Para esfriar a inflação, os MMTistas aumentariam os impostos e/ou venderiam títulos do governo para reduzir o poder de compra na economia privada – isso causaria uma recessão, mas em vez de ficarem desempregados, os trabalhadores entrariam no programa de garantia de empregos. Para aqueles em situação de desemprego crônico, um salário fixo de $ 15 por hora pode parecer um negócio meio que decente, e não viver sob ameaça constante de abuso ou demissão (por causa da garantia do governo e, presumivelmente, de um nível mais alto de exigência para que alguém seja demitido) seria uma grande compensação não monetária. Entretanto, para muitos trabalhadores que entrariam no programa de garantia de emprego por perder seus empregos regulares para uma recessão, $ 15 por hora marcaria um corte salarial – é pouco mais da metade do salário médio por hora – e possivelmente um desperdício de suas habilidades, mesmo que isso evitasse a penúria absoluta. Seria mais suave do que a abordagem convencional, mas ainda não seria indolor.

Há o que admirar no programa de garantia de emprego, mas há alguns problemas. É inexplicável a timidez sobre grandes projetos de infraestrutura – em outro artigo recente, Tcherneva e quatro colegas da MMT diferenciam explicitamente seu esquema de empregos do programa Administração de Progresso de Trabalhos(WPA, na sigla em inglês) do New Deal. Sim, há muito trabalho de cuidados a ser feito, e ele seria essencial para qualquer agenda política humana. E sim, o trabalho em infra-estrutura tem um prestígio masculino ausente do trabalho de cuidados, que é frequentemente marginalizado como “trabalho de mulher”. O trabalho de cuidados precisa ser levado muito mais a sério (embora seja difícil ver como ser realizado por uma força de trabalho transitória poderia contribuir para isso). Entretanto, as mulheres também podem fazer um trabalho vital em infraestrutura. Tcherneva e outros citam o livro de Nick Taylor sobre o WPA, para dizer que ele trouxe os Estados Unidos para o século XX. (Uma olhada no catálogo de projetos do WPA no site Living New Deal, que documenta essa experiência, mostra o quanto nos EUA ainda se vive neles – escolas, rodovias, hospitais, agências de correio, aeroportos, portos, galerias de arte pública – e o quanto na verdade não se constrói nada numa escala comparável, desde então). O programa de garantia de emprego não foi projetado para nos levar ao século XXI, a menos que você pense que mão de obra tornada casual representaria um modelo aceitável para o nosso tempo.

O trabalho realizado dentro do programa poderia atender algumas importantes necessidades sociais, mas quão seriamente dedicado a elas poderia ser o programa se fosse composto por uma força de trabalho transitória? Às vezes, todo o conceito parece com as política sociais que exigem alguma forma de trabalho – ou “workfare”. Invocar essa palavra não é apenas uma questão de polêmica. Em uma resenha de um livro do grande economista pós-keynesiano Hyman Minsky, cujo programa de garantia de empregos é o ancestral direto do programa da MMT, Flavia Dantas, que escreveu sobre o programa para o Levy Institute, cita Minsky (suas palavras estão nas citações embutidas): “Embora bem intencionados”, os esquemas de bem-estar voltados à redução da pobreza entre aqueles aptos a trabalhar seriam “programas mal pensados” que apelariam para o “sentimentalismo em relação à fome e clichês sobre soberania do consumidor”; que criariam dependência do governo e romperiam a “coesão social ou tranquilidade doméstica” (parte disso – “sentimentalismo em relação à fome”! – parece que foi tirado diretamente de mídias muito conservadoras, como o Daily Caller). Para Minsky, negar às pessoas o direito de trabalhar – que ele via como um propensão humana fundamental – seria uma “enorme injustiça social”, nas palavras de Dantas.

De todas as pessoas, foi Beardsley Ruml que, escrevendo em 1944, ofereceu uma crítica persuasiva ao uso de um programa de garantia de empregos como um mecanismo de regulação do ciclo de negócios. Refletindo de maneira bastante ortodoxa – nada de guinadas proto-MMT por aqui – sobre as perspectivas para a uma política fiscal para o pós-guerra, ele advertiu contra o uso de projetos de obras públicas como uma estratégia anticíclica, por que seria

“humanamente indesejável trazer centenas de milhares de homens para a indústria da construção e forçá-los a sair novamente como uma compensação ao livre jogo das forças econômicas em outros lugares do sistema de negócios. Esses homens não são unidades estatísticas que podem ser adequadamente transferidos de uma coluna de uma página contábil para outra, a fim de preservar um nível geral de emprego equilibrado. Eles também não podem ser deslocados por longas distâncias de suas casas para lugares e em tempos convenientes para o ciclo econômico.”

Apesar dos defensores da ideia garantirem que não querem competir com os empregos no setor privado, o pagamento de $ 15 por hora pode ter um impacto substancial na estrutura salarial nacional. Embora represente pouco mais da metade do salário médio por hora, está em torno do trigésimo sétimo percentil da distribuição salarial, o que significa que 37% dos trabalhadores nos EUA recebem isso ou menos. Não seria nada mal elevar os seus salários, mas devemos ser honestos sobre como essa medida pode causar rupturas. Ela colocaria muitos empregadores de baixos salários fora dos negócios – muitas vezes de maneira merecida – e forçaria os sobreviventes a reduzir o número de funcionários, com máquinas tomando o lugar das pessoas, se possível. Isso teria efeitos geográficos massivamente desiguais. Quase uma em cada seis áreas metropolitanas nos EUA – a maioria, cidades pequenas e no Sul – tem um salário médio abaixo de $ 15; mais de dois terços, um salário média abaixo de 18 dólares, representando mais de um terço de todos os empregos no país.

Um programa desse não apenas desafiaria a estrutura salarial estadunidense de maneira profunda, como também mudaria toda a relação patrão-trabalhador. Em um ensaio clássico de 1943, “Aspectos Políticos do Pleno Emprego“, o economista Michal Kalecki observou – talvez de maneira otimista – que, embora a administração econômica keynesiana pudesse assegurar uma baixa taxa de desemprego próxima de zero no longo prazo, a classe capitalista resistiria a isso. Uma razão para isso é que o investimento e a contratação dependem da confiança da classe dos proprietários e eles querem que os políticos se dediquem a manter esse nível de confiança elevado. Mexa com essa confiança e os gerentes darão um passo para trás e jogarão a economia numa crise. Poderíamos pensar que os mercados fortes de uma economia de pleno emprego seriam atraentes para os gerentes e acionistas, mas haveria um problema político maior. Como Kalecki escreveu, “sob um regime de pleno emprego permanente, a ameaça de ir para a rua deixaria de desempenhar seu papel como medida disciplinar. A posição social do chefe seria minada e a autoconfiança e a consciência de classe da classe trabalhadora aumentariam. Greves por aumentos salariais e por melhorias nas condições de trabalho criariam tensão política… Seu instinto de classe lhes diz que o pleno emprego duradouro é problemático do seu ponto de vista, e que o desemprego é parte integrante do sistema capitalista ‘normal’”.

Todas essas rupturas seriam boas para a classe trabalhadora, mas para os chefes elas pareceriam atos semi-revolucionários. Quando entrevistei Kshama Sawant, a vereadora socialista na cidade de Seattle que colocou um salário mínimo de $ 15 por hora no centro de sua agenda, em 2015, lhe perguntei como ela lidou com o quanto isso desafiava o sistema; ela não recuou. Ela disse que foi “uma batalha de classe total” – e que se o sistema não pode pagar esse valor, o que é muito difícil de se dizer, isso se torna uma ferramenta para mostrar o quanto o sistema é ruim. Esse é o tipo de pensamento que vai ser necessário para conquistar o salário de $ 15 por hora, o que exigiria um tipo muito diferente de política do que aquela que a MMT parece contemplar.

E se tivéssemos um movimento político forte o bastante para forçar as políticas de pleno emprego sobre o Estado, então por que parar com um mero programa de garantia de emprego? Que tal democratizar o local de trabalho, reorganizar a produção para torná-la ecologicamente sustentável, socializar a propriedade via impostos e gastos públicos e, eventualmente, expropriar a classe capitalista? Se for para desafiar o poder da classe dominante, como faria um programa de garantia de emprego, por que parar por aí?

Se a garantia de emprego é a característica mais atraente da MMT, o estilo de argumentação habitualmente empregado pelos seus proponentes está entre as mais feias. Um exemplo clássico é uma resposta de Wray e seu ocasional colaborador Éric Tymoigne a uma crítica à escola, feita de maneira bastante amigável pelo economista keynesiano de esquerda Thomas Palley, na qual o acusam de querer combater a inflação com desemprego e pobreza, um insulto desonesto que eles compõem com esta nota de rodapé: “Palley já foi pego em vídeo reclamando que se um programa de garantia de empregos fornecer empregos para todos, os pobres serão capazes de comer...” (O vídeo é de um diálogo entre Palley e Mosler, em que Palley diz que fornecer empregos para os desempregados na África do Sul promoveria a demanda por eletricidade, alimentos, TVs e outros bens que o país não tem a capacidade de produzir.)

A resposta de Tymoigne e de Wray a Palley mal abordava qualquer um dos seus pontos substantivos – entre outras coisas, o quanto são vagos sobre as causas e as consequências da inflação; a sua crença ingênua nos poderes de cura da política fiscal; sua irrelevância para os problemas dos países mais pobres; sua falta de interesse em como o programa de garantia de empregos poderia representar uma tentação para governos anti-trabalhadores pela substituição dos trabalhadores do setor público por trabalhadores temporários mal pagos – e só reafirmou o catecismo, temperado com algumas caricaturas grosseiras. Eles também defendem seu território de maneira despeitada. Quando incitada pelo economista liberal Dani Rodrik a reagir a um esforço educado e amigável de dois economistas de esquerda para reconciliar a MMT com escolas de economia mais tradicionais, Kelton se declarou “nem remotamente” confortável. Rodrik havia chamado o artigo dos economistas de uma “explicação” sobre a MMT; ela o repreendeu sobre como ele deveria ser “cuidadoso ao rotular qualquer postagem com MMT no título com uma ‘explicação da MMT’”. A marca precisa ser protegida.

E eles podem ser extremamente escorregadios. Se você perguntar: “Você realmente acredita que o governo não precisa cobrar impostos ou tomar emprestado para gastar”, que é algo que eles costumam defender, eles vão negar. Quando questionada pelo simpatizante Ryan Grim, do Intercept, sobre o que acontece quando o governo gasta sem cobrar impostos ou tomar empréstimos (algo que os Estados Unidos nunca fazem, mas vamos manter isso de lado, por enquanto), Kelton diz que depende de quem recebe esse dinheiro. Se as pessoas ricas o receberem, provavelmente vão guardá-lo; se as pessoas pobres o receberem, elas “o gastariam na economia”. Ela não tinha nada a dizer sobre se a economia teria a capacidade de acomodar essa demanda. Ela professou “um tremendo respeito [pelas] restrições reais da economia”, mas na verdade os MMTistas não têm quase nada a dizer sobre elas – e Mosler, Tymoigne e Wray responderam aos comentários de Palley sobre o assunto com insultos. Eles também nunca lembram seus fãs nas redes sociais, intoxicados pelo poder do pressionar de teclas, sobre essas restrições.

Às vezes é muito difícil descobrir exatamente em que os MMTistas acreditam. Será que eles estão, de formas muito indiretas, dizendo que não há problema no governo federal trabalhar com um pequeno déficit em tempos normais; e em trabalhar ocasionalmente com grandes déficits, em crises como a de 2008? Seria difícil qualquer um discordar disso, exceto as mais perversas matilhas da austeridade.

Ou será que é sobre como simplesmente não deveríamos nos preocupar com déficits? Kelton, questionada sobre os cortes de impostos feitos por Trump, disse que estava pronta para os Cortes de Impostos 2.0. Então não deveríamos nos preocupar com a crescente proporção da dívida federal em relação ao PIB que acompanha os grandes déficits, e com o aumento da parcela de gastos dedicados ao serviço da dívida (o que é um presente para os detentores de títulos da dívida, que na maioria são muito ricos)? Será que nunca chegaremos num ponto em que até mesmo o governo dos EUA passe a ter dificuldades para criar novos títulos para pagar os antigos e financiar novos gastos? A dívida, como disse o falecido sociólogo James O’Connor, aumenta o poder do capital sobre o Estado: um governo que não esteja adotando políticas favoráveis ao mercado dificilmente obterá empréstimos. Isso não deveria ser uma preocupação? Será que conseguiríamos resolver esse problema fazendo com que o Banco Central comprasse os títulos? Além do fato de que isso é tecnicamente ilegal, não estaríamos dando mais alguns passos na estrada rumo a Weimar? Em que ponto a dívida se tornaria preocupante? Assim como acontece com a inflação, os MMTistas nunca respondem.

Os MMTistas podem ter um relacionamento complicado com os fatos. Em um artigo que oferece uma estratégia para financiar um New Deal Verde – é só gastar o dinheiro, não se preocupe sobre de onde ele virá – Stephanie Kelton, Andres Bernal e Greg Carlock afirmam que “o banco do governo – o banco central – compensa os pagamentos, creditando a conta bancária do vendedor com dólares digitais. Em outras palavras, o Congresso pode aprovar qualquer orçamento que ele escolher, e nosso governo já paga por tudo criando dinheiro novo.” Mas o governo não faz isso; ele gasta apenas dinheiro obtido de receitas fiscais ou da venda de títulos de dívida. (Se você não acredita em mim, é só olhar para uma Declaração Diária do Tesouro, uma contabilidade diária da receita e da despesa do governo federal dos EUA. Ela se parece muito com qualquer demonstração financeira comum, só que com muito mais zeros.) O FED é proibido por lei de comprar títulos diretamente do Tesouro. O episódio recente de flexibilização quantitativa, projetada para combater a Grande Recessão, foi uma exceção parcial: o FED de fato comprou enormes quantidades de títulos do Tesouro, num esforço para estimular a economia. Esse programa já acabou; mas mesmo nesse caso, o FED só comprou títulos existentes de detentores privados; o governo não pode gastar dinheiro criado do nada, através de um pressionar de teclas.

Combinado com esse erro, Kelton e os outros afirmam que a criação de dinheiro do nada foi “como pagamos pelo primeiro New Deal. O governo não saiu por aí arrecadando dinheiro – tributando e pedindo emprestado – porque a economia havia colapsado e ninguém tinha dinheiro (exceto os oligarcas).” Mas a dívida federal mais do que dobrou entre 1932 e 1939. Isso não é uma coisa ruim, mas não faz sentido negá-la – a menos que você esteja tentando vender ouro de tolo.

Nas redes sociais o estilo de argumentação é ainda mais impressionante. As críticas são recebidas de primeira com a afirmação de que você simplesmente não entende – você não leu o suficiente da literatura para poder comentar com conhecimento. Mas eles são rápidos em recorrer a zombarias e insultos. Um dos meus exemplos favoritos veio de dois dos mais proeminentes entre os membros mais jovens da escola, que apresentaram estas reações persuasivas às minhas críticas no Facebook:


Rohan Grey: “Mas Anlin Wang, Doug está MaIs CoNfiANte SoBRe Sua cRíTiCa dO QUe nUnCA” 
Andrés Bernal: “mAS RoHan, e qUAnTo à prOdUçÃO???” 
Rohan Grey: “Andrés Bernal cOMo PoDerÍAMos enCHeR Os rIcOs dE iMPoStOs sEm uMA nArRativA sObRe cOMo pAgAR?”

As massas dos defensores da MMT nas redes sociais é incrivelmente fervorosa. Um acólito emitiu 220 tweets em resposta a uma crítica que apresentei.

O estilo mais charmoso de polêmica na MMT vem de Scott Ferguson, acadêmico de cinema e de estudos de mídia, autor de “Declarações de Dependência: Dinheiro, Estética e as Política de Cuidados”. Sob o feitiço da MMT, Ferguson insta os radicais a jogar no lixo “a imagem marxista do dinheiro como um quantum de valor privado, finito e alienável” e descobrir que “o dinheiro é um centro público ilimitado, que pode ser usado para dar suporte a todos”. Ele prossegue com uma série de declarações de um gênero que você não costuma encontrar em um livro de imprensa universitária:

“Tomem a relação do dinheiro! 
Recrutem a estética na expansão do dinheiro! 
Saúdem o dinheiro como o centro dos cuidados! 
Declarem sua dependência pelos centros de cuidados! 
Abandonem os apegos em nome disso! 
Imaginem um centro público sem limites! 
Nunca abandonem a abstração em nome das atrações da gravidade! 
Exaltem a abstração como o locus do cuidado!”

Isso continua por mais de duzentas páginas, conforme Ferguson invoca Heidegger e a Eucaristia para descobrir a beleza e a ternura nessa nova noção de infinitas reservas de dinheiro. Nesse processo ele desenvolve o potencial utópico da MMT de maneiras que estão fora do conjunto padrão de habilidades de um economista, mas acaba mantendo uma relação tênue com a realidade terrena.

Eu não tive muito de bom para falar sobre a MMT, e uma conclusão não é o lugar para mudar isso. Ela é uma voz contra a austeridade, mas com os Estados Unidos operando com déficits na casa dos trilhões de dólares, uma política fiscal apertada não é o principal inimigo por lá nesse momento (é claro, na Europa a história é bem diferente). Os maiores problemas no nível fiscal aqui nos EUA são em que gastamos e em que não gastamos; se podemos dizer algo é que estamos mais próximos da situação terminal do que há cinquenta anos, quando Martin Luther King Jr disse que “uma nação que continua ano após ano gastando mais dinheiro em defesa militar do que em programas de ascensão social está se aproximando da sua morte espiritual.”

De maneira mais ampla, o que temos é uma economia privada impulsionada pela exploração, pelo excesso de trabalho, pela espoliação de ativos e pela destruição ecológica. A MMT nos oferece muito pouco – ou nada – para enfrentarmos tudo isso. A garantia de emprego é uma contribuição, apesar de falha, e não está no núcleo da teoria, que procede da fantasia sobre o pressionar de teclas. Essa fantasia parece uma resposta fraca a décadas de mania anti-impostos vindo da direita, que deixou muitos liberais à procura de uma saída fácil. Seria triste ver a esquerda socialista, que nos EUA parece mais forte do que em décadas, caindo nesse conto da carochinha – é um fantasma, um sonho febril de fim de Império, não uma política econômica séria.

Sobre o autor

Doug Henwood edita Left Business Observer e é o anfitrião de Behind the News. Seu último livro é My Turn.

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