Uma entrevista com
Enzo Traverso
Tradução / França, Itália, Hungria, Polónia, Áustria, até mesmo as antigas excepções como Espanha e Alemanha — a lista de países que estão a ficar sob a sombra da extrema-direita está a crescer. O triunfo de Bolsonaro no Brasil e a presidência Trump nos Estados Unidos abriu a porta a um debate à escala planetária sobre o que antes parecia ser um fenómeno exclusivamente europeu.
O debate regressa inevitavelmente à questão do fascismo. Como fazer sentido dos movimentos de extrema-direita que evocam a sua memória, mas que emergem num contexto histórico radicalmente diferente, falando uma linguagem diferente da do “sangue e solo” do século XX?
No The New Faces of Fascism, o historiador Enzo Traverso aponta a este alvo em movimento. O resultado é o “pós-fascismo”, a tentativa de Traverso em formular uma resposta que tenha em conta as continuidades e descontinuidades históricas entre o fascismo clássico e uma direita radical com fortes semelhanças.
Nicolas Allen e Martín Cortés falaram com Traverso para discutir a tentativa da direita radical em se reinventar e de como a esquerda também se pode reiventar para poder acompanhar.
Os debates contemporâneos sobre o fascismo e populismo encalham frequentemente na semântica. No New Faces of Fascism, adoptas uma nova abordagem. Estás mais preocupado na forma como estas palavras são usadas no discurso público e o sobre o que podem revelar no “uso público da história”. Podes dizer algumas palavras sobre a inspiração geral do livro?
As interpretações do passado não podem ser indissociadas do seu uso público no presente. Estou interessado em conceptualizar o fascismo, mas este esforço não é apenas historiográfico, e não é politicamente “neutro”. Por exemplo, distingo o fascismo e o populismo: o primeiro significa destruir a democracia; o segundo é um estilo político que pode tomar diferentes, às vezes opostas, direcções, mas é usualmente usado dentro do enquadramento democrático.
Não tenho a certeza de como analisar a noção de fascismo hoje. É comummente abusado. Geralmente, a ameaça do regresso do fascismo foi uma preocupação para a esquerda. Hoje tornou-se um refrão das elites que estão sob ameaça de um populismo de direita e de pós-fascismo — pensemos na Madeleine Albright e no Robert Kagan nos Estados Unidos, ou no Matteo Renzi em Itália.
O tipo de frente unida “antifascistas” que as elites tradicionais propõem escondem, no entanto, as suas próprias responsabilidades por criarem as condições que permitiram a esta nova direita radical emergirem e espalhar-se, da Europa de Leste à Ocidental, dos Estados Unidos ao Brasil.
A inspiração geral para o meu livro baseia-se numa questão: o que significa o fascismo no século XXI? Devemos considerar a ascensão desta nova direita numa escala global como um regresso do fascismo clássico da década de 30 ou como um fenómeno completamente diferente? Como defini-lo e como contrastá-lo?
Com base no seu título, uma pessoa podia pensar que o livro é sobre “neofascismo”. Ao invés, afirmas que a viragem à direita na política europeia é um fenómeno de “pós-fascismo”, ligado ao fascismo clássico mas também distante dele. Podes explicar resumidamente o porquê das diferenças importarem?
O neofascismo — e os movimentos que reclamam estar filiados no fascismo clássico — é um fenómeno marginal. Uma das chaves para o sucesso da nova direita radical é apresentar-se a si própria como algo novo. Ou não têm origens fascistas — Trump ou Salvini — ou romperam significativamente com o seu próprio passado — Marine Le Pen, que baniu o seu pai da Frente Nacional.
A nova direita é nacionalista, racista e xenófoba. Na maioria dos países da Europa ocidental, pelo menos aqueles da direita radical que estão no poder ou que ficaram ainda mais fortes, adoptam uma retórica democrática e republicana. Mudou a sua linguagem, a sua ideologia e o seu estilo.
Por outras palavras, abandonou os seus velhos hábitos fascistas, mas não se tornou numa coisa completamente diferente. Ainda não é um componente normal dos nossos sistemas políticos.
É impossível prever hoje a sua futura evolução. Neste sentido, a comparação com o período inter-guerras do século XX é importante: em ambos os casos, houve uma falta de ordem internacional. O caos que se seguiu à I Guerra Mundial foi o resultado do colapso do apelidado “concerto europeu” — o liberalismo clássico do século XIX — e hoje é uma consequência do fim da Guerra Fria. O fascismo e o pós-fascismo nasceram deste caos e desta situação flutuante.
Apresentas a Frente Nacional francesa como o modelo guião do pós-fascismo. A ascensão do Vox em Espanha e do Salvini em Itália encorajam-te para alterar quaisquer aspectos da definição do pós-fascismo ou vês-os como uma confirmação das tuas linhas conceptuais gerais?
O sucesso da extrema-direita em França, Itália, Hungria, Áustria, Polónia e, mais recentemente, tanto em Espanha como na Alemanha, dois países que eram geralmente considerados excepções, reforça a tendência geral. A Frente Nacional francesa foi uma precursora. Obviamente que abre uma questão dramática sobre o futuro da União Europeia. Não penso que a EU consiga sobreviver se estes movimentos pós-fascistas na Europa Ocidental e Central saírem vitoriosos nas próximas eleições europeias. Provavelmente não iria desaparecer de um dia para o outro, mas o colapso da EU tornar-se-ia inevitável no médio prazo.
A ascensão destes movimentos reaccionários, nacionalistas e “eurofóbicos” é, no entanto, produto das políticas implementadas nos últimos vinte anos pela própria Comissão Europeia. A EU tornou-se numa ferramenta do capitalismo financeiro que impõe as suas regras a todos os seus governos através de uma estrutura legal obrigatória, feita de um sistema complexo de leis às vezes inscritas nas constituições.
O sucesso mais espectacular das elites neoliberais foi transformar a sua própria falência social — em 2008 foram salvas pelos Estados — numa crise financeira dos próprios Estados, que supostamente tinham gasto acima das suas possibilidades e deviam eles próprios transformar-se agora em instituições lucrativas e competitivas. Depois de dois presidentes da Comissão como Barroso (hoje um conselheiro da Goldman Sachs) e de Juncker (antigo líder de um paraíso fiscal como o Luxemburgo); depois da crise grega e de dez anos de políticas de austeridade a uma escala continental, a ascensão de líderes populistas de direita como Matteo Salvini e Viktor Orbán não é surpreendente de todo: “O adormecimento da razão engendra monstros”.
Não conseguimos combater com eficácia o pós-fascismo ao defender a EU. É através da mudança da EU que podemos derrotar o nacionalismo e o populismo de direita.
Muita da tua análise centra-se em França. Lá, quase que parece que a nova extrema-direita é, na verdade, melhor compreendida como o regresso dos reprimidos: que a integração da Frente Nacional é um processo de tornar explícito o autoritarismo, a história colonial no cerne da V República. Está correcto? Se sim, poder-se-ia estender a outros países que lutam com tendências de extrema-direita?
Na Europa, uma onda racista e xenófoba contra imigrantes asiáticos e africanos tem inevitavelmente um sabor neocolonial. Os imigrantes muçulmanos e os refugiados, que são os seus alvos, vêm de antigas colónias europeias. Este é um “regresso dos reprimidos” que revela de forma impressionante a persistência da inconsciência colonial europeia. Mas essa velha retórica racista e colonial foi abandonada.
A Frente Nacional já não é um movimento nostálgico da Argélia francesa; agora descreve-se a si mesma como uma defensora da identidade francesa ameaçada pela globalização, imigração em massa e fundamentalismo islâmico. Esta postura neocolonial pode incluir hábitos republicanos e “progressivos”: por um lado, desejam preservar as raízes cristãs da França e da Europa contra a “invasão” islâmica; por outro lado, fingem defender os direitos humanos (às vezes até os das mulheres e gays) sobre o obscurantismo islâmico.
Estes argumentos são muito populares nos meios de comunicação social franceses, bem além das fileiras da Frente Nacional: muitos intelectuais públicos que não querem ser confundidos com Marine Le Pen tornaram-se nos seus aliados mais eficazes, como Alain Finkielkraut, que recentemente se juntou à academia francesa. Depois dos ataques terroristas de 2015, François Hollande e o seu primeiro-ministro, Manuel Valls, adoptaram políticas sugeridas pela Frente Nacional: estado de excepção, recolher obrigatório, expulsão em massa de imigrantes sem documentos. Até tentaram adoptar o princípio de privar de cidadãos os terroristas com dupla nacionalidade, isto é, os cidadãos franceses com origens no norte de África.
Dás algum crédito a termos como “micro fascismo” ou outros conceitos que vêem o fascismo como uma dinâmica transhistórica dentro do capitalismo?
O “micro-fascismo” para ser uma definição inapropriada visto que enfrentamos um fenómeno global. Uma vez que uma autêntica democracia requer igualdade social, podemos dizer que, especialmente na época neoliberal, o capitalismo consiste em “desfazer” a democracia, como Wendy Brown tão bem explicou. Esta é uma tendência geral do próprio capitalismo, não uma das suas patologias ou formas degeneradas.
Desde a primeira metade do século XIX que um pensador liberal clássico como Tocqueville compreendeu que o desenvolvimento do capitalismo ameaçava o que ele considerava ser a “afinidade electiva” entre uma sociedade de mercado e a democracia. Esta visão de uma identidade entre o capitalismo e a democracia tornou-se mito na segunda metade do século XX, na época do Estado Social.
De facto, esta “humanização” do capitalismo foi uma consequência da Revolução de Outubro. Depois do colapso do socialismo real e do fim da descolonização, o capitalismo redescobriu a sua natureza “selvagem”. As desigualdades sociais explodiram numa escala global e a democracia começou a ser esvaziada do seu conteúdo.
O fascismo certamente que tem um carácter “transhistórico” — pense nas ditaduras militares na América Latina em 1960 e 1970 — e não pode ser indissociado do capitalismo, que foi uma das suas premissas. Mas ver o fascismo como resultado de uma crise global do capitalismo não significa considerá-lo um resultado inevitável.
Nos Estados Unidos, o resultado da crise do capitalismo não foi o fascismo. Foi o New Deal. O fascismo pertence a um tempo histórico — o século XX — no qual se destruiu a democracia. Hoje, o pós-fascismo perdeu a dimensão subversiva dos seus antecessores: não deseja suprimir o parlamentarismo ou os direitos individuais, ao invés tenta destruir a democracia por dentro.
Escreves sobre o “quebrar do taboo” contemporâneo em torno de asserções abertas de identidades políticas fascistas ou de extrema-direita. Reconheces que a extrema-direita europeia alcançou alguma legitimidade ao preencher o vazio deixado vago pelos partidos sociais-democratas em retirada, mas, no entanto, pareces argumentar sobre a ideia que chamas de “regime da historicidade”. Podes alargar-te sobre a relação que delineais sobre as “democracias amnésicas” e a ascensão da extrema-direita?
O pós-fascismo é um fenómeno global que não tem características monolíticas ou homogéneas. É um cocktail explosivo de nacionalismo, xenofobia, racismo, liderança carismáticas, “identitarismo” reaccionário e política regressiva anti-globalização que pode ter formas diferentes.
Por exemplo, a forma radical de neoliberalismo apoiada por Bolsonaro é desconhecida na Europa, onde o pós-fascismo é alimentado por raiva e descontentamento para com as políticas neoliberais da UE. Deste ponto de vista, parece-me que uma premissa fundamental para o crescimento do pós-fascismo baseia-se na falta de uma alternativa de esquerda ao neoliberalismo.
Tanto o comunismo como a social-democracia, os modelos hegemónicos da esquerda no século XX, falharam: o socialismo real colapsou, paralisado pelas suas contradições, e a social-democracia — a ferramenta para a humanização do capitalismo durante a Guerra Fria — esgotou a sua função histórica quando o capitalismo se tornou neoliberal. O socialismo tem de ser reinventado.
No entanto, na competição entre a esquerda e a direita para se reinventarem, o pós-fascismo está bem à frente. Mas, diferentemente dos seus antecessores, que foram apoiados pelas classes dominantes na Europa continental na década de 1930, o pós-fascismo ainda não se tornou na opção principal das elites neoliberais. Pode-se tornar na principal escolha no seguimento de uma crise geral do capitalismo ou num súbito colapso da UE. O medo do bolchevismo, a principal fonte do fascismo nos anos entre as duas guerras mundiais, já não existe.
No meu livro falo de um “regime historicista” neoliberal cujo horizontes estão constrangidos pelo presente. É uma falha tanto dos movimentos de direita como de esquerda. O pós-fascismo não tem um horizonte utópico como os seus ancestrais. Não tenta conquistar uma imaginação colectiva com o mito do “Novo Homem”, o “Reich Milenar” ou de uma nova civilização. A lógica do pós-fascismo é mais do “pessimismo cultural”: a defesa dos valores tradicionais e as identidades nacionais “ameaçadas”; defende a soberania nacional contra a globalização e procura um bode expiatório nos imigrantes, refugiados e muçulmanos.
O livro debruça-se principalmente sobre a Europa. Mesmo a tua breve abordagem à política norte-americana é na sua grande maioria para refutar a ideia de que Trump pode ser compreendido através de uma lente fascista. Vês alguma aplicabilidade alargada para o “regime da historicidade” que descreves? A vitória de Bolsonaro no Brasil não nos convida a considerar a escala global do fenómeno pós-fascista?
Como muitos observadores apontam, Trump exibe alguns traços fascistas típicos: liderança autoritária e carismática, ódio à democracia, desprezo pela lei, exibição de força, desdém pelos direitos humanos, racismo às claras, misoginia e homofobia. Mas não existe um movimento fascista atrás de si. Foi eleito como candidato pelo Partido Republicano, que é um dos pilares do establishment político norte-americano. Esta situação paradoxal não se pode tornar permanente sem colocar em questão o enquadramento democrático nos Estados Unidos.
Um dilema similar, numa forma ainda mais dramática e marcante, está em risco no Brasil depois da eleição de Bolsonaro. Ele é mais radical que os seus congéneres nos EUA ou Europa: enquanto Marine Le Pen rompeu com o antissemitismo do seu pai e adoptou uma retórica democrática, Bolsonaro é um apologista da tortura e da ditadura militar. Enquanto Marine Le Pen e Salvini desejam reintegrar políticas proteccionistas, Bolsonaro é um neoliberal fanático.
No entanto, a Petrobras, um dos pilares do capitalismo brasileiro, não está consigo. Muitos analistas brasileiros referiram-no. Atrás de Bolsonaro estão três forças conservadoras poderosas: “balas, bois e bíblia” — o exército, os latifundiários e fundamentalismo evangélico.
Por outras palavras um verdadeiro movimento fascista clássico combinaria estas duas coisas que faltam a Trump e Bolsonaro: mobilização em massa e uma frente unitária de apoio entre as elites. Está correcto?
Sim, acho que é a principal diferença que os distingue do fascismo clássico, mesmo que as classes dominantes não os possam acomodar na perfeição aos dois, especialmente com a ausência de qualquer alternativa efectiva. Nos países da UE, no entanto, esta opção não está na sua agenda. Os movimentos de massa militaristas do fascismo clássico foram uma consequência da brutalização da política produzida pela I Guerra Mundial. Hoje, isto tem ocorrido no Iraque, Líbia, Síria e Iémen, mas não nos países da UE, nos Estados Unidos ou no Brasil. Isto é o porquê de precursores como Trump e Bolsonaro não são nem Mussolini nem Hitler, mas Berlusconi. Mas uma nova e crise global ponde mudar o perfil da extrema-direita em muitos países.
Um dos capítulos mais interessantes do teu novo livro envolve um discussão sobre a escola europeia de historiadores do “anti-antifascismo” e da sua suposta revisão histórica como sendo de “neutralidade política”. Porque a vês como tão perigosa e porque é que seria importante reafirmar a importância de uma historiografia antifascista?
A linha divisora entre o fascismo e a democracia é tanto moral como política. Na Europa continental e, nos últimos anos, na América-Latina, a democracia nasceu da resistência e do antifascismo. Sempre que estas lutas resultaram em democracia, uma democracia “antifascistas” seria apenas mais frágil, amnésica e infiel à sua própria história.
A esquerda deve-se lembrar desta ligação genética entre o antifascismo e a democracia. A democracia não pode ser reduzida a dispositivos jurídicos e políticos, às “regras do jogo”. Nem é a democracia um simples corolário da sociedade de mercado; é uma conquista histórica de revoluções políticas e de lutas antifascistas. Romper ou negar esta ligação histórica é a forma mais directa de “desconstruir o demos”.
Descreveste os mais recentes movimentos das “ocupações das praças”, como o Occupy Wall Street e os Indignados espanhóis, como uma tentativa de se reinventar um “novo comunismo”. Ao mesmo tempo, pareces sugerir que sem uma revisão crítica do “velho comunismo” e se descobrir alguns aspectos úteis desse legado, a esquerda por este mundo fora vai continuar sem rumo. Onde estão alguns desses aspetos úteis do legado comunista?
O Occupy Wall Street e os Indignados espanhóis expressaram o desejo por uma alternativa, tal como o Syriza na Grécia até à sua viragem em 2015. Hoje, Bernie Sanders, Jeremy Corbyn e o Podemos provaram que a esquerda pode olhar para novas ideias, novos caminhos e novas esperanças. Sanders incorpora uma viragem na história da esquerda norte-americana, depois do New Deal na década de 1930 e da New Left na de 1960. Ele dá uma nova legitimidade à ideia do socialismo num país onde ela nunca foi hegemónica. No Reino Unido e em Espanha, Corbyn e Podemos simboliza uma ruptura radical com o social-liberalismo.
Estas experiências são passos na direcção de se reinventar um novo modelo para a esquerda por este mundo fora. Os velhos paradigmas falharam, mas ainda não foram substituídos. Um novo modelo deverá combinar uma interpretação crítica do mundo com um projecto para a sua transformação revolucionária, como Marx sugeriu com a sua famosa “décima primeira tese”.
O comunismo incorporava esta combinação e estabelecia um horizonte utópico para o século XX. A minha única certeza é a de que uma nova alternativa de esquerda para o século XXI será anticapitalista, mas não sei se se chamará a si própria “comunismo”. Irá provavelmente inventar novos conceitos e imagens — tal como o socialismo e o comunismo fizeram nos últimos dois séculos. Mas uma nova esquerda não inventará a roda. Dizer que uma ruptura histórica com os modelos do passado acontecerá não quer dizer que a esquerda não precisará da memória e consciência histórica.
Uma compreensão crítica das derrotas do passado é inevitável. O que ajudou a esquerda a ultrapassar as suas derrotas, da Comuna de Paris ao golpe de Estado chileno em 1973, foi a convicção de que o futuro pertencia ao socialismo e que até os mais trágicos falhanços eram apenas batalhas perdidas. Esta crença no objectivo histórico foi carregado com uma dimensão teleológica, mas também deu à esquerda uma força extraordinária, um que hoje já não existe.
A esquerda tem estado “órfã”. Não pode reafirmar ou esquecer o passado — tem de o ultrapassar.
Pareces céptico sobre o uso do populismo politico pela esquerda. Visto ser uma palavra comummente usada com objectivos diferentes — juntar fenómenos disparados como a França Insubmissa e a Frente Nacional —, sugeres que o populismo acaba por enevoar as linhas entre a esquerda e a direita. Certos intelectuais de esquerda e partidos políticos abraçaram o rótulo “populismo de esquerda” numa tentativa de definir um rumo entre a “praça” e as “sondagens”, e isto não parece entrar nas tuas considerações. Achas que existe algum lugar para o populismo de esquerda na luta contra o pós-fascismo?
Na minha perspectiva, o populismo é um estilo político que pode ser partilhado por líderes de diferentes e até orientações opostas tanto à direita como à esquerda do espectro politico. Mas é um estilo e uma retórica onde a virtude é incorporada pelo “povo” em oposição às elites corruptas, não pelo o conteúdo de uma força política. Na América-Latina, o populismo de esquerda usou a demagogia e tomou formas autoritárias várias vezes, mas o seu objectivo era incluir as classes mais baixas no sistema político e social.
Como Marco D’Eramo sublinhou, estigmatizar o populismo revela, na maioria dos casos, um desprezo aristocrático e elitista pelo “povo”. Se o populismo significa que o Corbyn, Sanders e o Podemos são o mesmo que Salvini, Orbán, Trump e Bolsonaro, então é um conceito completamente inútil e até perigoso.
Sei que alguns pensadores radicais pensam o populismo como uma alternativa a uma suposta clivagem obsoleta entre a esquerda e a direita e por vezes avançam com argumentos válidos. Em certas circunstâncias este uso do populismo pode resultar, mas num contexto global de crescimento de movimentos pós-fascistas arrisca-se a gerar mal-entendidos perigosos.
Por últimos, gostaríamos de te perguntar sobre a recente controvérsia em torno do apelidado “argumento de esquerda para fechar as fronteiras” e que levantou uma série de questões sobre soberania e o seu uso político como conceito para a esquerda. Tens alguns pensamentos sobre o assunto?
Defender “o encerramento de fronteiras” na época dos “Estados fechados” e fronteiras militarizadas contra imigrantes e refugiados parece-me extremamente perigosos. Em última instância, isso legitima a xenofobia, defesas reaccionárias da “identidade nacional” e um regresso à soberania nacional — o refrão do pós-fascismo. Pensar-se que a globalização capitalista pode ser contraposta ao se reestabelecer as fronteiras nacionais é uma ideia retrógrada, na medida que todos os assuntos do século XXI, da ecologia às desigualdades sociais e transferências demográficas, requerem uma solução global.
O internacionalismo pertence, desde a sua origem, à esquerda e acho que não o possamos abandonar facilmente ou rejeitar o universalismo. Numa época global, o socialismo deve redescobrir o sentido original das fronteiras como pontos em comum e não linhas de separação..
O debate regressa inevitavelmente à questão do fascismo. Como fazer sentido dos movimentos de extrema-direita que evocam a sua memória, mas que emergem num contexto histórico radicalmente diferente, falando uma linguagem diferente da do “sangue e solo” do século XX?
No The New Faces of Fascism, o historiador Enzo Traverso aponta a este alvo em movimento. O resultado é o “pós-fascismo”, a tentativa de Traverso em formular uma resposta que tenha em conta as continuidades e descontinuidades históricas entre o fascismo clássico e uma direita radical com fortes semelhanças.
Nicolas Allen e Martín Cortés falaram com Traverso para discutir a tentativa da direita radical em se reinventar e de como a esquerda também se pode reiventar para poder acompanhar.
Os debates contemporâneos sobre o fascismo e populismo encalham frequentemente na semântica. No New Faces of Fascism, adoptas uma nova abordagem. Estás mais preocupado na forma como estas palavras são usadas no discurso público e o sobre o que podem revelar no “uso público da história”. Podes dizer algumas palavras sobre a inspiração geral do livro?
As interpretações do passado não podem ser indissociadas do seu uso público no presente. Estou interessado em conceptualizar o fascismo, mas este esforço não é apenas historiográfico, e não é politicamente “neutro”. Por exemplo, distingo o fascismo e o populismo: o primeiro significa destruir a democracia; o segundo é um estilo político que pode tomar diferentes, às vezes opostas, direcções, mas é usualmente usado dentro do enquadramento democrático.
Não tenho a certeza de como analisar a noção de fascismo hoje. É comummente abusado. Geralmente, a ameaça do regresso do fascismo foi uma preocupação para a esquerda. Hoje tornou-se um refrão das elites que estão sob ameaça de um populismo de direita e de pós-fascismo — pensemos na Madeleine Albright e no Robert Kagan nos Estados Unidos, ou no Matteo Renzi em Itália.
O tipo de frente unida “antifascistas” que as elites tradicionais propõem escondem, no entanto, as suas próprias responsabilidades por criarem as condições que permitiram a esta nova direita radical emergirem e espalhar-se, da Europa de Leste à Ocidental, dos Estados Unidos ao Brasil.
A inspiração geral para o meu livro baseia-se numa questão: o que significa o fascismo no século XXI? Devemos considerar a ascensão desta nova direita numa escala global como um regresso do fascismo clássico da década de 30 ou como um fenómeno completamente diferente? Como defini-lo e como contrastá-lo?
Com base no seu título, uma pessoa podia pensar que o livro é sobre “neofascismo”. Ao invés, afirmas que a viragem à direita na política europeia é um fenómeno de “pós-fascismo”, ligado ao fascismo clássico mas também distante dele. Podes explicar resumidamente o porquê das diferenças importarem?
O neofascismo — e os movimentos que reclamam estar filiados no fascismo clássico — é um fenómeno marginal. Uma das chaves para o sucesso da nova direita radical é apresentar-se a si própria como algo novo. Ou não têm origens fascistas — Trump ou Salvini — ou romperam significativamente com o seu próprio passado — Marine Le Pen, que baniu o seu pai da Frente Nacional.
A nova direita é nacionalista, racista e xenófoba. Na maioria dos países da Europa ocidental, pelo menos aqueles da direita radical que estão no poder ou que ficaram ainda mais fortes, adoptam uma retórica democrática e republicana. Mudou a sua linguagem, a sua ideologia e o seu estilo.
Por outras palavras, abandonou os seus velhos hábitos fascistas, mas não se tornou numa coisa completamente diferente. Ainda não é um componente normal dos nossos sistemas políticos.
É impossível prever hoje a sua futura evolução. Neste sentido, a comparação com o período inter-guerras do século XX é importante: em ambos os casos, houve uma falta de ordem internacional. O caos que se seguiu à I Guerra Mundial foi o resultado do colapso do apelidado “concerto europeu” — o liberalismo clássico do século XIX — e hoje é uma consequência do fim da Guerra Fria. O fascismo e o pós-fascismo nasceram deste caos e desta situação flutuante.
Apresentas a Frente Nacional francesa como o modelo guião do pós-fascismo. A ascensão do Vox em Espanha e do Salvini em Itália encorajam-te para alterar quaisquer aspectos da definição do pós-fascismo ou vês-os como uma confirmação das tuas linhas conceptuais gerais?
O sucesso da extrema-direita em França, Itália, Hungria, Áustria, Polónia e, mais recentemente, tanto em Espanha como na Alemanha, dois países que eram geralmente considerados excepções, reforça a tendência geral. A Frente Nacional francesa foi uma precursora. Obviamente que abre uma questão dramática sobre o futuro da União Europeia. Não penso que a EU consiga sobreviver se estes movimentos pós-fascistas na Europa Ocidental e Central saírem vitoriosos nas próximas eleições europeias. Provavelmente não iria desaparecer de um dia para o outro, mas o colapso da EU tornar-se-ia inevitável no médio prazo.
A ascensão destes movimentos reaccionários, nacionalistas e “eurofóbicos” é, no entanto, produto das políticas implementadas nos últimos vinte anos pela própria Comissão Europeia. A EU tornou-se numa ferramenta do capitalismo financeiro que impõe as suas regras a todos os seus governos através de uma estrutura legal obrigatória, feita de um sistema complexo de leis às vezes inscritas nas constituições.
O sucesso mais espectacular das elites neoliberais foi transformar a sua própria falência social — em 2008 foram salvas pelos Estados — numa crise financeira dos próprios Estados, que supostamente tinham gasto acima das suas possibilidades e deviam eles próprios transformar-se agora em instituições lucrativas e competitivas. Depois de dois presidentes da Comissão como Barroso (hoje um conselheiro da Goldman Sachs) e de Juncker (antigo líder de um paraíso fiscal como o Luxemburgo); depois da crise grega e de dez anos de políticas de austeridade a uma escala continental, a ascensão de líderes populistas de direita como Matteo Salvini e Viktor Orbán não é surpreendente de todo: “O adormecimento da razão engendra monstros”.
Não conseguimos combater com eficácia o pós-fascismo ao defender a EU. É através da mudança da EU que podemos derrotar o nacionalismo e o populismo de direita.
Muita da tua análise centra-se em França. Lá, quase que parece que a nova extrema-direita é, na verdade, melhor compreendida como o regresso dos reprimidos: que a integração da Frente Nacional é um processo de tornar explícito o autoritarismo, a história colonial no cerne da V República. Está correcto? Se sim, poder-se-ia estender a outros países que lutam com tendências de extrema-direita?
Na Europa, uma onda racista e xenófoba contra imigrantes asiáticos e africanos tem inevitavelmente um sabor neocolonial. Os imigrantes muçulmanos e os refugiados, que são os seus alvos, vêm de antigas colónias europeias. Este é um “regresso dos reprimidos” que revela de forma impressionante a persistência da inconsciência colonial europeia. Mas essa velha retórica racista e colonial foi abandonada.
A Frente Nacional já não é um movimento nostálgico da Argélia francesa; agora descreve-se a si mesma como uma defensora da identidade francesa ameaçada pela globalização, imigração em massa e fundamentalismo islâmico. Esta postura neocolonial pode incluir hábitos republicanos e “progressivos”: por um lado, desejam preservar as raízes cristãs da França e da Europa contra a “invasão” islâmica; por outro lado, fingem defender os direitos humanos (às vezes até os das mulheres e gays) sobre o obscurantismo islâmico.
Estes argumentos são muito populares nos meios de comunicação social franceses, bem além das fileiras da Frente Nacional: muitos intelectuais públicos que não querem ser confundidos com Marine Le Pen tornaram-se nos seus aliados mais eficazes, como Alain Finkielkraut, que recentemente se juntou à academia francesa. Depois dos ataques terroristas de 2015, François Hollande e o seu primeiro-ministro, Manuel Valls, adoptaram políticas sugeridas pela Frente Nacional: estado de excepção, recolher obrigatório, expulsão em massa de imigrantes sem documentos. Até tentaram adoptar o princípio de privar de cidadãos os terroristas com dupla nacionalidade, isto é, os cidadãos franceses com origens no norte de África.
Dás algum crédito a termos como “micro fascismo” ou outros conceitos que vêem o fascismo como uma dinâmica transhistórica dentro do capitalismo?
O “micro-fascismo” para ser uma definição inapropriada visto que enfrentamos um fenómeno global. Uma vez que uma autêntica democracia requer igualdade social, podemos dizer que, especialmente na época neoliberal, o capitalismo consiste em “desfazer” a democracia, como Wendy Brown tão bem explicou. Esta é uma tendência geral do próprio capitalismo, não uma das suas patologias ou formas degeneradas.
Desde a primeira metade do século XIX que um pensador liberal clássico como Tocqueville compreendeu que o desenvolvimento do capitalismo ameaçava o que ele considerava ser a “afinidade electiva” entre uma sociedade de mercado e a democracia. Esta visão de uma identidade entre o capitalismo e a democracia tornou-se mito na segunda metade do século XX, na época do Estado Social.
De facto, esta “humanização” do capitalismo foi uma consequência da Revolução de Outubro. Depois do colapso do socialismo real e do fim da descolonização, o capitalismo redescobriu a sua natureza “selvagem”. As desigualdades sociais explodiram numa escala global e a democracia começou a ser esvaziada do seu conteúdo.
O fascismo certamente que tem um carácter “transhistórico” — pense nas ditaduras militares na América Latina em 1960 e 1970 — e não pode ser indissociado do capitalismo, que foi uma das suas premissas. Mas ver o fascismo como resultado de uma crise global do capitalismo não significa considerá-lo um resultado inevitável.
Nos Estados Unidos, o resultado da crise do capitalismo não foi o fascismo. Foi o New Deal. O fascismo pertence a um tempo histórico — o século XX — no qual se destruiu a democracia. Hoje, o pós-fascismo perdeu a dimensão subversiva dos seus antecessores: não deseja suprimir o parlamentarismo ou os direitos individuais, ao invés tenta destruir a democracia por dentro.
Escreves sobre o “quebrar do taboo” contemporâneo em torno de asserções abertas de identidades políticas fascistas ou de extrema-direita. Reconheces que a extrema-direita europeia alcançou alguma legitimidade ao preencher o vazio deixado vago pelos partidos sociais-democratas em retirada, mas, no entanto, pareces argumentar sobre a ideia que chamas de “regime da historicidade”. Podes alargar-te sobre a relação que delineais sobre as “democracias amnésicas” e a ascensão da extrema-direita?
O pós-fascismo é um fenómeno global que não tem características monolíticas ou homogéneas. É um cocktail explosivo de nacionalismo, xenofobia, racismo, liderança carismáticas, “identitarismo” reaccionário e política regressiva anti-globalização que pode ter formas diferentes.
Por exemplo, a forma radical de neoliberalismo apoiada por Bolsonaro é desconhecida na Europa, onde o pós-fascismo é alimentado por raiva e descontentamento para com as políticas neoliberais da UE. Deste ponto de vista, parece-me que uma premissa fundamental para o crescimento do pós-fascismo baseia-se na falta de uma alternativa de esquerda ao neoliberalismo.
Tanto o comunismo como a social-democracia, os modelos hegemónicos da esquerda no século XX, falharam: o socialismo real colapsou, paralisado pelas suas contradições, e a social-democracia — a ferramenta para a humanização do capitalismo durante a Guerra Fria — esgotou a sua função histórica quando o capitalismo se tornou neoliberal. O socialismo tem de ser reinventado.
No entanto, na competição entre a esquerda e a direita para se reinventarem, o pós-fascismo está bem à frente. Mas, diferentemente dos seus antecessores, que foram apoiados pelas classes dominantes na Europa continental na década de 1930, o pós-fascismo ainda não se tornou na opção principal das elites neoliberais. Pode-se tornar na principal escolha no seguimento de uma crise geral do capitalismo ou num súbito colapso da UE. O medo do bolchevismo, a principal fonte do fascismo nos anos entre as duas guerras mundiais, já não existe.
No meu livro falo de um “regime historicista” neoliberal cujo horizontes estão constrangidos pelo presente. É uma falha tanto dos movimentos de direita como de esquerda. O pós-fascismo não tem um horizonte utópico como os seus ancestrais. Não tenta conquistar uma imaginação colectiva com o mito do “Novo Homem”, o “Reich Milenar” ou de uma nova civilização. A lógica do pós-fascismo é mais do “pessimismo cultural”: a defesa dos valores tradicionais e as identidades nacionais “ameaçadas”; defende a soberania nacional contra a globalização e procura um bode expiatório nos imigrantes, refugiados e muçulmanos.
O livro debruça-se principalmente sobre a Europa. Mesmo a tua breve abordagem à política norte-americana é na sua grande maioria para refutar a ideia de que Trump pode ser compreendido através de uma lente fascista. Vês alguma aplicabilidade alargada para o “regime da historicidade” que descreves? A vitória de Bolsonaro no Brasil não nos convida a considerar a escala global do fenómeno pós-fascista?
Como muitos observadores apontam, Trump exibe alguns traços fascistas típicos: liderança autoritária e carismática, ódio à democracia, desprezo pela lei, exibição de força, desdém pelos direitos humanos, racismo às claras, misoginia e homofobia. Mas não existe um movimento fascista atrás de si. Foi eleito como candidato pelo Partido Republicano, que é um dos pilares do establishment político norte-americano. Esta situação paradoxal não se pode tornar permanente sem colocar em questão o enquadramento democrático nos Estados Unidos.
Um dilema similar, numa forma ainda mais dramática e marcante, está em risco no Brasil depois da eleição de Bolsonaro. Ele é mais radical que os seus congéneres nos EUA ou Europa: enquanto Marine Le Pen rompeu com o antissemitismo do seu pai e adoptou uma retórica democrática, Bolsonaro é um apologista da tortura e da ditadura militar. Enquanto Marine Le Pen e Salvini desejam reintegrar políticas proteccionistas, Bolsonaro é um neoliberal fanático.
No entanto, a Petrobras, um dos pilares do capitalismo brasileiro, não está consigo. Muitos analistas brasileiros referiram-no. Atrás de Bolsonaro estão três forças conservadoras poderosas: “balas, bois e bíblia” — o exército, os latifundiários e fundamentalismo evangélico.
Por outras palavras um verdadeiro movimento fascista clássico combinaria estas duas coisas que faltam a Trump e Bolsonaro: mobilização em massa e uma frente unitária de apoio entre as elites. Está correcto?
Sim, acho que é a principal diferença que os distingue do fascismo clássico, mesmo que as classes dominantes não os possam acomodar na perfeição aos dois, especialmente com a ausência de qualquer alternativa efectiva. Nos países da UE, no entanto, esta opção não está na sua agenda. Os movimentos de massa militaristas do fascismo clássico foram uma consequência da brutalização da política produzida pela I Guerra Mundial. Hoje, isto tem ocorrido no Iraque, Líbia, Síria e Iémen, mas não nos países da UE, nos Estados Unidos ou no Brasil. Isto é o porquê de precursores como Trump e Bolsonaro não são nem Mussolini nem Hitler, mas Berlusconi. Mas uma nova e crise global ponde mudar o perfil da extrema-direita em muitos países.
Um dos capítulos mais interessantes do teu novo livro envolve um discussão sobre a escola europeia de historiadores do “anti-antifascismo” e da sua suposta revisão histórica como sendo de “neutralidade política”. Porque a vês como tão perigosa e porque é que seria importante reafirmar a importância de uma historiografia antifascista?
A linha divisora entre o fascismo e a democracia é tanto moral como política. Na Europa continental e, nos últimos anos, na América-Latina, a democracia nasceu da resistência e do antifascismo. Sempre que estas lutas resultaram em democracia, uma democracia “antifascistas” seria apenas mais frágil, amnésica e infiel à sua própria história.
A esquerda deve-se lembrar desta ligação genética entre o antifascismo e a democracia. A democracia não pode ser reduzida a dispositivos jurídicos e políticos, às “regras do jogo”. Nem é a democracia um simples corolário da sociedade de mercado; é uma conquista histórica de revoluções políticas e de lutas antifascistas. Romper ou negar esta ligação histórica é a forma mais directa de “desconstruir o demos”.
Descreveste os mais recentes movimentos das “ocupações das praças”, como o Occupy Wall Street e os Indignados espanhóis, como uma tentativa de se reinventar um “novo comunismo”. Ao mesmo tempo, pareces sugerir que sem uma revisão crítica do “velho comunismo” e se descobrir alguns aspectos úteis desse legado, a esquerda por este mundo fora vai continuar sem rumo. Onde estão alguns desses aspetos úteis do legado comunista?
O Occupy Wall Street e os Indignados espanhóis expressaram o desejo por uma alternativa, tal como o Syriza na Grécia até à sua viragem em 2015. Hoje, Bernie Sanders, Jeremy Corbyn e o Podemos provaram que a esquerda pode olhar para novas ideias, novos caminhos e novas esperanças. Sanders incorpora uma viragem na história da esquerda norte-americana, depois do New Deal na década de 1930 e da New Left na de 1960. Ele dá uma nova legitimidade à ideia do socialismo num país onde ela nunca foi hegemónica. No Reino Unido e em Espanha, Corbyn e Podemos simboliza uma ruptura radical com o social-liberalismo.
Estas experiências são passos na direcção de se reinventar um novo modelo para a esquerda por este mundo fora. Os velhos paradigmas falharam, mas ainda não foram substituídos. Um novo modelo deverá combinar uma interpretação crítica do mundo com um projecto para a sua transformação revolucionária, como Marx sugeriu com a sua famosa “décima primeira tese”.
O comunismo incorporava esta combinação e estabelecia um horizonte utópico para o século XX. A minha única certeza é a de que uma nova alternativa de esquerda para o século XXI será anticapitalista, mas não sei se se chamará a si própria “comunismo”. Irá provavelmente inventar novos conceitos e imagens — tal como o socialismo e o comunismo fizeram nos últimos dois séculos. Mas uma nova esquerda não inventará a roda. Dizer que uma ruptura histórica com os modelos do passado acontecerá não quer dizer que a esquerda não precisará da memória e consciência histórica.
Uma compreensão crítica das derrotas do passado é inevitável. O que ajudou a esquerda a ultrapassar as suas derrotas, da Comuna de Paris ao golpe de Estado chileno em 1973, foi a convicção de que o futuro pertencia ao socialismo e que até os mais trágicos falhanços eram apenas batalhas perdidas. Esta crença no objectivo histórico foi carregado com uma dimensão teleológica, mas também deu à esquerda uma força extraordinária, um que hoje já não existe.
A esquerda tem estado “órfã”. Não pode reafirmar ou esquecer o passado — tem de o ultrapassar.
Pareces céptico sobre o uso do populismo politico pela esquerda. Visto ser uma palavra comummente usada com objectivos diferentes — juntar fenómenos disparados como a França Insubmissa e a Frente Nacional —, sugeres que o populismo acaba por enevoar as linhas entre a esquerda e a direita. Certos intelectuais de esquerda e partidos políticos abraçaram o rótulo “populismo de esquerda” numa tentativa de definir um rumo entre a “praça” e as “sondagens”, e isto não parece entrar nas tuas considerações. Achas que existe algum lugar para o populismo de esquerda na luta contra o pós-fascismo?
Na minha perspectiva, o populismo é um estilo político que pode ser partilhado por líderes de diferentes e até orientações opostas tanto à direita como à esquerda do espectro politico. Mas é um estilo e uma retórica onde a virtude é incorporada pelo “povo” em oposição às elites corruptas, não pelo o conteúdo de uma força política. Na América-Latina, o populismo de esquerda usou a demagogia e tomou formas autoritárias várias vezes, mas o seu objectivo era incluir as classes mais baixas no sistema político e social.
Como Marco D’Eramo sublinhou, estigmatizar o populismo revela, na maioria dos casos, um desprezo aristocrático e elitista pelo “povo”. Se o populismo significa que o Corbyn, Sanders e o Podemos são o mesmo que Salvini, Orbán, Trump e Bolsonaro, então é um conceito completamente inútil e até perigoso.
Sei que alguns pensadores radicais pensam o populismo como uma alternativa a uma suposta clivagem obsoleta entre a esquerda e a direita e por vezes avançam com argumentos válidos. Em certas circunstâncias este uso do populismo pode resultar, mas num contexto global de crescimento de movimentos pós-fascistas arrisca-se a gerar mal-entendidos perigosos.
Por últimos, gostaríamos de te perguntar sobre a recente controvérsia em torno do apelidado “argumento de esquerda para fechar as fronteiras” e que levantou uma série de questões sobre soberania e o seu uso político como conceito para a esquerda. Tens alguns pensamentos sobre o assunto?
Defender “o encerramento de fronteiras” na época dos “Estados fechados” e fronteiras militarizadas contra imigrantes e refugiados parece-me extremamente perigosos. Em última instância, isso legitima a xenofobia, defesas reaccionárias da “identidade nacional” e um regresso à soberania nacional — o refrão do pós-fascismo. Pensar-se que a globalização capitalista pode ser contraposta ao se reestabelecer as fronteiras nacionais é uma ideia retrógrada, na medida que todos os assuntos do século XXI, da ecologia às desigualdades sociais e transferências demográficas, requerem uma solução global.
O internacionalismo pertence, desde a sua origem, à esquerda e acho que não o possamos abandonar facilmente ou rejeitar o universalismo. Numa época global, o socialismo deve redescobrir o sentido original das fronteiras como pontos em comum e não linhas de separação..
Sobre o autor
Enzo Traverso leciona na Cornell University. Seu livro mais recente é Left-Wing Melancholia: Marxism, History, and Memory.
Sobre os entrevistadores
Nicolas Allen é um candidato a doutorado em literatura na Universidad de Buenos Aires.
Martín Cortés é professor de ciência política na Universidad de Buenos Aires e autor do livro a ser lançado em breve Translating Marx - José Aricó and the New Latin American Marxism (2019, Historical Materialism).
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