16 de fevereiro de 2019

Entendendo os Coletes Amarelos

Enzo Traveso disserta neste pequeno ensaio sobre o elusivo significado do novo movimento populista horizontal da França. Poderiam os Coletes Amarelos atingir seus objetivos sem erguerem uma bandeira vermelha?

Enzo Traverso



Tradução / Observadores têm se surpreendido e ficado confusos com as formas, práticas e símbolos incomuns dos Coletes Amarelos. Todos reconhecem o radicalismo, a determinação e a notável duração do protesto, mas o movimento permanece em muitos aspectos um objeto estranho e inclassificável, ingenuamente idealizado como o prenúncio da revolução ou obtusamente estigmatizado como perigoso e potencialmente “protofascista”. Os Coletes Amarelos são apoiados tanto pela esquerda como pela direita, mas afirmam sua independência; eles não aceitam qualquer representação política ou “cooptação”. Essa rejeição de qualquer forma de representação é tanto sua força como sua fragilidade, ao menos a curto prazo.

O fato é que os Coletes Amarelos não podem ser interpretados por meio das categorias tradicionais de análise política. Eles não podem ser seriamente descritos como um movimento reacionário, “Poujadista”. Em uma conjuntura política moldada pela ascensão da xenofobia, do racismo e do nacionalismo radical, eles não procuram por um bode expiatório, nem clamam pela expulsão de imigrantes e refugiados, e eles não desejam proteger uma supostamente ameaçada “identidade nacional.” Em vez disso, eles levantam a questão das desigualdades sociais como uma ameaça à democracia e à coesão social. Ao fazerem isso, não afirmam uma identidade étnica, mas sim uma social. Quando a mídia os entrevista, eles não mencionam suas origens, e sim suas profissões: funcionário, enfermeiro, professora, autônoma, gerente, motorista, desempregado, etc.

A igualdade social é, historicamente, um valor esquerdista, mas os Coletes Amarelos não pertencem à cultura da esquerda; eles nem conhecem seus símbolos — não há bandeiras vermelhas em suas manifestações e nas rotatórias que ocupam — nem adotam suas formas de organização. Sua revolta é completamente externa aos sindicatos, apesar de uma recente, e limitada, convergência. Eles não agem como uma classe, como um corpo homogêneo, e sim como uma comunidade, como um corpo heterogêneo, plural. Dentre eles, há muitas pessoas que estão participando de uma manifestação ou protesto pela primeira vez em suas vidas. Seu símbolo não é uma bandeira vermelha, e sim um colete amarelo: isso permite-lhes tornarem-se visíveis em um mundo que os condena à invisibilidade pública e ao sofrimento social. Eles aparentam não terem consciência do simbolismo político do amarelo, uma cor a qual, na virada do século XX, expressava um dos componentes da “direita revolucionária” francesa (les Jaunes), algo cuidadosamente investigado por Zeev Sternhell. Um século depois, o significado dessa cor mudou; foi a cor vermelha que perdeu muito de sua força simbólica.

De acordo com alguns historiadores, esse protesto em nome da justiça social e da igualdade revela a “economia moral” das massas (um conceito construído pelo historiador britânico E. P. Thompson para descrever a rebelião social durante a época da Revolução Industrial). Esta comparação é provavelmente pertinente, mas ela poderia também ser interpretada como o espelho de uma gigantesca regressão política: dois séculos da história da esquerda simplesmente esquecidos, ignorados e abandonados como um passado inútil. As manifestações dos Coletes Amarelos não incluem quaisquer referências a 1848, à Comuna de Paris, à Résistance [resistência francesa contra os nazistas na Segunda Guerra Mundial] ou a Maio de 68. Em vez disso, eles usam alguns símbolos da Revolução Francesa: os sans-culottes, os Direitos do Homem e Cidadão, a execução do Rei, etc. Significaria isso um retorno ao [modelo de] protesto social do Antigo Regime? Eu não sei, mas esta falta de memória histórica certamente comprova a erosão e enfraquecimento de muitos símbolos esquerdistas.

Por outro lado, os Coletes Amarelos são qualquer coisa, menos arcaicos, e demonstram várias características modernas: eles estruturam seu movimento por meio das redes sociais, eles utilizam o Facebook como uma ferramenta de contra-informação frente aos canais de TV, e usam a Internet como uma organizadora coletiva (muito similar a como ocorreu na Primavera Árabe de 2011). Eles transformaram a propaganda do governo quanto aos supostos atos de vandalismo em uma campanha contra a violência policial. Uma de suas manifestações mais recentes foi iniciada por dúzias de Coletes Amarelos os quais haviam sido feridos e mutilados pela polícia. Eles reivindicam o legado da Revolução Francesa, mas muitos traços de seu movimento revelam afinidades significativas com o Occupy Wall Street, o 15M Espanhol e o Nuit debout.

Alguns críticos veem os Coletes Amarelos como a expressão de uma nova forma de populismo. Em muitos aspectos, isso é verdade, na medida em que eles opõem o povo à elite no poder: Macron como o presidentes dos “ultra-ricos”, o símbolo de uma elite financeira. Simultaneamente, todavia, os Coletes explicitamente rejeitam muitas características do populismo clássico, notavelmente o nacionalismo e a liderança carismática. Nem Marine Le Pen, muito menos Jean-Luc Mélenchon, puderam representá-los; os membros do movimento defendem fortemente o princípio da auto-representação, e têm orgulho de praticarem uma forma de democracia horizontal. É por isso que, de acordo com Etienne Balibar, os Coletes Amarelos estão inventando uma forma de “contra-populismo”: um populismo democrático e horizontal no lugar de um populismo vertical e autoritário; um populismo de atores, e não de seguidores.

As possibilidades futuras dos Coletes Amarelos são imprevisíveis. Todas as pesquisas de opinião indicam sua extrema popularidade e apoio por parte de uma grande maioria dos cidadãos franceses, mas eles representam e mobilizam apenas um segmento da sociedade civil. Esse setor da sociedade é certamente largo, heterogêneo e tecnicamente sem fronteiras, na medida em que eles pretendem encarnar o “povo”, mas eles não podem vencer sozinhos. Um movimento bem-sucedido deve incluir e mobilizar outros segmentos da sociedade francesa, desde trabalhadores assalariados de grandes empresas e funcionários públicos até os jovens dos subúrbios (les jeunes des cités), além dos estudantes de Ensino Médio e Superior. Um novo “bloco social” contra o neoliberalismo, se usarmos as categorias de Gramsci, ainda não existe. O que está claro, entretanto, é o fracasso do projeto de Emmanuel Macron em criar um “bloco histórico” neoliberal hegemônico, para impor o neoliberalismo simultaneamente como um modelo econômico para a sociedade e como um modelo antropológico aos seus cidadãos (um modelo composto de consumo, posse, individualismo, e competição). Triunfalmente eleito há menos de dois anos atrás como um homem do futuro — inteligente, culto (muitos jornalistas aduladores retrataram-no como um filósofo), enérgico, e um modernizador — Macron rapidamente tornou-se um político muito desprezado e detestado: o presidente dos “ultraricos”. Os protestos sociais atuais focam na medida, fortemente defendida por Macron, de abolir o “imposto sobre fortunas” (ISF), a qual se tornou o símbolo das desigualdades sociais.

Macron considera os “ultraricos” uma espécie de vanguarda do progresso, um modelo para pessoas comuns. Sua visão do progresso como um “gotejar” natural dos ricos para os pobres (le ruissellement) é ridicularizado e escarnecido em todas as manifestações dos Coletes Amarelos. Seu projeto de transformar a França em uma capital europeia do neoliberalismo vitorioso arruinou-se. Graças às instituições da Quinta República que concedem-no uma maioria bem forte no Parlamento, ele provavelmente completará seu mandato, mas o macronismo fracassou. Macron parece já ter desistido da ideia de parar os protestos por meio de concessões e explicações dos efeitos benéficos de suas medidas, e decidiu compensar sua falta de legitimidade por meio da repressão violenta. Este é o significado das recentíssimas leis “anti-revolta”, as quais reforçam as medidas de “estado de exceção” já introduzidas após os ataques terroristas de 2015. Neste caso, seu neoliberalismo “jupiteriano” será mantido como uma forma de bonapartismo autoritário. Sua presidência é certamente a mais repressiva da França desde os anos da Guerra da Algéria.

O fracasso do macronismo como projeto social é uma das maiores conquistas dos Coletes Amarelos. De acordo com muitos deles, o significado de seu movimento transcende as suas reivindicações. Os bloqueios de rotatória são muito mais do que formas de ação; eles se tornaram esferas de novas práticas sociais, nas quais pessoas sempre acostumadas a viverem sozinhas e a considerar suas dificuldades como problemas individuais descobriram valores coletivos como a solidariedade, a ajuda mútua e a fraternidade, algo que Jacques Rancière chamaria de “le partage du sensible.” Eles descobriram um sentimento de comunidade contra o individualismo. E isto é a chave para a auto-emancipação.

Até então, na França, a alternativa principal ao neoliberalismo era o fascismo conservador, nacionalista e pós-fascista. Hoje, os Coletes Amarelos esboçam uma saída diferente, baseada na igualdade social e na democracia horizontal. Eles estão experimentando novas formas de agência e novas práticas de deliberação coletiva as quais envolvem pessoas comuns, com sua inteligência e criatividade mas também com sua ingenuidade e preconceitos. Um sinal dessa ambiguidade é quando o movimento pretende ser “antipolítico”, uma asserção com significados múltiplos e contraditórios. Um movimento auto-organizado, desprovido de qualquer tradição e memória histórica, aprende por meio de sua experiência e de seus próprios erros; ele não aceita lições vindas de fora, e tem seus próprios momentos de aprendizado. Infelizmente, não sei se os Coletes tem tanto tempo em mãos.

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