Greg Grandin
London Review of Books
Vol. 41 Nº 3 · 7 de fevereiro de 2019 |
Tradução / 1. O conceito de soberania pode referir-se ao controle político que um líder exerce sobre uma sociedade e território, ou o controle psíquico que um indivíduo exerce sobre si mesmo.
2. Soberania é conceito que tem longa história no pensamento político, no mínimo em relação à expansão das potências imperiais europeias. Mas foi na América Hispânica, que o conceito assumiu sua forma moderna – aplicado a estados-nações não imperiais ou não coloniais – e pela primeira vez foi posto em ação como norma diplomática.
3. À altura do final da década dos 1820s, todas as ex-colônias da Espanha na América, exceto Cuba e Porto Rico, já haviam alcançado a independência. Esses novos países – dentre os quais, a Gran Colombia, as Províncias Unidas, Bolívia, Peru, República do Chile e os Estados Unidos do México – aceitaram a integridade territorial dos demais, baseada em antigas fronteiras coloniais. Não tiveram alternativa, dado que cada nação legitimava e simultaneamente ameaçava todas as demais: legitimava, porque a independência de uma delas confirmava o direito das demais a se rebelarem contra a ordem monárquica estabelecida; e ameaçava, porque todas nasceram num tempo em que a lei internacional reconhecia a guerra e a conquista como meios válidos para obter território e estabelecer soberania. Republicanos espanhóis-americanos, dentre os quais Simón Bolívar, rejeitaram a legitimidade do direito de descoberta e, a partir disso, insistiam que não havia ‘terra livre’ a ser conquistada na América espanhola. Na esperança de que o rompimento violento em relação à Espanha levaria a um mundo mais harmonioso, argumentavam que aceitar fronteiras fixas (que correspondiam às divisões administrativas coloniais) impediria conflitos e ajudaria a estabelecer uma comunidade moral de nações ligadas entre elas.
4. Ao longo do século 19, o comprometimento ideológico com a ideia de soberania – que adiante passaria a ser vista como não intervenção – aprofundou-se, por três razões. Primeiro, as novas nações espanholas, assim como o Brasil português, enfrentavam muitas questões de fronteira na disputa por recursos e terra. Mas os diplomatas da região tenderam a apelar ao ideal de soberania territorial para resolver aquelas lutas, confirmando assim que abraçavam o ideal e comprometiam-se com ele. Segundo, por uma razão que teve a ver com esforços latino-americanos, empreendidos pelo jurista argentino Carlos Calvo e outros, para conter as tentativas europeias para usar a força na cobrança de dívidas e, ocasionalmente, como no México nos anos 1860s, também com envio de tropas. Em terceiro lugar, havia a sombra dos EUA, cujo território continuava a ampliar-se, girando sobre a América do Norte como biruta em vendaval, rumo ao México, depois para o Caribe, seguida por expansão dos mercados e intervenção mais profunda, com navios de guerra na América do Sul.
5. No início do século 20, a América Latina – seus juristas, diplomatas, políticos e intelectuais – já haviam codificado seus compromissos com a soberania num caro corpo de leis e teorização sobre lei e legalidade chamado Lei Internacional Americana [ing. American International Law]. Esses teoricistas trabalharam em íntima associação com juristas dos EUA e Europa, muitos deles associados ao movimento internacional pela paz, ajudando a estabelecer marcos legais como a Liga das Nações e o Pacto Kellogg-Briand.
6. Alguns desses teoricistas, incluindo políticos revolucionários mexicanos, eram mais fortemente críticos dos EUA. Outros, como o chileno Alejandro Alvarez, agarrava-se a uma cega fé hegeliana de que o militarismo unilateral dos EUA ajudaria a criar uma comunidade mundial de lei, que conteria e socializaria o militarismo unilateral dos EUA.
7. Por seu lado, os EUA mantiveram aderidos a uma compreensão territorial do conceito de soberania. Com a nação crescendo para o oeste, primeiro os povos nativos, depois os mexicanos, foram frequentemente apresentados como ‘crianças’, supostamente incapazes de formar a sociedade política racional que justificaria o autogoverno. Depois de a fronteira ser fechada, as nações latino-americanas tornaram-se os ‘irresponsáveis’ da hora. Especialistas em América Latina no governo de Woodrow Wilson, que se preparavam para a Conferência de Paz de Paris em 1919, classificavam os países como ‘maduros, imaturos ou criminosos’, e surgiram com uma série de testes para ‘determinar se estavam prontos para serem autorizados a cuidar dos próprios negócios, num mundo a ser governado pela razão’. ‘Quantas Cubas há por lá?’ – perguntava o documento: quer dizer, quantos países são constituídos de líderes e de populações que não têm direito à soberania política porque não são capazes de exercer a soberania sobre eles mesmos e as próprias emoções?
8. Tais questões partem da premissa segundo a qual só nação moralmente responsável poderia ser soberana. A definição de moralidade mudava conforme o caso: às vezes significava a capacidade para exercer controle sobre a população; às vezes significava legitimidade democrática ou nos procedimentos. O padrão que Washington usava – controle ou legitimidade – dependia do que mais garantisse proteção à propriedade privada estrangeira. Em todos os casos, os EUA reservavam-se o direito, frequentemente invocando o próprio senso de excepcionalismo, de operarem como juízes.
9. Enviados dos EUA vez ou outra apresentavam-se ao lado de diplomatas latino-americanos, em seus esforços para manter os europeus à distância. Mas sempre rejeitaram a ideia da Lei Internacional Americana, especialmente se significasse desistir do direito de intervir em assuntos de outros países, para proteger os próprios interesses. ‘Não pode haver lei internacional americana’ – o enviado dos EUA disse na primeira Conferência Pan-americana em 1889, – ‘assim como não pode haver lei internacional inglesa, alemã ou prussiana.’ Só há uma ‘lei internacional’, cujo significado ‘antigo e já estabelecido’ foi definido ‘muito antes de que qualquer das nações americanas hoje estabelecidas tivessem existência independente’.
10. Em outras palavras, o excepcionalismo norte-americano era bom para justificar a intervenção dos EUA, mas não era bom quando aplicado, por outros tipos de norte-americanos, para conter intervencionismos.
11. Nas primeiras décadas do século 20, com os EUA no auge de sua diplomacia do canhão – conduzindo contrainsurgências na Nicarágua, no Haiti e na República Dominicana, e enviando tropas para Veracruz, cidade mexicana rica em petróleo – os diplomatas latino-americanos empenharam-se muito para aceitar o princípio da não intervenção.
12. Não funcionou. Na sequência da 7ª Conferência Pan-americana, em dezembro de 1933 em Montevidéu, o ministro de Relações Exteriores da Argentina, Carlos Saavedra Lamas, convidou as nações do mundo a assinar o Tratado Antiguerra sobre Não Agressão e Conciliação. Parte de um esforço para pôr fim à guerra entre Bolívia e Paraguai, esse pacto cristalizou muitas das doutrinas há muito defendidas por juristas latino-americanos, especialmente a absoluta proibição ‘da intervenção, seja diplomática ou armada’ nos assuntos de outras nações. Saavedra Lamas obtivera as assinaturas de seis outros países latino-americanos antes do início da conferência.
13. FDR enviara seu secretário de Estado, Cordell Hull, à reunião, com instruções para não oferecer aos latino-americanos nada além de promessas de construir umas poucas estradas. Hull era Democrata do Tennessee, veterano da Guerra de 1898, e escreveu nas próprias memórias, que se orgulhara de ter intervindo naquele momento, pondo fim ao colonialismo espanhol e levando a democracia a Cuba. Hull – que, segundo seu conselheiro Ernest Gruening, falou como nascido e criado no Tennessee, engolindo os g’s e brigando com os r’s – opôs-se à ideia da soberania latino-americana: ‘E o que vou fazer quando o caos irromper num desses países, e bandos armados apareçam, queimando, pilhando e assassinando norte-americanos?’, diz que Gruening perguntou-lhe. ‘Como vou dizer ao meu povo que não podemos intervir?’ ‘Sr. secretário’, Gruening respondeu, ‘é coisa que em geral acontece depois de termos intervindo.’
14. Hull representou uma nação em contração econômica, diante de uma Ásia cada vez mais hostil e uma Europa perigosa. Sentindo que seria impossível fazer diferente, Hull ‘correspondeu magnificamente ao momento’, escreveu um observador, anunciando que os EUA dali em diante ‘evitaram e rejeitaram’ o ‘chamado direito de conquista (...) O New Deal seria projeto vazio, se não nesse sentido.’ Os delegados latino-americanos irromperam em ‘fortes aplausos e gritos de apoio’.
15. ‘Nossa era do “imperialismo” aproxima-se do fim,’ anunciou o New York Times sobre a promessa de Hull, de abrir mão do direito de intervir nos assuntos de outras nações. ‘ O “Destino Manifesto” está dando lugar à nova política de “negociação igual com todas as nações”.’ Roosevelt, sempre político ágil, colheu a oportunidade e, depois, em 1933, disse que a ‘política definitiva dos EUA, de agora em diante, é de oposição à intervenção armada’.
16. Montevidéu foi o primeiro sucesso significativo da política exterior de Roosevelt, marcando uma virada no destino dos EUA como superpotência ascendente. FDR retirou os marines do Haiti, e devolveu ao país o seu banco nacional (tomado por um de seus predecessores intervencionistas). Os EUA revogaram a odiada Emenda Platt introduzida na Constituição de Cuba, que fizera da ilha um estado vassalo, e passaram a tolerar um grau de nacionalismo econômico na América Latina, inclusive a expropriação, pelo México, do patrimônio da Standard Oil.
17. A adesão extemporânea de Hull, às demandas da América Latina, de que Washington reconhecesse a absoluta soberania de nações latino-americanas, é uma das mais claramente bem-sucedidas iniciativas de política exterior dos EUA jamais teve. Melhores relações com a América Latina ajudaram os EUA a se recuperar da Grande Depressão. A Política de Boa Vizinhança, como ficaria conhecida, também ofereceu um primeiro mapa para um globalismo renascido, estabelecendo no hemisfério ocidental as fundações da diplomacia global pós-guerra de Washington: aceitar a soberania nacional; novas instituições e acordos multilaterais; reconhecer direitos sociais, incluindo o direito de países em desenvolvimento, de autorregularem o investimento e a propriedades estrangeiros; e um sistema de aliança regional e de mútua defesa. As nações latino-americanas constituíram a maior bancada regional na ONU – nos primeiros anos, antes de a descolonização ter ampliado muito a instituição – apoiando, quase unanimemente, todos os elementos da política mais ampla da Guerra Fria de Washington.
18. Teóricos da América Latina compreenderam que havia uma contradição fundamental entre o ideal que acalentavam, de soberania nacional absoluta, e sua visão de uma ordem internacional justa, que garantisse o bem-estar social e dignidade individual. Mas argumentaram que a contradição poderia ser resolvida mediante arbitragem multilateral, num sistema internacional que poderia ‘intervir’ em nome de uma lei superior quando necessário, mas jamais seria corrompido pelo autointeresse das grandes potências.
19. Em visita à Venezuela em 1950, George Kennan descreveu os impostos que as empresas norte-americanas de petróleo pagavam ao governo em Caracas como uma espécie de ‘resgate’, pago em troca da teoria da soberania do estado e do princípio de não intervenção que concordamos em adotar’.
20. Durante a Guerra Fria, os EUA intervieram na América Latina, mas o fizeram de um modo que parecia não arranhar os princípios democráticos do multilateralismo. O bem-sucedido golpe da CIA na Guatemala em 1954 e a invasão malsucedida, ‘coordenada’ pela mesma CIA, da Baía dos Porcos em 1961 foram violações de soberania, mas não implicaram ataque direto ilegal à lei formal. De fato, até confirmaram o princípio – no mínimo, formalmente –, porque Washington obteve a aprovação da Organização dos Estados Americanos, OEA, para isolar diplomaticamente Guatemala e Cuba. A OEA também aprovou, com alguma oposição, a invasão norte-americana, em 1965, da República Dominicana. E quando a OEA protestou contra a invasão de Grenada, por Ronald Reagan, em 1983, a embaixadora dos EUA à ONU, Jeane Kirkpatrick, citou obrigações do tratado com a Organização dos Estados do Caribe Oriental, para justificar a intervenção.
21. O compromisso com o ideal de soberania nacional aprofundou-se nos anos 1960s e início dos anos 1970s, com descolonização, guerras de libertação nacional e movimentos revolucionários em Cuba, Chile e por toda parte.
22. Uma concepção latino-americana do que seja soberania abrira caminho para fora do Novo Mundo, para servir como fundamento legal e mora da ONU e princípio-guia das nações em processo de descolonização do século 20. A reunião de fundação da Organização da Unidade Africana, em Addis Ababa em 1963, afirmou tacitamente a influência da América Latina. ‘Temos de assumir a África como é’ – disse o presidente do Mali, Modibo Keïta, para dizer que reconhecia as fronteiras impostas pelos colonizadores europeus como fronteiras fixadas de nações independentes.
23. O ideal de soberania foi ampliado, para incluir os recursos naturais de cada nação. Em sua Constituição de 1917, o México foi o primeiro país do mundo a adotar o princípio segundo o qual a soberania absoluta sobre recursos naturais pertence ao Estado nacional. Políticos venezuelanos lutavam para obter pleno controle sobre as reservas nacionais de petróleo desde, no mínimo, os anos 1930s. Em 1962, a ONU reconheceu a legitimidade da soberania sobre recursos naturais nacionais.
24. No Chile, no início dos anos 1970s, o governo socialista de Salvador Allende deu um passo adiante, e expandiu o ideal de soberania de modo a incluir o valor gerado por recursos naturais no passado. O Chile declarou seu direito não só a nacionalizar propriedade estrangeira, mas, também, o direito de deduzir o ‘lucro excessivo’ que empresas estrangeiras haviam auferido daquela propriedade (acompanhando argumento construído pelo diplomata Mohammed Bedjaoui, da Argélia, que redigiu um relatório da ONU, em 1969, a favor do reconhecimento do direito de as nações estabelecerem “soberania permanente” sobre os próprios recursos naturais). O Chile estimou que as empresas mineradoras Anaconda e Kennecott deviam ao país $774 milhões, a serem deduzidos do total que o Chile planejava pagar àquelas empresas como compensação por as empresas terem sido nacionalizadas.
25. Para o governo Richard Nixon, o princípio do “lucro excessivo” era inadmissível. Numa reunião no Salão Oval, dia 5/10/1971, o secretário do Tesouro John Connally, descreveu a conta que o Chile apresentara às empresas Anaconda e Kennecott como ‘jogar a luva’. ‘Agora, é nossa vez de responder’. Nesse momento, como disse, Nixon decidiu ‘demitir Allende daquele emprego’. Henry Kissinger voltou a um ‘teste’ de antes de FDR, para calcular maturidade/imaturidade para exercer a soberania, para justificar a demissão de Allende: ‘Não sei por que’ – disse Kissinger – ‘teríamos de ficar parados à margem, e deixar que um país vire comunista por causa da irresponsabilidade do próprio povo.’
26. A erosão subsequente do ideal da soberania como fundamento das relações internacionais tem várias causas, dentre as quais o esgotamento do modelo do New Deal/Keynesiano; o triunfo político da Nova Direita; o triunfo econômico do neoliberalismo; o colapso da União Soviética; e a disseminação pelo mundo da aceitação de direitos humanos, especialmente à vida e à integridade física, como direitos não negociáveis. Mas pode-se mapear o início do fim do ideal da soberania na América Latina. Nos anos 1980s, a guerra nada secreta de Reagan contra a Nicarágua reescreveu os termos da lei e da diplomacia. Como disse Eric Posner, a decisão de Washington, de retirar-se da jurisdição da Corte Internacional de Justiça em 1986 – como resposta a uma sentença, pela qual os EUA teriam de pagar bilhões de dólares à Nicarágua por ter plantado minas em águas territoriais do país e conduzido guerra ilegal de agressão – foi ‘momento de virada’ nas relações dos EUA com a comunidade internacional. Adiante, a saída dos EUA da jurisdição da Corte Internacional de Justiça seria citada pelo embaixador de George W. Bush à ONU, John Bolton (autodesignado novo Libertador da América Latina, atualmente encarregado do golpe contra a Venezuela), como razão pela qual os EUA não teriam qualquer dever legal de cumprir outros obrigações multilaterais.
27. A invasão do Panamá em 1989 teve efeito de transformação sobre toda a lei internacional. Thomas Pickering, embaixador de George H.W. Bush à ONU, disse depois que aquela invasão pavimentou a trilha para a invasão do Iraque em 2003. Ocorrida apenas um mês depois de derrubado o muro de Berlin, foi justificada por uma lista hierarquizada de razões. Bem alta na lista, estava a meta de fazer do Panamá uma democracia. Contra a opinião unânime de todo o hemisfério, Luigi Einaudi, embaixador dos EUA à OEA, explicitamente exigiu, para os EUA, o direito de intervir em assuntos internos de outro país, ‘porque’ os EUA não viam na soberania do Panamá qualquer valor que a tornasse digna de ser reconhecida. ‘Hoje, vivemos (...) tempos históricos’ – disse Einaudi –, tempos em que um grande princípio espalha-se pelo mundo como fogo. Esse princípio, como todos sabemos, é a ideia revolucionária de que os povos, não os governos, são soberanos.’
28. De início, na América Latina, o elo entre uma noção de ‘bem comum’ da cidadania, e uma visão de ‘bem comum’ da soberania territorial absoluta foi formal: os indivíduos, como as nações, não existem isolados, mas em harmonia, ligados como iguais por necessidades e limitações mútuas. Com o tempo, evoluiu um relacionamento mais dependente. No século 20, esforços para institucionalizar direitos sociais levaram alguns estados a intervir na economia, movimento que frequentemente levou interesses domésticos e estrangeiros a retaliar. Entre 1898 e 1994, Washington derrubou pelo menos 41 governos na América Latina. Por sua vez, nacionalistas, social-democratas, populistas e socialistas evoluíram para compreender direitos sociais e soberania como mutuamente constitutivos. Seria preciso um Executivo reforçado, com controle sobre ambos, sobre o espaço físico e sobre o espaço social da nação, para alcançar, em palavras de Simón Bolívar, ‘a máxima soma possível de felicidade, a máxima soma possível de segurança social’.
29. Nas décadas que se seguiram à invasão do Panamá, esse elo foi quebrado. O ideal de soberania absoluta – o elo subjacente da ordem liberal mundial do New Deal – está em vasta medida desacreditado. A globalização pós-Guerra Fria diluiu as doutrinas da imunidade nacional soberana e da não intervenção. Para usar a metáfora de Kennan, valera a pena pagar aqueles ‘impostos-resgate’. Toda a comunidade internacional regrediu – no Iraque e por todos os cantos – a uma ética de intervencionismo, em nome de objetivo ‘superior’.
30. Há uma espécie de consistência ética e lógica no intervencionismo: uma espécie de bom-senso moral que diz que, assim como as fronteiras não devem ser obstáculo aos mercados ou ao capital, tampouco podem proteger governos repressores ou ilegítimos. O mundo ‘tem de’ fazer alguma coisa contra os bárbaros e o barbarismo. Essa consistência retórica desse bom-sensismo só faz amplificar a hipocrisia e a duplicidade dos padrões – para nem falar das desastrosas consequências, tão frequentes – da sua aplicação ao mundo social e político. A globalização econômica prometera um mundo próspero e sem fronteiras, apesar de os promotores daquela globalização terem assinado uma avalanche de tratados que ‘libertavam’ o capital, mas que, na prática, criminalizaram a mobilidade do trabalho. O ‘intervencionismo humanitário’ se autojustificaria por um ideal universal moralmente superior ao conceito de soberania nacional. Mas, no mundo real, seleciona seus alvos – Iraque, Líbia, Iêmen e, agora, a Venezuela – por critérios que nada têm a ver com qualquer universalismo.
31. The Wall Street Journal noticia que o movimento de Washington contra a Venezuela seria parte de uma estratégia maior para transformar o hemisfério. Como o governo de William Howard Taft anunciou em 1911, ao mandar 20 mil soldados dos EUA para a fronteira, para intimidar os insurgentes mexicanos e forçá-los a garantir proteção à propriedade estrangeira: "A revolução na república do sul tem de acabar." Washington, disse Woodrow Wilson dois anos depois, ensinaria "as repúblicas sul-americanas a eleger homens bons".
3. À altura do final da década dos 1820s, todas as ex-colônias da Espanha na América, exceto Cuba e Porto Rico, já haviam alcançado a independência. Esses novos países – dentre os quais, a Gran Colombia, as Províncias Unidas, Bolívia, Peru, República do Chile e os Estados Unidos do México – aceitaram a integridade territorial dos demais, baseada em antigas fronteiras coloniais. Não tiveram alternativa, dado que cada nação legitimava e simultaneamente ameaçava todas as demais: legitimava, porque a independência de uma delas confirmava o direito das demais a se rebelarem contra a ordem monárquica estabelecida; e ameaçava, porque todas nasceram num tempo em que a lei internacional reconhecia a guerra e a conquista como meios válidos para obter território e estabelecer soberania. Republicanos espanhóis-americanos, dentre os quais Simón Bolívar, rejeitaram a legitimidade do direito de descoberta e, a partir disso, insistiam que não havia ‘terra livre’ a ser conquistada na América espanhola. Na esperança de que o rompimento violento em relação à Espanha levaria a um mundo mais harmonioso, argumentavam que aceitar fronteiras fixas (que correspondiam às divisões administrativas coloniais) impediria conflitos e ajudaria a estabelecer uma comunidade moral de nações ligadas entre elas.
4. Ao longo do século 19, o comprometimento ideológico com a ideia de soberania – que adiante passaria a ser vista como não intervenção – aprofundou-se, por três razões. Primeiro, as novas nações espanholas, assim como o Brasil português, enfrentavam muitas questões de fronteira na disputa por recursos e terra. Mas os diplomatas da região tenderam a apelar ao ideal de soberania territorial para resolver aquelas lutas, confirmando assim que abraçavam o ideal e comprometiam-se com ele. Segundo, por uma razão que teve a ver com esforços latino-americanos, empreendidos pelo jurista argentino Carlos Calvo e outros, para conter as tentativas europeias para usar a força na cobrança de dívidas e, ocasionalmente, como no México nos anos 1860s, também com envio de tropas. Em terceiro lugar, havia a sombra dos EUA, cujo território continuava a ampliar-se, girando sobre a América do Norte como biruta em vendaval, rumo ao México, depois para o Caribe, seguida por expansão dos mercados e intervenção mais profunda, com navios de guerra na América do Sul.
5. No início do século 20, a América Latina – seus juristas, diplomatas, políticos e intelectuais – já haviam codificado seus compromissos com a soberania num caro corpo de leis e teorização sobre lei e legalidade chamado Lei Internacional Americana [ing. American International Law]. Esses teoricistas trabalharam em íntima associação com juristas dos EUA e Europa, muitos deles associados ao movimento internacional pela paz, ajudando a estabelecer marcos legais como a Liga das Nações e o Pacto Kellogg-Briand.
6. Alguns desses teoricistas, incluindo políticos revolucionários mexicanos, eram mais fortemente críticos dos EUA. Outros, como o chileno Alejandro Alvarez, agarrava-se a uma cega fé hegeliana de que o militarismo unilateral dos EUA ajudaria a criar uma comunidade mundial de lei, que conteria e socializaria o militarismo unilateral dos EUA.
7. Por seu lado, os EUA mantiveram aderidos a uma compreensão territorial do conceito de soberania. Com a nação crescendo para o oeste, primeiro os povos nativos, depois os mexicanos, foram frequentemente apresentados como ‘crianças’, supostamente incapazes de formar a sociedade política racional que justificaria o autogoverno. Depois de a fronteira ser fechada, as nações latino-americanas tornaram-se os ‘irresponsáveis’ da hora. Especialistas em América Latina no governo de Woodrow Wilson, que se preparavam para a Conferência de Paz de Paris em 1919, classificavam os países como ‘maduros, imaturos ou criminosos’, e surgiram com uma série de testes para ‘determinar se estavam prontos para serem autorizados a cuidar dos próprios negócios, num mundo a ser governado pela razão’. ‘Quantas Cubas há por lá?’ – perguntava o documento: quer dizer, quantos países são constituídos de líderes e de populações que não têm direito à soberania política porque não são capazes de exercer a soberania sobre eles mesmos e as próprias emoções?
8. Tais questões partem da premissa segundo a qual só nação moralmente responsável poderia ser soberana. A definição de moralidade mudava conforme o caso: às vezes significava a capacidade para exercer controle sobre a população; às vezes significava legitimidade democrática ou nos procedimentos. O padrão que Washington usava – controle ou legitimidade – dependia do que mais garantisse proteção à propriedade privada estrangeira. Em todos os casos, os EUA reservavam-se o direito, frequentemente invocando o próprio senso de excepcionalismo, de operarem como juízes.
9. Enviados dos EUA vez ou outra apresentavam-se ao lado de diplomatas latino-americanos, em seus esforços para manter os europeus à distância. Mas sempre rejeitaram a ideia da Lei Internacional Americana, especialmente se significasse desistir do direito de intervir em assuntos de outros países, para proteger os próprios interesses. ‘Não pode haver lei internacional americana’ – o enviado dos EUA disse na primeira Conferência Pan-americana em 1889, – ‘assim como não pode haver lei internacional inglesa, alemã ou prussiana.’ Só há uma ‘lei internacional’, cujo significado ‘antigo e já estabelecido’ foi definido ‘muito antes de que qualquer das nações americanas hoje estabelecidas tivessem existência independente’.
10. Em outras palavras, o excepcionalismo norte-americano era bom para justificar a intervenção dos EUA, mas não era bom quando aplicado, por outros tipos de norte-americanos, para conter intervencionismos.
11. Nas primeiras décadas do século 20, com os EUA no auge de sua diplomacia do canhão – conduzindo contrainsurgências na Nicarágua, no Haiti e na República Dominicana, e enviando tropas para Veracruz, cidade mexicana rica em petróleo – os diplomatas latino-americanos empenharam-se muito para aceitar o princípio da não intervenção.
12. Não funcionou. Na sequência da 7ª Conferência Pan-americana, em dezembro de 1933 em Montevidéu, o ministro de Relações Exteriores da Argentina, Carlos Saavedra Lamas, convidou as nações do mundo a assinar o Tratado Antiguerra sobre Não Agressão e Conciliação. Parte de um esforço para pôr fim à guerra entre Bolívia e Paraguai, esse pacto cristalizou muitas das doutrinas há muito defendidas por juristas latino-americanos, especialmente a absoluta proibição ‘da intervenção, seja diplomática ou armada’ nos assuntos de outras nações. Saavedra Lamas obtivera as assinaturas de seis outros países latino-americanos antes do início da conferência.
13. FDR enviara seu secretário de Estado, Cordell Hull, à reunião, com instruções para não oferecer aos latino-americanos nada além de promessas de construir umas poucas estradas. Hull era Democrata do Tennessee, veterano da Guerra de 1898, e escreveu nas próprias memórias, que se orgulhara de ter intervindo naquele momento, pondo fim ao colonialismo espanhol e levando a democracia a Cuba. Hull – que, segundo seu conselheiro Ernest Gruening, falou como nascido e criado no Tennessee, engolindo os g’s e brigando com os r’s – opôs-se à ideia da soberania latino-americana: ‘E o que vou fazer quando o caos irromper num desses países, e bandos armados apareçam, queimando, pilhando e assassinando norte-americanos?’, diz que Gruening perguntou-lhe. ‘Como vou dizer ao meu povo que não podemos intervir?’ ‘Sr. secretário’, Gruening respondeu, ‘é coisa que em geral acontece depois de termos intervindo.’
14. Hull representou uma nação em contração econômica, diante de uma Ásia cada vez mais hostil e uma Europa perigosa. Sentindo que seria impossível fazer diferente, Hull ‘correspondeu magnificamente ao momento’, escreveu um observador, anunciando que os EUA dali em diante ‘evitaram e rejeitaram’ o ‘chamado direito de conquista (...) O New Deal seria projeto vazio, se não nesse sentido.’ Os delegados latino-americanos irromperam em ‘fortes aplausos e gritos de apoio’.
15. ‘Nossa era do “imperialismo” aproxima-se do fim,’ anunciou o New York Times sobre a promessa de Hull, de abrir mão do direito de intervir nos assuntos de outras nações. ‘ O “Destino Manifesto” está dando lugar à nova política de “negociação igual com todas as nações”.’ Roosevelt, sempre político ágil, colheu a oportunidade e, depois, em 1933, disse que a ‘política definitiva dos EUA, de agora em diante, é de oposição à intervenção armada’.
16. Montevidéu foi o primeiro sucesso significativo da política exterior de Roosevelt, marcando uma virada no destino dos EUA como superpotência ascendente. FDR retirou os marines do Haiti, e devolveu ao país o seu banco nacional (tomado por um de seus predecessores intervencionistas). Os EUA revogaram a odiada Emenda Platt introduzida na Constituição de Cuba, que fizera da ilha um estado vassalo, e passaram a tolerar um grau de nacionalismo econômico na América Latina, inclusive a expropriação, pelo México, do patrimônio da Standard Oil.
17. A adesão extemporânea de Hull, às demandas da América Latina, de que Washington reconhecesse a absoluta soberania de nações latino-americanas, é uma das mais claramente bem-sucedidas iniciativas de política exterior dos EUA jamais teve. Melhores relações com a América Latina ajudaram os EUA a se recuperar da Grande Depressão. A Política de Boa Vizinhança, como ficaria conhecida, também ofereceu um primeiro mapa para um globalismo renascido, estabelecendo no hemisfério ocidental as fundações da diplomacia global pós-guerra de Washington: aceitar a soberania nacional; novas instituições e acordos multilaterais; reconhecer direitos sociais, incluindo o direito de países em desenvolvimento, de autorregularem o investimento e a propriedades estrangeiros; e um sistema de aliança regional e de mútua defesa. As nações latino-americanas constituíram a maior bancada regional na ONU – nos primeiros anos, antes de a descolonização ter ampliado muito a instituição – apoiando, quase unanimemente, todos os elementos da política mais ampla da Guerra Fria de Washington.
18. Teóricos da América Latina compreenderam que havia uma contradição fundamental entre o ideal que acalentavam, de soberania nacional absoluta, e sua visão de uma ordem internacional justa, que garantisse o bem-estar social e dignidade individual. Mas argumentaram que a contradição poderia ser resolvida mediante arbitragem multilateral, num sistema internacional que poderia ‘intervir’ em nome de uma lei superior quando necessário, mas jamais seria corrompido pelo autointeresse das grandes potências.
19. Em visita à Venezuela em 1950, George Kennan descreveu os impostos que as empresas norte-americanas de petróleo pagavam ao governo em Caracas como uma espécie de ‘resgate’, pago em troca da teoria da soberania do estado e do princípio de não intervenção que concordamos em adotar’.
20. Durante a Guerra Fria, os EUA intervieram na América Latina, mas o fizeram de um modo que parecia não arranhar os princípios democráticos do multilateralismo. O bem-sucedido golpe da CIA na Guatemala em 1954 e a invasão malsucedida, ‘coordenada’ pela mesma CIA, da Baía dos Porcos em 1961 foram violações de soberania, mas não implicaram ataque direto ilegal à lei formal. De fato, até confirmaram o princípio – no mínimo, formalmente –, porque Washington obteve a aprovação da Organização dos Estados Americanos, OEA, para isolar diplomaticamente Guatemala e Cuba. A OEA também aprovou, com alguma oposição, a invasão norte-americana, em 1965, da República Dominicana. E quando a OEA protestou contra a invasão de Grenada, por Ronald Reagan, em 1983, a embaixadora dos EUA à ONU, Jeane Kirkpatrick, citou obrigações do tratado com a Organização dos Estados do Caribe Oriental, para justificar a intervenção.
21. O compromisso com o ideal de soberania nacional aprofundou-se nos anos 1960s e início dos anos 1970s, com descolonização, guerras de libertação nacional e movimentos revolucionários em Cuba, Chile e por toda parte.
22. Uma concepção latino-americana do que seja soberania abrira caminho para fora do Novo Mundo, para servir como fundamento legal e mora da ONU e princípio-guia das nações em processo de descolonização do século 20. A reunião de fundação da Organização da Unidade Africana, em Addis Ababa em 1963, afirmou tacitamente a influência da América Latina. ‘Temos de assumir a África como é’ – disse o presidente do Mali, Modibo Keïta, para dizer que reconhecia as fronteiras impostas pelos colonizadores europeus como fronteiras fixadas de nações independentes.
23. O ideal de soberania foi ampliado, para incluir os recursos naturais de cada nação. Em sua Constituição de 1917, o México foi o primeiro país do mundo a adotar o princípio segundo o qual a soberania absoluta sobre recursos naturais pertence ao Estado nacional. Políticos venezuelanos lutavam para obter pleno controle sobre as reservas nacionais de petróleo desde, no mínimo, os anos 1930s. Em 1962, a ONU reconheceu a legitimidade da soberania sobre recursos naturais nacionais.
24. No Chile, no início dos anos 1970s, o governo socialista de Salvador Allende deu um passo adiante, e expandiu o ideal de soberania de modo a incluir o valor gerado por recursos naturais no passado. O Chile declarou seu direito não só a nacionalizar propriedade estrangeira, mas, também, o direito de deduzir o ‘lucro excessivo’ que empresas estrangeiras haviam auferido daquela propriedade (acompanhando argumento construído pelo diplomata Mohammed Bedjaoui, da Argélia, que redigiu um relatório da ONU, em 1969, a favor do reconhecimento do direito de as nações estabelecerem “soberania permanente” sobre os próprios recursos naturais). O Chile estimou que as empresas mineradoras Anaconda e Kennecott deviam ao país $774 milhões, a serem deduzidos do total que o Chile planejava pagar àquelas empresas como compensação por as empresas terem sido nacionalizadas.
25. Para o governo Richard Nixon, o princípio do “lucro excessivo” era inadmissível. Numa reunião no Salão Oval, dia 5/10/1971, o secretário do Tesouro John Connally, descreveu a conta que o Chile apresentara às empresas Anaconda e Kennecott como ‘jogar a luva’. ‘Agora, é nossa vez de responder’. Nesse momento, como disse, Nixon decidiu ‘demitir Allende daquele emprego’. Henry Kissinger voltou a um ‘teste’ de antes de FDR, para calcular maturidade/imaturidade para exercer a soberania, para justificar a demissão de Allende: ‘Não sei por que’ – disse Kissinger – ‘teríamos de ficar parados à margem, e deixar que um país vire comunista por causa da irresponsabilidade do próprio povo.’
26. A erosão subsequente do ideal da soberania como fundamento das relações internacionais tem várias causas, dentre as quais o esgotamento do modelo do New Deal/Keynesiano; o triunfo político da Nova Direita; o triunfo econômico do neoliberalismo; o colapso da União Soviética; e a disseminação pelo mundo da aceitação de direitos humanos, especialmente à vida e à integridade física, como direitos não negociáveis. Mas pode-se mapear o início do fim do ideal da soberania na América Latina. Nos anos 1980s, a guerra nada secreta de Reagan contra a Nicarágua reescreveu os termos da lei e da diplomacia. Como disse Eric Posner, a decisão de Washington, de retirar-se da jurisdição da Corte Internacional de Justiça em 1986 – como resposta a uma sentença, pela qual os EUA teriam de pagar bilhões de dólares à Nicarágua por ter plantado minas em águas territoriais do país e conduzido guerra ilegal de agressão – foi ‘momento de virada’ nas relações dos EUA com a comunidade internacional. Adiante, a saída dos EUA da jurisdição da Corte Internacional de Justiça seria citada pelo embaixador de George W. Bush à ONU, John Bolton (autodesignado novo Libertador da América Latina, atualmente encarregado do golpe contra a Venezuela), como razão pela qual os EUA não teriam qualquer dever legal de cumprir outros obrigações multilaterais.
27. A invasão do Panamá em 1989 teve efeito de transformação sobre toda a lei internacional. Thomas Pickering, embaixador de George H.W. Bush à ONU, disse depois que aquela invasão pavimentou a trilha para a invasão do Iraque em 2003. Ocorrida apenas um mês depois de derrubado o muro de Berlin, foi justificada por uma lista hierarquizada de razões. Bem alta na lista, estava a meta de fazer do Panamá uma democracia. Contra a opinião unânime de todo o hemisfério, Luigi Einaudi, embaixador dos EUA à OEA, explicitamente exigiu, para os EUA, o direito de intervir em assuntos internos de outro país, ‘porque’ os EUA não viam na soberania do Panamá qualquer valor que a tornasse digna de ser reconhecida. ‘Hoje, vivemos (...) tempos históricos’ – disse Einaudi –, tempos em que um grande princípio espalha-se pelo mundo como fogo. Esse princípio, como todos sabemos, é a ideia revolucionária de que os povos, não os governos, são soberanos.’
28. De início, na América Latina, o elo entre uma noção de ‘bem comum’ da cidadania, e uma visão de ‘bem comum’ da soberania territorial absoluta foi formal: os indivíduos, como as nações, não existem isolados, mas em harmonia, ligados como iguais por necessidades e limitações mútuas. Com o tempo, evoluiu um relacionamento mais dependente. No século 20, esforços para institucionalizar direitos sociais levaram alguns estados a intervir na economia, movimento que frequentemente levou interesses domésticos e estrangeiros a retaliar. Entre 1898 e 1994, Washington derrubou pelo menos 41 governos na América Latina. Por sua vez, nacionalistas, social-democratas, populistas e socialistas evoluíram para compreender direitos sociais e soberania como mutuamente constitutivos. Seria preciso um Executivo reforçado, com controle sobre ambos, sobre o espaço físico e sobre o espaço social da nação, para alcançar, em palavras de Simón Bolívar, ‘a máxima soma possível de felicidade, a máxima soma possível de segurança social’.
29. Nas décadas que se seguiram à invasão do Panamá, esse elo foi quebrado. O ideal de soberania absoluta – o elo subjacente da ordem liberal mundial do New Deal – está em vasta medida desacreditado. A globalização pós-Guerra Fria diluiu as doutrinas da imunidade nacional soberana e da não intervenção. Para usar a metáfora de Kennan, valera a pena pagar aqueles ‘impostos-resgate’. Toda a comunidade internacional regrediu – no Iraque e por todos os cantos – a uma ética de intervencionismo, em nome de objetivo ‘superior’.
30. Há uma espécie de consistência ética e lógica no intervencionismo: uma espécie de bom-senso moral que diz que, assim como as fronteiras não devem ser obstáculo aos mercados ou ao capital, tampouco podem proteger governos repressores ou ilegítimos. O mundo ‘tem de’ fazer alguma coisa contra os bárbaros e o barbarismo. Essa consistência retórica desse bom-sensismo só faz amplificar a hipocrisia e a duplicidade dos padrões – para nem falar das desastrosas consequências, tão frequentes – da sua aplicação ao mundo social e político. A globalização econômica prometera um mundo próspero e sem fronteiras, apesar de os promotores daquela globalização terem assinado uma avalanche de tratados que ‘libertavam’ o capital, mas que, na prática, criminalizaram a mobilidade do trabalho. O ‘intervencionismo humanitário’ se autojustificaria por um ideal universal moralmente superior ao conceito de soberania nacional. Mas, no mundo real, seleciona seus alvos – Iraque, Líbia, Iêmen e, agora, a Venezuela – por critérios que nada têm a ver com qualquer universalismo.
31. The Wall Street Journal noticia que o movimento de Washington contra a Venezuela seria parte de uma estratégia maior para transformar o hemisfério. Como o governo de William Howard Taft anunciou em 1911, ao mandar 20 mil soldados dos EUA para a fronteira, para intimidar os insurgentes mexicanos e forçá-los a garantir proteção à propriedade estrangeira: "A revolução na república do sul tem de acabar." Washington, disse Woodrow Wilson dois anos depois, ensinaria "as repúblicas sul-americanas a eleger homens bons".
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