3 de janeiro de 2008

O Brasil vai continuar bombando?

A retomada do crescimento está só começando e não pode ser sufocada por excesso de zelo da política monetária

Paulo Nogueira Batista Jr.

Folha de S.Paulo

O ANO de 2007 terminou com a economia brasileira crescendo de forma expressiva. Tudo indica que o Brasil finalmente tomou impulso e começou a deslanchar. Estamos deixando para trás 25 anos de quase estagnação e crescimento econômico medíocre.

Os dados mais recentes não deixam dúvida. De janeiro a setembro de 2007, o nível de produção aumentou 5,3% em relação ao mesmo período de 2006. Comparando o terceiro trimestre de 2007 com o terceiro trimestre de 2006, o crescimento do PIB alcançou 5,7%. A formação bruta de capital fixo cresceu 12,4% no acumulado do ano até setembro, indicando aumento significativo da capacidade de produção. Para o quarto trimestre, informações parciais sobre produção, vendas, importações e emprego confirmam que a economia continua em franca expansão.

Vamos conseguir sustentar esse desempenho em 2008? Provavelmente, sim. O crescimento tem uma dinâmica cumulativa. A partir de certo ponto, a expansão da demanda, da produção, da renda e do emprego se auto-sustentam e auto-reforçam. De uma forma geral, os indicadores da economia estão bastante sólidos e não dão motivos para grandes preocupações no curto prazo. Há riscos, evidentemente. Destacaria dois: a crise da economia dos EUA e a inflação no Brasil.
As notícias do exterior não são das melhores. A cada dia, parece aumentar o número dos que prevêem recessão ou desaceleração pronunciada nos Estados Unidos em 2008. O Brasil não escaparia ileso de um agravamento dramático da situação econômico-financeira nos Estados Unidos e na Europa. Mas, excluído esse cenário extremo, o Brasil deve continuar resistindo bem. A nossa capacidade de suportar choques externos aumentou muito nos anos recentes.
É verdade que tivemos, em 2007, uma deterioração no balanço de pagamentos em conta corrente, como comentei no artigo da semana passada. Não obstante, o déficit corrente previsto para 2008 ainda é pequeno. Além disso, os investimentos diretos, um tipo mais estável de capital externo, estão entrando em grande volume no país (US$ 36,2 bilhões nos doze meses até novembro). As reservas internacionais do Brasil nunca foram tão altas (US$ 179,8 bilhões no dia 28 de dezembro).
Segundo alguns economistas, a inflação pode ser uma ameaça maior em 2008. Documentos recentes do Banco Central revelam preocupação com vários sinais recentes de pressão inflacionária. De fato, a inflação aumentou gradualmente em 2007. As expectativas para 2008 foram revistas para cima e estão próximas do centro da meta de inflação (4,5%).
Não há motivo para pânico, porém. A inflação continua razoavelmente controlada e deve ficar dentro da meta em 2008. O Banco Central tem de estar sempre vigilante, é claro, mas não deve repetir o erro cometido em 2004, quando abortou por meio de aumento dos juros uma recuperação incipiente da economia.

O medo exagerado da inflação pode ser tão perigoso quanto a própria inflação. Quase poderíamos dizer, como Franklin Roosevelt em 1933, "the only thing we have to fear is fear itself" (a única coisa que temos a temer é o próprio medo). Assim falou Roosevelt, no seu primeiro discurso como presidente, conclamando os americanos a abandonar o pessimismo e o pânico que impediam a superação da Grande Depressão.
A retomada do desenvolvimento brasileiro está apenas começando. O governo não deve permitir que ela seja sufocada por excesso de zelo da política monetária.

Sobre o autor

Paulo Nogueira Batista Jr., 52, escreve às quintas-feiras nesta coluna. Diretor-executivo no FMI, representa um grupo de nove países (Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Haiti, Panamá, República Dominicana, Suriname e Trinidad e Tobago).

1 de janeiro de 2008

Vivendo a tese onze

Richard Levins



"Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo"

- Karl Marx

Tradução / Quando menino, sempre imaginei que, quando crescesse, seria tanto um cientista quanto um “vermelho” [comunista]. Ao invés de me deparar com o problema de como conciliar a militância com a academia, minha dificuldade foi para separá-las.

Antes mesmo de me alfabetizar, meu avô lia para mim “Ciência e História para Meninas e Meninos”, de Bad Bishop Brown’s. Meu avô acreditava que todo trabalhador socialista deveria estar familiarizado, no mínimo, com cosmologia, evolução e história. Nunca separei história, na qual éramos participantes ativos, de ciência – da descoberta de como as coisas são. Minha família já tinha rompido com a religião organizada havia cinco gerações, mas meu pai me fazia estudar a Bíblia todas as sextas: porque era parte importante da cultura que nos rodeava (e importante para muitos), uma narrativa fascinante de como as ideias evoluem em condições mutáveis, e porque todo ateu deveria conhecê-la tão bem quanto os fiéis.

Em meu primeiro dia de escola, minha avó me estimulou a aprender tudo que pudessem me ensinar – mas não acreditar em tudo. Ela era muito consciente da “ciência racial” da Alemanha dos anos 1930 e das justificativas eugenistas e da supremacia masculina, que eram populares em nosso próprio país. Sua atitude vinha de seu conhecimento dos usos da ciência a serviço do poder e do privilégio, e da desconfiança genérica dos trabalhadores em relação à classe dominante. Seu conselho foi formativo para a minha postura na vida acadêmica: conscientemente na, mas não da, universidade

Cresci em um bairro de esquerda do Brooklyn, onde as escolas fechavam no Primeiro de Maio, e só fui conhecer pela primeira vez um eleitor do partido Republicano aos doze anos. Problemas de ciência, política e cultura eram debatidos em grupos no calçadão de Brighton Beach, e temperavam nossas conversas na hora da refeição. O compromisso político era uma certeza: como atuar perante esse compromisso era tema de acalorados debates.

Quando adolescente, quando comecei a me interessar por genética pela minha fascinação com o trabalho do cientista soviético Lysenko. No fim das contas, ele estava totalmente equivocado, especialmente por tentar chegar a conclusões biológicas a partir de princípios filosóficos. Entretanto, sua crítica à genética de seu tempo me conduziu à obra de Waddington, Schmalhausen e outros que ao invés de descartá-lo imediatamente, à moda Guerra Fria, responderam ao seu desafio desenvolvendo uma visão mais profunda da interação organismo-ambiente.

Minha esposa, Rosario Morales, me apresentou a Porto Rico em 1951 e os onze anos que passei ali deram uma perspectiva latino-americanista à minha compreensão de política. As vitórias da esquerda na América do Sul foram uma fonte de otimismo mesmo em tempos sombrios. A vigilância do FBI em Porto Rico me bloqueou dos empregos que procurei, então para ganhar a vida acabei como trabalhador rural em uma fazenda nas montanhas no lado ocidental da ilha.

Quando era estudante da Cornell University School of Agriculture, me ensinaram que o principal problema da agricultura nos Estados Unidos era o descarte dos excedentes das fazendas. Mas como um camponês em uma região pobre de Porto Rico, compreendi o significado da agricultura para a vida das pessoas. Essa experiência me apresentou às realidades da pobreza, e como ela debilita a saúde, reduz a expectativa de vida, limita oportunidades e brutaliza o desenvolvimento pessoal. Também conheci as formas específicas que o sexismo assume nas áreas rurais pobres. Combinei o trabalho de organização sindical nas plantações de café com o estudo. Rosario e eu escrevemos o programa agrário do Partido Comunista de Porto Rico, no qual aliamos análises econômicas e sociais amadorísticas com as primeiras intuições sobre os métodos de produção agroecológica, de diversificação, de conservação ambiental e de organização em cooperativas.

Fui a Cuba pela primeira vez em 1964, para ajudar no desenvolvimento das pesquisas de genética de populações na ilha e ver de perto a Revolução Cubana. Ao longo dos anos, me envolvi na contínua luta cubana pela agricultura ecológica e por uma via ecológica de desenvolvimento econômico que fosse justo, igualitário e sustentável. O pensamento progressista, tão forte na tradição socialista, assumia que os países subdesenvolvidos deveriam alcançar o nível de desenvolvimento dos países em uma única trajetória linear de modernização. Esse pensamento desprezava os críticos da trajetória high-tech do agronegócio industrial taxando-os de “idealistas”, sentimentalistas urbanos nostálgicos de uma idade de ouro rural bucólica que nunca existiu. Mas havia também uma visão alternativa: a de que cada sociedade cria suas próprias formas de se relacionar com a natureza, com seu padrão particular de uso da terra, com sua tecnologia adequada e seus próprios critérios de eficiência. Essa discussão se intensificou em Cuba nos anos 1970, de modo que ao chegar nos anos 1980 o modelo ecológico já havia basicamente ganhado o debate, ainda que sua implementação fosse demorar mais um tempo. O Período Especial, o momento de crise econômica após o colapso da União Soviética, quando materiais de alta tecnologia se tornaram indisponíveis, permitiu com que os ambientalistas por convicção recrutassem os ambientalistas por necessidade. Isso só foi possível porque os ambientalistas por convicção haviam preparado o caminho.

Meu primeiro contato com o materialismo histórico se deu na adolescência, por meio dos trabalhos dos cientistas marxistas britânicos J. B. S. Haldane, J. D. Bernal, Joseph Needham e outros, que depois me levaram a Marx e Engels. Fui imediatamente fascinado pelo materialismo histórico, tanto intelectual quanto esteticamente. Uma visão dialética da natureza e da sociedade tem sido um tema importante da minha pesquisa desde então. Encantei-me com a ênfase dialética na totalidade, na conexão e no contexto, na mudança, na historicidade, na contradição, na irregularidade, na assimetria, e na multiplicidade de níveis dos fenômenos – um revigorante contraponto ao reducionismo dominante tanto à época quanto agora.

Um exemplo: quando Rosario me sugeriu que eu observasse a mosca drosófila na natureza – e não somente em frascos de laboratório -, comecei a trabalhar com a drosófila no bairro onde morávamos em Porto Rico. Minha pergunta era a seguinte: como as espécies de drosófila suportam os gradientes temporais e espaciais em seu meio? Comecei a examinar as muitas maneiras em que diferentes espécies de Drosophila reagiam a desafios ambientais semelhantes. Em um único dia, podia reunir Drosophila nos desertos de Guánica e na floresta tropical de nossa fazenda no topo da serra. Algumas espécies se adaptam fisiologicamente a altas temperaturas em dois ou três dias, com relativamente poucas diferenças genéticas na tolerância ao calor ao longo de um gradiente de 3.000 pés. Outras tinham subpopulações genéticas únicas para cada diferente hábitat. Outras se adaptam a só uma parte dos ambientes, onde permanecem. Uma das espécies do deserto tinha tanta tolerância ao calor que qualquer drosófila da floresta tropical, mas era muito melhor em buscar microhabitats frescos e úmidos e esconder-se neles depois das 8 da manhã. Essas descobertas levaram-me a descrever os conceitos da seleção por cogradiente, na qual o impacto direto do ambiente aumenta as diferenças genéticas entre as populações, e da seleção por contragradiente, em que as diferenças genéticas compensam o impacto direto do ambiente. Uma vez que em meu recorte a alta temperatura estava ligada a condições secas, a seleção natural atuava aumentando o tamanho das moscas em Guánica, enquanto o efeito da temperatura em seu desenvolvimento as deixava menores. A conclusão é que as moscas do deserto do nível do mar e as da floresta tropical tinham mais ou menos o mesmo tamanho em seus próprios habitats, mas as moscas de Guánica eram maiores quando cresciam à mesma temperatura que as do bosque tropical.

Neste trabalho, questionei o viés reducionista dominante na biologia ressaltando que os fenômenos ocorrem em diferentes níveis, cada um com suas próprias leis, mas conectados. Meu enfoque foi dialético: a interação nas adaptações nos níveis fisiológico, comportamental e genético. Minha preferência por processo, variabilidade e mudança orientou minha tese.

O problema era como as espécies podem se adaptar ao ambiente quando o ambiente não é sempre o mesmo. Quando comecei a trabalhar na tese, fiquei intrigado com a fácil suposição de que, frente a demandas conflitantes, por exemplo quando o ambiente favorece um tamanho pequeno em parte do tempo e um tamanho grande o resto do tempo, um organismo teria que adotar um estado intermediário como uma forma de compromisso. No entanto, esta é uma aplicação acrítica do lugar-comum liberal de que quando há visões opostas a verdade deve ficar em algum lugar no meio do caminho. Na minha pesquisa, o estudo dos padrões de adaptação foi uma tentativa de analisar quando uma posição intermediária é realmente a ideal e quando é a pior escolha possível. Em resumo, o que observei foi que quando as alternativas não são muito diferentes, uma posição intermediária é seguramente a ideal, mas quando elas são muito diferentes em comparação com a amplitude de tolerância da espécie, então é preferível um extremo ou, em alguns casos, uma mistura de extremos.

Trabalhos sobre seleção natural em genética de populações costumam quase sempre supor um ambiente constante, mas o que me interessava era sua mutabilidade. Propus que a “variação ambiental” deve ser uma resposta a muitas questões de ecologia evolutiva e que os organismos se adaptam não só a características ambientais específicas, tais como alta temperatura ou alcalinidade do solo, mas também ao padrão do ambiente: sua variabilidade, sua incerteza, suas discrepâncias, as correlações entre diferentes aspectos do ambiente. Além disso, esses padrões do meio não são simplesmente dados, exteriores ao organismo: os organismos selecionam, transformam e definem seus próprios ambientes.

Independentemente do objeto de uma investigação (ecologia evolutiva, agricultura ou, mais recentemente, saúde pública), meu principal interesse sempre foi o de compreender a dinâmica de sistemas complexos. Além disso, meu compromisso político exige que eu questione a relevância do meu trabalho. Em um poema Brecht diz: “Realmente vivemos em uma época terrível… quando falar de árvores é quase um crime, porque é uma maneira de se calar sobre a injustiça”. Brecht, evidentemente, estava errado em relação às árvores: hoje em dia quando falamos de árvores não estamos ignorando a injustiça. Mas em uma coisa ele estava mesmo certo: a pesquisa acadêmica que é indiferente ao sofrimento humano é imoral.

Pobreza e opressão roubam anos de vida e saúde, encurtam os horizontes e podam talentos potenciais antes que eles possam florescer. Meu compromisso com as lutas dos pobres e oprimidos e meu interesse pela variabilidade se combinaram para focar minha atenção às vulnerabilidades sociais e fisiológicas das pessoas.

Tenho estudado a capacidade do corpo de se recuperar depois de sofrer de desnutrição, contaminação, insegurança ou acesso inadequado a serviços de saúde. O estresse continuado debilita os mecanismos estabilizadores dos corpos das populações oprimidas tornando-as mais vulneráveis a qualquer coisa, mesmo a pequenas diferenças em seus ambientes. Isto se mostra na maior variabilidade em pressão arterial, índice de massa corporal e expectativa de vida, quando se compara com resultados mais uniformes em populações privilegiadas.

Ao examinar os efeitos da pobreza, não basta analisar a predominância de doenças específicas em diferentes populações. Ao passo que certos patógenos ou contaminantes podem desencadear doenças específicas, as condições sociais criam uma vulnerabilidade mais difusa, que conectam doenças sem relação clínica. Por exemplo: desnutrição, infecção ou poluição podem romper as barreiras de proteção do intestino. Uma vez rompidas, por qualquer dessas razões, o intestino se torna um locus de invasão de contaminantes, micróbios ou alergênicos. Portanto, os problemas de nutrição, as doenças infecciosas, o estresse e substâncias tóxicas causam uma grande variedade de doenças aparentemente sem relação.

A noção dominante desde os anos 60 era que as doenças infecciosas desapareceriam com o desenvolvimento econômico. Na década de 90, contribuí para a criação em Harvard do Grupo para Doenças Novas e Reincidentes, que rejeitava essa ideia. Nosso argumento era em grande medida ecológico: a rápida adaptação de vetores a habitats variáveis, em transformação – de desmatamento, projetos de irrigação e deslocamento de populações, a guerras e fome. Também nos concentramos na igualmente rápida adaptação dos patógenos a pesticidas e antibióticos. Mas também criticamos o isolamento físico, institucional e intelectual da pesquisa médica em relação à patologia da flora e aos estudos veterinários, que poderiam ter mostrado mais rápido o padrão amplo de recrudescimento não só da malária, cólera e AIDS, mas também da febre suína africana, da leucemia felina, do vírus da “tristeza dos citros” e do vírus do mosaico do fumo. Devemos esperar por mudanças epidemiológicas com o crescimento das disparidades econômicas e com as mudanças no uso da terra, no desenvolvimento econômico, no assentamento humano e na demografia. A fé na eficácia dos antibióticos, vacinas e pesticidas contra os patógenos das plantas, dos animais e humanos é ingênua à luz da evolução adaptativa. As expectativas desenvolvimentistas de que o crescimento econômico levaria o resto do mundo à abundância e à eliminação das doenças infecciosas estão sendo desmentidas pelos fatos.

O ressurgimento das doenças infecciosas é apenas uma das muitas manifestações de uma crise mais geral: a síndrome de aflição ecossocial, uma crise (abrangente e multi nível) das relações disfuncionais no interior da nossa espécie e entre nossa espécie e o resto natureza. Essa crise integra em uma rede de ações e reações padrões de doenças, relações de produção e reprodução, demografia, o esgotamento e destruição temerária dos recursos naturais, a mudança no uso da terra e no assentamento humano, e a mudança climática global. É uma crise mais profunda do que as anteriores, chegando mais alto na atmosfera e mais profundamente na terra, mais disseminada no espaço e mais duradoura tempo, e penetrando em mais dimensões de nossas vidas. É a um só tempo uma crise geral da espécie humana e uma crise específica do capitalismo mundial. Por isso mesmo, é a preocupação número um tanto de minha investigação científica como de minha ação política.

A complexidade dessa síndrome mundial pode ser paralisante. Ainda assim, esquivar-se da complexidade fragmentando o sistema para tratar os problemas individualmente pode ser desastroso. Os grandes fracassos da tecnologia científica decorrem de uma visão reducionista dos problemas. Os cientistas agrícolas que propuseram a Revolução Verde sem levar em conta a evolução das pragas e a ecologia dos insetos, esperando, portanto, que os pesticidas fossem controlar as pragas, se surpreenderam que a pulverização de agrotóxicos levou ao aumento do problema das pragas. De forma semelhante, os antibióticos criam novos patógenos, o desenvolvimento econômico produz fome, e o controle de inundações gera inundações. Todos os problemas precisam ser resolvidos em sua rica complexidade. O estudo da complexidade torna-se também um problema prático urgente (não apenas teórico).

Esses são os interesses que informam meu trabalho político: dentro da esquerda, a minha tarefa tem sido argumentar que nossas relações com o resto da natureza não podem ser separadas da luta global pela libertação humana; e no movimento ambiental a minha tarefa tem sido questionar e desafiar o idealismo da “harmonia natural” da primeira fase do ambientalismo e insistir na necessidade de identificar as relações sociais que conduzem à disfuncionalidade atual. Ao mesmo tempo, minha política determinou minha ética científica. Acredito que estão erradas todas as teorias que promovam, justifiquem ou tolerem a injustiça.

Uma crítica, pela esquerda, da estrutura da vida intelectual é um contrapeso à cultura das universidades e fundações. O movimento antiguerra dos anos 1960 e 1970 levantou questões como a natureza da universidade como um órgão de dominação de classe e fez da própria comunidade intelectual um objeto de interesse tanto teórico quanto prático. Eu mesmo me uni à Science for the People (Ciência para o Povo), uma organização que começou em 1967 com uma greve de pesquisadores no MIT (Massachusetts Institute of Technology), como protesto contra a pesquisa militar no campus. Como membro, ajudei no questionamento à Revolução Verde e ao determinismo genético. A militância antiguerra também me levou ao Vietnã para investigar os crimes de guerra (especialmente o uso de desfolhantes) e a partir disso a organizar o Science for Vietnam (Ciência para o Vietnã). Denunciamos o uso do Agente Laranja (desfolhante usado na selva do Vietnã) que estava causando defeitos congênitos em camponeses vietnamitas. O agente de laranja era uma das mais cruéis formas de utilização de herbicidas químicos.

O movimento de independência de Porto Rico criou em mim uma consciência antiimperialista que me serviu bem em uma universidade que promove a “reforma estrutural” e outros eufemismos para imperialismo. O contundente feminismo classista de minha esposa é uma fonte constante de crítica ao elitismo e sexismo disseminados. O trabalho frequente com Cuba me mostra em cores vivas que há uma alternativa a uma sociedade competitiva, individualista e exploradora.

As organizações comunitárias, especialmente em comunidades marginalizadas, e o movimento de saúde das mulheres levantam questões que o mundo acadêmico prefere ignorar: as mães de Woburn percebendo que muitos de seus filhos do mesmo bairro tinham leucemia, as centenas de grupos de justiça ambiental que perceberam que o despejo de produtos tóxicos se concentravam em bairros negros e latinos, o Women’s Community Cancer Project e outros que insistem sobre as causas ambientais do câncer e outras doenças, enquanto os laboratórios universitários ficam à procura de “genes culpados”. Essas iniciativas me ajudaram a manter uma agenda alternativa para a teoria e a ação.

Dentro da universidade, tenho uma relação contraditória com a instituição e com os colegas, uma combinação de cooperação e conflito. Podemos compartilhar uma preocupação com as desigualdades na saúde e a pobreza persistente, mas divergimos quanto ao financiamento privado da pesquisa sobre patentes de moléculas e a respeito agências governamentais, como a AID (Agência para o Desenvolvimento Internacional), que promovem os objetivos do império.

Nunca aspirei ao que se convencionou chamar de uma “carreira de sucesso” na academia. Não busco reconhecimento pessoal no sistema formal de premiação da comunidade científica e tento não compartilhar das expectativas comuns de minha comunidade profissional. Isso me dá uma ampla liberdade de escolha. Assim, quando recusei o convite para ser membro da National Academy of Science (Academia Nacional de Ciência) e recebi muitas cartas de apoio elogiando minha coragem, ou considerando-a uma decisão difícil, pude dizer francamente que não foi uma decisão difícil, mas apenas uma escolha política tomada coletivamente pelo grupo Ciência para o Povo de Chicago. Avaliamos que era mais útil posicionar-se publicamente contra a colaboração da Academia na Guerra do Vietnam do que unir-se à Academia e tentar influenciar suas ações a partir de dentro. Richard Lewontin já havia tentado, sem sucesso, esse caminho, e renunciado a sua filiação juntamente com Bruce Wallace.

A maior parte da minha pesquisa coloca os seus objetivos em dois níveis: o problema particular do momento e alguma questão teórica ou controversa fundamental. O estudo da adaptação à temperatura de moscas das frutas também foi um argumento para múltiplos níveis de causalidade. A Teoria do Nicho também foi uma incursão na interpenetração dos opostos (organismo e ambiente). A biogeografia tratava dos múltiplos níveis da dinâmica ecológica e evolutiva. O manejo ecológico das pragas também foi uma demanda por estratégias que levassem em consideração o todo sistêmico. O trabalho sobre doenças infecciosas novas e reincidentes aliava biologia e sociologia. Examinamos por que a comunidade de saúde pública ficou surpresa quando as doenças infecciosas não desapareceram. Foi, portanto, um exercício de autocrítica da ciência.

Sempre apreciei a matemática e vejo como uma de suas principais funções tornar óbvio aquilo que parecia obscuro. Emprego com regularidade uma espécie de matemática de nível médio em formas não convencionais para alcançar compreensão, mais do que uma previsão. Boa parte do trabalho de modelagem atual visa equações precisas que resultem em previsões precisas. Isto faz sentido na engenharia. No campo das políticas públicas, isso faz sentido para os assessores dos poderosos que imaginam ter o controle suficiente do mundo para otimizar ao máximo seus esforços e investimentos de recursos. Mas nós que estamos na oposição não temos tais ilusões. O melhor que podemos fazer é decidir onde pressionar o sistema. Para isso, uma matemática qualitativa é mais útil. Meu trabalho com dígrafos marcados (“análise de circuitos”) é uma dessas abordagens. Ao rejeitar a oposição entre análise qualitativa e quantitativa, e a noção de que o quantitativo é superior ao qualitativo, trabalhei principalmente com as ferramentas matemáticas que auxiliam a conceitualização de fenômenos complexos.

A militância política, é claro, atrai a atenção das agências de repressão. A esse respeito, eu tive sorte, já que experimentei apenas uma repressão relativamente leve. Outros não tiveram tanta sorte: carreiras perdidas, anos de prisão, ataques violentos, assédio contínuo até contra suas famílias, deportações. Alguns, em sua maioria dos movimentos de libertação porto-riquenhos, afro-americanos e nativo-americanos, assim como os cinco antiterroristas cubanos presos na Flórida, ainda são presos políticos.

A exploração mata e fere as pessoas. O racismo e o sexismo destroem a saúde e frustram vidas. Estudar a ganância, brutalidade e presunção do capitalismo tardio é doloroso e enfurecedor. Às vezes tenho que recitar “Ballad of Evil Genius” de Jonathan Swift:

Como o barqueiro do Tâmisa,
Passo remando a insultar.
Como o sábio de eterno riso
Gasto minha raiva em escárnio...
Ouçam-me bem:
Eu os enforcaria, se pudesse.

A pesquisa acadêmica e a militância me deram, em sua maior parte, uma vida agradável e gratificante, trabalhando no que entendo ser intelectualmente estimulante, socialmente útil e com as pessoas que eu amo.

Sobre o autor

Richard Levins is the head of the human ecology program at the Harvard School of Public Health and most recently coauthor, with Richard Lewontin, of Biology Under the Influence: Dialectical Essays on Ecology, Agriculture, and Health (Monthly Review Press, 2007) from which this essay is excerpted. The author is grateful to Rosario Morales for her assistance in conceptualizing and editing this essay.

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