28 de abril de 2019

A preocupante ascensão da extrema direita na Espanha

Nas eleições gerais de hoje, o partido de extrema direita da Espanha, o Vox, deve entrar no Congresso pela primeira vez. E já está construindo alianças com o centro-direita dominante.

Antonio Maestre

Jacobin

Leader of far-right party Vox, Santiago Abascal, takes part in the Vox closing rally on April 26, 2019 in Madrid, Spain. Pablo Blazquez Dominguez / Getty

Tradução / A discussão sobre o crescente populismo nacional na Europa nos últimos anos muitas vezes trata a Espanha como uma exceção. Pergunta-se como é que se tornou o único país importante na Europa continental onde nenhuma força de extrema-direita conseguiu ter presença no parlamento. Em outras democracias liberais, apesar do profundo antifascismo herdado de 1945, as chamadas forças “pós-fascistas” conseguiram resultados eleitorais favoráveis disfarçando a ideologia que outrora feriu o velho continente.

Mas a Espanha parecia diferente. Até 2018, não tinha o equivalente a organizações de extrema direita como o Front National na França, a Alternative für Deutschland na Alemanha, a Partij voor de Vrijheid na Holanda, a Lega na Itália ou o UKIP no Reino Unido. No entanto, isto mascarou algo que acontecia sob a superfície, que finalmente aflorou com a eleição na Andaluzia em dezembro de 2018. Na votação na maior região da Espanha o partido Vox, de extrema-direita, obteve representação institucional pela primeira vez, ajudando a levar ao poder uma coalizão do centro-direita.

Com a eleição geral a ser realizada neste domingo (28), o Vox poderá ir mais longe e eleger representantes para o parlamento espanhol. Mais do que isso, depois de 28 de abril, espera poder influir na formação do próprio governo. Seu apoio poderá ser decisivo na formação de uma coalizão de direita em nível nacional, unindo o conservador Partido Popular (PP) à direita liberal, corporificada pelo Ciudadanos. Quatro décadas desde o fim da ditadura de Francisco Franco, o avanço do Vox significa dias sombrios para a democracia espanhola.

A pergunta que se poderia fazer é: houve alguma exceção espanhola? Bem, sim, mas não da maneira que a Europa gostaria de pensar. Não havia, de fato, nenhuma presença de extrema-direita explicitamente organizada no parlamento espanhol, além do PP. Isso se deveu tanto a elementos distintos da história da Espanha quanto às condições recentes que adiaram a chegada de uma alternativa nacional-populista ao tradicional partido conservador.

A diferença histórica deve-se à tolerância do que os espanhóis chamam de “ultraright” durante a virada para a democracia que se seguiu à morte de Francisco Franco em 1975.

A Espanha viveu uma transição ordenada da ditadura de Franco para a democracia, na qual os elementos fascistas e nacional-católicos daquele regime foram reintegrados como parte da nova direita conservadora. Permaneceram como parte do funcionamento regular da administração do Estado, do judiciário, da polícia e do exército.

Onde constituições democráticas como a da Itália – nascidas da resistência ao nazismo e ao regime de Mussolini – brilhavam com espírito antifascista, isso não existiu no caso espanhol. Em vez disso, as forças filo-fascistas permaneceram como parte normal da política, representada sobretudo pela Alianza Popular. Este partido, o antepassado do conservador Partido Popular atual, foi fundado por sete ministros franquistas. Durante quarenta anos a extrema direita pôde sentir-se confortável em suas fileiras conservadoras, sem ter que se diferenciar.

O segundo fator-chave que retardou o surgimento de uma força nacional-populista na Espanha foi o desenvolvimento do outro lado do espectro político. As mobilizações anti-austeridade de 2011 em diante, que envolveram 15 milhões de pessoas, abriram o caminho para a criação de uma força populista de esquerda – o Podemos – que direcionou as queixas populares no rumo de saídas mais progressistas.

O rompimento do antigo sistema bipartidário (representado pelo conservador Partido Popular, PP e pelo PSOE de centro-esquerda) também impediu o surgimento de uma força mais reacionária para dirigir o mal-estar dos afetados pela globalização. Este “amortecedor” foi entretanto quebrado, graças à normalização do Podemos como um partido institucional e, mais importante, a polarização nacionalista que se desenvolveu desde o controverso referendo de independência da Catalunha, em outubro de 2017. Só se pode entender a ascensão do populismo nacional do Vox à luz da declaração catalã de independência e da reação ultranacionalista em outros lugares da Espanha.

O Vox foi criado em 2013, depois que seu atual líder, Santiago Abascal, se desiludiu com o Partido Popular. Ele havia sido deixado sem nenhum cargo naquele partido após a dissolução de uma fundação que havia sido criada por Esperanza Aguirre – presidente do PP da região de Madri – precisamente para lhe dar um emprego. No mesmo mês em que esta fundação foi fechada, o Vox foi registrado como partido. Surgiu assim em resposta à necessidade de um ex-conservador de encontrar um novo lar e, até as eleições regionais de dezembro de 2018 na Andaluzia, não conseguiu obter representação parlamentar.

O Vox compartilha os mesmos preceitos fundamentais das outras formações comparáveis ​​nos países europeus. É uma força nativista e ultranacionalista, profundamente contrária à imigração, com uma mensagem fortemente islamofóbica. Em termos econômicos, está muito mais próximo das doutrinas ultra-neoliberais de Jair Bolsonaro e dos neo-liberais dos EUA do que das medidas protecionistas prometidas pelo National Rassemblement de Marine Le Pen (ex-Front National).

O Vox apoia medidas fiscais que favorecem os mais ricos e punem os serviços públicos. O Vox não busca o voto de pessoas desencantadas com a esquerda em áreas deprimidas, na linha do que Le Pen conseguiu. Em vez disso, seu único aceno para cortar a divisão ideológica está no apelo identitário. O nacionalismo espanhol está especialmente enraizado na velha classe trabalhadora, especialmente nas regiões do interior e no sul, e entre aqueles que se sentem atacados pelos nacionalismos nas regiões periféricas – o País Basco e a Catalunha.

O arianismo é o valor fundamental do Vox. Seu sucesso deve-se sobretudo a uma mensagem ultranacionalista espanhola, aplicada em reação aos nacionalistas catalães que proclamaram a independência em outubro de 2017. Seu antagonismo contra os catalães baseia-se em um patriotismo romântico; apela à repressão sistemática dos partidos pró-independência e de todos os políticos que participaram na declaração de independência. Este populismo punitivo anda de mãos dadas com o envolvimento no processo contra líderes pró-independência, que atualmente está sendo julgado pela Suprema Corte da Espanha.

Vox não pode, então, ser entendido como um simples transplante de traços de outros populismos nacionais europeus para o contexto espanhol. Pelo contrário, seu surgimento resulta das realidades sociais e nacionais específicas da Espanha. Sem dúvida, a sua ascensão foi encorajada por uma situação internacional em que os movimentos anti-imigrantes avançam – ajudando a legitimar o próprio Vox. No entanto, não poderia ter se enraizado sem o disputado processo de independência na Catalunha e o que a reação contra ele representa.

O avanço do Vox promete algo que o pós-fascismo europeu anteriormente não tinha – o elo espanhol faltante no esforço para implodir a União Europeia a partir de dentro. De fato, seu sucesso na eleição regional da Andaluzia em dezembro passado colocou-o no radar de Steve Bannon e seu think tank anti-liberal de direita, “The Movement”, que busca criar uma espécie de internacional de extrema direita.

Os contatos internacionais mais importantes do Vox operam por meio de Rafael Bardají, membro de seu conselho nacional e, na década de 2000, um proeminente assessor de assuntos estrangeiros do primeiro-ministro conservador (PP), José María Aznar. Um falcão neoliberal, Bardají mantém relações estreitas com o governo de Donald Trump, herdado de seus contatos na era Aznar e com figuras do Partido Republicano próximas a George W. Bush. Ele também faz parte de várias organizações sionistas diretamente ligadas a líderes israelenses do passado, como Ehud Barak.

Paradoxalmente, porém, o sucesso do partido de extrema-direita espanhol logo esfriaria seus contatos com o próprio “Movimento” de Bannon. Logo que se tornou capaz de esperar um avanço nas eleições europeias de maio, não precisava mais da estratégia ou dos contatos de Bannon para fazer obter avanços institucionais.

A distância entre Vox e Bannon também deve-se às suas origens conservadoras e à fraca posição anti-europeia. De fato, em várias entrevistas e declarações, o líder do Vox, Santiago Abascal, insistiu que seus contatos com Bannon estavam limitados ao argumento de que a oposição espanhola ao separatismo catalão também deveria ser traduzida em termos europeus. Vox não participou da recente cúpula organizada pelo ministro de Interior de extrema-direita da Itália, Matteo Salvini, que saudou outras formações nacional-populistas como a Alternative für Deutschland, o Partido do Povo Dinamarquês e o partido dos finlandeses.

Os obstáculos fundamentais para que o Vox seja atraído para uma internacional nacional-populista são os mesmos que impedem qualquer ação coordenada entre tais formações. De fato, os ultranacionalistas têm dificuldade em desenvolver uma política comum em nível internacional, já que a reivindicação pela soberania de um país se choca com as reivindicações dos demais. Isto é especialmente verdade no que diz respeito à partilha de migrantes entre os países da UE com base em quotas. Países do sul da Europa, como Espanha e Itália (principais receptores de migrantes vindos da África), consideram essa medida fundamental, mas é rejeitada por possíveis aliados de extrema direita em países como a França, Polônia ou Hungria, que não estão dispostos a aceitar migrantes.

Ninguém duvida que nas eleições gerais deste domingo, o Vox conseguirá eleger deputados para o parlamento espanhol. As pesquisas de opinião prevêem que terá entre vinte e cinquenta vagas. Este seria um avanço semelhante ao que se pode ver com o Podemos e o Ciudadanos nas eleições de três anos atrás, nas quais saltaram de nenhum deputado para setenta e uma e trinta vagas respectivamente.


O número de assentos do Vox não seria, no entanto, um problema se não fosse pelo fato de que seus argumentos e seu papel foram totalmente aceitos pelos partidos mais estabelecidos da direita. Tanto o PP como o Ciudadanos basearam suas campanhas na necessidade de unir forças com o partido de extrema-direita para criar uma coalizão que possa tirar o PSOE social-democrata de Pedro Sánchez do governo.

Os números do Vox poderiam de fato ajudar a direita a conseguir uma maioria suficiente para assumir o governo. Pode não apenas exercer influência direta sobre a nova administração, mas também se unir ao próprio executivo, se alcançar uma representaação suficiente no novo parlamento espanhol. Isso colocaria no centro as medidas reacionárias que Vox destacou nesta campanha eleitoral. Inspirado em Trump, o partido de extrema-direita propôs a construção de um muro em torno dos enclaves norte-africanos de Ceuta e Melilla, e a expulsão de 52.000 imigrantes “ilegais”.

O líder do Vox, Santiago Abascal, chegou ao ponto de exigir o direito dos cidadãos de manter armas em casa. Além disso, uma de suas principais propostas é a proibição definitiva da independência de regiões da Espanha.

Um líder do Vox, Iván Espinosa de los Monteros, pediu a proibição de todas as organizações que não rejeitem o marxismo. Isso combina com a supremacia masculina do Vox. Culturalmente, é uma cópia do movimento anti-feminista misógino de Trump. De fato, a reação sexista explicada por Susan Faludi em seu livro Backlash é vital para o imaginário espanhol de extrema-direita. O discurso do partido é construído em torno de um ataque constante a todas as medidas destinadas a proteger as mulheres, que consideram “ideologia de gênero”, e um ataque a todo o poderoso movimento feminista espanhol, que tem sido uma força imponente na vida pública, como se viu nas mobilizações do Dia Internacional da Mulher de 2018.

A ascensão do Vox está fadada a colocar os democratas no limite, dada a inclusão em suas listas eleitorais de ex-membros de organizações fascistas e neonazistas. Alguns deles têm ligações diretas com as organizações terroristas ativas contra a transição democrática pós-franquista. É o caso de Jorge Arturo Cutillas, importante membro do Vox, que já fez parte de um partido filo-nazista chamado Fatherland and Freedom. E tinha laços diretos com Leon Degrelle, fundador do partido Rexist da Bélgica na década de 1930 e que foi um homem da SS de Hitler. O Vox também inclui ex-líderes da organização nazista CEDADE, dissolvida em 1993 depois que o parlamentar britânico James Glynn Ford expôs a extensão de seus laços na Europa.

Hoje, preparando-se para entrar no parlamento, o Vox já percebeu um desejo não cumprido da extrema direita pós-franco. Reuniu em uma única força – aceitável para os partidos da direita – todas as organizações neo-nazistas, falangistas, franquistas e tradicionalistas que tão clamorosamente falharam em fazer qualquer avanço nos últimos quarenta anos da democracia espanhola. Um partido de cores nacionalistas católicas com uma estratégia on-line agressiva, um discurso trumpiano que comunica o ódio por meio de notícias falsas conseguiu mudar o debate público mais amplo, aproximando os partidos de direita estabelecidos do populismo nacional. Sua presença na política espanhola já é uma realidade. Após a votação deste domingo, o mundo estará apenas medindo o preço de seu sucesso.

Sobre o autor

Antonio Maestre é um jornalista e documentarista espanhol, que atua em La Marea, El Diario e na emissora La Sexta.

27 de abril de 2019

Conclusões provisórias

Encerro meu percurso nesta Folha com três notas breves

Andre Singer
Professor de ciência política da USP, ex-secretário de Imprensa da Presidência (2003-2007). É autor de "O Lulismo em Crise".


Há mais de seis anos comecei a escrever neste espaço. De lá para cá, a democracia brasileira entrou em crise e ainda não se vê luz no horizonte. Encerro o percurso com três notas breves, a título de considerações finais sobre o tema.

1. Ascensão do Partido da Justiça (PJ). No final de 2012, quando esta coluna tinha início, acabava o julgamento do mensalão. Manobras discutíveis no STF (Supremo Tribunal Federal) visavam prender líderes petistas. Um ano depois, o então presidente da corte, Joaquim Barbosa, mandou-os para a cadeia, num feriado de 15 de novembro.

À época, assinalei que era “o simbolismo ideal para um possível futuro candidato a chefe do Executivo”. Dito e feito: em 2018, Barbosa passou meses na condição de presidenciável pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro). Por razões pouco claras, na última hora, desistiu do sonho presidencial.

O metafórico PJ, porém, já havia encontrado um sucessor à altura, o que talvez explique a desistência do ministro aposentado do STF. O juiz Sergio Moro, líder da Lava Jato e hoje ministro da Justiça, é virtual candidato à sucessão de Jair Bolsonaro.

Em janeiro, Bolsonaro teve seu primeiro compromisso internacional como presidente, em Davos (Suíça) para participar do Fórum Econômico Mundial. (Fabrice Coffrini/AFP)

2. Surgimento do Partido Fardado (PF). Em meio ao vazio que tomou conta do sistema partidário, varrido pela Lava Jato, militares da ativa, completamente afastados da cena política desde 1989, voltaram a agir. Em 2017, comandantes do Exército conclamaram a população a se manifestar. Hoje, um deles é vice-presidente da República.

Se a existência do PJ é até hoje motivo de controvérsia, o aparecimento do PF foi um verdadeiro raio em céu azul. As casernas tinham permanecido por 30 anos em rigoroso silêncio. Em questão de meses, no entanto, fardados ocuparam postos-chave na administração do país, tendo à frente um capitão reformado expulso dos quartéis.

A reviravolta foi tamanha que há poucos dias o general Hamilton Mourão, o mesmo que no passado demonstrou simpatia pelo torturador Brilhante Ustra, foi objeto de elogios por uma deputada do PC do B (Partido Comunista do Brasil).

3. Paralisia oposicionista. O golpe à brasileira —lento, gradual e seguro— encontrou a oposição desarticulada. O povo, por sua vez, tem assistido a tudo bestializado, como disse Aristides Lobo em 1889.

O lulismo, que segue vivo na estrutura capilar do PT (Partido dos Trabalhadores), desdobrou a falsa percepção histórica de que seria possível eliminar a pobreza e reduzir a desigualdade de cima para baixo. Não será. Chegado certo limite, as classes dominantes, com o entusiástico apoio da classe média, repõem o atraso.

Agradeço à Folha o privilégio de ter me permitido dialogar por quase 300 sábados com os seus leitores.

26 de abril de 2019

Salário mínimo, fica a dica

Corrigir benefício pelo PIB per capita permitiria aumentos reais a partir de 2021

Nelson Barbosa


Trabalhadores se aglomeram embaixo do viaduto do Chá para tentar pegar senha. Danilo Verpa/Danilo Verpa

Na semana passada, o governo apresentou suas projeções fiscais até 2022. Não haverá aumento real do salário mínimo. Os reajustes previstos incorporam somente a inflação, medida pela expectativa de variação do INPC, como manda a Constituição.

Em outras palavras, a correção do piso nacional de salários pela inflação não é decisão do governo, é regra constitucional. Já aumentos reais podem ou não ser concedidos, via lei.

A “política de valorização do salário mínimo” vigorou de 2007 a 2019, concedendo aumento real igual ao crescimento real do Produto Interno Bruto da economia (PIB). Devido à defasagem na divulgação do PIB, utilizou-se o crescimento verificado dois anos antes do reajuste, quando este número era positivo.

A política de salário mínimo dos governos do PT teve papel importante na redução da desigualdade de renda no Brasil, aumentando o poder de compra da parcela da população que está acima da linha da pobreza, mas abaixo da classe média, grupo que o sociólogo Jessé de Souza corretamente chamou de “batalhadores” em vez de “nova classe média”.

Segundo o Dieese, caso os reajustes tivessem seguido apenas a inflação, o valor do piso salarial nacional seria de apenas R$ 573 hoje, e não os R$ 998 vigentes. Esses R$ 425 adicionais por mês são uma herança bendita do governo do PT, que beneficiou milhões de brasileiros, mas também elevou a despesa primária da União.

O aumento real do salário mínimo tem grande peso na expansão das transferências de renda via Previdência e assistência social, cujo piso de benefício segue o piso salarial nacional.

Segundo estudo dos economistas Bráulio Borges e Manoel Pires, só esse fator elevou a despesa primária da União em três pontos do PIB entre 1994 e 2016. Na ausência de aumentos reais do piso salarial, o gasto primário do governo seria relativamente menor hoje, mas provavelmente o PIB também seria menor, pois o crescimento dos salários mais baixos e das transferências de renda também elevou o consumo e a produção. Difícil separar as duas coisas.

Apesar do custo fiscal, a valorização do salário mínimo foi importante para recuperar o poder de compra de grande parte da população brasileira e deveria continuar, só que de modo mais moderado.

Em outras palavras, justamente porque o PT aumentou substancialmente o piso salarial nacional em termos reais, podemos adotar nova regra de reajuste a partir de agora.

Um bom guia para a nova política seria o PIB per capita, isto é, o crescimento médio da renda real por habitante verificado nos últimos quatro anos. Atualmente, tudo aponta que esse valor será negativo para o quadriênio 2016-19, de modo que não haveria aumento real previsto para 2020, caso adotássemos tal regra.

Porém, se a economia voltar a crescer de modo sustentado, o crescimento médio do PIB per capita voltará a ser positivo no quadriênio 2017-20, permitindo que o salário mínimo real volte a crescer a partir de 2021.

Adotar nova política de piso salarial baseada na média do PIB per capita tem a vantagem de preservar o princípio de que aumentos reais devem acompanhar a evolução da economia, só que de modo mais suave, e sem gerar impacto fiscal em 2020.

Dado que a própria base do governo no Congresso manifestou insatisfação com a decisão de Bolsonaro sobre salário mínimo, talvez a melhor saída seja adotar uma regra que não pressione o Orçamento do próximo ano, mas garanta aumentos reais sustentáveis a partir de 2021, caso a economia volte a crescer de modo satisfatório. Fica a dica do PIB per capita, para governo e oposição.

Sobre o autor

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

25 de abril de 2019

A tribo perdedora

Falta a nós conhecimento sobre nossa posição relativa na pirâmide distributiva

Laura Carvalho
Professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, autora de "Valsa Brasileira: do Boom ao Caos Econômico".

Na coluna "A sua tribo está encolhendo", publicada nesta Folha no domingo (21/4), Clóvis Rossi chamou a atenção para o fenômeno da classe média espremida verificado em estudos recentes para os países ricos e para o Brasil e concluiu: "Parece razoável imaginar que essa situação, aqui como no resto do mundo, ajudou muito a dar impulso a populistas de diferentes cores".

Conforme enfatizei nas colunas "Dos motivos de Antônio" e "Desembarque", publicadas nesta Folha em 8/11/2018 e 28/3/2019, a perda de participação na renda nacional dos 40% da população que ganham mais que os 50% mais pobres e menos que os 10% mais ricos —o "squeezed middle" identificado pelo pesquisador Marc Morgan em um estudo de 2017 publicado pelo World Inequality Lab— parece mesmo ter desempenhado um papel crucial no processo eleitoral de 2018.

Fila de desempregados em busca de vaga em SP - Amanda Perobelli - 26.mar.19/Reuters

Em particular, foi exatamente entre os brasileiros do miolo espremido que o PT mais perdeu participação nos votos no segundo turno entre 2014 e 2018.

Só que essa "tribo" está longe de ser aquela a que Clóvis Rossi fez referência quando endereçou sua coluna à "maioria dos leitores da Folha", que, assim como ele, estaria encolhendo por ser "de classe média".

Segundo o próprio banco de dados a que o jornalista fez menção —o World Inequality Database, coordenado por Thomas Piketty—, os brasileiros ultrapassam a renda dos 50% mais pobres quando ganham mais de R$ 1.800 por mês per capita (para cada pessoa do domicílio).

A partir da renda mensal de R$ 5.137, o indivíduo já faz parte da faixa dos 10% mais ricos, que, como destacou Rossi, elevou sua participação na renda nacional desde os anos 2000. Quem ganha mais de R$ 20 mil ou R$ 30 mil por mês está na faixa dos 2% ou 1% mais ricos, respectivamente.

Em um país de renda média com altíssimo nível de desigualdade como o Brasil, o conceito cultural de classe média, que costuma estar associado ao padrão de consumo da classe média europeia, está muito distante daquele observado nas faixas intermediárias de nossa pirâmide distributiva.

A mesma base de dados indica que, em paridade de poder de compra —ou seja, já levando em conta as diferenças no custo de vida de cada país—, a renda média nessa faixa dos 40% do meio da pirâmide no Brasil é 1/3 da francesa, por exemplo. Ao contrário, a renda do 1% mais rico é 1,3 vez maior no Brasil do que na França, tamanha é a nossa concentração de renda.

Caso o leitor queira descobrir qual o percentual de brasileiros que vivem com renda mensal ou anual abaixo da sua, pode usar o simulador disponibilizado em wid.world/simulator.

A falta de conhecimento sobre nossa posição relativa na pirâmide distributiva tem efeitos político-econômicos importantes. Se nós, do topo da distribuição da renda, nos considerarmos de classe média, é natural que nos tornemos resistentes a aumentos nas alíquotas de tributação da renda e do patrimônio, por exemplo. Assim contribuímos para tornar o Estado brasileiro um vetor adicional de concentração de renda, dificultando a redução de nossas desigualdades abissais.

21 de abril de 2019

40 anos de quase-estagnação

Qualquer solução depende de mudança das elites

Luiz Carlos Bresser-Pereira
Professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (1987, governo Sarney), da Administração e da Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (1995-1998 e 1999, governo FHC)


O economista e ex-ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira em seu escritório, em São Paulo - Keiny Andrade - 25.ago.17

De repente, meus colegas economistas descobriram o que eu gritava indignado há tempo: a economia brasileira está quase-estagnada desde 1981. Em 2001, falei em 20 anos de quase-estagnação; em 2007, quando o Cristo Redentor foi transformado em um foguete espacial, publiquei o livro "Macroeconomia da Estagnação". Nos anos seguintes, os títulos de alguns dos meus trabalhos começavam com uma contagem progressiva: "Brazil's 34 years... 35 years... 36 years old quasi-stagnation".

Neste mês, talvez porque o FMI publicou um livro reconhecendo o problema (“Brazil: Boom, Bust, and the Road to Recovery”), leio no jornal Valor Econômico três artigos de competentes economistas brasileiros, Carlos Luque, Simão Silber e Roberto Zagha, da USP (5.abr), Castelar Pinheiro, da FGV (5.abr), e Mário Mesquita, economista-chefe do Itaú-Unibanco (4.abr), assinalando nosso triste fracasso econômico.

O título mais significativo é o de Mesquita: “Os 40 miseráveis e o FMI”. Mas, leitores, não é o FMI o culpado. A melhor coisa do livro é a definição da quase-estagnação. Eu sempre comparo a taxa de crescimento per capita do Brasil de 4,5% ao ano, de 1950 a 1980, uma taxa extraordinária, com os tristes 0,9% ao ano desde então. O FMI compara o crescimento do Brasil com o dos demais países em desenvolvimento e com os países ricos: nesse período “o crescimento do PIB per capita de 0,9% ao ano, em média, compara-se mal com os 3% das outras economias emergentes e em desenvolvimento e o 1,7% das economias desenvolvidas” (pág. 4).

Como isso pôde acontecer? A explicação de economia política pode ser resumida em uma frase: os trabalhadores, os capitalistas rentistas e a alta burocracia pública preocupam-se apenas com seu consumo imediato: os trabalhadores priorizam o aumento dos salários e veem na expansão da despesa pública o caminho para o desenvolvimento; os rentistas, representados pela ortodoxia liberal, justificam seus juros altos com o fantasma da inflação e veem no corte da despesa pública, inclusive o investimento público, a solução de todos os males; a alta burocracia pública, corporativista, que se legitima pela luta contra a corrupção, ignora o problema do desenvolvimento. Em outras palavras, o Brasil foi dominado nestes 40 anos pelo populismo fiscal (déficits públicos) do primeiro grupo, pelo populismo cambial (crescimento com “poupança externa” ou déficits em conta-corrente) do segundo, e pelo corporativismo do terceiro.

A preferência pelo consumo imediato, que reduz a acumulação de capital e o crescimento, transparece na simples comparação de 2016-2017 com 1976-1978: o investimento público no país caiu brutalmente, de 9,5% para 2,1% do PIB, queda esta não compensada pelo setor privado, que continuou investindo 15% do PIB. Boa parte da queda do investimento público pode ser explicada pelos juros pagos pelo Estado aos rentistas, que subiram de 2,2% para 6,3% do PIB.
 
Há solução para essa quase-estagnação velha de 40 anos? A solução liberal é impensável; falta ao liberalismo econômico a ideia de nação e a capacidade de combinar de forma equilibrada a coordenação econômica do mercado (insubstituível quando este é competitivo) e a do Estado, imprescindível para os setores não competitivos e para os cinco preços macroeconômicos que o mercado não tem capacidade de coordenar. A solução desenvolvimentista é uma alternativa, mas desde que não seja desfigurada pelo populismo fiscal ou por pura incompetência.

Qualquer solução depende de uma mudança profunda na forma de pensar das elites econômicas, políticas e intelectuais brasileiras. Entre os anos 1930 e os anos 1980, elas foram predominantemente desenvolvimentistas; desde 1990, liberais.

A direita liberal supõe guiar-se pela razão, mas hoje reflete apenas os interesses de rentistas e financistas e os interesses estrangeiros; a esquerda acredita guiar-se pela justiça, mas justiça sem desenvolvimento econômico é a perpetuação da miséria dos pobres e a emigração dos filhos da classe média educada para onde haja emprego.

20 de abril de 2019

Feitiço e desafio do petróleo

Nelson Barbosa

Folha de S.Paulo

O professor e economista Nelson Barbosa, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento. Alan Marques/Folhapress.

O último ruído entre Petrobras e governo parece o filme "Feitiço do Tempo", onde o protagonista é condenado a reviver o mesmo dia até ser capaz de voltar a uma vida melhor.
Mais uma vez houve proposta de aumento substancial do preço do combustível. Mais uma vez o governo interveio para adiar ou amenizar o ajuste, criando incerteza sobre a Petrobras e risco de nova greve de caminhoneiros.

O problema não é novo, nem exclusivo do Brasil. Vários países emergentes têm dificuldade em definir preço de combustíveis em períodos de alta repentina. O problema também não é fácil, pois alguém sempre paga o custo: o consumidor de combustível, o contribuinte do Tesouro ou o acionista da Petrobras (que inclui os contribuintes).

Do ponto de vista econômico, o ideal é que o preço interno do combustível tenha como referência a paridade internacional, definida pelo preço do produto em dólares, convertido pela taxa de câmbio, e acrescido dos custos de importação. O preço pode ser inferior a essa paridade, mas deve manter uma relação estável com tal valor, pois este é custo de oportunidade da Petrobras.

Mais importante, o consumidor deve pagar o preço de mercado, por que isso gera a alocação mais eficiente de recursos a longo prazo, estimulando inovações e fontes alternativas de energia. O problema está no curto prazo.

O preço do petróleo varia bastante e nossa taxa de câmbio também é volátil. Juntando as duas coisas, o preço do combustível nas refinarias acaba sendo incerto, com mudanças súbitas como vimos em 2018 e novamente agora.

Quando a flutuação é para baixo, ninguém reclama. Quando ela acontece para cima, a chiadeira é grande, sobretudo por parte de caminhoneiros autônomos que assumem contratos de fretes sem conhecer antecipadamente o custo do combustível.

Existem várias formas de lidar com esse problema. O governo, por exemplo, pode criar um fundo de estabilização, alimentado por uma contribuição de alíquota variável, reduzindo a arrecadação em períodos de alta de preços, e aumentando a arrecadação quando o oposto ocorrer. Assim, a refinaria cobraria sempre o preço de mercado, mas o preço pago por seus clientes seria suavizado por variações de tributos.

Já fizemos isso no passado (a "conta petróleo"). O Chile faz isso hoje, via "Mecanismo de Estabilização do Preço do Combustível". Na teoria funciona bem. Na prática há problemas quando ocorre alta prolongada do preço internacional e/ou do câmbio. Fundos de suavização são medidas temporárias para preparar o mercado para a livre flutuação de preços.

As soluções permanentes vão em duas direções aparentemente contraditórias: mais mercado e mais governo. Do lado do mercado, é preciso estimular a organização dos caminhoneiros em cooperativas (sindicatos) e proporcionar contratos privados de médio prazo para diminuir a incerteza sobre o preço de combustível (o cartão Petrobras vai nessa direção).

​Do lado do governo, o preço da refinaria é cerca de 54% o preço final ao consumidor. O resto é imposto e margem de distribuição. Quanto maior o imposto, menor o impacto de variações dos preços internacionais sobre o preço no varejo. Assim, onde o imposto é fixo e elevado (Europa), não há tanta volatilidade de preços ao consumidor.

Se e quando os preços internacionais caírem novamente, deveríamos aumentar a tributação sobre combustíveis fósseis e direcionar os recursos para novas fontes de energia e outros modais de transporte. Com isso, o próprio petróleo financiará a transição para um mundo menos dependente do petróleo.

Sobre o autor

Doutor em economia e professor da FGV e da UnB; ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016, governo Dilma Rousseff).

Episódio de censura revela a perigosa confusão existente no país

Personagens mudam de posição a cada momento e todos os gatos parecem pardos

André Singer

Folha de S.Paulo

Pedro Ladeira/Folhapress

De que lado está Antonio Dias Toffoli? De parte com Lula, de quem foi auxiliar, ou dos que atacaram Lula, como Gilmar Mendes, de quem se tornou amigo?

Ao constranger a liberdade de um veículo de direita, Alexandre de Moraes, que também é de direita, encontra-se em que posição?

Quando utilizam o arbítrio para coibir ataques, quiçá também arbitrários, os meritíssimos do STF (Supremo Tribunal Federal) ajudam a quem?

O episódio da “censura” encerrado quinta (18), com a liberação da reportagem da revista Crusoé, revela a perigosa confusão em que nos encontramos. No terreno pantanoso, em que personagens mudam de posição a cada momento, todos os gatos parecem pardos, estimulando o golpismo.

E contumazes adversários da imprensa, como o presidente Bolsonaro, aproveitam para pescar em águas turvas, declarando que, sem a mídia, “a chama da democracia se apaga”.

Em tais momentos, convém baixar a bola e recomeçar a jogada desde atrás. O estopim do golpismo veio da Operação Lava Jato. A partir de 2014, “prisões alongadas”, na expressão de um dos atores acima citados, começaram a ser executadas ao bel-prazer de promotores, delegados e juízes. Na época, o impacto das revelações escandalosas —e pelo menos em parte reais— atordoou a consciência do que se passava.

Aos poucos ficou claro que se instalava um poder paralelo e parcial. Visava, sobretudo, embora não exclusivamente, destruir o PT e o lulismo. A ofensiva teve papel decisivo no impeachment de Dilma.

Após o impedimento, setores que tinham feito vista grossa aos desmandos do “tenentismo togado”, certeiro nome sugerido pelo sociólogo Luiz Werneck Vianna, começaram a lhe opor resistência. Talvez por cálculo, uma vez que agora o MDB e o PSDB entravam na mira. Pouco importa.

Os torquemadas retrucaram com a melhor arma de que dispõem: novas e críveis denúncias de corrupção. O episódio Joesley Batista, que quase levou Michel Temer pelo mesmo caminho que Rousseff, foi emblemático do confronto em curso. O ex-presidente sobreviveu graças ao Congresso.

Depois, a eleição de Bolsonaro e a consequente nomeação de Sergio Moro, o homem que liderou o levante das togas, foi uma vitória importante do time inquisitorial. Já o inquérito instaurado por Toffoli em 14 de março para proteger o tribunal assim como a censura praticada por Moraes no último dia 12 fazem parte da resposta da equipe garantista.

Onde deve ficar a opinião pública democrática? A favor do combate à corrupção, desde que feito de modo rigorosamente equilibrado e dentro da lei. Contra qualquer tipo de arbítrio, antessala do autoritarismo, seja ele praticado por quem for.

Sobre o autor

Professor de ciência política da USP, ex-secretário de Imprensa da Presidência (2003-2007). É autor de “O Lulismo em Crise”.

18 de abril de 2019

Ajustes recessivos continuarão em meio ao sucateamento da infraestrutura física e social

Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2020 põe no papel a essência da política fiscal

Laura Carvalho


O ministro da Economia, Paulo Guedes. Adriano Machado/Reuters.

O governo enviou ao Congresso o PLDO (Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias) de 2020, que colocou no papel aquilo que já sabíamos que seria a essência da política fiscal até uma eventual revisão da emenda constitucional 95, conhecida como regra do teto de gastos: uma sucessão de ajustes fiscais recessivos em meio ao sucateamento da infraestrutura física e social do país.

Conforme a regra aprovada em 2016, o teto reajusta o máximo das despesas primárias apenas pela inflação do ano anterior —em vez de, por exemplo, permitir um reajuste real pelo crescimento do PIB do ano anterior ou a uma taxa em linha com o crescimento médio anual previsto para a economia, como fazem países que adotaram alguma regra de gasto.

Seja qual for a reforma aprovada, as despesas previdenciárias continuarão crescendo bem mais que a inflação nos próximos anos, ainda que a um ritmo menor. As mudanças propostas não atingem o estoque de benefícios dos que já estão aposentados e nem dos que estão para se aposentar, minimizando seu impacto de curto prazo.

Ademais, no caso da saúde e da educação, há também um piso: o governo deve reajustar o valor do Orçamento destinado a essas áreas no mínimo pela inflação do ano anterior.

Ou seja, na prática, o teto implica o crescimento das demais despesas bem abaixo da inflação: investimentos em obras e reparos de infraestrutura, ciência e tecnologia, programas sociais, cultura etc.

Como os cortes cada vez mais draconianos nessas áreas não serão suficientes para manter o total de despesas abaixo do teto sem levar à paralisação da máquina pública, a regra prevê o acionamento de gatilhos automáticos que fazem exatamente aquilo que o PLDO 2020 já tratou de incorporar em suas previsões: a vedação de aumentos reais do salário mínimo, que fixa também o piso dos benefícios sociais, bem como de reajustes nos salários de servidores e de novas contratações.

Ou seja, em meio aos conflitos cada vez mais exacerbados por fatias cada vez menores do Orçamento, a EC 95 e o PLDO 2020 já estabelecem de antemão quem serão os perdedores.

O primeiro problema é de natureza política: como apontou Vinicius Torres Freire em coluna publicada nesta quarta-feira (17), “a disputa social e política pelos recursos mínimos do governo vai ficar ainda mais crítica, se não explosiva”.

A pergunta que não quer calar é se é possível conter tais demandas democráticas sem o uso de repressão e autoritarismo crescentes.

O segundo problema é de natureza econômica: em um contexto claríssimo de insuficiência de demanda interna e externa, o corte cada vez maior de investimentos em infraestrutura física e social tratará de manter o país no grave quadro de estagnação em que se encontra.

Em meio ao desemprego elevado e às desigualdades crescentes (agravadas pelo fim da valorização do salario mínimo), não há nenhuma perspectiva de recuperação mais acelerada do consumo das famílias. Assim, as empresas continuarão operando com capacidade ociosa e adiando suas decisões de investimento.

Uma alternativa seria aproveitar a reforma tributária em discussão para equilibrar a forma do ajuste fiscal: uma arrecadação extra de impostos pela tributação maior da renda e do patrimônio dos mais ricos poderia contribuir, se revisto o teto de gastos, para uma expansão de investimentos públicos por alguns anos, por exemplo —mesmo que a carga tributária se mantivesse estável no médio prazo pela redução mais do que necessária de impostos sobre o consumo e a produção.

Mas opções como essa não podem ser encontradas no Posto Ipiranga.

Sobre a autora

Professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, autora de "Valsa Brasileira: do Boom ao Caos Econômico".

Agnès Varda (1928-2019)

Os filmes de Agnès Varda demonstraram um amor pelas pessoas, em vez de um mero fascínio por elas.

Hannah Proctor

Jacobin

A diretora Agnes Varda no palco da cerimônia de premiação da Berlinale Camera durante o 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim, no Palácio da Berlinale, em 13 de fevereiro de 2019 em Berlim, Alemanha. Thomas Niedermueller / Getty

Tradução / Nascida como Arlette Varda na Bélgica em 1928, Varda renomeou-se Agnès aos 18 anos e formou-se como fotógrafa na França antes de dirigir seu primeiro filme La Pointe Courte em 1954. Ela morou no mesmo apartamento na Rue Daguerre em Paris por quase setenta anos e morreu em 29 de março de 2019.

A formação de Varda como fotógrafa e o amor pela pintura formaram sua estética como cineasta, mas tão marcante quanto a linguagem visual distinta que caracteriza seus filmes são as pessoas variadas que os povoam: lojistas e pescadores, hippies e plantadores de batata, pintores e cantores, negros dos Panteras Negras e revolucionários cubanos, mulheres na estrada e na cidade, familiares e amigos. Os filmes de Varda evidenciam um amor, em vez de um mero fascínio, pelas pessoas.

Seus filmes muitas vezes retratam mulheres sozinhas à deriva. Em Cléo de 5 a 7 (1962), que consolidou sua reputação como protagonista da Nouvelle Vague francesa, a câmera acompanha a glamorosa heroína egocêntrica por Paris enquanto ela espera receber os resultados de um exame médico. Varda transmite a maneira como a ansiedade dilata o tempo, retratando os tipos de medos silenciosos e dramas subjetivos que podem estar preocupando qualquer estranho que passe na rua, mas aos quais normalmente permanecemos alheios.

Documenteur (1981) também é sobre uma mulher com dor. Sabine Mamou interpreta Emilie, que recentemente terminou com seu parceiro. Ela vagueia por Los Angeles com seu filho pequeno (interpretado pelo filho de Varda, Mathieu), tentando encontrar um lugar para morar e continuar quando tudo o que ela quer é parar.

Varda mostra como a tristeza cotidiana pode ser enorme e envolvente. Mas, apesar de focar em experiências individuais, esses filmes sugerem que a vida das pessoas comuns nas lavanderias, cafés e parques das cidades por onde Cléo e Emilie transitam é tão profunda e complicada quanto a dos protagonistas dos filmes.

Mais tenso e duro, Vagabond (1985) também retrata uma mulher solitária andando. Em contraste com o sol dos filmes californianos de Varda, Vagabond, ambientado no interior invernal do sul da França, é filmado sob o céu cinza e paisagens lamacentas, azuis esfumaçados salpicados de escarlate.

Em vez de fotografar da posição de sua protagonista Mona itinerante e indigente, a câmera de Varda mantém distância. O público compartilha, assim, a perspectiva parcial dos estranhos que cruzam brevemente o caminho de Mona. Varda não fornece explicações ou julgamentos sobre a vida de Mona – que sabemos desde o início que será abreviada – ela apenas a mostra vivendo, tratando Mona com dignidade, não sentimentalismo.

Nos filmes mais recentes de Varda, ela virou a câmera para si mesma. Com seu corte de cabelo típico, roupas roxas e comportamento amigável, ela era uma figura excêntrica, mas estava consciente da persona que estava retratando, que ela descreveu ironicamente em The Beaches of Agnès (2008) como “uma velhinha, agradavelmente gordo e falante”.

Embora seus trabalhos sejam muitas vezes divertidos, lúdicos e efervescentes, repletos de cor e vitalidade, eles não são caprichosos ou ingênuos. Muitas vezes, nos filmes de Varda, um girassol é apenas um girassol, mas seu trabalho também foi consistentemente político, como ela refletiu em uma entrevista de 2009: “Je résiste. Eu ainda estou lutando.” Ela viajou para a China como fotógrafa em 1957, contribuiu com uma das sete seções para o filme colaborativo antiguerra Far from Vietnam (1967) e filmou o documentário Black Panthers (1968) em uma manifestação contra a prisão de Huey P. Newton em Oakland. Ela descreveu seu filme Salut les Cubains, composto a partir de fotografias tiradas em Cuba em 1962, como “socialismo e cha-cha-cha”.

Varda foi uma das signatárias do “Manifesto dos 343”, uma petição de 1971 para legalizar o aborto na França. Os direitos reprodutivos figuram como tema principal em seu longa-metragem mais explicitamente feminista One Sings, the Other Doesn’t (1977), uma alegre meditação sobre a amizade entre duas mulheres. Depois de uma longa separação, as amigas se reencontram em uma manifestação contra as leis do aborto onde se canta “Biologia não é destino! As leis do Papa estão desatualizadas!”

Um comentário sobre o desperdício e o excesso capitalistas, o documentário The Gleaners and I (2000) aborda o sistema global dos catadores de lixo, concentrando-se em pessoas que encontram e comem alimentos descartados. Pela primeira vez, Varda trabalhou com uma câmera digital, o que lhe permitiu filmar sem uma grande equipe e, assim, facilitou seus esforços para forjar um relacionamento solidário com as pessoas marginalizadas que ela encontrou catando vegetais abandonados.

Mais tarde, a vida Varda ramificou-se em cinemas de galerias de arte, produzindo instalações e trabalhos multitela para festivais e exposições. “Patatutopia”, criada para a Bienal de Veneza em 2003, surgiu de um interesse particular. Ela criou retratos de batatas mudando ao longo do tempo, traçando como elas continuaram a crescer depois de se tornarem não comestíveis. Como em grande parte de seu trabalho cinematográfico, ela encontrou sentido no aparentemente inútil, mundano e nada espetacular: “Eles estão podres, estão acabados, estão verdes, mas a vida está lá… para existir.” Varda procurou a vida em tudo.

Depois de saber da morte de Varda, pensei em um momento de seu último filme Varda par Agnès (2019), que reflete sobre o making off de Jacquot de Nantes (1991), o primeiro de três filmes que ela fez sobre o marido Jacques Demy nos anos após sua morte. Enquanto morria, Demy começou a contar histórias de sua infância, inspirando Varda a fazer um filme sobre sua formação como diretora de cinema.

Intercaladas ao longo de uma narrativa de sua juventude, estão tomadas de Demy num close-up extremo, como se a câmera estivesse acariciando suavemente suas mãos, bochechas, queixo e cabelos. Um entrevistador pergunta a Varda se isso foi uma tentativa de prender o tempo ou evitar a morte. Ela responde que sua intenção era bem oposta: queria mover-se com o tempo, saboreando com ternura a vida enquanto durava, em vez de ficar morbidamente no fim.

Jacquot de Nantes abre com um verso de um poema de Charles Baudelaire, que Varda lê em voz alta e que também se aplica à sua extraordinária obra: “Conheço a arte de evocar momentos felizes”. Esses momentos vivem.

Sobre o autor

Hannah Proctor é pesquisador do Wellcome Trust na University of Strathclyde em Glasgow, interessado em histórias e teorias da psiquiatria radical.

O tolo e o louco

Ontem à noite, Jordan Peterson disse bobagens sobre o marxismo. E Slavoj Žižek nos lembrou o quão profundamente se afundou no pessimismo liberal

Harrison Fluss e Sam Miller


Rick Madonik / Toronto Star

Ontem, Jordan Peterson e Slavoj Žižek debateram no Sony Center em Toronto. O título do debate era "Felicidade: Capitalismo versus Marxismo". A estrutura do debate definia que cada participante apresentasse uma introdução de trinta minutos, seguida por uma série de breves respostas de dez minutos uma à outra. A conversa terminou com algumas perguntas gerais do público.

O evento tinha esgotado todos os ingressos e durou três horas. O que se esperava ser um "debate do século" aquecido acabou sendo uma troca bastante amigável e amistosa. Durante toda a noite, os dois oradores declararam em várias ocasiões o quanto concordavam e se admiravam. Peterson foi particularmente tomado pelo desempenho carismático de Žižek e pelos "argumentos complexos", enquanto Žižek enfatizou o quanto ele concordava com a crítica de Peterson sobre a correção política e seu estilo agressivo de argumentação.

Žižek certamente não é tão odioso quanto Peterson. Mas o debate revelou até que ponto o intelectual esquerdista caiu por terra e por que precisamos de uma verdadeira política marxista para argumentar francamente por liberdade e justiça.

Peterson sobre Marx

Peterson concentrou quase toda a sua introdução de trinta minutos em um ataque direto ao Manifesto Comunista. Ele veio preparado com dez proposições contra a ideologia do Manifesto e do Marxismo. Peterson começou argumentando que Marx e Engels estavam errados em reduzir os problemas primários da existência à luta de classes. Ele alegou que Marx e Engels não conseguiram apreciar a hierarquia como um fato biológico conectado. Ele também questionou se a “ditadura do proletariado” seria ou não tão melhor que a da burguesia.

Peterson até retratou Marx como um pensador identitário, colocando uma classe trabalhadora supostamente benevolente, mas oprimida, contra uma classe capitalista má. Ele passou a questionar como a sociedade seria organizada sob o comunismo, argumentando que o poder estará sempre concentrado nas mãos de poucos, independentemente do sistema social em vigor.

Peterson também tentou criticar Marx por motivos econômicos. Ele começou citando o próprio reconhecimento de Marx da abundância material produzida pelo próprio capitalismo. Peterson argumentou que os capitalistas, por meio de sua perspicácia comercial e liderança, agregam valor econômico à sociedade e que o sistema fez muita coisa para eliminar a pobreza e ajudar os pobres.

Embora ele tenha admitido que o capitalismo enriquece os ricos, ele também enfatizou que o capitalismo também torna os pobres mais ricos. Ele terminou sua introdução alegando que a busca do lucro disciplina moralmente os capitalistas para não maltratar seus trabalhadores, e que qualquer chefe movido pelo lucro nunca exploraria seus trabalhadores por medo de perder negócios. Como disse Peterson, “você não se eleva a uma posição de autoridade que seja confiável em uma sociedade humana, principalmente explorando outras pessoas”.

A apresentação de Peterson sobre os princípios fundamentais do marxismo é uma vulgarização ridícula, para dizer o mínimo. Ele parecia alguém que mal havia lido os textos-chave.

Tome seus comentários sobre a natureza inerentemente hierárquica e exploradora das pessoas: quando Marx e Engels disseram que toda a história é a história da luta de classes, eles estavam falando sobre toda a história escrita. Os seres humanos viveram sem classes por milhões de anos. A criação da sociedade de classes – onde uma minoria se apropria do trabalho excedente da maioria – é um fenômeno relativamente recente, e para Marx e Engels é a produção e reprodução da vida real que está no centro das interações dos seres humanos com a natureza.

Peterson chegou ao ponto de dizer que a natureza como categoria não existe nos escritos de Marx, o que é patentemente falso. No primeiro capítulo de Capital, Marx afirmou que o trabalho é a relação essencial entre os seres humanos e a própria natureza, e que o trabalho de alguma forma “é uma necessidade imposta pela natureza eterna, sem a qual não pode haver trocas materiais entre o homem e a natureza. e, portanto, sem vida.” Ele nem precisava chegar ao final do Volume Um para descobrir isso.

Quanto às alegações de Peterson sobre a hierarquia, ele confundia constantemente a hierarquia com a sociedade de classes. Ele nunca demonstrou porque o privilégio de uma classe de explorar outra é essencial para a existência humana. Além disso, quando Marx defendia a superação da sociedade de classes, ele não achava que os seres humanos acabariam com a necessidade de organização política. Para Marx, o “estado” político tem um significado muito específico como um órgão da sociedade de classes. Na superação da sociedade de classes, as pessoas ainda precisarão de estrutura e organização; eles ainda precisarão deliberar, argumentar e buscar coisas em comum por meio de luta e debate. Como Norman Geras colocou em sua defesa de Marx contra "Seven Types of Obloquy", sob o comunismo, formas de poder público seriam baseadas em princípios democráticos e eletivos.

Como Peterson vê a natureza humana como essencialmente caída e sinônimo do pecado original, os esforços de grupos oprimidos para superar coletivamente sua situação serão inevitavelmente carregados de mais violência e sofrimento. Mas isso é uma metafísica que impede que qualquer grupo de pessoas busque justiça ou melhore sua condição por medo de gerar mais violência.

Além disso, ao contrário de Peterson, Marx não via a luta da classe trabalhadora em termos identitários: os trabalhadores têm interesse em abolir sua própria identidade como proletários explorados. Para Marx, embora a luta socialista tenha seus elementos de idealismo, solidariedade e sacrifício, o proletariado não são anjos; centenas de anos de opressão de classe impedem a humanidade de agir “benevolentemente” (no sentido de Peterson). Essas questões de antagonismo de classe não podem ser vistas através da moralização superficial de Peterson, mas nos termos estruturais que Marx apontou.

Quanto aos capitalistas que contribuem com valor, Peterson não entende como Marx vê valor como tempo de trabalho necessário. A burguesia não pode agregar valor sem explorar os trabalhadores, isto é, sem se beneficiar de seu trabalho não remunerado. A exploração não é, portanto, uma falha moral do capitalista, mas construída na relação estrutural entre o capitalista e o trabalhador. A tentativa de Peterson de fazer dos capitalistas pilares essenciais da civilização não é melhor do que a famosa fábula de Menenius Agripa sobre a barriga e seus membros.

Poderíamos continuar, mas está suficientemente claro que Peterson ignora descaradamente o que Marx realmente argumentou. Não é que ele discorde (muitos críticos inteligentes de direita têm feito), não é que ele tentou simplificar para um público popular, ele simplesmente não é informado o suficiente para se engajar no debate.

Quanto ao capitalismo global hoje, melhorias no consumo, na mortalidade e no fato de estarmos melhor do que nossos ancestrais não são desculpa para condenar a massa da humanidade a ser perpetuamente explorada e alienada.

Peterson afirmou dogmaticamente que essas melhorias relativas são simplesmente devidas ao livre mercado, e não a outras fontes, como intervenções de saúde pública, educação e lutas da classe trabalhadora contra a exploração. Isso sem mencionar que a busca por lucro é também um dos principais fatores por trás de praticamente todos os problemas sociais, incluindo a aceleração da mudança climática.

Unidos contra a felicidade

Enquanto Peterson supunha que ele estava entrando em um debate com um marxista clássico, e que grande parte desse debate seria centrado em torno do marxismo, Žižek veio com uma agenda diferente. Em sua introdução de trinta minutos, Žižek não se concentrou em Marx, mas começou a conversa lamentando o quanto ele e Peterson são marginalizados da academia “politicamente correta”:

Peterson e eu... somos marginalizados pela comunidade acadêmica oficial e deveria defender aqui a linha liberal da esquerda contra os neoconservadores. Mesmo? A maioria dos ataques contra mim são precisamente de esquerdistas liberais. Basta lembrar o clamor contra a minha crítica da ideologia LGBT.

Depois de estabelecer que ele e Peterson compartilham um inimigo comum, Žižek passou a discutir vários tópicos. Isso incluía como o milagre econômico da China não se baseava numa democracia de livre mercado, mas no capitalismo autoritário; que Bernie Sanders é demonizado como radical, enquanto na verdade ele é um “moralista antiquado” e que o “multiculturalismo liberal branco” é o culpado pelo fracasso da esquerda.

Žižek também afirmou que a crise da imigração é devida às “contradições imanentes” do capitalismo, mas argumentou contra as fronteiras abertas no final da tarde. Žižek justamente alegou que o ódio populista dos refugiados é irracional. No entanto, ele afirmou ambiguamente que “os relatos [sobre refugiados] são verdadeiros”. Pode-se especular que Žižek estava se referindo às observações anteriores que fez sobre os refugiados violentos, que foram criticados como xenófobos.

Para seu crédito, Žižek expressou apoio à saúde e educação universais, o que permitiria que os indivíduos se concentrassem em realizar seu potencial criativo. Ele também reconheceu que a mudança climática não é uma farsa, mas uma ameaça real à humanidade que deve ser combatida com alguma forma de cooperação internacional.

Mas durante todo o debate, Žižek afirmou que é pessimista inúmeras vezes. Ele vê a esquerda contemporânea da mesma maneira que Peterson, como um pântano de ressentimento e vitimização. Ele não concorda com a visão otimista de Marx, que defende relações sociais livres e transparentes. Em contraste, Žižek e Peterson afirmaram que os seres humanos não são racionais, mas, ao contrário, inerentemente tendem à auto-sabotagem.

O objetivo marxista de libertar as forças produtivas do capitalismo não é um problema para Žižek. Ele coloca a modernidade em termos existenciais como a necessidade de “carregar... o principal ônus, que é a própria liberdade”. Sem a autoridade tradicional, somos responsáveis por nossos próprios fardos, condenados a lutar por um significado contra um mundo mercantilizado e hedonista. “Precisamos encontrar alguma causa significativa além da mera luta pela sobrevivência prazerosa.” Mas esse tipo de ascetismo existencial contra o prazer e o hedonismo é estranho ao projeto de Marx de satisfazer as necessidades humanas em escala universal. Marx, como Ishay Landa aponta, não era contra o consumismo em si, mas era contra as condições de austeridade que o capitalismo impõe para a grande maioria.

Uma e outra vez, Peterson e Žižek citaram a tradição judaico-cristã (ou a tradição “ocidental”) como ponto de partida, mas esta é uma tradição existencialista a la Kierkegaard, Nietzsche e Heidegger, e não a tradição racionalista de Hegel e Marx. Žižek invocou Hegel em oposição a Marx como seu herói filosófico, mas este é um hegelianismo sem resolução dialética, transformando as contradições de Hegel em antinomias insolúveis.

A alienação, para Žižek e Peterson, é incorporada ao próprio bolo da existência. Ambas vêem a condição humana como inerentemente trágica, seja pelas lentes da biologia, da psicanálise ou da metafísica. Essencialmente, estamos todos fadados ao fracasso e à frustração, não importa qual seja o regime econômico e político.

À medida que o debate continuava, Peterson continuou pressionando Žižek sobre o tópico do marxismo e implorou a Žižek que esclarecesse sua posição em relação a Marx. Em resposta, Žižek deixou claro que sua adoção da palavra “comunismo” é uma provocação e, na verdade, ele não se identifica como comunista. Em vez disso, Žižek afirmou a necessidade de um capitalismo auto-limitado e regulado. Ele não afirmou a auto-emancipação da classe trabalhadora, mas defendeu a necessidade de um mestre que “forçaria as pessoas a serem livres”. Aqui, Žižek saiu como um liberal tecnocrático, pois para ele, as massas são incapazes de alcançar a liberdade para si – algum tipo de “mestre” é necessário para guiá-los.

Peterson não contradiz nenhum desses sentimentos; em vez disso, ele admitiu que o capitalismo tem seus problemas e que ele não apoia mercados totalmente desenfreados. Ele parafraseou Winston Churchill ao dizer que o capitalismo é o pior sistema possível … mas ainda melhor que todos os outros.

No final da noite, Peterson pressionou Žižek pela última vez. Ele perguntou a Žižek por que ele se associaria ao marxismo. Em resposta, Žižek referenciou vagamente o décimo oitavo Brumário e o Capital de Marx como análises políticas e econômicas sutis e sofisticadas, respectivamente. Ele não ofereceu uma defesa mais completa além disso.

Frenemies

Embora Peterson tenha ficado fascinado com o carisma de Žižek, ficou ainda mais impressionado com a firme recusa de Žižek em se alinhar aos argumentos centrais de Marx e Engels. Apesar dos compromissos de esquerda de Žižek, ele e Peterson afirmaram a existência da sociedade de classes, da hierarquia social e do destino inescapável do sofrimento.

Nós só podemos esperar lidar com o sofrimento gerado pelo capitalismo (seja como indivíduos ou através de regulamentos tépidos) – nós nunca podemos esperar superar este sistema. Peterson disse que as afirmações de Žižek não se pareciam em nada com o marxismo, e mais com “Žižekism”. Mas não há nada original aqui: isso não é Žižekism ou petersonismo, mas a velha metafísica do pessimismo burguês.

Nenhum dos participantes deste debate delineou uma alternativa específica ao capitalismo. Nem acreditam que uma alternativa sistemática real é desejável.

A diferença entre Žižek e Peterson é, portanto, a diferença entre o tolo de John Locke e o louco: o tolo não pode tirar conclusões de suas premissas, ao passo que o louco obedientemente tira suas conclusões das más. Žižek aqui é o tolo, já que seus compromissos de esquerda permanecem incompatíveis com as premissas filosóficas que ele compartilha com a visão trágica de Peterson sobre a existência humana. Peterson, o louco, leva essas premissas trágicas à sua conclusão lógica e anti-socialista.

Mas quem sabe: com tanto em comum, isso não poderia ser o começo de uma linda amizade?

Colaboradores

Sam Miller é um recém-graduado da Columbia University. Atualmente ela é professora em Manhattan.

Harrison Fluss é editor correspondente do Historical Materialism e professor de filosofia na St. John's University e no Manhattan College.

16 de abril de 2019

O culto à inovação

"Inovação" é uma das palavras-chave mais populares do capitalismo - e sua função é sustentar o mito de que o gênio empresarial cria a riqueza da sociedade.

John Patrick Leary


O CEO da Apple, Tim Cook, fala durante um evento especial da Apple no Steve Jobs Theatre no campus Apple Park em 12 de setembro de 2017 em Cupertino, CA. Justin Sullivan / Getty

Este artigo foi extraído do livro Keywords: The New Language of Capitalism, de John Patrick Leary, publicado pela Haymarket Books.

Durante seus primeiros anos de vida, a palavra inovação foi usada em um sentido pejorativo e serviu para denunciar falsos profetas e dissidentes políticos. Thomas Hobbes utilizou a palavra inovador, no século XVII, como sinônimo de conspirador vaidoso. Edmund Burke denunciou publicamente os inovadores da Paris revolucionária por serem destruidores e malfeitores. Em 1837, um padre católico de Vermont dedicou 320 páginas à denúncia do "inovador", o arquétipo de herético, que rotulava como "infiel e cético de coração". O ceticismo do inovador representava uma conspiração destrutiva contra a ordem estabelecida, na Terra e no céu, e se o inovador se fazia chamar de vidente, era também um falso profeta.

No entanto, na virada do século passado, a prática da inovação começou a se desprender das associações com conspirações e heresia. Um grande ponto de inflexão talvez possa ter ocorrido por volta de 1914, quando Vernon Castle, o instrutor de dança mais famoso dos Estados Unidos, inventou uma versão estadunidense simplificada e "decente" do tango argentino, que chamou de "a inovação".

"Estamos agora em um estado de transição para uma dança mais bonita", disse Mamie Fish, a famosa integrante da jet-set nova-iorquina a que se atribui a invenção do nome da dança. Em 1914, explicou no Omaha Bee que "esta é uma dança particularmente bonita, que carece de todas as excentricidades e o abandono do tango, e que não é nada difícil de aprender". Ao deixar de ser um pecado degenerado, a "inovação" tornou-se algo positivamente decente.

A onipresença contemporânea da palavra inovação é um exemplo de como o mundo dos negócios, apesar de continuamente reivindicar precisão racional e empírica, também invoca uma mitologia enigmática própria. Muitas das palavras que aparecem no meu último livro, Keywords, giram em torno disso e sua importância é determinada pela relação que têm com o poder da inovação.

O valor da inovação é tão amplo e tão aparentemente manifesto que questioná-lo pareceria estranho. Seria como criticar a beleza, a ciência e a penicilina, que são coisas, como a inovação, tratadas como se fossem valores humanos abstratos e coisas socialmente úteis que dificilmente podemos imaginar renunciar. Também é verdade que muitas das coisas consideradas inovações são verdadeiramente inovadoras no sentido estrito da palavra: processos originais ou produtos que satisfaçam alguma necessidade humana.

Um estudioso pode descobrir provas documentais que transformam nossa compreensão de um evento histórico, um engenheiro automobilístico pode desenvolver novos processos industriais que diminuam o peso dos carros, um executivo de negócios pode extrair valor adicional de seus funcionários automatizando a produção. Todas essas são novas maneiras de fazer algo, mas são "coisas" muito diferentes. Algumas dessas coisas requerem uma combinação de tenaz persistência e imaginação interpretativa, outras utilizam a experiência matemática e técnica e outras ainda uma visão e prática organizacional implacável.

Mas a inovação tal como se utiliza, hoje em dia, quase sempre vem acompanhada por um componente implícito de benevolência: quase nunca nos referimos a seguros de inadimplência inovadores ou armas químicas inovadoras, embora sejam claramente inovações. O antigo ceticismo destrutivo do falso profeta inovador se converteu na visão altamente lucrativa de um visionário tecnológico.

Na atualidade, a forma mais popular de inovação é a que se conhece como um conceito independente, uma espécie de espírito administrativo que abrange quase todas as esferas institucionais, das organizações sem fins lucrativos e os jornais às escolas e os brinquedos para crianças. O dicionário Oxford (OED, em sua sigla em inglês) define inovação como "a alteração do estabelecido pela introdução de novos elementos ou formas". O primeiro exemplo oferecido pelo dicionário remonta a meados do século XVI. Por outro lado, o adjetivo "inovador" praticamente não era usado até os anos 1960, embora desde então sua popularidade tenha disparado.

Nos últimos anos, também houve um ressurgimento do verbo"inovar". A acepção intransitiva do verbo (em inglês) é "incorporar ou introduzir novidades, realizar alterações em algo estabelecido, introduzir inovações". Seu antigo significado transitivo (em inglês), "mudar (uma coisa) por algo novo, alterar, renovar", figura como obsoleto no OED, embora recentemente tenha sofrido um tipo de renascimento. Esse era o significado ativo anteriormente associado a conspiradores e hereges, que inovavam a palavra de Deus ou o governo, no sentido de miná-los ou acabar com eles.

A principal contradição que existe na história da palavra inovação surge entre sua anteriormente proibida conotação religiosa e o significado prático e benéfico que prevalece na atualidade. Benoît Godin apontou que a inovação foi recuperada como um conceito secular no final do século XIX e inícios do século XX, quando deixou de ser uma reflexão teológica para ser uma forma de práxis mundana. Sua designação gramatical evoluiu junto com seu significado. Em vez de ser uma irrupção discreta em uma ordem estabelecida, a inovação como um substantivo incontável [com o sentido em inglês de "em geral"] se tornou uma capacidade visionária que os indivíduos podiam alimentar e desenvolver de maneira prática no mundo. Da mesma forma, tornou-se o processo de implementação dessa capacidade (por exemplo, "O compromisso da Lenovo com a inovação").

A inovação como substantivo contável [com o sentido em inglês de "em particular" foi um produto desse processo (por exemplo, “o novo iPhone contém inovações como uma câmera de alta resolução"). No entanto, esse novo significado evoluiu lentamente. O antigo vínculo dessa acepção com a ideia de engano e conspiração o acompanhou até já adentrado o século XX.

Joseph Schumpeter, que articulou em 1911 uma teoria influente da inovação em seu livro Teoria do Desenvolvimento Econômico, publicado três anos antes do lançamento da inovação no tango, a tratava ao mesmo tempo como um processo e como um produto, sem nenhum traço da velha conotação de conspiração. Schumpeter utilizou a "inovação" para descrever a tendência do capitalismo em direção a turbulências e transformações. Um elemento-chave de sua concepção é a distinção que faz entre inovação como refinamento de um processo ou produto e invenção, que é a criação de algo completamente novo.

Schumpeter desconfiava da mitologia do inventor, embora o inovador, que era uma figura mais complexa, fosse central no processo que estava descrevendo. Schumpeter compreendia a inovação de forma histórica, como um processo de transformação econômica, mas esse processo histórico dependia em sua opinião de um agente criativo, privado, que a realizasse. O termo que Schumpeter usou para nomear esse agente foi o de "empreendedor". Schumpeter escreveu mais tarde que inovar era "revolucionar o padrão de produção explorando uma invenção ou, em termos mais gerais, uma possibilidade tecnológica sem precedentes, para produzir um novo artigo".

Na segunda década do século XX, a palavra começou a aparecer de maneira habitual em nomes de marcas e anúncios (e modas de dança passageiras) com a forma mais familiar para nós hoje em dia: como um produto ou processo novo ou melhorado. Um dos primeiros produtos importantes publicado como inovação foi o roupeiro Innovation, que as lojas de departamento Gimbel colocaram à venda, em 1915, para apelar ao desejo dos clientes pela quimera do novo. (Os roupeiros, cujas características inovadoras pareciam ser a durabilidade e a "construção espaçosa", foram tão populares que “innovation trunk" passou a ser um nome genérico para qualquer roupeiro, como "Kleenex" é utilizado para todos os lenços de papel).

Embora a inovação tenha recuperado sua reputação e tenha se livrado inteiramente da ideia de subversão, ainda conserva seu antigo viés de visão profética individual, esse talento daqueles que, como disse Hobbes sobre os "inovadores", em 1651, "se consideram mais sábios do que os outros". Não é que a inovação tenha perdido sua antiga conotação moral, mas a inverteu: o que antes era considerado degenerado e enganoso agora é exaltado como visionário.

Em uma resenha escrita em 2011 sobre o falecido executivo da Apple, Steve Jobs, que provavelmente é o arquétipo do herói inovador de nossa época, um repórter do San Francisco Chronicle elogiou seu “constante desejo de inovar e correr riscos”. Nesse caso, o verbo aparecia sendo usado na sua forma intransitiva (em inglês), com seu significado mais moderno (isto é, sem complemento direto), embora não apareça de modo algum o mínimo indício de uma referência. Jobs já não inova sobre algo em particular, e isso permite que "inovar" soe como uma espécie de mantra.

"Se você não inova todos os dias e não tem um conhecimento profundo sobre seus clientes", disse um executivo da indústria do queijo de Denver ao jornal Denver Post, em 2010, "você simplesmente não cresce". E quando o autor de um obituário dedicado a Jobs escreveu no Wall Street Journal que o executivo da Apple era um “profeta secular”, que fez da inovação "uma forma de esperança totalmente secular", realmente fica claro que o termo nunca perdeu sua antiga associação com a profecia.

Além de mistificar a própria criatividade (que hoje parece mais uma explosão de inspiração intuitiva, uma epifania e menos um trabalho), a “inovação” confere à criatividade uma dimensão tanto profissional como de classe muito concreta. É quase sempre usada para atividades qualificadas e lucrativas, embora sua crescente popularidade nos ambientes educacionais sirva para refletir a progressiva influência que os modelos baseados no mercado têm nesse campo. Supõe-se que as organizações de qualidade a cultivam entre seus funcionários ao lhes dar a liberdade de trabalhar de forma independente e criativa. Raramente ouvimos dizer de um carpinteiro, encanador ou dona de casa que sejam inovadores, apesar da imaginação, improvisação e capacidades de gestão que todos possuem.

As publicações comerciais compilam listas dos “países mais inovadores do mundo”, um uso curioso que descreve: a) uma capacidade que se limita às fronteiras nacionais, como se a criatividade se dissipasse ou aumentasse quando se abandona o controle de passaportes, e, ao mesmo tempo, b) um talento humano intrínseco que não se limita a setores, indústrias ou meios concretos.

Outro exemplo da mistificação crescente da palavra é como acabou aceitando a construção tautológica “inovar na inovação”. “Quem é o melhor em inovar na inovação?”, perguntava-se a Harvard Business Review, essa mesma publicação patrocina também um prêmio generoso chamado “Desafio de inovar em inovação”. É possível que alguém possa “inovar” sem intervir em qualquer processo ou ideia, fora do ato em si da própria inovação. É possível que alguém possa inovar em círculos, para sempre.

A inovação é um exemplo de como a produção e a circulação de produtos assimilam propriedades fantásticas e até teológicas que não têm relação alguma com a mão de obra que os produz, ou no caso de muitos usos habituais do verbo "inovar", que não têm relação com nenhum objeto. Nesse sentido, quando políticos liberais promovem uma "agenda inovadora", incluindo o perdão da dívida estudantil para "criadores de startups", como prometeu Hillary Clinton durante sua campanha presidencial de 2016, não fica claro a diferença de qualquer outra forma de ajuda pública a empresas. E quando políticos e CEOs conservadores lamentam que os sindicatos e a regulamentação pública do setor privado “atrapalhem a inovação”, podemos detectar não apenas uma ofuscação ridícula, mas também outro exemplo de desrespeito burguês pela mão de obra.

A inovação é, portanto, um conceito teológico que se tornou uma teoria da produção de mercadorias e que, ultimamente, se tornou uma mercadoria em si. Enquanto isso, o inovador continuou sendo associado a um carisma inovador e visionário. No entanto, quando antes a maioria das pessoas temia inovações por serem venais e destrutivas, agora a inovação é entendida como o refinamento de um processo técnico, no qual a criatividade se torna lucro.

No entanto, como mostra a figura mítica de Jobs, mais do que substituir a profecia por procedimento, os elogios modernos à inovação complementam uma coisa com a outra. Tanto no mundo empresarial como na educação e na política, a inovação é ao mesmo tempo espiritual e tecnológica, uma reação do indivíduo frente ao mal-estar burocrático e também o espírito de criatividade que essa mesma burocracia precisa cultivar. Consequentemente, a inovação é um conceito estranhamente contraditório, que é simultaneamente grandioso e modesto, açucarado e pessimista.

O significado profético que se encontra profundamente enraizado em sua história permite que a inovação represente quase qualquer tipo de transformação positiva e, no século XXI, sirva para o mesmo que "progresso" serviu aos séculos XIX e XX. Nos Estados Unidos, a inovação também sugere uma atualização tecnológica para o mito da "engenhosidade yankee" ou do "know-how" (aquele espírito de inteligência mecânica e energia empreendedora anteriormente associado à classe de artesãos da Nova Inglaterra). Se antes eram os míticos inventores da era industrial americana (Alexander Graham Bell e Thomas Edison, operando em suas oficinas), agora o cidadão-modelo da nossa era capitalista é o inovador.

Mas o objetivo da maioria das inovações atuais é um pouco mais evasivo: é possível tocar em um telefone ou em um fonógrafo, mas quem pode pôr suas mãos sobre o algoritmo da Amazon, nos seguros de inadimplência da dívida, em um fragmento do código patenteado da Uber ou em um acordo de livre mercado? A inovação, como traço intangível e individualista, próprio unicamente dos trabalhadores qualificados, redefine as cruéis vicissitudes de uma desigual economia global para determiná-las como os lógicos produtos do brilho criativo e visionário. Com esse novo aspecto, o inovador conserva tanto os traços do profeta, como indícios do homem de confiança.

Colaborador

John Patrick Leary é o autor de Keywords: The New Language of Capitalism.

14 de abril de 2019

Marx e o profeta

Sobre o porquê do aumento do fundamentalismo nos países de maioria muçulmana se deve muito às falhas da esquerda laica.

Uma entrevista com
Gilbert Achcar

Peregrinos muçulmanos participam da oração de sexta-feira em 6 de janeiro de 2006 na cidade de Meca, Arábia Saudita. Muhannad Fala'ah / Getty

Entrevistado por
Jean-Numa Ducange

Este artigo foi publicado originalmente em Actuel Marx (2018/2), nº 64, edição especial sobre religião editada por Etienne Balibar e Michael Löwy, pp. 101-111. Traduzido do francês.

Tradução / Nas últimas décadas, houve um “retorno da religião”, pois os credos fundamentalistas se tornaram um elemento cada vez mais proeminente do cenário geopolítico. Não apenas a expansão mundial do capitalismo neoliberal não conseguiu disseminar noções seculares de ciência e progresso, mas os choques produzidos por suas crises ajudaram a alimentar respostas religiosas fundamentadas na identidade da religião.

Para além da mera condenação do dogma religioso, os marxistas há muito tempo analisam a religião como um fenômeno social que pode assumir muitas formas diferentes. Karl Marx destacou o caráter duplo da religião como uma ilusão e um conforto para os oprimidos, e muitos movimentos socialistas utilizaram a iconografia religiosa (e, para a esquerda cristã, o exemplo de Jesus) em sua causa.

Vários movimentos em sociedades de maioria muçulmana oferecem indícios de uma esquerda islâmica análoga à teologia da libertação encontrada em países católicos. No entanto, essas iniciativas ficam muito atrás do sucesso dos movimentos fundamentalistas que promovem uma compreensão retrógrada e literal do Islã. Em um período de crises globais, esses últimos têm sido mais capazes de se apresentar como um sistema de valores alternativo.

No entanto, esse revanchismo religioso não está simplesmente arraigado à terra, como se expressasse os traços culturais “essenciais” das sociedades de maioria muçulmana. De fato, se o fundamentalismo islâmico promete um retorno a um passado idealizado, seu sucesso atual é algo novo. Como Gilbert Achcar explica nesta entrevista, seu avanço não se deve apenas às palavras do Alcorão, mas também às derrotas da esquerda laica no mundo árabe e muçulmano.

Jean-Numa Ducange

Você publicou vários artigos sobre Marx, tradições marxistas e religiões. Que elementos da tradição nascida do marxismo clássico você acha que ainda são relevantes para a compreensão das questões religiosas no mundo de hoje? Ou faltam muitos?

Gilbert Achcar

Primeiro, devemos concordar com o significado de marxismo clássico. Para mim, trata-se do marxismo dos fundadores – Marx, mas também Engels – a partir do momento em que sua teoria comum começou a tomar forma, um processo no qual A Ideologia Alemã marca um ponto de inflexão fundamental. Particularmente relevante para o estudo da religião é sua abordagem materialista da análise de fatos e circunstâncias históricas e sua atitude política em relação à religião. Acredito que esse primeiro elemento ainda é fundamentalmente importante, mas sob duas condições.

A primeira condição é que reconheçamos que a contribuição essencial do marxismo clássico é uma abordagem metodológica que relaciona os fatos ideológicos à sua base material e explora a relação dialética entre o material e o ideológico. Essa é a condição indispensável para um repúdio resoluto de todos os tipos de essencialismo, como o que Edward Said popularizou sob o rótulo de Orientalismo. De fato, nessa obra, Said estava profundamente equivocado em relação a Marx, caracterizando-o entre os orientalistas do século XIX com base em um único artigo de 1853 sobre a Índia, que ele realmente leu de forma equivocada.

O que esse artigo traiu – como expliquei em um ensaio em minha coletânea Marxism, Orientalism, Cosmopolitanism – não foi uma percepção essencialista dos indianos, mas sim a concepção ingenuamente positivista do papel do capitalismo que Marx e Engels defendiam naqueles anos. A ideia de que o capitalismo estava criando “um mundo à sua imagem”, como “Deus criou o homem à sua imagem” em Gênesis, estava profundamente equivocada: o capitalismo estava, em vez disso, criando dois mundos hierárquicos, um dinâmico e dominante nas metrópoles e um aleijado e dominado no mundo colonial. No entanto, o que Said ignorou foi que Marx mais tarde repudiou essa perspectiva sobre a Índia, e Engels fez o mesmo com relação à Argélia, quando entenderam que a dominação colonial era muito mais devastadora do que “civilizatória”. Eles entenderam isso à luz de seu estudo sobre a Irlanda, um contexto que puderam compreender muito mais diretamente.

Além disso, Said deveria ter se perguntado por que os especialistas dos quais ele tomou emprestada sua crítica ao orientalismo eram todos marxistas, a começar por Anouar Abdel-Malek, que ele citou longamente em seu livro, ou Maxime Rodinson, que ele elogiou. Isso não foi coincidência: o materialismo histórico é a antítese mais radical, e a mais eficaz, do idealismo filosófico chamado Orientalismo, no sentido popularizado por Said. De fato, foi por não ter conseguido entender isso que Said não pôde evitar a armadilha do essencialismo na visão do Ocidente que emerge de seu livro.

Não se escapa do essencialismo praticando um “orientalismo às avessas”, que inverte os sinais negativos e positivos fixados nas noções de Oriente e Ocidente. É necessária uma inversão muito mais radical da perspectiva analítica se quisermos nos livrar do orientalismo e de qualquer outra forma de essencialismo cultural: precisamos entender que as “culturas”, sejam elas quais forem, não moldam a história material, mas condicionam o caráter e a evolução das culturas. Se quisermos escapar da tautologia que caracteriza todo essencialismo, então, em vez de explicar a história pela religião, precisamos explicar a religião e seus usos historicamente.

A segunda condição para um bom uso da interpretação materialista da religião é reconhecer que ela só pode oferecer uma explicação parcial dos fenômenos religiosos. De todas as formas ideológicas, a religião é certamente a mais complexa, um fato que acompanha a excepcional longevidade e adaptabilidade das ideologias religiosas. Chegar a uma compreensão satisfatória das religiões exige a mobilização de todo o conjunto de ferramentas das ciências sociais, incluindo a psicologia social e a psicanálise.

Explicar a religião como o mero “reflexo” das condições materiais da vida é um exemplo de reducionismo excessivo, mais excessivo nesse caso do que em relação a qualquer outro domínio ideológico. Paradoxalmente, é na base da atitude política em relação à religião que a contribuição do marxismo clássico mantém muito mais validade. No entanto, essa contribuição é amplamente ignorada ou mal interpretada. O fato é que, ao contrário do que muitos acreditam, Marx e Engels não eram defensores do “ateísmo militante” à la Lênin. Eles eram materialistas convictos e também ateus convictos. Mas depois que transcenderam o hegelianismo de esquerda de sua juventude, eles afirmaram que o ateísmo – definido como a negação da divindade – não era muito útil.

De fato, Marx e Engels zombavam daqueles, como os discípulos de Auguste Blanqui ou Mikhail Bakunin, que queriam abolir a religião “por decreto”. Ao mesmo tempo em que enfatizavam a necessidade de o partido dos trabalhadores lutar contra os usos reacionários e charlatães da religião, eles defendiam a liberdade da prática religiosa contra a interferência do Estado. Isso significava uma defesa intransigente do secularismo no sentido estrito da separação entre religião e Estado: a rejeição da interferência religiosa nos assuntos do Estado, mas também – e isso é frequentemente esquecido – da interferência do Estado nos assuntos religiosos. Essa abordagem parece mais relevante do que nunca.

Jean-Numa Ducange

Muito se tem falado sobre um “retorno das religiões”. Como você analisa esse fenômeno como marxista, especialmente na parte do mundo que você conhece melhor, o Oriente Médio e o Norte da África?

Gilbert Achcar

Não há como negar que testemunhamos um ressurgimento religioso desde o último quarto do século passado, um ressurgimento que alguns chamaram de “vingança de Deus”. Esse ressurgimento afetou todas as religiões, mas principalmente as monoteístas. Aqui está um bom exemplo da limitação da contribuição do marxismo clássico, pois não seria nada conveniente explicar o recente aumento das crenças e práticas religiosas como um “reflexo” da expansão do capitalismo e de sua metamorfose neoliberal. Isso é especialmente verdadeiro no caso da expansão dos fundamentalismos religiosos, que visam remodelar a sociedade e o Estado de acordo com sua leitura dogmática e literal do corpus religioso.

Há, é claro, uma concomitância óbvia entre o “retorno das religiões” e a mutação neoliberal do capitalismo, que é contemporânea ao colapso do sistema estatal pós-Stalin na Europa Oriental. O conceito de anomia de Émile Durkheim é decisivo para entender a relação entre as mudanças históricas que mencionei e o aumento da religiosidade e dos fundamentalismos religiosos. Tentei explicar isso em meu livro de 2002, The Clash of Barbarisms. Por anomia, Durkheim entendia a perturbação das condições de existência e a perda de pontos de referência, como podemos ver no mundo contemporâneo. Ele explicou como as variantes socioeconômicas e político-ideológicas da anomia estimulam uma retração identitária em torno de pontos de solidariedade social, como “religião, nação e família”.

Essa chave analítica deve ser combinada com outra – ou melhor, com uma intuição – no Manifesto Comunista de Marx e Engels, onde eles explicaram que, confrontados com o rolo compressor do desenvolvimento capitalista, parte das camadas médias, os pequeno-burgueses e afins, “tentam fazer retroceder a roda da história”. A ideia de um “retorno” à predominância da Cidade de Deus, da “restauração” do passado distante da Antiguidade ou da Idade Média – um passado altamente mitologizado, nem é preciso dizer – é de fato uma dimensão crucial dos fundamentalismos religiosos.

Esse escape retroativo e quimérico é uma reação muito compreensível à adversidade e aos infortúnios de nosso tempo presente, especialmente quando significa identificação com uma contra-sociedade, seja ela do tamanho de um pequeno clã ou de uma grande tribo.

É nesse contexto que se deve situar o aumento espetacular do fundamentalismo islâmico desde o último quarto do século passado. Vários fatores contribuíram para esse aumento, além das condições anômicas gerais a que aludi. São eles: o uso pelos governos, em quase todos os lugares, do fundamentalismo islâmico como antídoto para a radicalização de esquerda da década de 1960; o papel específico desempenhado a esse respeito pela existência de um estado fundamentalista, o reino saudita, localizado no berço do Islã, um estado que é vassalo do imperialismo dos EUA; o surgimento em 1979 de um segundo estado fundamentalista no Irã, que se opõe ferozmente ao primeiro e ao seu senhor dos EUA; as guerras travadas sucessivamente pelos dois impérios globais em terras muçulmanas: a URSS no Afeganistão, seguida pelos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão; e o papel nefasto do Estado israelense, o autoproclamado “Estado judeu”.

Refugiar-se no passado é ainda mais tentador no caso do Islã porque os contornos do passado a ser reconstituído parecem mais conhecidos para essa religião específica, que nasceu mais tarde do que a maioria das outras.

Em nítido contraste com a imitação de Cristo, a imitação de Muhammad é imediatamente política e combativa, e defende um modelo de governo. A razão para isso é que ela se baseia nas biografias religiosas (sirat) do Profeta, bem como no corpus religioso composto pelos Hadiths (atos e ditos do Profeta) e pelo Alcorão. Isso dá um vigor especial à noção de “Estado Islâmico” que os teóricos contemporâneos do fundamentalismo islâmico vêm formulando há um século.

Jean-Numa Ducange

O Islã não viu nada realmente comparável à teologia da libertação cristã, com sua aliança entre uma parte da Igreja Católica e o movimento dos trabalhadores. Como você explica isso e que conclusões você tira a respeito das perspectivas políticas nos países de maioria muçulmana?

Gilbert Achcar

Podemos explicar isso tomando emprestada a noção de Max Weber de “afinidades eletivas” – uma frase que o próprio Weber tomou emprestada de Goethe. Podemos ver essas afinidades entre o comunismo e o mito, se não a realidade, do cristianismo original: veja, por exemplo, como Rosa Luxemburgo tentou assimilar o cristianismo primitivo ao comunismo em seu ensaio de 1905 “Socialism and the Churches”. Da mesma forma, há afinidades eletivas entre o mito, se não a realidade, do Islã primitivo e o fundamentalismo islâmico de nossos dias. Uma diferença importante, porém, é que, no caso do cristianismo, a ortodoxia religiosa oficial se opõe fortemente à interpretação comunista, enquanto no caso do Islã, a ortodoxia religiosa oficial favorece a interpretação fundamentalista ao defender um dogmatismo literalista. Isso está relacionado ao fato de a ortodoxia islâmica ter sido fortemente influenciada por uma marca ultraortodoxa do islamismo propagada por dois Estados fundamentalistas: o reino saudita, para o islamismo sunita, e a república khomeinista do Irã, para o islamismo xiita – ambos os Estados desfrutam de uma importante renda petrolífera.

A partir da década de 1960, uma parte significativa da dissidência sociopolítica nas comunidades cristãs, especialmente nos países sul-americanos dominados pelo imperialismo norte-americano, assumiu uma posição alinhada com a interpretação comunista do cristianismo chamada teologia da libertação. De fato, na maioria das vezes, ela o fez contra as igrejas oficiais, que eram aliadas das ditaduras e do imperialismo.

O que aconteceu nas comunidades muçulmanas foi o oposto, pois o fundamentalismo islâmico iniciou sua ascensão. É interessante notar que, enquanto em 1979 houve uma revolução na Nicarágua impulsionada pela dinâmica socialista e envolvendo um componente cristão de esquerda significativo, no Irã, naquele mesmo ano, a revolução foi impulsionada pela dinâmica fundamentalista reacionária e liderada por uma liderança clerical. Os ativistas de esquerda que interpretaram erroneamente o significado da revolução iraniana pagaram um preço muito alto por isso: foram brutalmente esmagados pelo novo governo que eles haviam contribuído para criar.

Isso incluiu a esquerda islâmica do Irã, o mais considerável de todos os movimentos islâmicos, comparável à teologia da libertação cristã: os Mujahedin do Povo do Irã. Inspirando-se na teologia xiita de esquerda elaborada por Ali Shariati, os Mujahedin do Povo foram um dos primeiros a serem esmagados, depois de terem sido alvo, desde o início, da ponta de lança da direção da reação khomeinista, o Hezbollah do Irã. Mais tarde, os Mujahedin se degeneram no exílio e se tornaram a seita duvidosa que tem Rudy Giuliani entre seus melhores amigos.

A experiência iraniana mostra, por um lado, que um equivalente aproximado da teologia da libertação é possível no Islã e de fato existiu. Também poderíamos mencionar experiências mais limitadas dentro do Islã sunita, a mais recente das quais é a dos muçulmanos anticapitalistas da Turquia, que chamaram alguma atenção durante sua participação na mobilização do Parque Gezi em 2013 contra o governo muçulmano-conservador de Erdogan. Por outro lado, a experiência iraniana mostra que é ilusório esperar que esses movimentos atinjam proporções de massa comparáveis às que a Irmandade Muçulmana, um movimento reacionário e fundamentalista, alcançou tão rapidamente no Egito. Isso é ilusório porque os movimentos islâmicos de esquerda precisam nadar contra a poderosa corrente da ortodoxia islâmica, com uma interpretação do Islã que tem poucas afinidades verdadeiras com o Islã primitivo e, portanto, não é muito confiável em sua tentativa de reinterpretar esse legado.

É errado esperar, por meio de uma espécie de analogia cristã, o surgimento de uma réplica islâmica da teologia da libertação. A esquerda no mundo muçulmano será apenas marginalmente teológica. Em vez disso, será um fenômeno essencialmente “leigo”, no sentido do contraste entre o clero e “o povo leigo”. As correntes leigas de esquerda que reivindicam a fé islâmica como parte fundamental de sua identidade têm sido uma parte fundamental da esquerda nos países de maioria muçulmana e foram até mesmo hegemônicas neles. O Nasserismo é o exemplo mais importante: o líder egípcio Gamal Abdel-Nasser foi a maior personificação da radicalização de esquerda da década de 1960, tanto no mundo de língua árabe quanto no mundo muçulmano. Ele o fez de maneira ditatorial, sem dúvida, mas isso foi amplamente inspirado pelo “socialismo real” da União Soviética em uma época em que ela ainda podia prometer “enterrar” os estados capitalistas, como Khrushchev pôde afirmar em 1956 sem fazer papel de bobo.

Em 2012, no contexto da Primavera Árabe em andamento, todos notaram o apelo muito forte no Egito atual de uma nostalgia pelo que poderíamos chamar de “Nasserismo com rosto humano”, ou seja, uma versão democrática do Nasserismo.

Foi representado no primeiro turno da eleição presidencial daquele ano pelo candidato nasserista de esquerda Hamdeen Sabbahy. Ele foi a grande surpresa daquela eleição, um pouco como Bernie Sanders na campanha presidencial dos EUA de 2015-16. Sabbahy obteve o maior número de votos nos dois principais centros urbanos do Egito, Cairo e Alexandria, e mais de 1/5 dos votos em geral, ficando muito atrás dos dois candidatos que estavam na frente, representando o antigo regime e a Irmandade Muçulmana. Somente correntes laicas “seculares” desse tipo, e não as teológicas, mobilizaram grandes massas de fiéis na esquerda.

Essas correntes laicas de esquerda rejeitam o ateísmo dos marxistas, mas são de alguma forma inspiradas por suas análises, como os seguidores da teologia da libertação. Seus líderes são crentes e, em alguns casos, observadores ostensivos, mas sua relação com Deus não é mediada pelo equivalente a um bispo ou a um papa (isso é mais fácil no islamismo sunita do que no islamismo xiita, já que este último é mais clerical, como o catolicismo é quando comparado ao protestantismo). Eles mantêm Deus do seu lado, pode-se dizer, e denunciam como impostores aqueles que invocam Deus para fins reacionários. No auge da popularidade de Nasser, que coincidiu com o auge da radicalização de seu regime, as Irmandades Muçulmanas, vistas como colaboradoras da monarquia saudita e da CIA (o que era verdade em ambos os casos), foram marginalizadas e desacreditadas em toda a região.

Nasser não hesitou em estigmatizar os governantes sauditas como traidores do Islã, acusando-os de serem inimigos dos pobres. O apoio popular a Nasser não exigia sutilezas teológicas para conquistá-lo: eis uma boa ilustração do adágio latino vox populi, vox Dei (a voz do povo é a voz de Deus).

Jean-Numa Ducange

Você poderia falar mais sobre o caso egípcio? Os nasseristas de esquerda fazem referência a Marx? E além dos herdeiros de esquerda do nasserismo no Egito, poderia dar outros exemplos de forças de esquerda nascidas de movimentos que defendem o marxismo na região? Estou pensando no Partido Comunista Iraquiano, que tem um número significativo de partidários e recentemente venceu as eleições parlamentares como parte de uma coalizão.

Gilbert Achcar

Hoje, como antes, o nasserismo de esquerda não é hostil ao marxismo, embora não o considere uma referência. Durante sua radicalização na década de 1960, o regime de Nasser integrou em seu partido governista único – até mesmo na elite organizada do partido, a “organização de vanguarda” – vários marxistas originários do movimento comunista do Egito, que se dissolveu e se uniu ao partido nasserista em 1964. A osmose ideológica entre o nasserismo e o marxismo foi tamanha que, em meados da década de 1960 e especialmente após a derrota infligida por Israel ao Egito de Nasser na Guerra dos Seis Dias, em junho de 1967, setores inteiros do movimento nasserista pan-árabe se voltaram para o “marxismo-leninismo”, inclusive organizações de luta armada, como a Frente de Libertação Nacional do Iêmen do Sul e a Frente Popular para a Libertação da Palestina. A mesma osmose também ocorreu na FLN argelina, especialmente durante o período que antecedeu a derrubada de Ahmed Ben Bella em 1965 pela junta militar liderada por Houari Boumédiène.

Por outro lado, alguns Partidos Comunistas (PCs) do mundo de língua árabe, como os do Marrocos ou do Sudão, se comprometeram com o Islã, chegando ao ponto de esse último encenar recitação do Alcorão na abertura de suas reuniões de massa. Esse foi um exercício perigoso, embora seja possível entender que um grande partido de massa como o PC sudanês – um dos dois maiores partidos comunistas da região, sendo o outro o PC do Iraque – pudesse correr o risco de tentar transformar a voz do povo na voz de Deus. A longo prazo, porém, os comunistas sempre perdem nesse jogo: ao endossar a mistura da religião com a política, eles ficam no terreno de seus oponentes religiosos e fundamentalistas, que parecem mais legítimos nesse terreno.

Os fundamentalistas islâmicos foram os principais apoiadores ideológicos da repressão de Omar al-Bashir aos comunistas sudaneses após o golpe de 1989. Antes disso, o fundamentalismo islâmico havia sido usado na década de 1980 como fonte de legitimação ideológica por Gaafar an-Nimeiry, cuja ditadura havia esmagado os comunistas do Sudão em 1971. Os fundamentalistas islâmicos e afins também desempenharam um papel fundamental na terrível liquidação do Partido Comunista da Indonésia em 1965-66. Esse era o maior PC do mundo, depois dos da URSS e da China, e um partido que também havia se entregado à mistura de religião e política. A moral dessa história é que os marxistas não serão capazes de superar os fundamentalistas e outros reacionários islâmicos no terreno teológico. Ao mesmo tempo em que denunciam toda exploração de crenças religiosas para fins reacionários, eles devem defender com vigor a separação entre religião e estado e deixar para seus aliados muçulmanos progressistas a tarefa de confrontar a reação religiosa no combate teológico – uma tarefa para a qual esses últimos estão mais bem equipados, pois são mais autênticos. Quanto ao PC iraquiano, ele é apenas uma sombra do que foi em seu auge no final da década de 1950. Ele colaborou com a ditadura baathista nos anos 1970, apenas para ser esmagado por ela no final da mesma década. Os membros que escaparam da prisão e do assassinato foram forçados ao exílio. Eles voltaram ao Iraque após a derrubada de Saddam Hussein pelos Estados Unidos, mas colaboraram com as autoridades de ocupação. Nos últimos anos, eles recuperaram algum dinamismo ao se envolverem em lutas sociais. Nesse contexto, eles se aliaram à corrente liderada por Moqtada al-Sadr, um líder religioso por herança que é geralmente descrito como populista e que se distingue de outros movimentos xiitas iraquianos por sua oposição à influência do Irã. Os comunistas de fato participaram das eleições parlamentares como um componente da coalizão dominada pelos seguidores de al-Sadr. Mas não devemos exagerar: essa coalizão não “venceu” as eleições. Ela apenas obteve o maior número de assentos – apenas 54 de 329 – como uma das mais de 35 chapas representadas em um parlamento altamente fragmentado. Além disso, nessas eleições houve um aumento acentuado da abstenção, com menos da metade dos eleitores registrados votando. O resultado mais espetacular para o Partido Comunista foi a eleição de uma de suas líderes femininas na cidade sagrada xiita de Najaf.

Mas, mais uma vez, trata-se de uma tarefa perigosa, mesmo para um partido que tem pouca relação com o que era antes e menos ainda com o marxismo.

Nessa parte do mundo, como em qualquer outra, quando os marxistas precisam fazer alianças com forças de orientações ideológicas e programáticas opostas em muitos aspectos, as cinco regras de ouro formuladas em 1905 pelo revolucionário russo Alexander Parvus continuam sendo essenciais: “1) Não fundir organizações. Marchem separadamente, mas façam greve juntos. 2) Não abandonar nossas próprias demandas políticas. 3) Não ocultar divergências de interesse. 4) Observar nosso aliado como observamos um inimigo. 5) Preocupar-se mais em usar a situação criada pela luta do que em manter um aliado."

Colaboradores

Jean-Numa Ducange é professor na Universidade de Rouen e autor de Jules Guesde: The Birth of Socialism and Marxism in France (Palgrave, 2020) e Quand la Gauche pensait la Nation: Nationalités et socialismes à la Belle-Époque (Fayard, 2021).

Gilbert Achcar é professor da SOAS, University of London. Seus livros mais recentes são Marxism, Orientalism, Cosmopolitanism (2013), The People Want: A Radical Exploration of the Arab Uprising (2013) e Morbid Symptoms: Relapse in the Arab Uprising (2016).

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