9 de abril de 2019

A virada à direita na América Latina

Uma década atrás, a América Latina era a grande esperança da esquerda. Como os sonhos da Maré Rosa deram lugar aos horrores do Bolsonaro?

Guillaume Long


Foto: Isac Nóbrega/PR

A ascensão de Jair Bolsonaro à presidência do Brasil gerou muita inquietação na imprensa ocidental. Se ao menos a conspiração que o levou ao poder tivesse sido condenada da mesma forma. O pano de fundo da vitória de Bolsonaro foi a longa perseguição ao Partido dos Trabalhadores, de esquerda, que governava o Brasil desde 2003. Uma vez que a elite brasileira destituiu a presidente Dilma Rousseff, prendeu o ex-presidente "Lula" da Silva e o proibiu de concorrer à presidência apesar de sua liderança nas pesquisas, não havia como voltar atrás. Como na Europa dos anos 1930, foi o ancien régime que normalizou o novo monstro.

Se o Brasil oferece perspectivas sombrias para a esquerda, em outros lugares da América Latina o quadro é apenas um pouco melhor. O retorno de governos conservadores viu uma onda após a outra de reformas estruturais neoliberais agressivas. A direita endureceu seu discurso e sua base de apoio se desfez da roupagem liberal politicamente correta em favor de uma linguagem mais radical - racista, classista, sexista, homofóbica. O espaço não regulamentado da mídia social fornece uma plataforma ideal para essa nova cultura de linchamento.

Isso foi facilitado por uma política anticorrupção cínica. A América Latina é a região mais desigual do mundo, com extraordinária coexistência de riqueza e pobreza. Não é surpresa que, neste contexto, os plutocratas floresçam. Mas, longe de ser o foco do furor anticorrupção dos últimos anos, eles manejaram esse artifício político como um meio de considerar a esquerda - o único desafio real à sua riqueza concentrada - como ilegítima. O método preferido para realizar esses objetivos tem sido uma judicialização da política, denunciada como "lawfare", contra os líderes progressistas.

É verdade que os políticos latino-americanos nunca se alternaram pacificamente no poder. Novos grupos governantes frequentemente brigam com seus predecessores. Mas o argumento de que esta última campanha contra a esquerda é, essencialmente, a política usual subestima a extensão e o escopo da atual perseguição. Não apenas os líderes esquerdistas estão sendo levados aos tribunais por acusações muitas vezes absurdas, mas o grande volume de denúncias revela a natureza política das tentativas de acabar com lideranças históricas: Lula enfrenta quatro processos criminais; Cristina Fernández, seis; Rafael Correa, quinze. Seus simpatizantes e ex-camaradas têm sido alvo de caça às bruxas em uma escala sem precedentes.

A mídia corporativa da América Latina desempenhou seu papel, como sempre, na campanha contra a esquerda. Durante anos, ela encheu boletins com histórias após histórias de atividades corruptas de autoridades de esquerda. Independentemente de casos específicos eventualmente prosperarem, a cobertura mancha o legado da esquerda e propaga suspeitas. Essa batida diária de acusação ajudou a fornecer aos novos governantes de direita uma aura de renovação e legitimidade; eles podem, magnanimamente, alegar que a questão é estritamente judicial.

Lawfare, portanto, desempenha uma função social importante. Tornou-se um dos pilares mais importantes para o restabelecimento de uma ordem ameaçada pelos reformadores de esquerda e desempenha um papel fundamental no abrandamento da resistência popular aos novos pactos de elite e seus ajustes neoliberais subsequentes. O objetivo não é apenas banir líderes, mas também apagar o passado. O tempo dirá se as elites terão sucesso na construção da narrativa histórica que escolheram, ou se a memória coletiva, notoriamente escorregadia e indisciplinada, escapa de seu controle.

Este desejo de apagar o legado da "Pinke Tide" - como era conhecida em inglês - demonstra a ameaça que esses governos de esquerda representavam para a classe dominante da América Latina. Eles não eram um monólito, é claro, e eram caracterizados por vários graus de radicalismo e diferentes ênfases ideológicas. Mas, em geral, o período testemunhou uma modernização da sociedade, das instituições e da economia. A esquerda orquestrou a tão necessária redistribuição e lutou decisivamente para assegurar maior soberania em uma região historicamente ofuscada por sucessivas potências globais.

Os governos de esquerda realizaram essas reformas com mais cautela do que em experimentos estatistas anteriores. Eles fizeram questão de evitar os erros da industrialização por substituição de importações (ISI) nos anos 1950-70 e a crise da dívida e os problemas hiperinflacionários dos anos 1980, que deixaram uma marca indelével no pensamento econômico latino-americano. Com a notável exceção da Venezuela, não houve processos hiperinflacionários na América Latina durante a Maré Rosa. Mesmo a alta inflação da Argentina não se comparava ao que teria sido considerado problemático trinta anos antes. De fato, é sob o governo neoliberal de Mauricio Macri que a inflação piorou significativamente. Para a maioria desses governos progressistas, as reformas foram acompanhadas por importantes resquícios de ortodoxia. Os governos evitaram grandes dificuldades macroeconômicas, não resolveram seus déficits imprimindo dinheiro sem parar e mantiveram sua dívida externa sob controle.

Mas, além de sua prudência macroeconômica, a Maré Rosa propôs um modelo de desenvolvimento pós-neoliberal que se afastava fortemente da noção de que o mercado era a solução para todos os problemas da sociedade. As políticas econômicas que introduziu, especialmente onde foram bem-sucedidas em estimular o crescimento e melhorar os problemas sociais, estabeleceram um importante precedente. Eles demonstraram que se opor à austeridade não era apenas socialmente mais justo, mas também economicamente mais inteligente. A Bolívia quadruplicou seu Produto Interno Bruto (PIB) em doze anos. O Equador dobrou seu próprio PIB em oito anos e superou rapidamente o grande declínio das commodities de 2015-16, implementando medidas anticíclicas que protegeram com sucesso os setores mais vulneráveis da sociedade da recessão. A esquerda no poder na América Latina forneceu um exercício contemporâneo da vida real para desmascarar os mitos neoliberais. Isso nunca iria ficar sem oposição.

A campanha de criminalização da esquerda na América Latina é uma reação contra o sucesso político de um projeto pós-neoliberal que ousou desafiar uma ordem social de décadas. Uma política de intervenção social e econômica no interesse da maioria sempre foi inconciliável com a cultura das elites latino-americanas. Muito se tem escrito sobre a má disposição dos capitalistas da região para a mudança ou inovação e sua conformidade com o papel atribuído a seus países na divisão internacional do trabalho. A classe política da América Latina tem sido notoriamente incapaz de realizar estratégias para desenvolver suas próprias economias, transferindo parte do excedente capitalista para investimentos produtivos em outros setores da economia exportadora e não exportadora. Muito consumidos por suas preocupações imediatas com a sobrevivência política, os governos pré-Maré Rosa preferiram evitar o confronto com as elites, que assim se desacostumaram com a própria noção de compromisso, que é crucial para a criação de um contrato social sustentável. Eles nunca aceitariam com gentileza o recurso da esquerda ao planejamento estatal, uma agenda regulatória e a introdução de políticas públicas de "cenoura e bastão" destinadas a mudar o comportamento social e econômico.

Mas seria errado sugerir que os problemas da esquerda na América Latina foram apenas resultado do revanchismo da elite. Nos últimos anos, as forças progressistas enfrentaram um novo e inesperado inimigo político: a classe média. Os governos da Maré Rosa fortaleceram esse estrato, que havia sido espremido pelo crescimento da desigualdade na década de 1990. Pesquisa feita pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento mostra que, entre 2000 e 2012, 90 milhões de latino-americanos saíram da pobreza para engrossar as fileiras da classe média. No entanto, hoje, poucos demonstram fidelidade à política que melhorou sua condição. Este estranho fenômeno tem sido fonte de muita preocupação e debate dentro da esquerda latino-americana.

Por que um grupo social que tanto se beneficiou de políticas progressistas se voltou tão fortemente contra a esquerda? Uma chave para responder a essa pergunta é a mudança de identidade: a nova e aspiracional classe média deixou de se identificar como pobre. Ao redefinir seu senso de identidade, a classe média se distanciou de suas origens sociais, o que, por sua vez, resultou em um descontentamento com os "partidos dos pobres" de esquerda. É claramente um benefício das políticas redistributivas que as pessoas tiradas da pobreza opressiva possam aspirar mais de suas vidas, mas é a direita e não a esquerda que tende a se apropriar do discurso da aspiração. Na América Latina, os progressistas demoraram muito para lidar com esse fenômeno.

Apenas em alguns países a esquerda acompanhou ativa e politicamente essa transição da pobreza para a oportunidade com um projeto ideológico. A maioria dos partidos de esquerda aderiu ao livro de regras liberal: sua prioridade era fazer campanha, vencer eleições e fornecer demonstrações públicas de força política por meio de reuniões de massa e manifestações pró-governo. Além dos incansáveis exercícios pedagógicos de líderes carismáticos, a mobilidade social seguiu seu curso sem uma narrativa que a acompanhasse politicamente.

No espaço não preenchido pela esquerda latino-americana surgiu uma nova era de mídia social, com as classes médias emergentes imersas no nexo de comunicação do Vale do Silício. Surgiu uma forma de colonialismo digital. Seu conteúdo consumista ocidental colidia diretamente com a narrativa veiculada pela esquerda, mas sua estética e ideologia eram perfeitamente adequadas à tendência direitista da região. Mas não foi apenas na direita que a ascensão das redes sociais teve impacto. Uma série de críticas politicamente marginais - mas às vezes intelectualmente influentes - da esquerda brandiam argumentos anticapitalistas para desacreditar os governos da Maré Rosa, subestimando tanto a importância de nosso projeto antineoliberal quanto a ameaça representada pela restauração da direita.

Combater o neoliberalismo tem sido uma luta ideológica difícil, especialmente com a influência que os interesses corporativos exercem por meio da mídia no estabelecimento do senso comum econômico. A esquerda teve que lutar com unhas e dentes para defender seu modelo de investimento público, crescimento endógeno e afastamento da especialização produtiva. Mas nem todas as batalhas pareciam os confrontos revolucionários da imaginação da esquerda. Muitas dessas lutas refletiam preocupações muito mais mundanas de sustentabilidade econômica, como reforma tributária, nacionalização - ou recuperação por outros meios - de recursos naturais e renegociação de dívidas.

O capital transnacional fez questão de punir qualquer desvio de seu roteiro. Os tribunais arbitrais internacionais, dentro dos limites dos tratados bilaterais de investimento, feriram a Argentina, Bolívia, Equador, El Salvador e a Venezuela de esquerda. Esse processo demonstrou o quão pouco a burguesia doméstica valorizava a soberania: quando os governos denunciavam as dívidas "ilegítimas", as elites latino-americanas ecoavam as condenações internacionais. Em parte, isso ocorre porque muitos credores internacionais também eram plutocratas locais, especulando nos mercados às custas de seus próprios países. A luta da Argentina contra os fundos abutres dos Estados Unidos foi repleta dessa lógica, assim como a renegociação da dívida do Equador.

O equivalente latino-americano de um New Deal rooseveltiano, com alto investimento público e impulso para a construção de infraestrutura, envolveu grandes contratos de estradas, escolas, hospitais, universidades, hidrelétricas, portos, aeroportos e conectividade de todos os tipos. Se os especuladores financeiros nunca se aliaram a governos progressistas, alguns empresários, sobretudo do setor da construção civil, calaram-se. Mas a queda das commodities após 2014 também mudou isso. O investimento público abrandou. E a crise econômica geral levou muitas elites que haviam se acomodado à nova política a adotar uma abordagem mais hostil.

Mas, claro, a Maré Rosa não recuou apenas por fatores domésticos. Havia elementos geopolíticos nesse contra-ataque de direita. A sincronização de ações, discurso e estratégia é muito flagrante para que essa repentina e avassaladora restauração regional do poder tradicional seja uma mera soma de eventos isolados. Um dia, documentos desclassificados cheios de evidências sobre o papel desempenhado pelos Estados Unidos certamente virão à tona; eles sempre vêm.

Barack Obama foi paciente e afável na superfície, mas exerceu pressão constante sobre os governos progressistas regionais desde o primeiro dia de sua presidência. Seu governo reativou a presença da Quarta Frota em águas latino-americanas e aumentou significativamente o número de bases militares na Colômbia, que se tornou o primeiro parceiro latino-americano da OTAN em 2017. Obama se entusiasmou com Cuba por um lado - acreditando que o embargo era um anacrônismo político que não alcançaria a transição da ilha para o capitalismo - mas declarava a Venezuela uma ameaça à segurança nacional, por outro. Como em tantas outras áreas, Donald Trump foi pior, revertendo o degelo nas relações na primeira e impondo sanções à segunda.

O ataque contra a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) ilustra bem o tipo de realinhamento que estamos testemunhando no hemisfério. Como projeto de integração, a UNASUL foi fundamentada no realismo político estratégico. Governos de todos os matizes políticos tentaram consolidar um bloco de Estados que convergissem em questões sociais, políticas, econômicas e de segurança. Mas em abril de 2018, seis estados (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Paraguai e Peru) dos doze da organização suspenderam suas adesões. Para os Estados Unidos, um mecanismo de integração capaz de oferecer uma alternativa sul-americana à Organização dos Estados Americanos sempre seria inaceitável. A UNASUL, ainda que não declaradamente anti-imperialista, buscava acabar com a doutrina Monroe que via a América Latina como o "quintal" dos Estados Unidos.

O ataque contra a esquerda na América Latina tem sido cruel. E pelo que sabemos, pode estar apenas começando. Por outro lado, não devemos subestimar a capacidade da esquerda de se reagrupar, manter a relevância política e recuperar o governo. Vinte anos atrás, a esquerda estava em frangalhos na maior parte da América Latina; era uma força marginal e fragmentada com, na melhor das hipóteses, resultados de um dígito nas eleições nacionais, geralmente atrás de vários partidos de direita que disputavam o poder político - as sucessivas eleições presidenciais de Lula sendo a grande exceção. Hoje, a esquerda é a principal força de oposição em muitos estados latino-americanos. Sua recente vitória no México, uma importante potência regional, confirma que as aspirações coletivas por justiça social ainda são uma força motriz na política latino-americana.

Exigirá muito trabalho, paciência e, onde tiver diminuído, um compromisso renovado com as demandas populares e os movimentos sociais. Mas quando isso acontecer, a última onda de reação será superada. As forças progressistas sofreram muitas derrotas na história da América Latina - mas nenhuma delas foi definitiva. Ele desempenhará um papel de liderança nas lutas globais novamente em breve.

Sobre o autor

Guillaume Long atuou como Ministro das Relações Exteriores do Equador no governo de Rafael Correa e foi Representante Permanente do país nas Nações Unidas até janeiro de 2018. Atualmente é pesquisador associado do Institut de Relations Internationales et Stratégiques (IRIS) em Paris, França.

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