31 de março de 2021

"O progressismo não se comprometeu a superar o capitalismo"

Às vésperas das eleições presidenciais, Verónika Mendoza é projetada como candidata da esquerda peruana.

Uma entrevita com
Verónika Mendoza


Ilustração: Juan Dellacha.

Tradução / Às vésperas das eleições presidenciais, desde o Coletivo Editorial Jacobin da América Latina, tivemos a oportunidade de conversar com Verónika Mendoza, que se projeta como candidata da esquerda peruana.

Desde que você foi candidata à presidência em 2015, a mídia não se cansa de descrever você como a representante peruana do ciclo progressista latino-americano. No entanto, poucos perguntaram se você se sente pertencente a esse ciclo. Qual sua posição a em relação ao progressismo latino-americano?

Verónika Mendoza

No Peru, sempre nos sentimos um tanto afastados dos processos progressistas da América Latina. Às vezes olhamos com admiração, às vezes com críticas, mas sempre com distância. Valorizamos o seu horizonte anti-imperialista, que continua vigente e deve ser reforçado a cada passo para construir margens cada vez maiores de autonomia regional e continental. Também valorizamos a tendência redistributiva que, em maior ou menor grau, todos compartilhavam. A intenção de construir um Estado comprometido com o bem-estar das maiorias, que por meio de iniciativas várias, busque garantir direitos e permita o acesso a recursos e bens públicos, é sempre uma política saudável. Seu componente democratizante, que teve efeitos concretos na ampliação dos direitos e da dignidade dos setores populares, é outro ponto a se destacar.

As raízes históricas transformadoras que possuíam também são valiosas — e elas estão associadas ao questionamento de elementos estruturais como os de identidade ou nação. Ter como objetivo remover o substrato conservador-colonial-dependente de nossas sociedades é fundamental. Nesse sentido, o caso boliviano, com o acesso dos setores indígenas ao governo e a implementação de uma série de mecanismos democráticos, além dos tradicionais, constitui um exemplo a ser seguido. Assim foi com a tentativa venezuelana de gerar outro tipo de participação, de construir o poder a partir de outras bases, como se observou durante o governo de Hugo Chávez.

Definitivamente, no Peru nos sentimos unidos a essas experiências, passadas e recentes. É inegável que há uma identidade e uma cultura que compartilhamos com as diversas experiências populares, principalmente no que diz respeito à marca plebeia de desafiar o neoliberalismo e denunciá-lo em todas as suas versões.

Mas também há lacunas, e a possibilidade de tirar lições a partir disso depende de sermos capazes de identificá-las e discuti-las. É preciso ter clareza sobre o que podemos e não podemos fazer e o que devemos e não devemos fazer, tanto no Peru como em toda a América Latina.

Quais são, do seu ponto de vista, essas deficiências dos governos progressistas e as lições que tiramos delas?

Verónika Mendoza

De onde estamos, à esquerda no mapa político peruano, temos sido críticos em vários aspectos. Temos desenvolvido, desde a década de 1990, algumas ideias mais radicais ligadas ao movimento antiglobalização, ao Zapatismo, aos Fóruns Sociais. Trabalhar juntos com todo um movimento que ousou desafiar a ordem no momento em que ela estava mais consolidada e que buscou montar uma plataforma que fosse muito além da crítica antineoliberal.

Quando vimos o surgimento de governos progressistas em nossa região, embora os tenhamos recebido como uma boa notícia em relação ao que havia, os percebemos em outra frequência, com outros códigos. Alguns projetos sem muito compromisso com a superação do capitalismo, sem vocação alguma para ir mais longe na busca por alternativas.

O progressismo tem uma limitação muito desenvolvimentista, que se expressa na vontade de gerir o que está estabelecido, principalmente em tudo o que tem a ver com o modelo econômico extrativista. Vimos como países com governos progressistas mantinham uma dependência crescente de suas matérias-primas, mineração, petróleo ou soja, sem realmente tentar superar o modelo extrativista exportador primário. Ao contrário, muitos acabaram se exacerbando. Esse, acreditamos, é o primeiro déficit com o qual se deve aprender: não se pode realmente transformar um país mantendo uma política econômica meramente rentista e principalmente exportadora.

Um segundo déficit importante gira em torno do fato de que, apesar dos esforços e de um certo radicalismo exibido em alguns países, a estrutura dos Estados não pode ser desmontada tal como foi construída ao longo de todos esses séculos. Na Venezuela se fala em Quinta República, mas vale a pena perguntar quantos defeitos das repúblicas anteriores pesam nesta Quinta. O Estado mudou de mãos, mas não houve uma reforma profunda. A forma de organizar o poder, apesar de tudo, parece persistir inalterada.

Não se pode negar que, embora coincida com as demandas de mudanças exigidas pelos movimentos sociais e setores da cidadania, [a forma de organizar o poder] acabou por se enquadrar em uma dinâmica bastante estatal. Com isso, surge um terceiro aspecto instrutivo: a complexa relação com os movimentos sociais, muitas vezes tensa e ambivalente, transformando organizações que não se encaixavam nessa lógica em oponentes, o que acaba por colocar um manto de suspeita sobre sua autonomia. Uma experiência dramática, nesse sentido, é a do Brasil, onde todo o acúmulo do PT e sua relação com os movimentos sociais ficou tensa, o que o levou a fechar em si próprio frente às forças conservadoras que conduziram Bolsonaro ao governo. Outro exemplo é o Equador: a tensa relação de Rafael Correa com uma parte importante do movimento indígena e ambiental continua até hoje.

A dinâmica histórica das últimas décadas no Peru não pode ser comparada com nenhuma das experiências anteriores. Meu país é uma verdadeira colcha de retalhos. Pode ser que um setor da sociedade – especialmente no sul – se identifique com o progresso da mudança na Bolívia. Mas há também um outro setor que não o faz e que se identifica mais com o que está acontecendo na Argentina, onde existe um bloco nacionalista mais amplo com forte presença de uma camada tecnocrática moderna. Já entre os jovens peruanos, a identificação mais forte se dá por meio do movimento chileno e da mobilização social por uma nova constituição.

Você começou sua militância política no início dos anos 2000, nas fileiras do que já foi – fugazmente – aclamado como o veículo do progressismo peruano: o Partido Nacionalista Peruano de Ollanta Humala. Agora, como candidata à presidência do Juntos pelo Peru em 2021, como você avalia a transformação da esquerda peruana nas últimas décadas?

Verónika Mendoza

No Peru, foi o nacionalismo de Ollanta Humala que, por volta de 2011, tentou cavalgar na onda latino-americana de governos progressistas. Mas, apesar das expectativas de grande parte da população, o Partido Nacionalista nunca foi bem-sucedido. Humala nunca foi um revolucionário, longe disso. Não tinha uma cultura de esquerda, nem mesmo um tom nacional-popular. Seu projeto foi limitado desde suas origens. A correlação de forças na época de sua ascensão ao governo foi o fator que mais impôs condições, e o poder econômico – em meio a um boom geral – rapidamente se tornou dominante. Além do implemento de alguns programas sociais e do desenvolvimento incipiente da vertente social da gestão estatal, Humala acabou sendo profundamente conservador.

E é que, em nosso país, a correlação de forças herdada por Fujimori se manteve até hoje. A herança que recebemos em sua queda legou-nos todo o seu andaime de poder, inclusive a Constituição promulgada de 1993. As reformas neoliberais no Peru foram extremamente profundas, como resultado do conflito armado e da crise política das décadas de 1980 e 1990. A grande conquista de Fujimori a longo prazo foi a rearticulação e consolidação de um bloco neoligárquico dominante, aliado das Forças Armadas e extremamente poderoso.

O retrato não estaria completo se não contemplássemos também nossas próprias fragilidades: a crise política e o pragmatismo dominante na esquerda. Sem calibrar de forma justa a profunda derrota sofrida pelo movimento popular durante o conflito armado e a consequente implementação do modelo neoliberal (não só como programa de governo, mas também no sentido ideológico), é impossível entender a crise no campo progressista no Peru. Sua versão mais deformada foi personificada pela figura de Humala, mas também se expressou na crise da esquerda, recuada em torno das ONGs e buscando atalhos para o governo se acomodar mais facilmente.Mas hoje nossa realidade começa a mudar. As mobilizações desencadeadas após o afastamento de Vizcarra trouxeram à luz a necessidade de transformações de outra ordem e a disposição de amplos setores da população em promovê-las. A construção de um projeto fortemente enraizado em processos populares pode nos permitir reverter o caminho de resignação que a esquerda percorre há muito tempo. É o nosso próprio esforço, que só podemos fazer nós próprios, porque a procura de atalhos já se revelou infrutífera no passado. Não se trata de chegar mais rápido, mas de chegar melhor, com mais chances de sucesso. As experiências progressistas em nossa região representam uma referência a partir da qual podemos tirar lições positivas e negativas. Mas as forças das nossas raízes populares vão depender da originalidade do caminho que vamos traçar: nem decalque nem cópia, mas sim criação heróica, uma aposta para avançar mais.

Sobre a entrevistada

Verónika Mendoza é uma política peruana, ambientalista e feminista. Foi membro do Congresso representando a região de Cusco de 2011 a 2016, e candidata à presidência em 2016.

Fascismo universal?

Uma resposta a Ugo Palheta

Enzo Traverso


Elvert Barnes

Nos últimos anos, o aumento dramático de movimentos de extrema direita em escala global colocou a questão do fascismo no centro da agenda política. O fascismo está voltando: ninguém poderia fingir seriamente que pertence exclusivamente ao passado como objeto de estudo histórico apenas, e não foi tão intensamente discutido na esfera pública desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Devemos ser gratos a Ugo Palheta por esclarecer os termos desse debate necessário. Seu texto inclui uma dimensão analítica sobre as causas e as características dessa nova onda "fascista" e uma conclusão programática sobre os meios de combatê-la. Concordo com muitos aspectos de seu diagnóstico, mas continuo cético em relação a alguns outros. Aqui, tentarei explicar minhas razões, na esperança de que isso estimule outras contribuições.

Ugo Palheta define o fascismo como um projeto de "regeneração" da nação considerada como uma comunidade imaginada construída em torno de características étnicas e raciais homogêneas. Esta comunidade imaginária possui seus mitos "positivos" e negativos. Designa uma pureza supostamente original a ser defendida ou restabelecida contra seus inimigos: imigração ("a grande substituição"), "racismo anti-branco", corrupção feminista e LGBTQI de valores tradicionais, Islã e seus aliados ("islamo-esquerdismo"), etc. As premissas para o surgimento dessa onda neofascista, Palheta argumenta, residem na "crise de hegemonia" das elites globais, cujas ferramentas de dominação herdadas dos antigos Estados-nação parecem obsoletas e cada vez mais ineficazes. Como Gramsci explicou, revisitando Maquiavel, a dominação é uma combinação de aparatos repressivos e hegemonia cultural que permite que um regime político apareça como legítimo e benéfico ao invés de tirânico e opressor. Após várias décadas de políticas neoliberais, as classes dominantes desenvolveram enormemente sua riqueza e poder, mas também sofreram uma perda significativa de legitimidade e hegemonia cultural. Estas são as premissas para a ascensão do neofascismo: por um lado, a crescente "descida à selvageria" (ensauvagement) das classes dominantes e, por outro, as tendências autoritárias gerais (fascização) que sua dominação engendra. Portanto, aponta Palheta, o fascismo é moldado por uma contradição estrutural: pretende oferecer uma alternativa ao neoliberalismo e, ao mesmo tempo, reivindica o restabelecimento de uma ordem ameaçada. Como o fascismo clássico, que se descreveu como uma "terceira via" contra o capitalismo e o socialismo, a democracia liberal e o bolchevismo, o neofascismo pretende lutar contra o "establishment", mas também deseja restaurar a lei e a ordem. Historicamente, esta foi uma das características da Revolução Conservadora.

Concordo com a definição de Palheta do fascismo como um projeto de "regeneração" da nação, mas não me parece completa ou satisfatória, na medida em que não compreende o conjunto dos elementos constitutivos do fascismo. Visto com lentes históricas, o fascismo era mais do que uma forma de nacionalismo radical e uma ideia racista de nação. Foi também uma prática de violência política, um anticomunismo militante e uma destruição completa da democracia. A violência, especialmente dirigida contra a esquerda e o comunismo, era a forma privilegiada de sua ação política e, onde quer que chegasse ao poder - seja legalmente, como na Itália e na Alemanha, ou por meio de um golpe militar, como na Espanha - ela destruía a democracia. Deste ponto de vista, os novos movimentos da direita radical têm uma relação diferente tanto com a violência quanto com a democracia. Eles não possuem milícias armadas; eles não reivindicam uma nova ordem política e não ameaçam a estabilidade das instituições tradicionais. Se eles pretendem defender "o povo" contra as elites e restabelecer a ordem, eles não desejam criar uma nova ordem. Na Europa, eles estão mais interessados ​​em implementar tendências autoritárias e nacionalistas dentro da UE, em vez de destruir suas instituições. Essa é a postura de Victor Orban na Hungria e Mateus Morawiecki na Polônia, assim como a orientação da Vox na Espanha, do Rassemblement National de Marine Le Pen na França e da Lega de Matteo Salvini na Itália, três forças políticas que finalmente aceitaram o Euro. A Lega italiana ingressou recentemente em um governo de coalizão liderado pelo ex-diretor do BCE, Mario Draghi, a personificação simbólica do neoliberalismo e das elites financeiras. Na Áustria, Holanda e Alemanha, os países que mais se beneficiaram com o euro, a extrema direita é certamente xenófoba e racista, mas não particularmente anti-UE, anti-euro ou oposta ao neoliberalismo. Seu perfil político é muito mais calcado no conservadorismo cultural. Na Índia, no Brasil e nos Estados Unidos, líderes de extrema direita chegaram ao poder e desenvolveram tendências autoritárias e xenófobas sem questionar o arcabouço institucional de seus Estados. Bolsonaro e Trump não só não conseguiram dissolver o parlamento, mas também concluíram ou estão terminando seus mandatos enfrentando vários procedimentos de impeachment.

O caso de Donald Trump, o mais espetacular e discutido nos últimos meses, é particularmente instrutivo. Sua trajetória fascista apareceu claramente no final de sua presidência, quando se recusou a admitir a derrota e tentou invalidar o resultado eleitoral. A "insurreição" folclórica de seus partidários que invadiram o Capitólio não foi um golpe fascista fracassado; foi uma tentativa desesperada de invalidar as eleições de um líder que certamente rompeu com as regras mais elementares da democracia - o que permite retratá-lo como fascista - mas foi incapaz de indicar uma alternativa política. Os eventos do Capitólio revelaram incontestavelmente a existência de um movimento fascista de massas nos Estados Unidos, mas esse movimento está longe de conquistar o poder. Sua consequência imediata foi colocar o GOP em uma crise profunda. Trump ganhou as eleições em 2016 como candidato do Partido Republicano: uma coalizão de elites econômicas, classe média alta interessada em cortes de impostos, defensores dos valores conservadores, fundamentalistas cristãos e classes populares brancas marginalizadas e empobrecidas atraídas por um voto de protesto. Como o líder fascista de um movimento de supremacistas brancos e nacionalistas reacionários, no entanto, Trump não tem muitas chances de ser eleito. O movimento fascista por trás dele é certamente uma fonte de instabilidade política, que pode levar a confrontos violentos contra o BLM e outros movimentos de esquerda, mas deve ser entendido em seu contexto adequado. Diferentemente das milícias fascistas em 1920-1925 ou das SA em 1930-1933, que expressaram a queda do monopólio estatal da violência na Itália e na Alemanha do pós-guerra, as milícias de Trump são o legado da história dos Estados Unidos, país que durante séculos considerou as armas individuais como uma característica fundamental da liberdade política.

O fascismo clássico nasceu em um continente devastado pela guerra total, cresceu em um clima de guerras civis, dentro de Estados profundamente instáveis e institucionalmente paralisados por agudos conflitos políticos. Seu radicalismo surgiu de um confronto com o bolchevismo, o que lhe deu seu caráter "revolucionário". O fascismo foi uma ideologia e imaginação utópica, que criou o mito do "Novo Homem" e da grandeza nacional. Os novos movimentos de extrema direita carecem de todas essas premissas: eles saem de uma "crise de hegemonia" que não pode ser comparada com o colapso europeu dos anos 1930; seu radicalismo não contém nada de "revolucionário" e seu conservadorismo - a defesa de valores tradicionais, culturas tradicionais, ameaças de "identidades nacionais" e uma respeitabilidade burguesa oposta a "desvios" sexuais - não possui a ideia de um porvir que moldou tão profundamente as ideologias fascistas e utopias. É por isso que me parece mais apropriado descrevê-los como "pós-fascistas".

Considerando a ideologia e a propaganda dos movimentos de direita radicais contemporâneos, Palheta enfatiza de forma pertinente suas fortes tendências anti-cosmopolitas, nas quais ele apreende alguns elementos de continuidade com o anti-semitismo fascista. Isso é certamente verdade, mas ele curiosamente negligencia uma grande mudança que ocorreu nas últimas duas décadas e que os distingue significativamente do fascismo clássico. Seus principais alvos não são mais os judeus - a maioria dos movimentos de extrema direita tem relacionamentos muito bons com Israel - mas sim os muçulmanos. A islamofobia substituiu o anti-semitismo na retórica pós-fascista: o mantra da luta contra o judeu-bolchevismo foi substituído pela rejeição do "islamo-esquerdismo" e dos movimentos "descoloniais" ou anticoloniais. Uma vez que a influência dos movimentos de esquerda contemporâneos - particularmente anti-racistas, feministas e LGBTQI - é certamente significativa, mas não comparável ao impacto do bolchevismo durante as décadas entre guerras, quando a alternativa foi incorporada pela URSS, o pós-fascismo traz à mente muito mais "desespero cultural" (Kulturpessimismus) do que o fascismo histórico.

Falar dos novas extrema-direitas como "contra-revolução" - seja "póstuma" ou "preventiva" - não me parece útil ou esclarecedor, uma vez que simplesmente transpõe o fascismo histórico para um conjunto de movimentos que abandonaram explicitamente essa referência ideológica e política. Descrever o fascismo como contra-revolução foi significativo nas décadas de 1920 e 1930, em um contexto europeu moldado pela Revolução de Outubro, o biennio rosso italiano (as ocupações das fábricas de 1919-20), a revolta espartaquista de janeiro de 1919 em Berlim, as guerras civis na Baviera e Hungria em 1920, e a Guerra Civil Espanhola em 1930, mas se torna um slogan quase incompreensível quando aplicado a Marine Le Pen, Matteo Salvini, Victor Orban, Jair Bolsonaro ou mesmo Donald Trump. A contra-revolução não existe sem revolução.

Palheta tem razão ao apontar uma tendência a reforçar o controle social e as tecnologias de vigilância, e a estender o escopo da repressão policial. Esta tendência, ele argumenta, molda a maioria dos estados contemporâneos e expressa uma "descida à selvageria" geral (ensauvagement) da classe dominante. Essas mudanças, no entanto, pertencem à maioria das democracias liberais e não podem ser relacionadas à ascensão do fascismo. Nos Estados Unidos, Obama expulsou mais imigrantes sem documentos do que Trump, e a exacerbação da violência racista policial levou à criação do Black Lives Matter em 2013, três anos antes da eleição de Donald Trump. Na França, leis de exceção foram promulgadas sob a presidência de Hollande após os ataques terroristas de 2015 e um aumento dramático da violência policial contra movimentos sociais, notadamente os Coletes Amarelos, ocorreu desde a eleição de Macron em 2017. Todas essas tendências não refletem um “dinâmica de fascização”, mas sim a emergência de novas formas de neoliberalismo autoritário. Na maioria dos casos, as partes da extrema direita apóiam essas mudanças sem gerenciar sua aplicação. Na década de 1930, as elites industriais, financeiras e militares europeias apoiaram o fascismo como uma solução para crises políticas endêmicas, paralisia institucional e principalmente como uma defesa contra o bolchevismo. Hoje, as classes dominantes apoiam a UE em vez de movimentos populistas, nacionalistas e neofascistas que reivindicam um retorno às "soberanias nacionais". Nos Estados Unidos, as classes dominantes podem apoiar o Partido Republicano como alternativa costumeira ao Partido Democrata, mas nunca endossariam a supremacia branca contra Joe Biden. Não porque eles acreditem na democracia, mas porque Biden é incomparavelmente mais eficaz do que a supremacia branca na defesa do próprio establishment.

Isso significa que não há perigo fascista? De jeito nenhum. O aumento dramático de movimentos, partidos e governos de extrema direita mostra claramente que o fascismo pode se tornar uma alternativa, especialmente no caso de uma crise econômica geral, uma depressão prolongada da economia dos Estados Unidos ou um colapso do euro. Tais desenvolvimentos podem radicalizar esses movimentos em direção ao fascismo e dar-lhes grande apoio de massa. Sua relação com as classes dominantes mudaria inevitavelmente, como aconteceu na década de 1930. Mas essa tendência está longe de prevalecer hoje. É interessante observar que a pandemia de Covid-19 não produziu uma onda de xenofobia ou busca de bodes expiatórios. Nos Estados Unidos, levou à derrota eleitoral de Trump (a despeito da radicalização do trumpismo), no Brasil a crescentes dificuldades para Bolsonaro e no continente ao reforço da UE, que mitigou seu neoliberalismo habitual ao adotar inesperadas políticas neo-keynesianas. A "possibilidade do fascismo" permanece, mas a crise econômica gerada pela pandemia não a reforçou. Na Itália, durante os piores meses desta emergência sanitária, o ódio aos refugiados e imigrantes foi substituído pela solidariedade espontânea e pela acolhida popular de médicos chineses, albaneses e africanos que vieram ajudar os seus exaustos colegas. Esta tendência certamente não é irreversível, mas mostra que não estamos perante um irresistível processo de fascização.

Até agora, os movimentos neofascistas e pós-fascistas estão presos na contradição descrita por Palheta: ou eles aparecem como uma alternativa "anti-sistêmica" e permanecem excluídos do poder; ou participam do restabelecimento da lei e da ordem aceitando o "sistema", com suas regras e instituições. Nesse caso, porém, passam a fazer parte do establishment que antes rejeitavam. O próprio Palheta indica a "normalização burguesa" como um possível resultado da atual "crise de hegemonia" do neoliberalismo. Mas a "normalização burguesa" é incompatível com uma "dinâmica geral de fascização". Essa trajetória - o que alguns estudiosos chamaram de virada "bonapartista" ou desfascização - geralmente ocorreu após o estabelecimento de um regime fascista (pense no franquismo tardio). Se esta "normalização" molda um movimento fascista antes de conquistar o poder, isso significa que uma "dinâmica de fascização" não existia. Na Itália, a "normalização burguesa" da Lega ocorreu sem qualquer "forte resposta popular" (que é a condição que Palheta indica para tal "normalização"). Em outros países, o espectro do fascismo poderia ser usado pelas próprias elites para contrastar sua "crise de hegemonia". Para Biden, Macron e Merkel, pode ser um pretexto conveniente para silenciar qualquer oposição de esquerda.

A conclusão de Palheta é um apelo ao antifascismo, um antifascismo concebido não como "uma luta setorial, um método particular de luta ou uma ideologia abstrata", mas sim como uma dimensão central da política de esquerda, como algo que "permeia e envolve todos os movimentos de emancipação". Uma esquerda dotada de consciência histórica e memória do passado não pode deixar de concordar com esta proposição. Apesar da sensibilidade de Palheta a essa necessidade de um ethos antifascista heterogêneo, em vez de uma ideologia antifascista monolítica, sua descrição do fascismo em si corre o risco de obstruir algumas das dinâmicas pós-fascistas únicas contra as quais lutamos hoje. O antifascismo não é a panaceia para um "processo de fascização" universal; em vez disso, deve ser adaptado e exibido de acordo com a diversidade dos contextos nacionais.

Sobre o autor

Enzo Traverso é historiador, professor da Cornell University e autor, entre outros, de The New Faces of Fascism: Populism and the Far Right.

O fascismo é uma reação à crise capitalista no estágio do imperialismo

Uma resposta a Ugo Palheta

Ken Kawashima


Marc Nozell de Merrimack, New Hampshire

Quero agradecer à Historical Materialism por me permitir responder ao artigo de Ugo Palheta, "Fascismo. Fascização. Antifascismo".[1] A seguir, gostaria de desenvolver de forma muito esquemática o significado e as implicações desses três termos.

Sobre o fascismo. Ugo define o fascismo como "uma força capaz de desafiar" o sistema ", bem como restabelecer a "lei e a ordem", e, portanto, o fascismo é uma "mistura explosiva de falsa subversão e ultraconservadorismo". O fascismo, a esse respeito, é uma contradição comovente da sociedade capitalista. Um dos grandes problemas com o fascismo, no entanto, é que - e para usar um termo do mundo da luta livre profissional - o fascismo tem um efeito 'full-nelson': com um braço, trava as cabeças dos trabalhadores nas não-contradições dentro das massas; com o outro braço, trava as cabeças dos trabalhadores nas contradições de classe. Colocando de forma diferente, fascistas (como Trump), que são portadores (Träger) do fascismo, experimentam grande prazer, diversão, popularidade de culto, segurança no emprego e riqueza por "sair do seu caminho" para incorporar e vocalizar a diferença entre contradição (classe) e não-contradição (massas). É por isso que o pensamento fascista, embora muitas vezes soe rebelde, é uma rebeldia falsa. Na verdade, é simplesmente e apenas puro ecletismo. Como disse Lênin: "O eclético é muito tímido para ousar se revoltar ... Que alguém cite um único eclético na república do pensamento que tenha se mostrado digno do nome de rebelde."[2]

O que poderíamos chamar de ecletismo fascista nada mais é do que uma miscelânea de teoria que confunde as fronteiras entre as contradições de classe e as não-contradições de massa, e que "seduz camadas sociais cujas aspirações e interesses são fundamentalmente antagônicos". O fascismo, portanto, neutraliza os antagonismos (de classe) por meio de uma sedução massiva de atração e repulsão, e funciona chamando sua atenção, "mexendo com você" ou provocando você, por exemplo, "Ei chink (ou qualquer termo racista), o que você vai fazer, hein, me bater? Talvez me corte com sua espada de samurai, hein?!?", etc., etc. Por meio de táticas infantis testadas e comprovadas como essas, o fascismo na vida cotidiana tenta seduzir, antagonizar e convencer os trabalhadores a desviar seu antagonismo de classe contra o capital, e redirecionar esses antagonismos para um ataque a outras raças de pessoas, ao mesmo tempo deixando o despotismo e a ditadura do capital intocados. Isso é o que poderíamos chamar de ideologia racial do fascismo, também.[3]

Ugo também fala de "fascismo histórico", especialmente do período entre guerras, e essencialmente como uma formação de reação à "crise estrutural do capitalismo". O que está faltando neste relato do fascismo histórico, entretanto, é o problema da crise capitalista no estágio capitalista do imperialismo. É importante entender o fascismo como uma formação de reação à crise capitalista no estágio do imperialismo, especificamente, e por três razões.

Em primeiro lugar, em termos gerais, o capitalismo no estágio do imperialismo é (supostamente) o final ou último estágio de desenvolvimento do capitalismo e, portanto, a crise capitalista no estágio do imperialismo é uma crise do capitalismo em seu estágio final. O fascismo, então, é uma formação de reação à crise capitalista em seu estágio final. O problema aqui, obviamente, é que o estágio do imperialismo pode durar muito tempo - em parte por causa do próprio fascismo. Assim, o fascismo deve ser entendido como um problema que visa adiar o fim da fase imperialista e, assim, adiar o fim do próprio capitalismo.

Em segundo lugar, a crise capitalista, que é fundamentalmente inevitável para a sociedade capitalista baseada na mercantilização da força de trabalho, é sempre uma crise de capital excedente ao lado de populações excedentes, ou seja, uma crise da impossibilidade de reunir os produtos do trabalho do capital em uma união com os trabalhadores quem os produziu e com as populações excedentes que estão desempregadas pelo capital.[4] Como uma crise desse tipo (que não é apenas uma crise de superprodução e subconsumo, nem simplesmente uma crise da tendência de queda da taxa de lucro), a crise capitalista ainda é inevitável na fase capitalista do imperialismo, mas ao contrário da crise capitalista na fase anterior do liberalismo (1820 a 1860), a crise capitalista na fase do imperialismo atinge todo o mundo, mais ou menos simultaneamente, o que se deve ao domínio e o surgimento do capital financeiro e do capital monopolista após a crise de 1873.[5] O fascismo é uma formação reativa de recusa e negação das contradições da sociedade capitalista e de sua crise inevitável sob o domínio do capital financeiro e da oligarquia financeira. Assim, quando o fascismo tenta parecer ou soar "radical", muitas vezes se refere às vítimas da classe trabalhadora do capital industrial, como se parecesse crítico do capital financeiro e das elites de Wall Street. Isso, no entanto, é uma ilusão. O fascismo é fundamentalmente de natureza financeira e prospera em Wall Street.

Terceiro, no estágio do imperialismo, a fase da depressão da acumulação do capitalismo, que necessariamente vem depois da própria fase de crise de acumulação, torna-se crônica. No estágio anterior do liberalismo, o ciclo capitalista de prosperidade-crise-depressão seguia um ciclo de dez anos, ou os chamados ciclos decenais (Marx, 1990, Capítulo 25). O imperialismo distorce a duração das fases do ciclo de acumulação, mantendo o ciclo global intacto, e o faz ao prolongar a fase de depressão, como a que se seguiu à crise de 1929. O comprimento desta duração é parcialmente determinado pelo tempo que leva para vender o capital fixo antigo e desatualizado, que se torna enorme quantitativamente no estágio do imperialismo e, portanto, mais difícil de ser vendido rapidamente. Isso revela o salto mortale, ou "salto de fé" da própria forma-mercadoria no estágio do imperialismo, que impacta não apenas os capitalistas, mas também os trabalhadores, que agora devem lutar cronicamente para vender sua força de trabalho como mercadoria na fase da depressão. Em outras palavras, da perspectiva dos trabalhadores, depressão crônica significa desemprego crônico, então, no estágio capitalista do imperialismo, o maior problema para os trabalhadores é o medo econômico crônico, a insegurança laboral crônica (ou "precariedade") e o desemprego crônico.

No imperialismo, o estado capitalista tem que usar tudo o que tem para evitar que a força de trabalho desempregada forme solidariedades e alianças com os trabalhadores empregados e em uma força de classe proletária unificada e antagônica contra a ditadura do capital. Se não conseguirmos compreender este aspecto da depressão crônica do imperialismo, a fonte histórica e materialista do poder sedutor do fascismo sobre os trabalhadores (desempregados) está em grande parte perdida. Em outras palavras, o fascismo, como uma formação de reação à crise capitalista e à depressão crônica no estágio capitalista do imperialismo, tenta tornar o próprio imperialismo crônico, prolongando e adiando a morte inevitável do capitalismo.

Sobre fascização. Segundo Ugo, as principais formas de fascização são o endurecimento autoritário do Estado e a ascensão do racismo. Ugo também escreve sobre a fascização do estado em termos de como "todo o funcionamento da polícia é fascisado", o que permite que a "extrema direita espalhe suas ideias e se estabeleça dentro delas". Novamente, o período entre guerras é um indicativo desses problemas. Vou mencionar dois pontos.

Em primeiro lugar, quando consideramos o fascismo como uma reação à crise capitalista na fase do imperialismo, uma das características claras e ideológicas da fascização é o que chamarei de inconsciente feudal do fascismo, que é peculiar ao capitalismo na fase do imperialismo. Este é um problema do período entre guerras, que é também um problema da fase do imperialismo. Em outras palavras, nos estágios capitalistas de mercantilismo e liberalismo que precederam o imperialismo, os costumes, sentimentos e práticas feudais foram reprimidos para permitir o desenvolvimento do modo de produção capitalista baseado na mercantilização da força de trabalho. Arquetipicamente, isso ocorreu na fase do liberalismo (1820-1860) e na Inglaterra. No entanto, esses mesmos costumes, sentimentos e práticas feudais voltam com força total na esteira da crise capitalista no estágio do imperialismo, o último estágio do capitalismo, e especificamente no período entre guerras dos chamados países de desenvolvimento tardio como Japão, Alemanha, e os EUA.[6] Nesses países, não foi difícil para o bloco dominante hegemônico reintroduzir estrategicamente os costumes, sentimentos e práticas feudais a fim de derrotar as lutas proletárias modernas, porque essas formas de feudalismo ainda sobreviviam dentro das formações sociais no nível de costumes, sentimentos e práticas.[7] A crise capitalista no estágio do imperialismo, portanto, traz um retorno desagradável de costumes feudais reprimidos, sentimentos e práticas - arcaísmos - como um mecanismo reativo e defensivo para salvar o capitalismo de sua morte inevitável no estágio de imperialismo. A fascização prefere recodificar o feudalismo, que já conhece e que arquiva ativamente, em vez de enfrentar um futuro incerto após o capitalismo. Podemos citar dois exemplos de fascização como uma re-feudalização no imperialismo em dois países, Japão e EUA:

  • Japão entre guerras: práticas feudais originadas no período Tokugawa (1603-1868) foram usadas após a Primeira Guerra Mundial para organizar diaristas em grandes projetos de obras públicas, que se expandiram especialmente após a crise de 1929. A diferença na década de 1930 é que o fascismo japonês re-feudalizou colonizou o trabalho da Coréia, China, Taiwan e Okinawa, e não simplesmente o trabalho do prisioneiro nativo, que o regime de Tokugawa usou para seus projetos de obras públicas.[8]
  • Entre guerras dos Estados Unidos: o racismo sistêmico da era do Jim e Jane Crow na década de 1930 tem raízes na era pré-Guerra Civil de trabalho escravo feudal, bem como nos Códigos Escravos e depois nos Códigos Negros. Como A Reconstrução Negra na América, 1860-1880 de W.E.B. Dubois mostrou de forma tão poderosa que as condições racistas de Jim e Jane Crow na América nos anos 1930 têm suas origens nos Códigos Negros da era da Reconstrução (1865-1880); os próprios códigos negros simplesmente recodificaram os códigos escravos feudais. Assim, quando Dubois fala do capitalismo nos Estados Unidos após a crise de 1873, e do movimento contra-revolucionário que derrotou a ditadura do proletariado negro que emergiu momentaneamente no início da Reconstrução, Dubois se refere ao "novo feudalismo baseado no monopólio" que surgiu após a crise de 1873.[9]

O segundo ponto sobre o fascismo é o problema do racismo e do policiamento. No estágio do imperialismo, o aparelho repressivo do estado (RSA) tende a se tornar cada vez mais autônomo do aparelho ideológico do estado (ISA, que se concentra mais na Mente e na comunidade imaginada da Nação). A relativa autonomia da RSA, que se concentra mais no Corpo, é uma razão importante de como e por que a ideologia racial se tornou a filosofia oficial do próprio sistema policial. Nesse ponto, os períodos entre guerras no Japão e nos Estados Unidos são novamente instrutivos. No Japão, o sistema policial passou por uma transformação radical durante a depressão crônica após o fim da Primeira Guerra Mundial, e revelou como o racismo (colonial) se espalhou por meio do trabalho da polícia, especificamente estendendo o trabalho policial a organizações de bem-estar, bem como à escritorios da polícia de imigração em todo o império japonês. Estender o trabalho da polícia ao trabalho de assistência social foi uma prática que foi usada pela primeira vez na Inglaterra na década de 1840 (com a ideia de "policiamento preventivo" de Edwin Chadwick) e depois pelo Departamento de Polícia de Nova York após a Primeira Guerra Mundial. No Japão, o novo slogan policial da polícia do entreguerras era assim: 警察 の 民衆 化 ・ 民衆 の 警察 化, ou "a massificação da polícia e o policiamento das massas".[10]

No caso dos EUA, Black Reconstruction in America, 1860-1880 de Dubois mostra novamente como o sistema policial moderno dos anos 1930 herdou os legados dos códigos de escravos feudais e dos códigos negros da era da reconstrução, e recrutou brancos pobres para as fileiras da polícia para reprimir, criminalizar e encarcerar os trabalhadores negros, em última análise, como um meio de regular a formação do mercado de trabalho nacional de acordo com o que Dubois chamou de "o shibboleth da raça" e "a filosofia racial". Dessa forma, o racismo se tornou a filosofia oficial da polícia.

Sobre anti-fascismo. O artigo de Ugo identifica de forma importante a "crise da alternativa" à ordem existente da sociedade capitalista como uma das causas básicas da ascensão do fascismo, fasciszação, neofascismo e da nova direita. A questão do antifascismo, portanto, deve começar perguntando como superar a crise de articulação da alternativa ao capitalismo, que levou à "incapacidade da classe explorada (proletariado) e dos grupos oprimidos de se constituírem como sujeitos políticos revolucionários e engajar-se em uma experiência de transformação social (embora limitada)". Esta incapacidade tem permitido que "a extrema direita apareça como alternativa política e ganhe a adesão de grupos sociais muito diversos". Ugo enfatiza assim a necessidade de o proletariado, definido como "o explorado", e o subalterno, definido amplamente como o oprimido, "se unir politicamente em torno de um projeto de ruptura com a ordem social e aproveitar a oportunidade apresentada pela crise de hegemonia". Por fim, Ugo nos lembra de nunca renunciar à construção de laços de solidariedade entre (a) as lutas antifascistas e a necessidade de ruptura com o capitalismo racial, patriarcal e ecocida, e (b) "a meta de uma sociedade diferente (que nós aqui chamaremos de ecosocialista)."

Em outras palavras, a luta contra o fascismo não deve se limitar a derrubar os aspectos mais flagrantes da expressão e dominação fascistas apenas, como se o fascismo pudesse ser derrotado simplesmente eliminando o racismo, o patriarcado, o ultranacionalismo e o ecocídio. Em vez disso, para superar verdadeiramente o fascismo, e para evitar até mesmo a possibilidade de um futuro retorno de novas formas de fascização, as lutas antifascistas devem mirar e disparar mais alto, por assim dizer, ou seja, aspirar ao objetivo maior de criar um uma nova sociedade. Derrubar apenas as formas de fascização sem derrubar a ditadura de classe do capitalismo no estágio do imperialismo só levou a formas de política de identidade que simplesmente reproduzem o que Tosaka Jun, escrevendo em 1933, chamou de liberalismo cultural, ou seja, uma das condições epistemológicas do próprio pensamento fascista . [11]

Para desenvolver ainda mais a noção de antifascismo de Ugo, eu concluiria enfatizando dois pontos. Em primeiro lugar, Ugo tende a enfatizar uma concepção do proletariado como explorado e a combina e contrasta com o "subalterno" e o "oprimido". Um problema, entretanto, está na concepção do proletariado simplesmente como explorado, o que obviamente se refere à análise de Marx da exploração do tempo de trabalho excedente dos trabalhadores no processo de trabalho e valorização da produção capitalista, que produz valores absolutos e relativos. mais-valia para a classe capitalista. Nunca se deve esquecer, no entanto, que essa própria definição do proletariado (como explorado) repousa sobre uma concepção reprimida do proletariado-como-o-expropriado, que é o resultado da chamada acumulação primitiva, ou seja, o processo de expropriação liderado pelo estado (e não pelo capital). O proletariado como expropriado precisa ser libertado de sua repressão teórica no inconsciente político e econômico da teoria marxista de hoje, que muitas vezes é apenas (ou ainda apenas) consciente do proletariado como explorado.

Repensar o proletariado sob a perspectiva dos expropriados é pensar o modo de produção capitalista sob a perspectiva de suas condições de possibilidade, não sob a perspectiva de seus resultados inevitáveis. Isso é o que Althusser enfatizou quando escreveu:

Quando Marx e Engels dizem que o proletariado é 'o produto da grande indústria', eles proferem uma grande bobagem, posicionando-se dentro da lógica do fato consumado da reprodução do proletariado em uma escala ampliada, não na lógica aleatória do 'encontro' que produz (em vez de reproduzir), como proletariado, essa massa de seres humanos empobrecidos e expropriados como um dos elementos que constituem o modo de produção. Nesse processo, Marx e Engels passam da primeira concepção do modo de produção, uma concepção histórico-aleatória, para uma segunda, que é essencialista e filosófica. [12]

Pensar o proletariado igualmente como expropriado não só traz à tona as condições do capitalismo. Também revela a perspectiva de negar dialeticamente o capitalismo, construindo condições para o ecossocialismo e a sociedade comunista. Essa perspectiva, portanto, aborda o comunismo não como um fato consumado, mas antes como um fato a ser realizado. Em outras palavras, "o mar mais bonito ainda não foi cruzado". [13]

Assim, em segundo lugar, pensar uma revolução ecossocialista e uma nova sociedade comunista da perspectiva do fato a ser realizado, e não do fato realizado, é a tarefa em mãos. Esta é também a tarefa da 'ditadura do proletariado', uma ideia que precisa ser renovada hoje, especialmente depois que os partidos comunistas oficiais a abandonaram em meados da década de 1970, para o deleite da ditadura emergente do capital neoliberal. [ 14] Concluo assim a minha resposta ao artigo de Ugo com a eterna questão da ditadura do proletariado e com uma citação da Crítica do Programa de Gotha de Marx:

Surge então a questão: por quais transformações o estado passará na sociedade comunista? 
... Entre a sociedade capitalista e a comunista está o período da transformação revolucionária de uma na outra. A isso corresponde também um período de transição política em que o Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado. [15]

Ao pensar no antifascismo, uma tarefa básica e função estatal da ditadura do proletariado no período socialista da transformação revolucionária da sociedade capitalista para a comunista é, e não pode deixar de ser: a negação e sublação da mercantilização da força de trabalho (oU 労働力商品化の無理・止揚), seu aufheben em novas formas de socialidade e intercurso comunista. [16]

Para erradicar a ideologia racial sistêmica que sustenta o racismo fascista hoje, é necessário cada vez mais superar e negar a mercantilização da própria força de trabalho.

Ser ou não ser, uma mercadoria da força de trabalho, eis a questão. É a questão do LP-X, 17 da Greve Geral, da transição revolucionária do capitalismo ao comunismo e da ditadura do proletariado.

Referências

Althusser, Louis 2006, Philosophy of the Encounter: Later Writings, 1978-1987, Verso.

Balibar, Etienne 1977, On the Dictatorship of the Proletariat, NLB.

DuBois, W.E.B. 1992, Black Reconstruction in America, 1860-1880, Free Press.

Haider, Asad 2018, Mistaken Identity: Race and Class in the Era of Trump, Verso.

Harootunian, Harry 2015, Marx after Marx, Columbia UP.

Kawashima, Ken 2009, The Proletarian Gamble: Korean Workers in Interwar Japan, Duke UP.

________, Fabian Schaeffer and Robert Stolz 2013, Tosaka Jun: A Critical Reader, Cornell UP.

Kawashima, Ken and Gavin Walker 2018. "Surplus alongside Excess: Uno Kozo, Imperialism and the Theory of Crisis," in Viewpoint Magazine dossier on imperialism.

Lenin, V.I., Book Review: Karl Kautsky. Bernstein und das sozialdemokratische Programm. Eine Antikritik, Lenin Collected Works, Progress Publishers, vol. 4.

Marx, Karl 1990, Capital, Vol. 1, Penguin.

______. Critique of the Gotha Program (1875), in The Marx-Engels Reader, edited by Robert Tucker, Norton, 1978.

Sotiris, Panagiotis 2020, A Philosophy for Communism: Rethinking Althusser, Brill.

Uno, Kōzō 1953, Theory of Crisis, translated by Ken Kawashima, forthcoming, Brill.

__________1958 Shihonron to Shakaishugi, Uno Chosakushu, Vol. 10, Iwanami, 1973.

Walker, Gavin 2016, The Sublime Perversion of Capital: Marxism and the Politics of History in Modern Japan, Duke UP.

Ken Kawashima é professor associado, Departamento de Estudos do Leste Asiático, Universidade de Toronto. Ele é autor de The Proletariat Gamble: Korean workers in interwar Japan (Duke UP, 2009), co-editor de Tosaka Jun: A Critical Reader (Cornell UP, 2014), e o tradutor inglês da Kōzō Uno’s Theory of Crisis, a ser publicado (Brill). Ele também é Sugar Brown, um músico de blues, compositor e artista musical.

Obtivemos novos documentos do FBI sobre como e por que Fred Hampton foi assassinado

Os arquivos do FBI relacionados ao assassinato de Fred Hampton em 1969, recentemente obtidos pelas Jacobin, lançam luz sobre dois aspectos-chave da operação anti-Panteras Negras da agência: um, o informante do FBI William O'Neal era mais vital - além de ajudar no assassinato de Hampton - do que anteriormente conhecido. Segundo, sabotar a capacidade dos Panteras de trabalhar com outras organizações era um objetivo explícito do FBI.

Aaron J. Leonard e Conor A. Gallagher


Fred Hampton em um protesto, em Chicago, Illinois, 1969.

Tradução / O lançamento do filme Judas e o Messias Negro colocou novamente nos holofotes a culpabilidade da polícia de Chicago e do FBI no assassinato de Fred Hampton, um dos principais líderes do Partido dos Panteras Negras (PPN) no decisivo ano de 1969. Em nosso artigo anterior à Jacobin, documentamos os esforços do FBI especificamente voltados para Hampton e enfatizamos a necessidade de mais informações para entender melhor as circunstâncias ao redor de seu assassinato.

Desde então, obtivemos 433 páginas dos arquivos “COINTELPRO” (Programa de Contrainteligência) oficiais do FBI a respeito do Partido dos Panteras Negras de Chicago (PPN). Além disso, o FBI, seguindo um pedido de Liberdade de Informação requisitado por Aaron Leonard, liberou outras 490 páginas sobre seus funcionários, como o agente infiltrado do FBI no Pantera Negra, William O’Neal, e o agente especial Roy Martin Mitchell.

Com essa nova informação, duas coisas ficaram mais claras. Um, as operações de contra-inteligência contra o PPN de Chicago eram particularmente focados em sabotar a habilidade do grupo de se juntar e trabalhar com outras organizações. Segundo, o informante do FBI, William O’Neal, que conquistara uma posição de liderança na organização de Chicago, era uma fonte muito mais que vital – além da cumplicidade no assassinato de Fred Hampton – do que era anteriormente compreendido.

Essas descobertas, além de aumentarem o registro histórico, também fornecem uma imagem mais clara do pensamento por trás do FBI em seus esforços para destruir a esquerda. Uma compreensão mais completa deste pensamento e metodologia é importante para uma nova esquerda que visa evitar os esforços do FBI de destruição as novas organizações no século XXI.

Estudantes por uma sociedade democrática

Em 1969, os Estudantes por uma Sociedade Democrática (ESD), a maior organização radical estudantil da década de 1960, se desfez, resultado das divisões internas do grupo e dos esforços do FBI de impedi-los de evoluir em seu objetivo inclusivo como “grande tenda” para uma organização mais disciplinada e radical. Dito isso, não é surpreendente que o FBI iria também gastar grandes esforços para sabotar as relações entre o ESD, cujo escritório nacional na época era em Chicago, e o Partido dos Panteras Negras na mesma cidade.

Para este fim, havia dois programas de contra-inteligência – operações oficiais que eram propostas, aprovadas e executadas dentro da hierarquia do FBI – levantados nos documentos dos arquivos sobre o ESD. O primeiro esquema era destinado a queimar a imagem do ESD em relação ao PPN. Como o chefe do FBI de Chicago escreveu para o Diretor, “através dos informantes do PPN e outros grupos como os Nacionalistas Negros, foi implantada a ideia de que o ESD está explorando o PPN, tentando usá-los como ‘bucha de canhão’ para uma revolução branca”.

A ideia era usar as diferenças raciais e de classe dos dois grupos contra eles. Isso aparece em um memorando do “programa contra-inteligência – nova esquerda” de 1º de maio, 1969: “o conceito de brancos estudando nas universidades enquanto os Panteras Negras eram presos ou mortos no gueto seria encorajado”. O FBI estava otimista com o sucesso dessa empreitada, escrevendo “considera-se que o PPN será receptivo a acusações de exploração branca, e pode reagir fortemente a isso, causando o enfraquecimento ou dissolução da aliança com o ESD”.

Protegendo suas apostas, o FBI escreveu que se o plano não funcionasse, eles iam prejudicar o ESD amplificando as atitudes defensivas dos estudantes radicais em relação aos Panteras.

Se o PPN aceitar o que foi dito acima, mas não romper com o ESD, eles podem ser encorajados a “explorar” o ESD, fazendo demandas para “provar sua lealdade”. Aumentar demanda para fundos e impressões grátis da literatura do PPN poderia pressionar as limitadas finanças do ESD.

Esse programa de contra-inteligência foi aprovado, com a astuta instrução de que “as fontes devem ter argumentos diferentes para isso não parecer como um plano”. Como eles explicaram:

Sob as circunstâncias presentes, o ESD está dando apoio completo, quase servil ao PPN, o que poderia prejudicar o status de qualquer informante que critique o PPN. Se existe qualquer hesitação do apoio do ESD em relação ao PPN, informantes seriam usados para agravar o desenvolvimento dessas cisões.

O FBI estava caminhando para uma situação complexa em 1969, onde o ESD era tomado por um debate litigioso entre uma facção que apoiava o PPN unilateralmente e outra facção consagrada na “Aliança Trabalhador – Estudante” do Partido Progressista do Trabalho, que se posicionou contra o PPN, divulgando o lema que “todo nacionalismo é reacionário”.

Neste contexto, o que é impressionante sobre esse esquema é o quão perto correspondeu a um acontecimento anterior que deu certo. Jeremy Varon, em seu livro Trazendo a Guerra para Casa, documenta a ascensão e o declínio do Weather Underground, uma cisão do ESD que acabou praticando violência política. Varon conta um incidente no qual o PPN precisava de apoio logístico do ESD após a morte de Jake Winters, membro dos Panteras:

Na lembrança de Neufeld (membro do Weatherman Undergorund Russell), os Panteras queriam que o Weatherman imprimisse o pôster memorial para eles; mas Weatherman, faltando dinheiro para seus próprios materiais, foi incapaz de providenciar essa ajuda. Então os Panteras, liderados por Hampton, invadiram o escritório de Weatherman e espancaram os membros da organização com estacas de madeira, enquanto murmuravam passagens de Stalin. Os membros ficaram chocados com a erupção dos Panteras, atribuindo isso a imensa pressão que os Panteras estavam sofrendo. Neufeld foi espancado por Hampton e carrega a cicatriz em sua cabeça até hoje.

Apesar de nós não podermos dizer com certeza que o plano do FBI teve um impacto nas ações dos Panteras, é notável como se encaixa com os objetivos expostos proposta pela proposta de contra-inteligência do COINTELPRO. Eles estavam colocando mais gasolina na fogueira das divisões existentes entre os dois grupos.

Os membros do Weatherman estavam obcecados com a ideia dos seus “privilégios brancos” de classe-média e estavam relutantes em alienar os Panteras. Por outro lado, os Panteras tinham “fontes” do FBI sussurrando-lhes que o ESD estavam os desrespeitando.

Nação do Islã

Chicago era também a capital da Nação do Islã (NDI), o qual o líder era Elijah Muhammad, citado no memorando COINTELPRO do FBI de março, em 1968, que desenhou o programa para diminuir e destruir as organizações nacionalistas negras. Nesse memorando, Muhammad é destacado como um potencial “messias” que poderia “eletrificar o movimento militante nacionalista negro”. A menção dele no FBI em relação ao PPN de Chicago, entretanto, tinha mais a ver com outro objetivo declarado “Ódio Negro” do COINTELPRO: “prevenir a coalizão de grupos militantes nacionalistas negros.”

Especificamente, no memorando de junho de 1969, o FBI sugeriu colocar uma tirinha no jornal do NDI, “Muhammad Fala”. O objetivo era “apelar para a vaidade de Elijah Muhammad, no sentido que o PPN iria ser descrito como outro grupo negro que tinha ou se vendido ou era dominado pelos brancos”. Apesar das tirinhas não terem sido inclusas na publicação, um memorando detalhando o plano, sugerindo uma imagem de “um branco radical montado em um Pantera Negra”.

No planejamento dessa proposta, o FBI concedeu permissão ao escritório de Chicago “para explorar delicadamente com o CG 6896-R (código de um informante, no qual CG significa Chicago, 6896 é seu número individual e R era informante racial) associado à publicação da Nação do Islã ‘Muhammad Fala’, a possibilidade de tentar ter essas tirinhas, ou uma tirinha, utilizada por essa publicação para obter uma disseminação difundida”.

O FBI abandonou o esquema, não por aversão à ideia, mas para manter a identidade secreta de seu informante. Como eles escreveram, em julho de 1969:

Chicago definitivamente sente que essa fonte, que ocupa uma posição muito delicada e sensível com a NDI (apesar de não ser um membro), não deveria, de nenhum jeito, ser pressionada ou persuadida a fazer ou iniciar qualquer ação que poderia comprometê-la...

Isso é uma entrada particularmente intrigante, supondo que o FBI tinha contato com alguém do alto escalão com acesso à Nação do Islã, um grupo altamente insular, que a maioria branca do FBI tinha mínima habilidade para abordar sem serem imediatamente identificados. Quem quer que essa pessoa seja, entretanto, deve por enquanto permanecer um mistério.

Por volta de julho de 1970, o FBI avaliou que, dada a disputa existente entre o PPN e a NDI – um grupo inclinando para o socialismo revolucionário, enquanto outro defendia firmemente o separatismo negro – o melhor plano de ação seria fazer nada. Como eles escreveram, “o PPN e a NDI já estão em desacordo” e “essa tendência deveria ser permitida a continuar intacta”. Fazer nada não só era fácil, no ponto de vista do FBI, “se em algum momento se tornar de conhecimento público que o FBI era um participante na criação da disputa entre os dois grupos” isto poderia ser “muito embaraçoso”.

As publicações do PPN

Tem sido de conhecimento geral há tempos que o FBI circulava um livro de colorir, a ser publicado supostamente pelos Panteras Negras, com a intenção de fazer o grupo parecer violento e com sede de sangue parar aliar um apoio público mais amplo. Sobrevoando abaixo do radar, entretanto, era um plano do FBI usar o material dos Panteras contra eles mesmos. O FBI anonimamente enviou os cartões de saudação de feriado dos Panteras para “editores de jornal, oficiais públicos, empresários e o clero”. O objetivo era fazer os destinatários “conscientes da natureza violenta do PPN”.

Os efeitos disso são incertos, se é que houve algum. Mas a noção de usar o material do próprio grupo contra eles – enviando-o para forças que o considerariam hostil – foi um método consistente do FBI no período dos anos 60.

Uma proposta de maio de 1970 pôs uma reviravolta nesse método, sugerindo inserir uma página extra no jornal dos Panteras Negras como se fosse uma parte legitima da publicação, que “poderia conter material que seria crítico da política e do pessoal do PPN local, incluindo ameaças de expulsar membros e pedir o realinhamento da organização”. Para levar isso em frente, eles fizeram uma “investigação preliminar” no aeroporto O’Hare de Chicago – mostrando que eles tinham uma fonte cooperativa lá – e determinaram que “é possível acessar os envios dos jornais dos Panteras sob condições seguras”.

O resultado desse projeto é desconhecido. Fazê-lo teria sido um grande feito logístico, para não falar em ser vulnerável à exposição através de uma simples ligação para escritório de Oakland. Ainda assim, o objetivo de dividir o grupo através do uso de sua própria imprensa – interceptada no aeroporto – é impressionante e ousado.

O informante

As propostas e ações acima eram parte de operações oficiais do programa de contrainteligência, significando que eles tinham critérios específicos a cumprir e procedimentos a seguir antes que pudessem ser implementados no FBI. Na realização desses planos, entretanto, um elemento no trabalho do FBI envolvia algo mais básico, o uso de informantes que conquistaram posições de confiança nos grupos que eles estavam espionando. Esses informantes podiam não somente fornecer inteligência, mas avançar com os objetivos do FBI operando internamente contra o grupo alvo. No caso do PPN de Chicago, nenhum informante foi mais fundamental a esses esforços do que William O’Neal.

Hoje, O’Neal é mais conhecido por ser o personagem “judas” interpretado por LaKeith Stanfield no filme Judas e o Messias Negro. O’Neal, todavia, não era ficção, mas sim a pessoa que forneceu uma planta do apartamento para o ataque policial que resultaria no assassinato de Fred Hampton e Mark Clark. Contudo, O’Neal, que foi recrutado pelo agente especial do FBI, Roy Martin Mitchell, se uniu aos Panteras de Chicago antes de Hampton chegar na presidência e continuou na organização um ano depois das mortes de Hampton e Clark. Então, vale a pena examinar mais amplamente suas atividades como membro do PPN de Illinois.

A medida em que o PPN de Chicago buscava se expandir em fevereiro de 1969, o FBI reportou que a sede tinha sido abordada por uma facção da gangue do Lado Leste de Chicago, os Vice Lordes, liderados por Edward “Pepilo” Perry. Perry “ofereceu se juntar ao PPN, deixando suas antigas identidades como os Vice Lordes”. O FBI, porém, ansiava em impedir o crescimento do PPN, particularmente sua junção com outros grupos. Visando sabotar a possibilidade, eles instruíram seu informante a levantar suspeitas sobre os Vice Lordes:

O PPN está ciente que a Unidade de Inteligência de Gangues do Departamento Policial de Chicago, dirigido pelo capitão William Buckney, tem muitas fontes nessas gangues, possivelmente até jovens policiais negros. A fonte (CG 7251-R PROB) – O’Neal – tem sido instruído a aproveitar esse medo de gangues jovens, pois ao recrutar membros de gangues, o PPN pode muito bem estar recrutando espiões policiais. Nessa ocasião, em particular, a fonte estava em uma conversa pessoal com Hampton, durante o curso da conversa com Perry, e o lembrou desse perigo.

O trabalho de O’Neal pareceu ter sido bem sucedido, com o FBI escrevendo depois, “se acredita que esse cuidado com Hampton desempenhou um papel considerável na relutância do PPN em aceitar Perry, como normalmente seria de esperar”. Em outras palavras, William O’Neal, o informante do FBI, que executaria um papel fundamental na morte do homem que ele estava aconselhando, dizia a Hampton que ele precisa ser cauteloso com os infiltrados.

O’Neal não estava apenas sabotando a unidade – ele também estava ajudando a prender os Panteras. Já em abril de 1969, o FBI estava reportando o quão essencial ele foi na apreensão de vários Panteras:

Foram efetuadas um número de prisões locais dos membros do PPN, primeiramente através de informações fornecidas pela fonte do PPN de Chicago, CG 7251-R (PROB) – O’Neal. A informação foi disponibilizada antes para o FBI, a título do PPN; No entanto, resumidamente se refere à prisão em 28 de março, de 1969, de 5 membros do PPN, retornando à Chicago de uma aparição na tarde anterior em Racine, Wisconsin, uma descrição do automóvel sendo usado para essa viagem, junto com a indicação de que vários desses membros do PPN estariam armados, foi dada ao Departamento de Polícia de Chicago.

Ao mesmo tempo que ele estava minando o grupo, O’Neal estava ascendendo na hierarquia. Por volta de julho de 1969, ele não era mais chefe de segurança dos Panteras em Chicago, tendo subido a Chefe de equipe para a organização estadual. O’Neal tinha recebido a proposta de ser “Chefe de Segurança”, mas recusou “dizendo que o Partido estava cheio de infiltrados e ele não queria fazer parte nisso” – uma jogada esperta, dado o quão alto era o nível de suspeita e paranoia em relação aos infiltrados naquela época – uma paranoia que o próprio O’Neal estava trabalhando para criar.

Roy Mitchell

O agente responsável por O’Neal, Roy Mitchell, continuou recebendo elogios internos depois do assassinato de Fred Hampton, apesar de ser menos claro pelo que ele estava sendo elogiado. Essa glorificação apareceu em um memorando para o SAC de Chicago Marlin W. Johson, de J.Edgar Hoover, datado em 18 de março de 1970, onde certos agentes não identificados do escritório de Chicago eram elogiados. Como Hoover escreveu: “através de você, quero elogiar esses agentes do escritório de Chicago que participaram com tanta competência em uma questão de interesse substancial para o bureau do FBI na área de segurança.”

Várias coisas desse memorando se destacam, publicado aqui pela primeira vez. Primeiro é a obliquidade desse conteúdo, escrito de uma maneira que um leitor desinformado não tem ideia do que é “uma questão de interesse substancial”. Segundo é o fato que o nome de Roy Mitchell está escrito à mão na parte de cima do documento, ao invés de ser digitado no próprio memorando. E finalmente há um carimbo no fundo da missiva, “REMOVIDO DO ARQUIVO PESSOAL DA ÁREA 67 – NÃO GRAVADO”. Todos esses pontos sugerem que, ao contrário de uma parabenização imediata a Mitchell após a morte de Hampton, o diretor está sendo bem cuidadoso para minimizar os rastros até Mitchell, que estava atraindo atenção indesejada por seu papel no assassinato de Hampton.

A verdadeira natureza da “questão de interesse substancial” comentada nesse memorando deve por hora permanecer um mistério. Talvez, quando um material como os do informante William O’Neal for publicado, as coisas se tornarão mais claras.

A obliquidade nesse memorando é menos presente em outra recomendação direcionada aos arquivos de Mitchell – embora novamente, o nome de Mitchell está escrito à mão na parte de cima e um carimbo “REMOVIDO DA ÁREA DO ARQUIVO PESSOAL aparece embaixo – para os agentes em Chicago que trabalhavam para prender Angela Davis: “Eu quero elogiar, através de você, aqueles agentes do escritório de Chicago que performaram tão efetivamente em relação à investigação da fugitiva na lista dos 10 mais procurados como Angela Yvonne Davis, o assunto de um caso de fuga ilegal para evitar acusação.”

Ainda que não mostre detalhes, o que importa é que o trabalho do escritório do FBI em Chicago – incluindo Mitchell, de quem o trabalho do infiltração provia a informação que seria, afinal, usada pela polícia de Chicago para assassinar Fred Hampton e Mark Clark – se tornou incrivelmente efetiva, ao ponto que a liderança do FBI elogiou aquele trabalho por ajudar os objetivos nacionais do FBI.

Não seja enganado de novo

Oque interessa nesse novo material é o quão bem-sucedido o FBI estava sendo em aproveitar a fraqueza da sede de Chicago – não apenas a intensa vulnerabilidade que veio com a dinâmica dos ataques policiais e a autodefesa armada, mas também com a plantação de rumores e insinuações.

Embora a política contenciosa e frequentemente confusa dentro da organização fosse decisiva em tudo isso – o próprio PPN iria se separar em março de 1971 entre duas posições igualmente ruins, a filosofia reformista da “revolução pendente de sobrevivência” de Huey P. Newton e a inclinação de Eldridge Cleaver em direção a violência política –, as medidas do FBI desempenharam um papel importante nesses desenvolvimentos.

Que o FBI tenha colocado um informante em uma posição de poder, onde ele pudesse manter o FBI a par de quem estava na liderança, o status de membros, quem poderia ter armas ou então ser uma vulnerabilidade legal, aparece como uma razão crucial para o sucesso deles.

O assassinato de Fred Hampton e os esforços destrutivos feitos contra os Panteras Negras em Chicago pelo FBI não podem ser desfeitos. Mas eles podem ser entendidos – e em jeitos bem melhores do que era possível há 50 anos. Armados com esse conhecimento, um novo grupo de ativistas de esquerda – sabendo os perigos dos rumores incendiários, sectarismo prejudicial e os esforços daqueles que encorajavam indivíduos e organizações, sejam informantes ou simplesmente radicais equivocados, ultrapassando perigosamente os limites legais – pode ser menos vulneráveis a esforços que foram muito bem sucedidos no passado.

Sobre os autores

Aaron J. Leonard é escritor e historiador. Ele é o autor de A Threat of the First Magnitude: FBI Counterintelligence & Infiltration From the Communist Party to the Revolutionary Union - 1962-1974 (Repeater Books, 2018).

Conor A. Gallagher é pesquisador e educador do Brooklyn, New York. Ele é o coautor do livro Heavy Radicals: The FBI's Secret War on America's Maoists (2015) com Aaron Leonard.

A longa luta pelo canal de Suez

Desde sua construção, há pouco mais de 150 anos, o canal de Suez tem estado no coração do sistema capitalista global — e desempenhou um papel fundamental na luta do mundo árabe contra seus antigos colonos.

Joel Beinin



Tradução / No fim de março, o tráfego marítimo do canal de Suez foi interrompido quando o Ever Given, um colossal navio porta-contêineres, ficou entalado entre as duas margens. O acidente pôs em foco tanto a fragilidade do comércio capitalista global quanto o papel do canal de Suez como conector essencial dos negócios marítimos internacionais e como lugar estratégico almejado por poderes imperiais europeus e, mais recentemente, por Israel.

Em média, 50 navios percorrem diariamente os 193 km do canal, transportando quase 30% do tráfego mundial de contêineres, 12% do comércio marítimo, 10% de todo o óleo bruto ou petróleo refinado no mundo, e um terço do gás líquido natural importado do Qatar para a Grã-Bretanha.

Com o tráfego interrompido em ambas as direções, mais de 300 navios esperavam para navegar pelo canal. Cada hora de atraso custou US$ 400 milhões em seguros e multas, de acordo com uma estimativa da Lloyd’s List. Sem saber quanto tempo levaria para liberar o canal, certos navios optaram por atravessar o cabo da Boa Esperança, prolongando a viagem em duas semanas e aumentando em US$ 26 mil dólares por dia os gastos com combustível. Estima-se que o governo egípcio tenha perdido US$ 95 milhões em receitas devido ao acidente com o Ever Given.

O Ever Given pertence a uma subsidiária de uma grande empresa japonesa de construção naval. É fretado e operado por uma companhia de remessa em contêineres baseada em Taiwan. Uma empresa alemã é responsável pela operação técnica. O registro foi feito no Panamá.

Como vários outros países, o Panamá tem uma política de "registro aberto", que permite que embarcações cujos proprietários e operadores sem conexão alguma com o país possam hastear sua bandeira. Esta prática foi introduzida na era da Lei Seca dos EUA para permitir que navios dos EUA fossem registrados no Panamá para contornar a lei e servir bebidas alcoólicas aos passageiros.

Hoje em dia, o Panamá permite que os proprietários registrem navios pela internet. Sem a obrigação de pagar imposto de renda. E as regulamentações laborais e de segurança do Panamá são mais complacentes que a dos tradicionais países marítimos do Atlântico Norte. O emaranhado de registro, propriedade e responsabilidades técnicas do Ever Green, além da presença mandatória de dois pilotos egípcios em todos os navios que transitam pelo canal, representarão sérias dificuldades na hora de determinar a quem cabe responsabilidade pelo acidente.

Em parte porque VLCCs e ULCCs — very large crude carriers e ultra-large crude carriers, navios petroleiros capazes de transportar pelo menos dois milhões de barris de petróleo — não podem transitar o canal de Suez transportando a carga máxima, a importância do canal como artéria de transporte global diminuiu. Ainda assim, sua importância material e simbólica para o Egito é enorme.

Uma história imperial

A construção do canal de Suez foi resultado de uma rivalidade imperial entre a Grã-Bretanha e a França ao longo do Oriente Médio e do Norte da África. Os britânicos, que tinham começado a construir um caminho ferroviário no Egito, optaram por uma rota terrestre que conectasse o Egito à Índia pela península do Sinai.

Para contorná-los, o empreendedor francês Ferdinand de Lesseps conseguiu uma concessão do governo egípcio para construir o canal de Suez em 1854. Em 1858, De Lesseps registrou a Companhia Universal do Canal Marítimo de Suez em Paris. Em troca da concessão, 44% das ações do canal foram alocadas ao governo do Egito.

De Lesseps persuadiu os governantes do Egito a obrigar camponeses egípcios a trabalhar na escavação do canal em troca de uma remuneração ínfima. Já em 1862, mais de 55 mil homens e meninos viviam em campos de trabalho superlotados em abrigos exíguos enquanto trabalhavam. Estima-se que 100 mil egípcios tenham morrido durante a construção do canal, entre 1859 e 1869.

Durante a Guerra Civil dos Estados Unidos (entre 1861 e 1865), o Norte obstruiu os portos do Sul, provocando uma escassez mundial de algodão. Com os preços do algodão egípcio em alta histórica, os bancos europeus avidamente emprestaram ao governante Viceroy Ismail enormes quantias de dinheiro para ambiciosos projetos de cultura e infraestrutura, a taxas de juros exorbitantes.

Com o fim da Guerra Civil e o retorno do algodão ao mercado mundial, os preços baixaram, e o Egito não pôde quitar as dívidas. Em 1875, Viceroy Ismail vendeu a parcela de ações do canal que pertencia ao Egito por uma bagatela ao governo britânico. A Grã-Bretanha garantiu controle completo do canal quando invadiu e ocupou o Egito em 1882.

A crise dos anos 1950

Em 1952, o Movimento dos Oficiais Livres, liderado por Gamal Abdel Nasser, depôs a monarquia egípcia e estabeleceu uma república pretoriana. Nasser e sua junta tentaram expulsar os colonizadores britânicos, garantir ao Egito independência absoluta e egitianizar os altos escalões de comando da economia, até então dominada por empresas europeias e minorias não-muçulmanas locais.

Os últimos soldados britânicos deixaram o Egito em junho de 1956. A essa altura, Nasser já se tornara um líder global do Movimento Não Alinhado, cujo objetivo era estabelecer uma alternativa ao sistema internacional definido pela Guerra Fria.

Apesar da postura anticomunista de Nasser, os EUA se recusaram a vender armas ao Egito. Nasser então recorreu ao bloco soviético, e no dia 27 de setembro de 1955, anunciou um acordo armamentício com a Tchecoslováquia.

Na esperança de trazer o Egito de volta para o lado ocidental, os EUA e a Grã-Bretanha concordaram em financiar a construção da Grande Barragem de Aswan, a principal prioridade infraestrutural de Nasser. Mas a visão maniqueísta do mundo do Secretário de Estado dos EUA John Foster Dulles não pôde tolerar que Nasser continuasse apoiando e praticando o não-alinhamento. No dia 18 de julho de 1956, Dulles voltou atrás na oferta financeira dos EUA, mandando ao Egito uma mensagem propositalmente ofensiva. A Grã-Bretanha seguiu o exemplo.

Nasser reagiu com mais ousadia que o esperado, estatizando o canal de Suez. Em resposta, em outubro de 1956, a França, a Grã-Bretanha e Israel invadiram o Egito. As forças militares israelenses venceram as egípcias com facilidade, e ocuparam a península do Sinai e a Faixa de Gaza. Tanto os EUA como a União Soviética exigiram o recuo das tropas israelenses. Mas antes do fim da guerra, o Egito afundou 40 navios no canal, obstruindo o tráfego comercial por oito meses, até que os navios foram removidos.

Depois que Israel atacou o Egito na Guerra Árabe-Israelense de 1967, o Egito bloqueou ambos os acessos, pôs navios e minas explosivas no canal. A passagem ficou obstruída por oito anos, até que o início do processo de paz ao fim da Guerra Árabe-Israelense de 1973 devolveu ao Egito controle absoluto sobre o canal em junho de 1975.

A situação atual

O fechamento do canal de Suez durante as guerras de 1956 e 1967 estimulou o fenômeno dos navios contêineres e criou as condições para o acidente do Ever Given.

A conteinerização permite a carga e descarga de caixotes de metal capazes de transportar qualquer tipo de mercadoria diretamente em navios e caminhões ou trens. Essa inovação reduziu drasticamente a necessidade de estivadores nos portos – que constituía tanto o gasto com assalariados das frotas mercantes como, historicamente, um setor particularmente militante da classe operária.

O fechamento do canal de Suez por períodos prolongados obrigou o tráfego marítimo a tomar a rota mais longa, contornando o Cabo da Boa Esperança. Isso encorajou operadoras de transporte marítimo a buscar maiores margens de lucro através de economia de escala, implementando navios porta-contêineres ainda maiores. O Ever Given, com 400 metros de comprimento, é um dos maiores do mundo. Embarcações de dimensões enormes, com contêineres empilhados no convés, são vulneráveis a ventos fortes, um dos fatores no acidente do Ever Given.

Em 2014-2015, o Egito inaugurou o gigantesco Projeto da Área do Corredor do Canal de Suez, que acarretava em amplos projetos regionais de infraestrutura e na construção de uma nova faixa de 35km paralela ao canal, com um custo de US$ 8.2 bilhões. A nova faixa permite que embarcações naveguem em ambas as direções simultaneamente por grande parte da extensão do canal. O acidente do Ever Given ocorreu numa parcela do canal que ainda é de mão-única.

O governo egípcio afirmou que, ao dobrar a capacidade do canal para 97 navios por dia, ou 35.400 por ano, a nova faixa aumentaria a receita do canal de Suez para US$ 13.5 bilhões até 2023. Mas em 2020, 18.840 navios atravessaram o canal, pagando US$ 5.61 bilhões em pedágios. O crescimento do comércio internacional ainda não foi suficiente para compensar o investimento, e não há previsão de que isso ocorra num futuro próximo.

Assim como intervenções imperialistas privaram o Egito da maior parte dos benefícios do canal de Suez no século dezenove, sua posição subordinada no mercado capitalista global provavelmente impedirá que o país atinja seus objetivos econômicos com o canal também neste século – mesmo agora que o Ever Given não está mais no caminho.

Sobre o autor

Joel Beinin é professor emérito e ocupa a cadeira Donald J. McLachlan de História e História do Oriente-Médio na Universidade de Stanford. Seu livro A Critical Political Economy of the Middle East and North Africa foi publicado pela Stanford Univesity Press.

30 de março de 2021

Não há vez para arroubos golpistas e celebração de 1964

Paulo Sérgio Pinheiro

Folha de S.Paulo


Supunha-se que nada haveria de causar mais horror do que a insistente cantilena negacionista do presidente da República face ao extermínio diário de mais de 3.000 vidas pela Covid-19. Neste momento, o Brasil assiste a uma escalada de ameaças à democracia. Estamos diante de mais uma grave crise, desencadeada pela demissão do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, por defender as Forças Armadas como instituições de Estado diante dos arroubos golpistas do presidente.

Os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica renunciaram aos cargos em protesto.
Outro episódio relevante para esta quarta-feira (31) foi a decisão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5), em Recife, de que proibir reverências ao golpe de 1964 significaria “negar a discussão sobre qualquer perspectiva da história, o que seria um contrassenso em ambientes democráticos, visto que o Estado democrático de Direito (artigo 1º, caput, Constituição da República) pressupõe o pluralismo de ideais e projetos”.

Entendem que coibir tal comemoração “representa impor somente um tipo de projeto para a sociedade brasileira, sem possibilitar a discussão das visões dos fatos do passado”. Os magistrados proferiram que a exaltação do golpe “não ofende os postulados do Estado democrático de Direito nem os valores constitucionais da separação dos poderes ou da liberdade”.

Não há versões alternativas a discutir sobre o golpe militar: é fato provado e documentado que, de 1964 a 1985, prevaleceu no Brasil um regime de exceção que torturou, executou, “fez desaparecer” milhares de pessoas — entre elas, estudantes, militantes políticos e sindicalistas. Todas as violações de direitos humanos, os crimes contra a humanidade praticados pela ditadura militar, além da bibliografia nacional e internacional, estão registrados fartamente em arquivos diplomáticos, por exemplo, dos Estados Unidos, da França e do Reino Unido.

Há relatórios abundantes sobre a ditadura nos órgãos da Comissão de Direitos Humanos da ONU, assim como na Comissão e na Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), em relatórios da Comissão Internacional de Juristas, da Anistia Internacional e do Tribunal Russell.

Os magistrados primam por ignorância crassa do relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), elaborado a partir dos depoimentos de centenas de vítimas e seus familiares, bem como de documentação oficial disponível nos arquivos de órgãos governamentais brasileiros, como o Serviço Nacional de Informações (​SNI), o Centro de Informações do Exterior, do Ministério das Relações Exteriores, e alguns arquivos militares.

As investigações realizadas pela CNV comprovaram que o Estado brasileiro na ditadura foi responsável por graves violações de direitos humanos, perpetradas de forma sistemática e em função de decisões que envolveram as cúpulas dos sucessivos governos do período.

Os sequestros, as detenções arbitrárias, a tortura, as execuções, os 434 casos de mortes e desaparecimentos de cidadãos não constituíam eventuais “excessos” ou episódicos “abusos”. Resultaram de política de Estado, acatada por uma cadeia de comando que ia do general presidente até os órgãos de inteligência e repressão subordinados às Forças Armadas. Um dos grandes chefes da tortura, o coronel Ustra, reverenciado pela extrema direita, era lotado no gabinete do ministro do Exército.

Essa realidade, ao contrário do que decidiram os magistrados do TRF-5, torna incompatível com os princípios que regem o Estado democrático de Direito a realização de eventos oficiais de celebração do golpe militar; devem, sim, ser objeto de rigorosa proibição.

Seria um escárnio para as vítimas dos crimes perpetrados pela ditadura militar e um enorme constrangimento para as atuais Forças Armadas, que hoje não querem mais se envolver com aventuras golpistas nem em ditaduras como em 1964.

Sobre o autor

Membro da Comissão Arns, foi coordenador da Comissão Nacional da Verdade (2013) e ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos (2001-02, governo FHC).

28 de março de 2021

Marxismo e nacionalismo revolucionário

A polêmica entre a esquerda e o peronismo na Argentina nos anos 1970 pode ser recuperada para o debate político de hoje.

Mariano Pacheco



Em 1971, Carlos Olmedo concedeu uma entrevista à revista Cristianismo y Revolución ("Los de Garín") onde relatou a viagem das FAR, as Forças Armadas Revolucionárias que surgiram na Argentina em meados dos anos 60 para acompanhar o empeendimento de Ernesto Guevara na Bolívia. Após a morte de Che, o grupo deu uma guinada em duas direções: por um lado, deixaram de se preparar para montar uma guerrilha rural subordinada a um projeto latino-americano, para passar a trabalhar para construir uma experiência de guerrilha urbana em âmbito nacional.

Por outro lado, eles entram em um profundo debate teórico-político interno e decidem assumir a experiência do trabalhador peronista como sua, sem deixar de ser marxistas. Mas o que é ser marxista para os FAR? É aí que reside todo o núcleo da polêmica que se instaura com o Partido Revolucionário dos Trabalhadores - Exército Popular Revolucionário, que, por meio de um grupo de militantes detidos na Cadeia dos Encauzados, na província de Córdoba, enviou à revista mencionada um documento em resposta à entrevista, com uma série de perguntas sobre as definições ali feitas por Olmedo em nome da FAR.

A polêmica tornou-se fundamental para as militâncias revolucionárias argentinas, pois dois anos depois as FAR se fundiram com os Montoneros (que antes havia se fundido com a organização Descamisados ​​e incorporado uma fração das legendárias Forças Armadas Peronistas), alcançando assim uma forte hegemonia sobre toda a Tendência Revolucionária do Peronismo, enquanto o PRT-ERP se torna a organização mais importante da esquerda revolucionária não peronista.

Estes são os anos do triunfo da Unidade Popular, que levou Salvador Allende a ser o primeiro presidente socialista eleito em eleições na América Latina, e do surgimento da ação guerrilheira no Cone Sul, com organizações poderosas na Argentina mas também no mesmo solo chileno (Movimento de Esquerda Revolucionária), no Uruguai (Movimento de Libertação Nacional de Tupamaros) e ainda com a persistência do Exército de Libertação Nacional (ELN) na Bolívia; todas experiências que convergiram com o ERP na Junta de Coordenação Revolucionária.

Assim, a polêmica que iria eclodir não era propriamente uma discussão entre a esquerda e o peronismo, mas um debate entre organizações de esquerda - fortemente marcadas pelo guevarismo e pela experiência cubana - sobre como se processa o fenômeno peronista. Isso em um contexto em que a perspectiva da revolução socialista estava sendo assumida como própria pelas franjas crescentes do peronismo no calor de seu processo de radicalização interna após quase duas décadas de resistência, em consonância com um processo de radicalização generalizada dos povos do mundo, como já apontamos em outro texto.

Uma resposta do FAR é então adicionada ao documento ERP enviado para a revista Cristianismo y Revolución. Os três textos serão compilados pela FAR e publicados em uma cartilha com o título "Aporte al proceso de confrontación y polémica pública que abordamos con el ERP", também reproduzida em 1973 pela revista Militancia e incorporada em 1996 por Roberto Baschetti ao tomo "De la guerrilla peronista al gobierno popular (1970-1973) de sua coleção de livros Documentos (del peronismo revolucionario).

Ao contrário dos restantes dirigentes das organizações revolucionárias marxistas e peronistas, Carlos Enrique Olmedo, "Josesito", como era conhecido pelo seu nome de guerra, era também um filósofo militante. Sua morte prematura no "Combate de Ferreyra" (em 3 de novembro de 1971 em Córdoba), transformou-o em uma lenda para os militantes, mas um perfeito estranho para um grande público. Mesmo entre os militantes, seu nome não ressoa hoje com tanta força quanto o de Mario Roberto Santucho, Benito Urteaga ou Enrique Gorriarán Merlo do PRT; Roberto Cirilo Perdia, Mário Eduardo Firmerich, Gustavo Ramus, Fernando Abal Medina, Norma Arrostito ou Fernando Vaca Narvaja de Montoneros; nem mesmo como o de Marcos Osatinksy, Roberto Quieto ou Julio Roqué, da própria FAR.

Nascido em uma casa humilde da irmã República do Paraguai e com uma infância e adolescência que não foram fáceis para ele, Olmedo se formou em Filosofia e Sociologia na Universidade de La Sorbonne, França, sendo muito jovem. Lá ele conheceu o próprio Louis Althusser, a quem a esquerda mundial deve suas releituras sintomáticas de Karl Marx e, em particular, de sua obra-prima, O Capital.

Olmedo participou na Argentina da emblemática revista cultural de esquerda La Rosa Blindada e com apenas 23 anos ministrou cursos de pós-graduação na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires, mas também trabalhou como publicitário e formou-se em Cuba. Com sólida formação marxista, foi um dos que mais energicamente defendeu, no início dos anos setenta, a necessidade de se aproximar do peronismo, sem renunciar a uma perspectiva de revolução socialista que tivesse os proletários deste solo nacional como seu principal protagonista.

Em discussões políticas (aqueles que compartilharam um trecho da rota com ele comentam), ele foi capaz de voltar à história de Galileu para sustentar uma ideia sobre a situação. E então, no final de uma reunião, sentar-se calmamente e ouvir a música de Mozart. Olmedo aprendeu a olhar para o peronismo de uma maneira diferente e ajudou outros a interpretá-lo também, da esquerda, de uma maneira diferente. Ele contribuiu como poucos para a formulação da categoria de Nacionalismo Popular Revolucionário.

Espectros revolucionários

Uma estratégia libertadora não é a simples afirmação nem a solitária prática de um método... Trata-se em primeiro lugar, de determinar qual é, em uma sociedade nacional, a força social capaz de protagonizar um processo cabalmente revolucionário libertando nele outras forças e setores sociais. Em outras palavras, qual é a força social cuja localização no processo produtivo dá às suas reivindicações econômicas a máxima radicalidade, mas também, e decididamente, qual é a força social cuja experiência estabeleceu já mais claramente que as reivindicações fundamentais não se pedem, se conquistam e voltam a se perder se com ela não se conquista e se defende o poder político, o timão da sociedade. (Carlos Olmedo)

Tal como señaló la investigadora platense Mora González Canosa en un texto publicado hace unos años («Marxismo, peronismo y vanguardia. La polémica entre las FAR y el ERP»), los «Faroles» establecen con «Los Perros» una disputa, simultáneamente, en dos frentes: «contra los sectores ‘conciliadores’ del peronismo, tensionando las formas de concebir dicho movimiento político, y contra la izquierda marxista no peronista, a quien buscaban disputarle su propia tradición teórica».

Lo que aparece como telón de fondo de la extensa textualidad presente en el debate son, fundamentalmente, tres cuestiones: la caracterización del peronismo (¿frena o dinamiza la lucha de la clase obrera por el socialismo?); los «usos» del marxismo (¿es un método de análisis –científico– de formaciones sociales específicas o también «bandera política universal»?) y, sobre la base de esta última caracterización, el punto de partida (nacional o internacional) del análisis crítico de la realidad y su historia.

Con el ánimo de reponer mínimamente aquel debate pero, por sobre todas las cosas, intentar rescatar sus argumentos para los análisis actuales, del conjunto de agudas definiciones que ofrece Olmedo rescataremos tres elementos:

1) La comprensión de que, hacia mediados de la década del sesenta, el Che oficiaba como figura capaz de establecer una «estrategia revolucionaria supranacional», sin por eso convertirse en «una patrulla extraviada en la lucha de clases nacional» (que era uno de los riesgos —en el que cayó, de algún modo, el «grupo argentino» del ELN).

Esta mirada nos ofrece una enseñanza muy clara para seguir pensando, incluso, la actualidad del siglo XXI: Nuestramérica es el territorio más amplio en cual se interseca el horizonte del internacionalismo de los pueblos propio de toda definición anticapitalista (no es posible construir una sociedad diferente –socialista– en una escala nacional), con un patriotismo antiimperialista que se deferencia del nacionalismo de derecha, entre otras cuestiones, porque asume que si hay algo parecido a un destino, este tiene que ver con la hermandad de la Patria Grande, donde los proyectos nacionales son tan solo un momento de ese proyecto liberador (Juan José Hernández Arregui, en su libro La formación de la conciencia nacional, argumenta que la revolución es nacional, latinoamericana e internacional, y subraya: «y en ese orden»).

2) El rol preponderante que la lucha de masas ejerce en la definición de una estrategia nacional revolucionaria. Olmedo cuenta que, en su caso, el detonante más importante para sus análisis fue el acontecimiento que en otro texto hemos denominado como «El Corte-Cordobazo», esa coyuntura que va de fines de mayo a septiembre de 1969: «Esa violencia masiva, formidable, pero como toda violencia masiva sin vanguardia, discontinua [explica Olmedo] nos compromete, constituye un mandato…».

La definición vertida en la cita resulta de vital importancia; casi podríamos decir que constituye el primer eslabón de lo que hoy podríamos llamar una «epistemología proletaria» (o popular no-populista): no hay definición de estrategia revolucionaria si no es al calor del protagonismo que las masas populares ejercen en sus luchas en un país determinado.

3) Existe una «triple coincidencia» que une a determinadas corrientes del peronismo con determinadas corrientes de las izquierdas. «Esa triple coincidencia establece inmediatamente vínculos de fraternidad revolucionarla de gran profundidad», explica Olmedo, para analizar que, en la década del setenta, esos elementos podían resumirse en:

a) El enemigo principal («aquellas clases que necesitan explotar para satisfacer sus intereses»); b) El método («la lucha armada»); c) El objetivo final («la construcción de una sociedad sin explotación y la construcción de un hombre nuevo»).

Pensando en la actualidad del siglo XXI y en los encuentros posibles entre ciertas izquierdas y determinados peronismos, respecto de aquella triple coincidencia, podríamos pensar que: a) Se necesita recuperar el horizonte estratégico del análisis para volver a pensar en términos de «enemigo principal». Resulta interesante que Olmedo no repare en la coincidencia del «enemigo inmediato» (la dictadura militar), sino del principal (la clase dominante), elemento que no puede ser analizado –de todos modos– sino al calor de la correlación de fuerzas del momento (incremento de las ofensivas tácticas del movimiento popular a partir de mayo del 69).

Para no reducir las coincidencias de nuestra época al enemigo inmediato («modelo neoliberal») al que nos enfrentamos izquierdas y peronismos, resulta importante recordar que, además de partido político y gestión de gobierno, el neoliberalismo es fase del capitalismo y, por lo tanto, no es posible avanzar en un proyecto de justicia social si no es a través de un replanteo general de sociedad que no solo derrote a las coaliciones electorales de derecha y su programa de ajuste y represión, sino a los elementos del neoliberalismo que incluso todo proyecto redistributivo contiene dentro de sí, en tanto no deja de ser una «gestión progresista» de un ciclo capitalista que lo excede, en los marcos de un Estado liberal que también excede sus medidas de gobierno.

b) Respecto del método, resulta importante dar cuenta de que importantes fracciones de la izquierda confluyen hoy en Argentina con corrientes peronistas en la que es seguramente la experiencia más dinámica de la clase trabajadora contemporánea: la Unión de Trabajadores y Trabajadoras de la Economía Popular, la UTEP, y el bloque social que logra unificar incluso con algunas organizaciones que no se han incorporado (¿aún?) a este nuevo sindicato del precariado.

Si bien en los últimos años la representación superestructural de la izquierda fue profundamente hegemonizada por las corrientes trotskistas (hoy agrupadas en el FIT-U), no es menor el peso que han logrado conquistar aquellas expresiones de una izquierda que nació y se desarrolló desde abajo, al calor de los procesos de resistencia antineoliberal (desde la libertaria Federación de Organizaciones de Base hasta el Frente Popular Darío Santillán, pasando por el Movimiento Popular La Dignidad y Vamos- Patria Grande). El método de la unidad para organizar al precariado y librar desde ese sector luchas de masas permitió obtener conquistar reivindicativas, poner en pie una nueva herramienta y transversalizar otras luchas presentes en la sociedad argentina, gestando una «agenda popular» vinculada a ellas (sobre todo, de los feminismos y ciertas luchas ambientales).

c) En cuento al «objetivo final» de la lucha, cabe introducir el mismo señalamiento que se hizo en el primer punto: necesitamos recuperar el horizonte estratégico del análisis. En ese sentido, en lo que va del siglo XXI se ha logrado avanzar más respecto de las reivindicaciones planteadas por las minorías («minorías» en tanto son sectores capaces de «sustraerse» a la lógica de la «norma mayoritaria»; luchas que problematizan el «modelo» blanco-adulto-masculino-heteronormado) que respecto de un horizonte general emancipatorio, poscapitalista (una sociedad sin explotadores ni explotados).

Así, podría pensarse que hoy existe una mayor «deconstrucción» del activismo (o al menos, una mayor «problematización» de los micromachismos y microfascismos) respecto de los años setenta (están más intensamente planteados en las agendas políticas de las organizaciones las reivindicaciones de las mujeres, trans, travestis, inmigrantes, homosexuales, personas con sobrepeso y discapacidades, usuarios y usuarias de la salud mental, infancias e incluso del lenguaje inclusivo), pero no en el marco de un proyecto general de sociedad diferente, sino como conquistas a obtenerse en el marco de las injustas relaciones (generales) de explotación que el capitalismo –incluso en su fase finaciarizada– sigue efectuando.

No contraponer, sino enlazar creativamente estas dimensiones (frente del deseo / frente de la lucha de clases) será seguramente uno de los desafíos de los años por venir.

Intersecciones entre izquierdas y peronismos

Toda interpretación rigurosa implica conocimiento, implica análisis, implica en definitiva, teoría. Por eso le digo que se trata de zanjar esas dificultades con las organizaciones armadas, mediante un trabajo teórico. Ese trabajo teórico al servicio de la acción, acompañándola, anticipándola, profundizándola, tiene que dar como resultado, en primer lugar, la liquidación de algunos de los fantasmas que más dificultan la valoración del peronismo. El fantasma fundamental resulta de lo que nosotros llamamos ideologismo, o sea, aquel tipo de análisis que no parte de valorar el papel de una clase, de una fuerza social en el marco de las contradicciones de una formación social, sino que se detiene en las expresiones de tipo ideológico, o sea en aquellos modos en que determinados protagonistas o sectores de esas fuerzas se piensan a si mismos. O, lo que suele suceder, en la imagen que el sistema da del modo en que esos sectores se piensan a si mismos. Este método consiste a menudo en disociar las expresiones ideológicas, e inclusive las formas organizativas que en este caso el peronismo ha ido dándose en diversas etapas, de la etapa misma en que se dieron y del conjunto de los condicionantes económicos, políticos, culturales, ideológicos, que es preciso retener para captar la lógica propia de esa etapa. (Carlos Olmedo)

Si bien Olmedo murió siendo un combatiente guerrillero, por sobre todas las cosas fue un agudo cuadro político. De allí que advierta, en un determinado tramo del debate, que «los fierros, pesan, pero no piensan». Así que, contra todo el antintelectualismo que pueda predominar entre nosotrxs (las militancias que se supone deberíamos estar a la vanguardia del pensamiento crítico en la sociedad), quisiera subrayar en este último tramo del texto el alto nivel y la profunda calidad de las reflexiones esbozadas por Olmedo, que dan cuenta de su intensa y extensa formación teórica. Me detendré en las definiciones de Olmedo sobre marxismo y peronismo, en la búsqueda por rescatar de aquella polémica algunos elementos que nos permitan abordar ambos fenómenos hoy en día, asumiendo que la nuestra es una realidad muy diferente a la de entonces.

Marxismo

¿Qué nos dice Olmedo respecto del marxismo? En primer lugar, le discute al ERP que lo defina como una «bandera política universal». Obviamente, en tanto «instrumento teórico» que permite analizar e interpretar críticamente la realidad, el marxismo implica una política: fundamentalmente, la estrategia que permita la conquista de «una sociedad distinta», sin explotación, con igualdad absoluta de posibilidades para todos. Una sociedad –remarca Olmedo– «donde los derechos y las igualdades no estén en la Constitución sino en la vida»; un tipo de sociedad que define como «socialista», para aclarar inmediatamente después que el socialismo sería mucho más difícil de construir sin el aporte de Marx y Lenin, pero que no se construye con el mero aporte de ellos, sino también con el de «la experiencia de nuestro pueblo, con el aprendizaje que hacemos en la guerra y con la enseñanza de otros pueblos que completarán la lucha por su liberación o que están completándola».

El marxismo –insiste Olmedo– no es una «píldora política», una «receta universalmente aplicable», sino una teoría de la sociedad con enorme rigor científico («efectivamente nosotros pensamos que sería imposible diseñar una estrategia revolucionarla, que requiere un conocimiento científico de la realidad social de sus clases, de sus problemas económicos, de sus problemas sociológicos, etc., sin aplicar el marxismo-leninismo»).

El problema, entonces, no es el estudio y la investigación de las sociedades realizadas con herramientas teóricas marxistas –cuestión que el comandante de las FAR da por descontado– sino el hecho de que, en la Argentina de entonces, existieran grupos políticos que hayan desencontrado el marxismo respecto de nuestra realidad, convirtiéndolo en un «pobrísimo dogma», sin comprender que aplicar un método científico no es aprenderse de memoria conclusiones que, aunque fueron válidas para determinadas etapas y formaciones sociales, no son relevantes para otras.

Por eso insiste Olmedo: «el marxismo no es sino una teoría científica sobre las tendencias de la sociedad, esencialmente la capitalista. Una explicación coherente del proceso histórico. Una herramienta de análisis y acción que basa su efectividad en la certeza de su análisis científico, certeza no decretada, sino comprobada prácticamente en el desenvolvimiento real de la sociedad…». Y por eso la clase obrera de identidad peronista no puede prescindir de él, entre otras cuestiones, porque «la conciencia diaria que tiene el obrero de que es explotado y humillado no le explica ese hecho», sino que es la teoría marxista aquella que le explica «por qué, cómo y cuándo es explotado por el capitalista para transformar el trabajo del que se apropia el capital».

El marxismo, entonces, es asumido por Olmedo como un «instrumento de análisis y comprensión científica» de la realidad concreta en la que le toca actuar, una «herramienta teórico-metodológica» que permite forjar una política «que responda a las condiciones particulares en las que se actúa». Política –continúa Olmedo– que no se sustenta «en ideales o frases», sino en un análisis científico de una realidad particular y concreta (y no de una realidad universal y abstracta). De allí que sostenga que la mera invocación a los «principios marxistas» no adelanta un milímetro nuestro conocimiento de la realidad, de la misma manera en que hasta ahora «ha resultado imposible cruzar un río nadando sin tirarse al agua, invocando los ‘principios de la natación’».

Ser marxista, finalmente, para Olmedo, implica asumir fundamentalmente dos cuestiones. En primer lugar, que no se puede ignorar que el proceso histórico está sometido a leyes objetivas que son independientes de la voluntad de los grupos y personas. En segundo lugar, que dentro de ese proceso es el accionar mismo de la clase trabajadora el que va suministrando, paso a paso, los elementos indicadores de lo que es coherente con la coyuntura política y de lo que no lo es. De allí que remate su reflexión indicando que «la vanguardia» (cuando existe como tal), no lo será precisamente por su capacidad de «dirigir» a la clase obrera mediante políticas deducidas de esquema alguno sino porque, ante todo, será capaz de aprender de la acción de la clase trabajadora, de interpretar fielmente las conclusiones que se desprendan del accionar político del pueblo mismo.

Peronismo

En su debate con el ERP, el comandante de las FAR les reprocha que asuman una concepción «pretendidamente marxista» que entienda a la lucha revolucionaria nacional «por su forma» e internacional «por su contenido». Así, argumenta Olmedo, el factor nacional solo aporta una «fachada exterior», un caparazón de un contenido que le es ajeno («receptáculo de un contenido internacional producido en el transcurrir de la historia de la sociedad universal»).

Frente a ello, en Olmedo el proceso histórico, la historia nacional viva y concreta, es asumida como contenido y basamento de la acción política de la intervención en cada país. «Para nosotros, la nominación, la identidad política, es la expresión simbólica de una conducta concreta y, cuando hablamos de peronismo, hablamos de sus palabras y de sus hechos», expresa Olmedo, para luego agregar que las FAR se consideran una organización inscripta en una estrategia que denominan de «nacionalismo revolucionario». Y aclara:

en la Argentina, el nacionalismo revolucionario implica la valoración positiva de una experiencia fundamental de nuestro pueblo, que es la experiencia peronista. Esa valoración positiva por parte de un revolucionario, puede ser entendida tan solo como identificación con esa experiencia, como la asunción plena de esa experiencia, de sus logros, de sus aciertos y de sus limitaciones. De sus aciertos para fortalecerse con ellos, para desarrollarse, y de sus limitaciones para combatirlas y superarlas...

Así entendido, el Movimiento Peronista aparece como un fenómeno sumamente complejo en el que se incluyen numerosas variantes, con concepciones ideológicas y políticas radicalmente distintas.

Reactualización doctrinaria

En el contexto actual, medio siglo después de aquellos debates, y sumergidos como estamos en medio de situación extremadamente compleja tanto en el plano internacional («Era del realismo capitalista»), como nacional («Democracia de la desigualdad» que emergió de la derrota de las apuestas revolucionarias de los años setenta), cabe preguntarse cuál ha sido la experiencia popular desarrollada en estas décadas dentro y fuera del peronismo (e incluso contra él, en determinadas circunstancias –como fueron los años menemistas del «Justicialismo del revés»– pero con mucha de su cultura política).

Tras el Cordobazo y década y media de resistencia frente a dictaduras o gobiernos pseudodemocráticos (proscriptivos), la experiencia peronista es definida por Olmedo como aquella que «impide absolutamente a un trabajador concebir una lucha reivindicativa despojada de su significación política», en gran medida, porque se trata de un pueblo «desalojado del poder» (tras el golpe criminal de 1955). Experiencia de «radicalización del peronismo» que, como hemos señalado ya, se produce en un contexto de creciente alza de la lucha de los pueblos, que buscan liberarse y arribar, en la mayoría de los casos, a sociedades socialistas (además del triunfo de las revoluciones socialistas en Rusia en 1917, en China en 1949 y en Cuba en 1959, la década del sesenta encuentra a gran parte de los pueblos del mundo encaminados a realizar procesos de transformación revolucionaria y descolonización, con focos ético-políticos de resistencias emblemáticas, como la protagonizada por los vietnamitas bajo el liderazgo de Ho Chi Minh).

Resulta evidente que esto ya no es así (ni en el mundo ni en la Argentina), pero resulta productivo pensar cuánto del peronismo, en tanto memoria de la negrada con poder, opera hoy como fantasma y cuánto de esa memoria es susceptible de ser reactualizada en función de un proyecto de construcción de poder popular que quizás exceda al peronismo pero que seguramente sea imposible construir sin sus vertientes combativas, que accionan desde abajo, desde el seno mismo de las clases trabajadoras contemporáneas.

¿Qué es la justicia social, la soberanía política, la independencia económica en la realidad actual? ¿Cómo funcionan hoy –cuando los proyectos socialistas han fracasado en todo el mundo– esas tres banderas fundamentales que Olmedo y su organización dicen defender como parte de una lucha y una experiencia popular que en los 70 sostiene que solo pueden hacerse efectivas «mediante la construcción del socialismo en la Argentina»? Su respuesta a qué debe entenderse por «doctrina justicialista» quizás pueda brindar algunas pistas:

Si lo que se pretende al hablar de doctrina justicialista es fijar la historia, detener su curso y hacerle creer hoy a nuestro pueblo que es posible el capitalismo sin explotación, o que los intereses de los dominados y los dominantes pueden conciliarse, nosotros decimos que eso no es justicialismo, que la doctrina justicialista ya no interpreta las necesidades del pueblo peronista. Nos parece más correcto decir que eso no es justicialismo, porque nuestro pueblo sabe perfectamente que la doctrina tiene que ser tan viva como la propia realidad y debe adecuarse a las etapas, a los ciclos, a los peldaños de la lucha por la liberación.

Volvemos al argumento que prioriza «el análisis concreto de la situación concreta» de cada país (como decía Lenin), su historia, para pensar en la elaboración de una estrategia popular de cambio, y no una «bandera política universal» o una serie de conceptos enunciados de manera abstracta más allá del estudio de las formaciones sociales específicas, en su composición y su desarrollo en función de la lucha de clases.

El peronismo se caracteriza por «haberse apoyado en el movimiento obrero, por haber mantenido y desarrollado a nivel nacional su aparato sindical. Expresa la visión renovadora de sectores del aparato estatal con un programa de independencia económica y de un desarrollo independiente del imperialismo que, sin necesidad de ser anti-burgués, es tan avanzado que no consigue seducir a una burguesía y a una oligarquía terrateniente, esencialmente dependiente», explica Olmedo, para luego dar cuenta de la propia evolución del Movimiento Peronista, desde el «justicialismo» como «teoría de la coexistencia pacífica del capital y el trabajo» (según lo define el ERP), hacia aquello que el mismo Perón supo denominar como «actualización doctrinaria», es decir, el proceso a partir del cual se gesta en el interior mismo del Movimiento Peronista una corriente de organizaciones revolucionarias que entonces encaran las tareas de la liberación nacional con la vista puesta en el socialismo. «La izquierda acusa al Movimiento Peronista de ser ‘una ideología burguesa’ sin preocuparse en lo más mínimo de establecer diferencias», escribe el Comandante de las FAR, para luego agregar: «Pero estas diferencias existen, y poco a poco, los mismos hechos los obligarán a tenerlas en cuenta».

El modo en que las FAR tuvo en cuenta el proceso peronista contempló un riguroso trabajo teórico que, en su caso, implicó a su vez combatir su propio «ideologismo» que, según sus propias palabras, debe ser entendido como ese tipo de análisis «que no parte de valorar el papel de una clase, de una fuerza social en el marco de las contradicciones de una formación social, sino que se detiene en las expresiones de tipo ideológico, o sea, en aquellos modos en que determinados protagonistas o sectores de esas fuerzas se piensan a si mismos. O, lo que suele suceder, en la imagen que el sistema da del modo en que esos sectores se piensan a si mismos». Método que –prosigue Olmedo– «consiste a menudo en disociar las expresiones ideológicas, e inclusive las formas organizativas que, en este caso el peronismo, ha ido dándose en diversas etapas, de la etapa misma en que se dieron y del conjunto de los condicionantes económicos, políticos, culturales, ideológicos que es preciso retener para captar la lógica propia de esa etapa».

Muerto Olmedo y avanzado el intenso proceso de lucha de masas que abre el «Corte-Cordobazo» (69) y se profundiza con la Campaña del «Luche y vuelve» por el retorno de Perón del exilio (71), ese trabajo teórico de caracterización de la etapa política y las tareas de las fuerzas revolucionarias que se le corresponden continuó camino a la fusión con Montoneros y hoy puede leerse al menos en otro documento fundamental de las FAR, titulado «Respuesta al documento base». Después de octubre de 1973, aquella organización, nacida para apoyar desde Argentina la guerrilla rural del Che, sella definitivamente su suerte a la del conjunto de militancias estructuradas bajo la bandera y el nombre de Montoneros, la organización armada peronista con mayor incidencia en el proceso político nacional. Su proceso de crecimiento (cuantitativo y cualitativo) durante el período 1973-1975 la colocó en el lugar de vanguardia de las corrientes del peronismo más proclives a comprometerse con un proyecto de transformación radical de la sociedad argentina.

Seguramente, el momento más álgido de la lucha de clases en toda la historia nacional; seguramente, el momento en que se estuvo más cerca de protagonizar en el país algo así como una revolución socialista.

A modo de conclusión

Peronismo y capitalismo mundial integrado. ¿Cómo pensar el peronismo tras el neoliberalismo menemista? Pero, también, ¿cómo pensar al socialismo tras la caída del muro de Berlín? Las fechas casi coinciden: el derrumbe de los «socialismos reales» y el derrumbe de la experiencia nacional-popular más importante del siglo XX.

Ni el progresismo kirchnerista ni el «socialismo del siglo XXI» promovido en vida de Chávez en el marco de la Revolución Bolivariana de Venezuela lograron torcer la dirección de entierro de la perspectiva revolucionaria que caracteriza lo que va del siglo. «Ningún peronista concibe la coexistencia del obrero argentino y el capitalista… de una empresa extranjera. Ningún auténtico peronista… por supuesto. La liquidación de la burguesía nacional, tendencia histórica que a nadie escapa, lleva implícita la desnacionalización continua y la pérdida cada vez mayor de peso político de la burguesía nacional y de sus concepciones», escribía Olmedo en 1971. Medio siglo después, la tendencia de la transnacionalización de la economía y la mundialización de la lógica del capital es arrolladora, pero dicha característica no profundizó la lucha de clases en un sentido emancipador, sino que ofició como lo hace el terror cuando no hay capacidad resistente de enfrentarlo al punto de revertir las derrotas estratégicas.

No existe por lo tanto un peronismo revolucionario en la actualidad, como tampoco existe una izquierda revolucionaria. Lo que sí existen son luchas, procesos de organización popular y disputas políticas que se producen al interior del dispositivo que ha triunfado tras el aplastamiento, a sangre y fuego, de las apuestas revolucionarias. Es decir: existen resistencias y procesos populares de avance, en algunos casos, siempre encorsetados en los marcos de la democracia y el Estado liberal.

Es necesario, por lo tanto, una nueva actualización doctrinaria del peronismo para el siglo XXI, así como una redefinición de los marcos de coordinación regional en el continente y de solidaridad e intercambio en el plano internacional.

El kirchnerismo, en un sentido (progresista), puede ser entendido como un intento en ese sentido: del carácter revolucionario al democrático y feminista del nacionalismo popular; de la clase obrera como columna vertebral a la juventud como sujeto de una política concebida de una forma aún más estatista a la que el peronismo clásico ya la comprendía. En sus antípodas, un sindicalismo peronista incapaz de leer las transformaciones del país, producidas al ritmo de las mutaciones del capitalismo en el mundo entero. Incapacidad que llevó, entre otras cuestiones, a que las luchas contra las nuevas formas de explotación surgieran desde otras herramientas organizativas, fundamentalmente, la de los movimientos sociales, durante años alejados del peronismo, luego –en muchos casos– integrado a él, hoy dispersos entre posiciones peronistas, kirchneristas, de izquierda y «antipolíticas», aunque mayoritariamente inscriptos en la actualidad en la experiencia peronista.

Así y todo, la tendencia resulta clara, al menos en la hipótesis de lectura de este cronista: pasadas dos décadas de la insurrección de diciembre de 2001 (que oficia como mejor muestrario del ciclo de luchas desde abajo que lo antecedió), el cuestionado peronismo supo regenerarse, con lo peor y lo mejor de su historia corta de posdictadura, con sus peores y mejores elementos adentro: con el aparato del PJ con cada vez más incidencia en función del predominio del «territorio», en desmedro del peso especifico de la clase obrera en la estructura productiva del país y, por lo tanto, como «columna vertebral» del «movimiento» (en algunas coyunturas, incluso, reducido a «liga de gobernadores» y «pactos entre intendentes»).

Estructuras generalmente conservadoras, muchas veces macartistas y hasta «mafiosas», pero estructuras que así y todo se han mostrado capaces de oficiar aún como dique de contención electoral frente a una derecha que cada vez más logra generar incidencias sociales profundas y mayorías electorales amplias, y como «hecho maldito» del país imaginado por la Ceocracia (sí, incluso la «burocracia sindical» resulta un problema para el país que pretende dejar atrás los 70 años de populismo y avanzar en un proyecto de país de 70 años, entre otras cuestiones, sin sindicatos).

Por fuera del peronismo «político y sindical», los movimientos populares y ciertas luchas sociales. Es notable la pérdida de peso de la «izquierda pura» dentro de los movimientos sociales y el sindicalismo y el crecimiento tanto de las corrientes de izquierda que optaron por hacer alianzas con el peronismo, como de corrientes peronistas / kirchneristas dentro del propio movimiento social y sindical, llegando a ser abrumadoramente mayoritarias numéricamente y hegemónicas políticamente (UTEP, Sindicato del Subte, Corriente Federal de la CGT, conducciones de ATE y CETERA, por nombrar los espacios no clásicamente encuadrados en el «sindicalismo peronista»).

«Si hay algo que es imperdonable en un político, es la falta de sentido de la realidad», decía Olmedo, para agregar: «los marxistas son particularmente conscientes de ello y hacen de la práctica un criterio de verdad. Es decir, la justeza de una posición política se admite solamente cuando se prueba correcta en carácter de una práctica social, y tratándose de política que dice responder a los intereses de la clase trabajadora, por la medida en que esa clase la hace suya y la lleva adelante». Las reflexiones del Comandante de las FAR no pueden sino estremecer la conciencia de cualquier marxista argentino del siglo XXI, sobre todo al leer: «la izquierda argentina ha sido un excelente ejemplo de esa falencia. A la falta de sentido autocrítico para medir con justeza la repercusión de sus políticas en las masas populares, agrega una particular habilidad para generar concepciones formales, vacías de todo contenido real. En estas concepciones se albergan profundos errores teóricos, que se disimulan bajo mantos de dogmatismo o asumiendo posiciones catedráticas».

La insistencia de quienes venimos sosteniendo que es necesario recrear una «fuerza social» capaz de constituirse en un cuerpo político colectivo que pueda llevar adelante las tareas fundamentales que permitan en un mediano plazo cambiar las relaciones de fuerzas en este país van en clara sintonía con aquello que planteaba Olmedo respecto de la una «estrategia liberadora», entendida no como una simple afirmación o práctica de un método, sino como herramienta teórico-política capaz de determinar «cuál es, en una sociedad nacional, la fuerza social capaz de protagonizar un proceso cabalmente revolucionario liberando en él a otras fuerzas y sectores sociales. En otras palabras, cuál es la fuerza social cuya ubicación en el proceso productivo da a sus reivindicaciones económicas la máxima radicalidad, pero también, y decididamente, cuál es la fuerza social cuya experiencia ha establecido ya más claramente que las reivindicaciones fundamentales no se piden, se conquistan y vuelven a perderse si con ella no se conquista y se defiende el poder político, el timón de la sociedad».

Contra el «giro lingüístico» del populismo y el «sujeto líquido» del progresismo, la reivindicación de una apropiación crítica de la tradición revolucionaria, tanto peronista como marxista.

El nuevo orden mundial (neoliberal) no hace más que complejizar los elementos que constituyen la lógica del capital, pero no la suplantan por otra lógica diferente. Será tarea de una elaboración teórica rigurosa (que excede este trabajo) analizar las nuevas formas de explotación, opresión y gestación de individuos modelizados por la alienación capitalista contemporánea. Y para ello el marxismo, seguramente, sea insuficiente, aunque no obsoleto.

Seguir sosteniendo que son las clases trabajadoras (en su pluralidad: asalariados más precariado) las que están en mejores condiciones de reconfigurar una nueva columna vertebral capaz de poner en pie un nuevo bloque histórico de fuerzas sociales que puedan protagonizar un cambio radical de las estructuras económicas, políticas y culturales de explotación, dominación y alienación que rigen el capitalismo en la actualidad, no implica ni nostalgias, ni conservadurismos, ni tampoco incapacidad de leer los nuevos protagonismos sociales, sino mas bien una apuesta realista sostenida sobre una concepción materialista de la historia, aquella que entiende que todo conjunto de ideas sobre el mundo debe contar con la fuerza material capaz de expresarlas y sostenerlas en un escenario de confrontación con sus enemigos, que no son los simples adversarios de la política liberal, sino aquellos sectores de poder económico que han mostrado, una y otra vez, hablar la lengua de la paz para ejercer desde esos enunciados la guerra social más descarnada.

Comprender de manera cabal el dramatismo de la situación actual nos conducirá a esbozar estrategias políticas más consistentes, capaces de abordar los problemas de raíz, en sus causas, y no en sus meros efectos inmediatos. Esa estrategia deberá tener como punto de partida la experiencia nacional que vienen realizando los movimientos populares y algunos sectores del sindicalismo, mayormente enrolados –de un modo u otro– en la experiencia política peronista.

Desde allí, entonces, combatir al capital y al Estado liberal. Desde allí, entonces, ejercitar un activo «internacionalismo desde abajo» y no una dogmática concepción internacionalista abstracta, como denunciaba Olmedo: «No hace falta más que leer el diario para comprobar que la tan mentada política marxista a nivel mundial no existe en ningún lado. Existen sí, y existen por vinculación con su pueblo, y por la adhesión que este pueblo les brinda, movimientos de liberación nacional, que luchan contra el imperialismo a partir de las condiciones concretas de sus propios países levantando banderas políticas que la experiencia ha probado adecuadas para el grado de desarrollo político del pueblo».

Obviamente, en el marco del nuevo orden mundial, con grandes grupos económicos transnacionales operando en cada país, resulta tarea vana visualizar una burguesía nacional como clase que pueda tener intereses comunes con los sectores oprimidos y explotados de cada lugar, pero ello no debería llevarnos a pensar que lo nacional no sea el punto de partida para pensar una «política común combatiente» (como insistía Olmedo) nacida de las auténticas luchas populares de cada uno de nuestros países, y no una política común burocrática, ejercida por organismos fantasmas, desvinculados de los pueblos, ajenos a ellos y, lo que es decisivo, «no surgido de su seno ni de sus luchas», como algunos «trenes fantasmas» que aún conservan el nombre de flamantes internacionales.

Lo nacional como punto de partida implica, sí, correlación regional (Latinoamericana) y mundial (el Sur Global), pero siempre atendiendo a la experiencia, a las banderas, a los símbolos, a la estructura de sentimiento sociocultural que se presenta en las luchas que libra cada pueblo en el camino de su emancipación.

No existirá hoy en Argentina un peronismo revolucionario (en sintonía con la derrota del ideario de la revolución en todo el mundo), pero si, atendiendo a las luchas populares que se vienen librando en nuestro país, se logra recrear desde el peronismo una perspectiva combativa, consecuente, desde abajo, que no se conforme con realizar una administración progresista del orden capitalista sino avanzar en el cambio de las relaciones de fuerzas que permitan volver a discutir, elaborar y poner en pie una nueva estrategia de poder, seguramente algo del espectro de aquella tendencia estará presente en función no solo de su redención, sino también de su reactualización. Dejar de pensar con la revolución atrás –como algo muerto, del pasado– es parte del desafío de cavilar en clave de lo que podríamos denominar como un «olmedismo del siglo XXI».

Sobre o autor

Mariano Pacheco es escritor, periodista, investigador popular. Integrante de la Cátedra Abierta Félix Guattari de la Universidad de lxs Trabajadorxs. Director del Instituto Generosa Frattas

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