Às vésperas das eleições presidenciais, Verónika Mendoza é projetada como candidata da esquerda peruana.
Verónika Mendoza
Ilustração: Juan Dellacha. |
Tradução / Às vésperas das eleições presidenciais, desde o Coletivo Editorial Jacobin da América Latina, tivemos a oportunidade de conversar com Verónika Mendoza, que se projeta como candidata da esquerda peruana.
Desde que você foi candidata à presidência em 2015, a mídia não se cansa de descrever você como a representante peruana do ciclo progressista latino-americano. No entanto, poucos perguntaram se você se sente pertencente a esse ciclo. Qual sua posição a em relação ao progressismo latino-americano?
Verónika Mendoza
No Peru, sempre nos sentimos um tanto afastados dos processos progressistas da América Latina. Às vezes olhamos com admiração, às vezes com críticas, mas sempre com distância. Valorizamos o seu horizonte anti-imperialista, que continua vigente e deve ser reforçado a cada passo para construir margens cada vez maiores de autonomia regional e continental. Também valorizamos a tendência redistributiva que, em maior ou menor grau, todos compartilhavam. A intenção de construir um Estado comprometido com o bem-estar das maiorias, que por meio de iniciativas várias, busque garantir direitos e permita o acesso a recursos e bens públicos, é sempre uma política saudável. Seu componente democratizante, que teve efeitos concretos na ampliação dos direitos e da dignidade dos setores populares, é outro ponto a se destacar.
As raízes históricas transformadoras que possuíam também são valiosas — e elas estão associadas ao questionamento de elementos estruturais como os de identidade ou nação. Ter como objetivo remover o substrato conservador-colonial-dependente de nossas sociedades é fundamental. Nesse sentido, o caso boliviano, com o acesso dos setores indígenas ao governo e a implementação de uma série de mecanismos democráticos, além dos tradicionais, constitui um exemplo a ser seguido. Assim foi com a tentativa venezuelana de gerar outro tipo de participação, de construir o poder a partir de outras bases, como se observou durante o governo de Hugo Chávez.
Definitivamente, no Peru nos sentimos unidos a essas experiências, passadas e recentes. É inegável que há uma identidade e uma cultura que compartilhamos com as diversas experiências populares, principalmente no que diz respeito à marca plebeia de desafiar o neoliberalismo e denunciá-lo em todas as suas versões.
Mas também há lacunas, e a possibilidade de tirar lições a partir disso depende de sermos capazes de identificá-las e discuti-las. É preciso ter clareza sobre o que podemos e não podemos fazer e o que devemos e não devemos fazer, tanto no Peru como em toda a América Latina.
Quais são, do seu ponto de vista, essas deficiências dos governos progressistas e as lições que tiramos delas?
Verónika Mendoza
De onde estamos, à esquerda no mapa político peruano, temos sido críticos em vários aspectos. Temos desenvolvido, desde a década de 1990, algumas ideias mais radicais ligadas ao movimento antiglobalização, ao Zapatismo, aos Fóruns Sociais. Trabalhar juntos com todo um movimento que ousou desafiar a ordem no momento em que ela estava mais consolidada e que buscou montar uma plataforma que fosse muito além da crítica antineoliberal.
Quando vimos o surgimento de governos progressistas em nossa região, embora os tenhamos recebido como uma boa notícia em relação ao que havia, os percebemos em outra frequência, com outros códigos. Alguns projetos sem muito compromisso com a superação do capitalismo, sem vocação alguma para ir mais longe na busca por alternativas.
O progressismo tem uma limitação muito desenvolvimentista, que se expressa na vontade de gerir o que está estabelecido, principalmente em tudo o que tem a ver com o modelo econômico extrativista. Vimos como países com governos progressistas mantinham uma dependência crescente de suas matérias-primas, mineração, petróleo ou soja, sem realmente tentar superar o modelo extrativista exportador primário. Ao contrário, muitos acabaram se exacerbando. Esse, acreditamos, é o primeiro déficit com o qual se deve aprender: não se pode realmente transformar um país mantendo uma política econômica meramente rentista e principalmente exportadora.
Um segundo déficit importante gira em torno do fato de que, apesar dos esforços e de um certo radicalismo exibido em alguns países, a estrutura dos Estados não pode ser desmontada tal como foi construída ao longo de todos esses séculos. Na Venezuela se fala em Quinta República, mas vale a pena perguntar quantos defeitos das repúblicas anteriores pesam nesta Quinta. O Estado mudou de mãos, mas não houve uma reforma profunda. A forma de organizar o poder, apesar de tudo, parece persistir inalterada.
Não se pode negar que, embora coincida com as demandas de mudanças exigidas pelos movimentos sociais e setores da cidadania, [a forma de organizar o poder] acabou por se enquadrar em uma dinâmica bastante estatal. Com isso, surge um terceiro aspecto instrutivo: a complexa relação com os movimentos sociais, muitas vezes tensa e ambivalente, transformando organizações que não se encaixavam nessa lógica em oponentes, o que acaba por colocar um manto de suspeita sobre sua autonomia. Uma experiência dramática, nesse sentido, é a do Brasil, onde todo o acúmulo do PT e sua relação com os movimentos sociais ficou tensa, o que o levou a fechar em si próprio frente às forças conservadoras que conduziram Bolsonaro ao governo. Outro exemplo é o Equador: a tensa relação de Rafael Correa com uma parte importante do movimento indígena e ambiental continua até hoje.
A dinâmica histórica das últimas décadas no Peru não pode ser comparada com nenhuma das experiências anteriores. Meu país é uma verdadeira colcha de retalhos. Pode ser que um setor da sociedade – especialmente no sul – se identifique com o progresso da mudança na Bolívia. Mas há também um outro setor que não o faz e que se identifica mais com o que está acontecendo na Argentina, onde existe um bloco nacionalista mais amplo com forte presença de uma camada tecnocrática moderna. Já entre os jovens peruanos, a identificação mais forte se dá por meio do movimento chileno e da mobilização social por uma nova constituição.
Você começou sua militância política no início dos anos 2000, nas fileiras do que já foi – fugazmente – aclamado como o veículo do progressismo peruano: o Partido Nacionalista Peruano de Ollanta Humala. Agora, como candidata à presidência do Juntos pelo Peru em 2021, como você avalia a transformação da esquerda peruana nas últimas décadas?
Verónika Mendoza
No Peru, foi o nacionalismo de Ollanta Humala que, por volta de 2011, tentou cavalgar na onda latino-americana de governos progressistas. Mas, apesar das expectativas de grande parte da população, o Partido Nacionalista nunca foi bem-sucedido. Humala nunca foi um revolucionário, longe disso. Não tinha uma cultura de esquerda, nem mesmo um tom nacional-popular. Seu projeto foi limitado desde suas origens. A correlação de forças na época de sua ascensão ao governo foi o fator que mais impôs condições, e o poder econômico – em meio a um boom geral – rapidamente se tornou dominante. Além do implemento de alguns programas sociais e do desenvolvimento incipiente da vertente social da gestão estatal, Humala acabou sendo profundamente conservador.
E é que, em nosso país, a correlação de forças herdada por Fujimori se manteve até hoje. A herança que recebemos em sua queda legou-nos todo o seu andaime de poder, inclusive a Constituição promulgada de 1993. As reformas neoliberais no Peru foram extremamente profundas, como resultado do conflito armado e da crise política das décadas de 1980 e 1990. A grande conquista de Fujimori a longo prazo foi a rearticulação e consolidação de um bloco neoligárquico dominante, aliado das Forças Armadas e extremamente poderoso.
O retrato não estaria completo se não contemplássemos também nossas próprias fragilidades: a crise política e o pragmatismo dominante na esquerda. Sem calibrar de forma justa a profunda derrota sofrida pelo movimento popular durante o conflito armado e a consequente implementação do modelo neoliberal (não só como programa de governo, mas também no sentido ideológico), é impossível entender a crise no campo progressista no Peru. Sua versão mais deformada foi personificada pela figura de Humala, mas também se expressou na crise da esquerda, recuada em torno das ONGs e buscando atalhos para o governo se acomodar mais facilmente.Mas hoje nossa realidade começa a mudar. As mobilizações desencadeadas após o afastamento de Vizcarra trouxeram à luz a necessidade de transformações de outra ordem e a disposição de amplos setores da população em promovê-las. A construção de um projeto fortemente enraizado em processos populares pode nos permitir reverter o caminho de resignação que a esquerda percorre há muito tempo. É o nosso próprio esforço, que só podemos fazer nós próprios, porque a procura de atalhos já se revelou infrutífera no passado. Não se trata de chegar mais rápido, mas de chegar melhor, com mais chances de sucesso. As experiências progressistas em nossa região representam uma referência a partir da qual podemos tirar lições positivas e negativas. Mas as forças das nossas raízes populares vão depender da originalidade do caminho que vamos traçar: nem decalque nem cópia, mas sim criação heróica, uma aposta para avançar mais.
Verónika Mendoza
No Peru, sempre nos sentimos um tanto afastados dos processos progressistas da América Latina. Às vezes olhamos com admiração, às vezes com críticas, mas sempre com distância. Valorizamos o seu horizonte anti-imperialista, que continua vigente e deve ser reforçado a cada passo para construir margens cada vez maiores de autonomia regional e continental. Também valorizamos a tendência redistributiva que, em maior ou menor grau, todos compartilhavam. A intenção de construir um Estado comprometido com o bem-estar das maiorias, que por meio de iniciativas várias, busque garantir direitos e permita o acesso a recursos e bens públicos, é sempre uma política saudável. Seu componente democratizante, que teve efeitos concretos na ampliação dos direitos e da dignidade dos setores populares, é outro ponto a se destacar.
As raízes históricas transformadoras que possuíam também são valiosas — e elas estão associadas ao questionamento de elementos estruturais como os de identidade ou nação. Ter como objetivo remover o substrato conservador-colonial-dependente de nossas sociedades é fundamental. Nesse sentido, o caso boliviano, com o acesso dos setores indígenas ao governo e a implementação de uma série de mecanismos democráticos, além dos tradicionais, constitui um exemplo a ser seguido. Assim foi com a tentativa venezuelana de gerar outro tipo de participação, de construir o poder a partir de outras bases, como se observou durante o governo de Hugo Chávez.
Definitivamente, no Peru nos sentimos unidos a essas experiências, passadas e recentes. É inegável que há uma identidade e uma cultura que compartilhamos com as diversas experiências populares, principalmente no que diz respeito à marca plebeia de desafiar o neoliberalismo e denunciá-lo em todas as suas versões.
Mas também há lacunas, e a possibilidade de tirar lições a partir disso depende de sermos capazes de identificá-las e discuti-las. É preciso ter clareza sobre o que podemos e não podemos fazer e o que devemos e não devemos fazer, tanto no Peru como em toda a América Latina.
Quais são, do seu ponto de vista, essas deficiências dos governos progressistas e as lições que tiramos delas?
Verónika Mendoza
De onde estamos, à esquerda no mapa político peruano, temos sido críticos em vários aspectos. Temos desenvolvido, desde a década de 1990, algumas ideias mais radicais ligadas ao movimento antiglobalização, ao Zapatismo, aos Fóruns Sociais. Trabalhar juntos com todo um movimento que ousou desafiar a ordem no momento em que ela estava mais consolidada e que buscou montar uma plataforma que fosse muito além da crítica antineoliberal.
Quando vimos o surgimento de governos progressistas em nossa região, embora os tenhamos recebido como uma boa notícia em relação ao que havia, os percebemos em outra frequência, com outros códigos. Alguns projetos sem muito compromisso com a superação do capitalismo, sem vocação alguma para ir mais longe na busca por alternativas.
O progressismo tem uma limitação muito desenvolvimentista, que se expressa na vontade de gerir o que está estabelecido, principalmente em tudo o que tem a ver com o modelo econômico extrativista. Vimos como países com governos progressistas mantinham uma dependência crescente de suas matérias-primas, mineração, petróleo ou soja, sem realmente tentar superar o modelo extrativista exportador primário. Ao contrário, muitos acabaram se exacerbando. Esse, acreditamos, é o primeiro déficit com o qual se deve aprender: não se pode realmente transformar um país mantendo uma política econômica meramente rentista e principalmente exportadora.
Um segundo déficit importante gira em torno do fato de que, apesar dos esforços e de um certo radicalismo exibido em alguns países, a estrutura dos Estados não pode ser desmontada tal como foi construída ao longo de todos esses séculos. Na Venezuela se fala em Quinta República, mas vale a pena perguntar quantos defeitos das repúblicas anteriores pesam nesta Quinta. O Estado mudou de mãos, mas não houve uma reforma profunda. A forma de organizar o poder, apesar de tudo, parece persistir inalterada.
Não se pode negar que, embora coincida com as demandas de mudanças exigidas pelos movimentos sociais e setores da cidadania, [a forma de organizar o poder] acabou por se enquadrar em uma dinâmica bastante estatal. Com isso, surge um terceiro aspecto instrutivo: a complexa relação com os movimentos sociais, muitas vezes tensa e ambivalente, transformando organizações que não se encaixavam nessa lógica em oponentes, o que acaba por colocar um manto de suspeita sobre sua autonomia. Uma experiência dramática, nesse sentido, é a do Brasil, onde todo o acúmulo do PT e sua relação com os movimentos sociais ficou tensa, o que o levou a fechar em si próprio frente às forças conservadoras que conduziram Bolsonaro ao governo. Outro exemplo é o Equador: a tensa relação de Rafael Correa com uma parte importante do movimento indígena e ambiental continua até hoje.
A dinâmica histórica das últimas décadas no Peru não pode ser comparada com nenhuma das experiências anteriores. Meu país é uma verdadeira colcha de retalhos. Pode ser que um setor da sociedade – especialmente no sul – se identifique com o progresso da mudança na Bolívia. Mas há também um outro setor que não o faz e que se identifica mais com o que está acontecendo na Argentina, onde existe um bloco nacionalista mais amplo com forte presença de uma camada tecnocrática moderna. Já entre os jovens peruanos, a identificação mais forte se dá por meio do movimento chileno e da mobilização social por uma nova constituição.
Você começou sua militância política no início dos anos 2000, nas fileiras do que já foi – fugazmente – aclamado como o veículo do progressismo peruano: o Partido Nacionalista Peruano de Ollanta Humala. Agora, como candidata à presidência do Juntos pelo Peru em 2021, como você avalia a transformação da esquerda peruana nas últimas décadas?
Verónika Mendoza
No Peru, foi o nacionalismo de Ollanta Humala que, por volta de 2011, tentou cavalgar na onda latino-americana de governos progressistas. Mas, apesar das expectativas de grande parte da população, o Partido Nacionalista nunca foi bem-sucedido. Humala nunca foi um revolucionário, longe disso. Não tinha uma cultura de esquerda, nem mesmo um tom nacional-popular. Seu projeto foi limitado desde suas origens. A correlação de forças na época de sua ascensão ao governo foi o fator que mais impôs condições, e o poder econômico – em meio a um boom geral – rapidamente se tornou dominante. Além do implemento de alguns programas sociais e do desenvolvimento incipiente da vertente social da gestão estatal, Humala acabou sendo profundamente conservador.
E é que, em nosso país, a correlação de forças herdada por Fujimori se manteve até hoje. A herança que recebemos em sua queda legou-nos todo o seu andaime de poder, inclusive a Constituição promulgada de 1993. As reformas neoliberais no Peru foram extremamente profundas, como resultado do conflito armado e da crise política das décadas de 1980 e 1990. A grande conquista de Fujimori a longo prazo foi a rearticulação e consolidação de um bloco neoligárquico dominante, aliado das Forças Armadas e extremamente poderoso.
O retrato não estaria completo se não contemplássemos também nossas próprias fragilidades: a crise política e o pragmatismo dominante na esquerda. Sem calibrar de forma justa a profunda derrota sofrida pelo movimento popular durante o conflito armado e a consequente implementação do modelo neoliberal (não só como programa de governo, mas também no sentido ideológico), é impossível entender a crise no campo progressista no Peru. Sua versão mais deformada foi personificada pela figura de Humala, mas também se expressou na crise da esquerda, recuada em torno das ONGs e buscando atalhos para o governo se acomodar mais facilmente.Mas hoje nossa realidade começa a mudar. As mobilizações desencadeadas após o afastamento de Vizcarra trouxeram à luz a necessidade de transformações de outra ordem e a disposição de amplos setores da população em promovê-las. A construção de um projeto fortemente enraizado em processos populares pode nos permitir reverter o caminho de resignação que a esquerda percorre há muito tempo. É o nosso próprio esforço, que só podemos fazer nós próprios, porque a procura de atalhos já se revelou infrutífera no passado. Não se trata de chegar mais rápido, mas de chegar melhor, com mais chances de sucesso. As experiências progressistas em nossa região representam uma referência a partir da qual podemos tirar lições positivas e negativas. Mas as forças das nossas raízes populares vão depender da originalidade do caminho que vamos traçar: nem decalque nem cópia, mas sim criação heróica, uma aposta para avançar mais.
Sobre a entrevistada
Verónika Mendoza é uma política peruana, ambientalista e feminista. Foi membro do Congresso representando a região de Cusco de 2011 a 2016, e candidata à presidência em 2016.
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