3 de março de 2021

Bill Gates não pode salvar o planeta

Bill Gates está circulando promovendo seu plano para resolver a mudança climática. Mas seu novo livro ignora o fato de que o mesmo sistema capitalista que o enriqueceu é o que está matando o planeta. Precisamos de um ambientalismo da classe trabalhadora.

Grace Blakeley

Jacobin

Bill Gates speaks onstage at the 2019 New York Times Dealbook on November 6, 2019 in New York City. (Mike Cohen / Getty for the New York Times)

Bill Gates pode salvar o mundo do capitalismo? O novo livro de Gates, Como Evitar um Desastre Climático, apresenta seu plano para zerar as emissões de carbono. Com toda a fanfarra em torno do lançamento do livro — seu rosto foi estampado na capa de várias revistas esta semana — um plano é deprimentemente familiar.

A mudança climática, argumentam Gates e muitos economistas, é um exemplo de falha de mercado. Os mercados não conseguiram “precificar” as emissões de carbono de forma adequada, o que significa que produzimos muita emissão. Se os governos pudessem apenas atribuir o preço correto a essas emissões, a falha do mercado seria corrigida e o planeta seria salvo.

Os desafios realmente se resumem à implementação. Se tributarmos as atividades poluentes mais pesadamente para internalizar as externalidades negativas a elas associadas, quem deve arcar com o ônus de pagar esses impostos: quem extrai e queima os combustíveis ou os consumidores finais dos bens produzidos? Se tivermos que subsidiar energia verde ou investir em pesquisa e desenvolvimento, de onde deve vir o dinheiro?

O plano de Gates está sendo saudado como progressista porque ele coloca um foco muito maior no investimento estatal para reduzir o que ele chama de “bônus verde” — o custo adicional de usar uma alternativa verde — do que em impostos que, inevitavelmente, recairiam sobre os consumidores. Mais investimento público em infraestrutura e inovação verde criaria empregos, reduzindo a desigualdade e, ao mesmo tempo, restringindo as emissões.

Mas essa caracterização diz menos sobre o plano de Gates do que nosso entendimento do termo “progressista”. A divisão esquerda-direita na política econômica foi reduzida a uma questão de gastos do Estado. Os que estão à esquerda dessa divisão (incluindo, aparentemente, Bill Gates) argumentam que podemos consertar o capitalismo com um estado maior, enquanto os que estão à direita argumentam que a própria intervenção do estado é o problema.

O erro fundamental cometido pelos proponentes de ambas as perspectivas é a suposição de que o estado é uma entidade independente e totalmente separada do mercado. Nessa visão, os estados são o reino da atividade política e os mercados, o da atividade econômica: o estado pode intervir no mercado, mas, ao fazê-lo, estará “politizando” um terreno que normalmente seria governado pela lógica pura e inadulterada da concorrência no mercado livre.

Os de esquerda dizem que isso é bom: precisamos impor algum controle político sobre o mercado anárquico para promover a justiça social. Aqueles da direita dizem que isso é uma coisa ruim: tentar usar a política para controlar a economia só vai criar consequências não intencionais — os estados que tentam consertar as falhas do mercado simplesmente criam o problema muito mais significativo de “falha de governo”.

Quando se trata de colapso climático, todo o debate é estruturado em torno da importância relativa do mercado em oposição à falha de governo. Mas os termos da troca estão completamente equivocados.

Estados e mercados não são terrenos separados governados por lógicas diferentes: eles estão altamente inter-relacionados. Os Estados constroem e agem no interior mercados, seja usando a lei para definir as regras do jogo ou usando seu poderio econômico para moldar a produção, alocação e distribuição de recursos.

E o exercício do poder estatal não é neutro: é influenciado pelos resultados do mercado. Diferentes grupos lutam pelo domínio no interior das instituições do Estado, e essa luta é influenciada pelo equilíbrio mais amplo do poder de classe na sociedade como um todo.

O fracasso em entender este ponto é precisamente o motivo porque a maioria dos esforços anteriores para “salvar o mundo” da mudança climática foram abandonados. Os esquemas de comércio de emissões, como o promulgado pela UE, envolvem tentativas de enfrentar as falhas do mercado por meio da construção de novos tipos de mercados que podem se auto-regular. Mas, como qualquer mercado, esses novos mercados são moldados pelo poder dos atores econômicos que os constroem e atuam.

Os Estados e as instituições internacionais, eles próprios influenciados por poderosos interesses corporativos, construíram mercados para o carbono que simplesmente criaram novas oportunidades para os interesses privados lucrarem, sem criar os incentivos certos para as empresas mudarem seu comportamento. O mesmo pode ser dito de iniciativas de “investimento responsável” como a estrutura ESG (“Environmental, Social and Governance” em tradução livre: “Ambiental, Social e Governança”), que canalizou capital em instituições financeiras que emprestam para grandes empresas de combustíveis fósseis.

Nossa confiança em grandes empresas e Estados capitalistas para resolver a crise climática traz à mente a fábula do escorpião e da rã: um escorpião cruza um rio de carona nas costas de uma rã apenas para picar a rã no meio do caminho, causando o afogamento de ambos. A rã pergunta ao escorpião por que fez uma coisa tão obviamente autodestrutiva, ao que ele responde: “Eu não pude evitar. Está na minha natureza.”

A destruição da natureza faz parte da natureza do capitalismo, cuja lógica central é a acumulação sem fim. Mesmo que a resolução do colapso do clima acabe promovendo os interesses da classe capitalista como um todo, qualquer intervenção grande o suficiente para resolver o problema (que não inclui “soluções” que permitem que metade do planeta seja submerso pelo aumento do nível do mar ou desertificado pelas temperaturas crescentes) interromperia a acumulação muito profundamente para ser considerada.

Do estado capitalista se espera que resolva este desafio encorajando — ou forçando — as empresas a tomarem ações difíceis no curto prazo que, não obstante, irão promover seus interesses no longo prazo. Mas o estado também é estruturalmente limitado pela natureza do sistema capitalista: os governos contam com a acumulação de capital para sustentar sua legitimidade entre o público em geral e seus valiosos vínculos com os interesses privados.

Encontrar o caminho para sair desse beco sem saída requer construir poder fora dessas instituições, a fim de moldar o que acontece dentro delas. O único contrapeso real ao poder dos proprietários do capital é o poder do trabalho organizado; e o único contrapeso real ao poder do estado capitalista é o poder organizado da maioria das pessoas.

Não podemos contar com Bill Gates para resolver a crise climática, mas também não podemos contar com Joe Biden. A maioria das pessoas no planeta — aquelas que serão mais prejudicadas pela degradação climática — tem que se mobilizar para exigir uma forma diferente de organizar a sociedade: uma baseada no atendimento das necessidades de muitos e não na ganância de poucos.

Sobre a autora

Grace Blakeley é redatora da revista Tribune e autora de Stolen: How to Save the World from Financialisation.

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