O socialista pioneiro William Morris sobre a Comuna de Paris e seu legado como uma "grande tragédia que definitivamente e irrevogavelmente elevou a causa do socialismo".
William Morris
Tradução / As “luas e os dias” trouxeram-nos de novo ao aniversário da maior tragédia dos tempos modernos, a Comuna de Paris de 1871, e com ele o dever recorrente de todos os socialistas de celebrá-la com entusiasmo e inteligência. A esta altura, as calúnias flagrantes com as quais a causa temporariamente malsucedida foi atacada quando o acontecimento ainda estava fresco na mente dos homens a afundaram em um grande abismo de mentiras, dissimulações hipócritas e falsas deduções – chamado também de história burguesa – ou se tornaram uma obscura mas profundamente enraizada superstição nas mentes daqueles que têm informação suficiente para ter ouvido falar da Comuna, e ignorância suficiente para aceitar a lenda burguesa dela como uma história.
Mais uma vez, é nosso dever levantar toda a história desta escuridão venenosa e trazê-la à luz do dia, para que por um lado aqueles que ainda não foram tocados pelo socialismo aprendam que houve um princípio que animou aqueles que defenderam a Paris revolucionária contra os resíduos do período lamentável do Segundo Império, e que esse princípio ainda está vivo hoje nos corações de muitos milhares de trabalhadores em toda a civilização, e ano após ano e dia após dia está crescendo em força e no controle que tem das massas deserdadas de nossa falsa sociedade; e, por outro lado, para que nós, socialistas, possamos observar sobriamente o que aconteceu nesta história, recebendo advertência e encorajamento de seus desdobramentos.
Já ouvi dizer, e também de bons socialistas, que é um erro comemorar uma derrota; mas parece-me que isso significa olhar não só para este evento, mas para toda a história de uma forma muito estreita. A Comuna de Paris é apenas um elo na luta que se estende por toda a história dos oprimidos contra os opressores; e sem todas as derrotas dos tempos passados não deveríamos agora ter a esperança da vitória final. Não estamos ainda afastados suficientemente no tempo para julgar os acontecimento e até que ponto seria possível evitar o conflito aberto na época, ou para avaliar a questão sobre o que teria acontecido com a causa revolucionária se Paris tivesse se rendido docilmente à perfídia de Thiers e seus aliados.
Por outro lado, temos a certeza de que esta grande tragédia elevou definitiva e irrevogavelmente a causa do socialismo a todos aqueles que estão dispostos a olhar para a causa com seriedade e se recusam a admitir a possibilidade da derrota. Pois digo solenemente e deliberadamente que se isso acontecesse neste momento conosco e tivéssemos que tomar parte em outra tragédia como esta, seria para o bem e não para o mal. Na verdade, é mais difícil viver por uma causa do que morrer por ela, e fere a dignidade e o respeito próprio de uma pessoa estar sempre fazendo ruidosas declarações de devoção a uma causa antes que se chegue ao campo de batalha no qual ela deve lutar com o corpo. Mas, com a chance do sacrifício corporal bem à frente, vêm também tempos de provação que elevam o homem ao devido tom trágico ou o descartam como um vaporizador vazio inútil.
Para usar uma metáfora transparente, na marcha para o campo de batalha há muitas oportunidades para os covardes caírem fora das fileiras, e muitos, cuja coragem e devoção não foram questionadas nem por outros nem por eles próprios enquanto o dia da batalha real estava muito distante, o farão. Portanto, esses tempos de prova são bons porque são tempos de prova; e podemos muito bem pensar que poucos, de fato, daqueles que caíram anos atrás, que se expuseram à morte e aos ferimentos em toda essa aventura, eram meros fanfarrões acidentais apanhados numa armadilha. Daqueles cujos nomes são bem conhecidos, isso estava longe de ser o caso, e quem pode duvidar que a multidão sem nome que morreu tão heroicamente sacrificou dia a dia outras coisas além da vida, antes que isso acontecesse?
Além disso, certamente deve ser mais do que duvidoso para todos os seres pensantes se o mero exercício das virtudes cotidianas e civis, mesmo quando direcionadas para o fim social, bastará para tirar o mundo de sua atual miséria e confusão. Considere a enorme massa de pessoas tão degradadas por suas circunstâncias que mal podem compreender qualquer esperança de redenção que possa ser colocada diante delas em tempos pacíficos e constitucionais. No entanto, essas são as mesmas pessoas para quem trabalhamos; e elas não devem participar da construção dessa luta, então? Deve ser mais uma vez de acordo com o degradante lema positivista, “tudo para você, nada por você”? Enquanto isso, nessas pessoas, a menos que nós, socialistas, estejamos todos errados, há sementes de sentimento humano e social, capazes de grande desenvolvimento; e certamente quando chegar o tempo em que sua esperança se manifestará, como foi no tempo da Comuna, e estará diante deles para que suas mãos a tomem, eles então terão parte no trabalho de fato, e por fazer isso, eles se levantarão imediatamente do lamaçal de degradação em que nossa falsa sociedade os lançou e na qual os mantém.
A própria revolução levantará aqueles por quem a revolução deve ser feita. Sua esperança recém-nascida, traduzida em ação, desenvolverá suas qualidades humanas e sociais, e a própria luta os habilitará para receber os benefícios da nova vida que a revolução tornará possível. É para aproveitar corajosamente a oportunidade oferecida para elevar a massa dos trabalhadores ao heroísmo que agora celebramos os personagens da Comuna de Paris. É verdade que eles falharam em conquistar a liberdade material imediata para o povo, mas foi em virtude de sua ação corajosa que as idéias de liberdade se aceleraram e se fortaleceram, tornando possível nossa esperança de hoje; e se hoje alguém duvida que eles lutavam pela emancipação do trabalho, seus inimigos da época não duvidavam disso. Eles não viam neles meros oponentes políticos, mas “inimigos da sociedade”, pessoas que não poderiam viver no mesmo mundo que eles, porque a base de suas ideias de vida eram diferentes – a saber, humanidade, não propriedade. Foi por isso que a queda da Comuna foi celebrada com essas hecatombes sacrificadas ao deus burguês Mamon; por tal motim de sangue e crueldade por parte dos conquistadores que, literalmente, não tem paralelo nos tempos modernos. E é por esse mesmo sinal que os honramos como a pedra fundamental do novo mundo que há de ser.
Este artigo foi publicado originalmente no Commonweal em 19 de março de 1887.
Sobre o autor
Sobre o autor
William Morris foi um designer têxtil, poeta, romancista, tradutor e militante socialista inglês.
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