Com o ex-presidente brasileiro Lula da Silva agora elegível para disputar a eleição do próximo ano, o controle de Jair Bolsonaro no poder parece mais fraco do que nunca. Em meio à maré de reação, o retorno de Lula significa que finalmente há alguma esperança para a democracia e a justiça social no Brasil.
Hugo Albuquerque
Tradução / Estava claro que havia ali uma grande obsessão, que nada tinha a ver com colocar fim em propinas: prender Lula, que terminou no cárcere e impedido de disputar as eleições de 2018, enquanto se encontrava em primeiro lugar disparado nas pesquisas / Foto Getty Images.
Em pleno Dia Internacional das Mulheres trabalhadoras, o Brasil foi surpreendido com a anulação das condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo ministro Edson Fachin do Supremo Tribunal Federal (STF). Lula havia sido solto em 2019, apenas para poder recorrer em liberdade, mas permanecia processado e condenado em instâncias inferiores, o que o tornava inelegível pela Lei Brasileira. No entanto, essa nova decisão tem um peso enorme, uma vez que ela faz os processos recomeçar praticamente do zero, tornando Lula novamente elegível para a disputa presidencial de 2022. Falta ainda a definitiva anulação dos processos.
Embora Lula tenha sido solto sob o impacto das revelações da Vaza Jato, que expôs o complô judicial para prendê-lo, a decisão que lhe devolveu a liberdade depois de 580 dias no cárcere não teve, diretamente, nada a ver com isso: os ministros do STF apenas mudaram, de novo, o entendimento sobre a possibilidade de alguém condenado em segunda instância poder responder o processo em liberdade – que é o que, necessariamente, manda a Constituição brasileira, mas foi alterado pelo próprio STF em 2018, não por coincidência meses antes das eleições presidenciais e sob pressão explícita dos militares.
A decisão da soltura de Lula solucionou, por assim dizer, duas questões. Por um lado, livrou a justiça brasileira do constrangimento de manter Lula preso, depois de revelado, pela ação de um hacker, que o então juiz Sérgio Moro combinou a condenação com os acusadores. Por outro lado, poupou Moro que, naquele momento, era ministro da Justiça de Bolsonaro, o maior beneficiado pela prisão de Lula, uma vez que o complô judicial, embora servisse de pano de fundo, não foi a razão para a soltura de Lula.
A recente decisão é mais uma batalha vencida, mas novamente foi um meio que o STF encontrou para não tocar diretamente nos abusos da operação Lava Jato, pois seu fundamento é que Lula não poderia ter sido julgado por uma vara criminal federal de Curitiba, não que ele foi vítima de abusos do juiz e dos procuradores federais. Tanto é verdade, que a tentativa do ministro Gilmar Mendes finalmente decidir sobre a questão, levada a cabo neste 9 de março, foi bloqueada pelo ministro Kassio Nunes Marques, primeiro indicado de Bolsonaro à suprema corte brasileira. O novo ministro pediu para estudar o processo, o que na prática paralisa a decisão especificamente sobre a atuação de Moro.
Uma decisão libertadora, mas, ainda assim, uma meia-verdade
Adecisão do ministro Edson Fachin é simples: a defesa de Lula impetrou um Habeas Corpus e o ministro – sozinho, como é permitido nesses casos – decidiu que não caberia a uma Vara da Justiça Federal de Curitiba julgar esses processos. A decisão é corretíssima, mas também é irônica, uma vez que a famosa 13ª Vara da Justiça Federal em Curitiba, a rigor, julgou todo tipo de denúncia que tivesse a mais remota – e duvidosa – ligação com casos de corrupção na Petrobras, os quais eram tratados como um grande e único esquema – embora a própria Petrobras sequer esteja sediada em Curitiba, mas no Rio de Janeiro.
Por outro lado, as supostas propinas que Lula teria recebido – as quais o próprio juiz Sérgio Moro alega desconhecer em troca de que teriam sido recebidas– sequer tinham qualquer relação com Curitiba, onde Lula por sinal nunca viveu ou manteve negócios. A Vara de Curitiba, então sob o comando de Moro, como lembra o jurista Lênio Streck, sempre foi incompetente para julgar Lula.
Muito antes de discutir eventuais abusos policiais na condução da operação Lava Jato, evidentes conluios, bem claros antes mesmo dos vazamentos que os comprovam de forma cabal, o próprio fato da onipotente e onipresente 13ª Vara da Justiça Federal em Curitiba ter julgado tudo o que ela entendia estar ligado com a corrupção na Petrobras, já era por si só um absurdo.
Isso viola a garantia constitucional do juiz natural e, por tabela, viola os critérios do direito processual penal brasileiro usado para fixar em qual lugar uma determinada denúncia pode ser apresentada e, por conseguinte, julgada – a chamada competência territorial.
Por conta da decisão do ministro Fachin, os processos que envolvem o apartamento do Guarujá, o sítio de Atibaia ou Instituto Lula teriam de ser enviados para a Justiça Federal de Brasília, que deverá analisar de novo os processos, salvo se a Procuradoria Geral da República (PGR) decidir recorrer – o que obrigaria a decisão de Fachin ser remetida para novo julgamento pelos demais 11 ministros do STF.
Porém, se o ministro Fachin acertou ao apontar o pecado original da Lava Jato, pelo menos no que envolve Lula, o fato é que com isso ele se esquivou de analisar a questão central: o fato do então juiz Moro e os procuradores federais, que fazem o papel da acusação, terem mantido recorrente comunicação, combinando operações e simplesmente planejando condenações, pressionando réus e testemunhas com o grande objetivo de prender Lula.
Uma vazamento inconcluso
Agrande série de reportagens do Brasil em 2019 foi a “Vaza Jato”. Nela, foram apontados vazamentos inicialmente publicados no site do The Intercept Brasil sobre como juízes e procuradores da operação Lava Jato mantinham conversas privadas no aplicativo Telegram, combinando condenações, acertando delações premiadas – as confissões que detidos nas operações deveriam fazer para ter suas penas diminuídas – e coisas afins.
Estava claro que havia ali uma grande obsessão, que nada tinha a ver com colocar fim em propinas: prender Lula, que terminou no cárcere e impedido de disputar as eleições de 2018, enquanto se encontrava em primeiro lugar disparado nas pesquisas. A história é conhecida, Lula foi condenado em segunda instância, preso, declarado inelegível e, inclusive, proibido de conceder entrevistas desde a prisão. Jair Bolsonaro venceu aquela disputa e nomeou o principal juiz da operação como seu ministro da Justiça.
A Vaza Jato mudou tudo, o Brasil viveu nos meses seguintes às revelações da Vaza Jato um exercício orwelliano, um prenúncio do que veríamos de forma piorada na pandemia, com Moro, então ministro e aliado de Bolsonaro, basicamente atacando os meios de comunicação que divulgaram os vazamentos, pondo em dúvida a veracidade do material – ao mesmo tempo que afirmava que teria sido vítima de um hacker.
O jornalista Glenn Greenwald, então editor-chefe do The Intercept Brasil, chegou a ser vítima de uma ampla campanha de difamação e precisou de uma decisão do próprio STF para não ser investigado pelas reportagens.
Rapidamente, o hacker responsável por divulgar o material para a mídia, Walter Delgatti, foi preso como se o crime fosse divulgar as conversas – sobre processos públicos, em meio clandestino – e não o conteúdo das mesmas – gerando uma prisão ilegal, como anteviu nesta Jacobin Brasil o jurista Pedro Serrano. O escândalo rapidamente escalou e tornou impossível Lula permanecer preso.
Bolsonaro e suas redes protegeram Moro, lançando diversos ataques contra os denunciantes da Lava Jato, enquanto paralelamente ocorriam enormes atritos entre os dois nos bastidores, motivados pela disputa pessoal — e as pretensões presidenciais de Moro e a liderança da direita radical. A pandemia levou Moro e Bolsonaro a romperem, o que cortou o cordão umbilical entre a Lava Jato e a nova extrema direita.
Contudo, o material levantado por Delgatti terminou nas mãos do STF que, recentemente, autorizou os advogados de Lula a acessar os trechos que dizem respeito ao ex-presidente; vale o princípio do Direito que uma prova ilegal não serve para condenar, mas pode sim absolver — embora considerar aquelas provas ilegais seja apenas parte da longa trajetória brasileira de encobrir crimes de Estado.
Mas é bom notar que a repentina mudança do STF com Lula esconde outras questões: segundo entrevistas pelo próprio Delgatti nos últimos tempos, a Lava Jato usou de sua influência para emparedar ministros do STF e até planejar a prisão de alguns deles — o constrangimento dessas revelações levou a uma nova ameaça de prisão do hacker, que responde aos seus processos com tornozeleira em prisão domiciliar.
O conteúdo mais geral dos vazamentos, que têm sido divulgados na imprensa, por sinal, são piores do que revelado em 2019, comprovando uma colaboração absolutamente ilegal dos procuradores brasileiros com autoridades estrangeiras, inclusive do Departamento de Estado Americano.
Em um momento em que o STF está sob ataque do próprio Bolsonaro, ele luta pela sobrevivência, mas mesmo assim, o espírito corporativista da justiça brasileira – uma das mais caras e elitistas do mundo – fala mais alto, fazendo com que Fachin buscasse – e encontrasse – uma saída pela tangente, a ponto de ser ironizada pelo conservador Presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, como uma forma de proteger Moro.
A Justiça tarda, falha, mas acusa o golpe
Ajustiça tardia muitas vezes é uma peça simbólica. Quando demora para corrigir seus próprios erros, pior ainda. Mas a decisão do ministro Fachin sobre a anulação das condenações mais do que uma lição jurídica, é um sintoma do momento político do país. O STF está nas cordas, precisando tomar medidas duras como, por exemplo, prender um deputado bolsonarista que ameaçou publicamente seus ministros. Bolsonaro, por sua vez, não esconde seu ódio pelo fato dos ministros da Suprema Corte conterem o seu poder.
Ainda, a aceleração de contaminações e mortes por Covid-19, o descaso do governo federal com as milhares de vidas perdidas, o atraso da vacinação e o prenúncio de um colapso econômico fazem com que Lula volte cada vez mais a ser visto como solução – o ex-presidente vacinou 80 milhões de pessoas em 3 meses em 2009, tornando o Brasil o país em todo o mundo que mais vacinou contra H1N1 pelo sistema público.
Talvez ainda seja cedo para dizer, mas o avançar da crise brasileira faz com que mesmo setores oligárquicos, neste momento em que inclusive os hospitais de elite estão colapsando, comecem a considerar que o vale tudo contra o PT que caracterizou os últimos anos talvez não seja mais um bom negócio. Manifestações como a do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que se arrepende da neutralidade durante o segundo turno das últimas eleições, fazem parte desse quadro de mudanças no equilíbrio de forças da política brasileira.
A soltura de Lula e a vitória em mais essa batalha, frise-se, tem também a ver com um intenso movimento de solidariedade internacional, e uma larga movimentação da militância de esquerda brasileira, questionando as decisões da justiça brasileira — e apontando que a Lava Jato é, na verdade, uma grande campanha macartista, com repercussões internacionais, como se vê no uso dos mesmos mecanismos contra ex-presidentes progressistas na América do Sul.
Portanto, ainda é muito cedo para dizer até onde isso pode ir, mas o quadro emergencial brasileiro e a libertação de Lula alude ao atual novo ciclo latino-americano, com novas vitórias eleitorais da esquerda e a (re)emergência dos movimentos sociais. Lula terá outras longas batalhas para vencer, e elas dependem de engajamento e pressão popular sobre instituições pouco transparentes e nada democráticas, mas essa luta não é uma guerra particular do ex-presidente e sim uma questão central na resistência da classe trabalhadora brasileira – e mundial – contra as novas e mortíferas formas do fascismo.
Sobre o autor
Hugo Albuquerque é publisher da Jacobin Brasil, editor da Autonomia Literária, mestre em direito pela PUC-SP, advogado e diretor do Instituto Humanidade, Direitos e Democracia (IHUDD).
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