Nesse dia, em 1871, a classe trabalhadora de Paris assumiu o controle da capital e estabeleceu a Comuna. Embora tenha governado por apenas dois meses, o primeiro governo dos trabalhadores do mundo ainda é um exemplo vivo do tipo de sociedade que os próprios trabalhadores podem criar, de acordo com sua própria visão de liberdade e igualdade.
Marcello Musto
Jacobin
Litografia colorida mostrando a Comuna de Paris de 25 de março de 1871 a 28 de maio de 1871. (Universal History Archive / Getty Images). |
Tradução / Os burgueses da França sempre levaram tudo. Desde a revolução de 1789, eles foram os únicos a enriquecer em períodos de prosperidade, enquanto a classe trabalhadora regularmente carregava o peso das crises. Mas a proclamação da Terceira República abriria novos horizontes e ofereceria uma oportunidade para uma mudança de rumo. Napoleão III, tendo sido derrotado na batalha em Sedan, foi feito prisioneiro pelos prussianos em 4 de setembro de 1870. Em janeiro seguinte, após um cerco de quatro meses a Paris, Otto von Bismarck obteve uma rendição francesa e foi capaz de impor termos severos no armistício que se seguiu.
Eleições nacionais foram realizadas e Adolphe Thiers foi colocado à frente do poder executivo, com o apoio de uma grande maioria legitimista e orleanista. Na capital, porém, onde o descontentamento popular era maior do que em qualquer outro lugar, as forças republicanas e socialistas radicais viraram o jogo. A perspectiva de um governo de direita que deixaria as injustiças sociais intactas, jogando fardo da guerra sobre os menos favorecidos e procurando desarmar a cidade, desencadeou uma nova revolução em 18 de março. Thiers e seu exército não tiveram outra escolha senão fugir para Versalhes.
Luta e governo
Para garantir a legitimidade democrática, os insurgentes decidiram realizar eleições livres imediatamente. Em 26 de março, uma esmagadora maioria de parisienses (190.000 votos contra 40.000) votou em candidatos que apoiaram a revolta, e setenta dos oitenta e cinco representantes eleitos declararam seu apoio à revolução. Os quinze representantes moderados do partido de prefeitos (parti des maires), um grupo formado pelos ex-chefes de certos distritos (arrondissements), renunciaram imediatamente e não participaram do conselho da Comuna; logo depois, quatro radicais se juntaram a eles.
Os sessenta e seis membros restantes – nem sempre fáceis de distinguir devido à dupla afiliação política – representavam uma ampla gama de cargos. Entre eles estavam cerca de vinte republicanos neo-jacobinos (incluindo os renomados Charles Delescluze e Félix Pyat), uma dúzia de seguidores de Auguste Blanqui, dezessete membros da Associação Internacional dos Trabalhadores (tanto partidários mutualistas de Pierre-Joseph Proudhon quanto coletivistas ligados a Karl Marx, muitas vezes em conflito uns com os outros), e alguns independentes.
A maioria dos líderes da Comuna eram trabalhadores ou representantes reconhecidos da classe trabalhadora, e quatorze eram membros da Guarda Nacional. Na verdade, foi o comitê central desta última que investiu o poder nas mãos da Comuna – o prelúdio, como se viu, para uma longa série de desacordos e conflitos entre os dois órgãos.
Em 28 de março, um grande número de cidadãos se reuniu nas proximidades do Hôtel de Ville para as festividades de celebração da nova assembleia, que agora assumia oficialmente o nome de Comuna de Paris. Embora não sobrevivesse por mais de setenta e dois dias, foi o evento político mais importante da história do movimento operário do século XIX, reacendendo a esperança de uma população exausta por meses de sofrimento. Comitês e grupos surgiram nos bairros populares para dar apoio à Comuna, e todos os cantos da metrópole abrigaram iniciativas para expressar solidariedade e planejar a construção de um novo mundo. O Montmartre foi batizado de “cidadela da liberdade”.
Um dos sentimentos mais difundidos era o desejo de compartilhar com os outros. Militantes como Louise Michel exemplificam o espírito de abnegação; Victor Hugo escreveu sobre ela que “fez o que as grandes almas selvagens fazem. [...] Ela glorificou os oprimidos e vexados.” Mas não foi o ímpeto de um líder ou de um punhado de figuras carismáticas que deram vida à Comuna; sua marca registrada era sua dimensão claramente coletiva. Mulheres e homens se reuniram voluntariamente para perseguir um projeto comum de libertação. O autogoverno não era visto como uma utopia. A auto-emancipação era considerada a tarefa essencial.
A transformação do poder político
Dois dos primeiros decretos de emergência para conter a pobreza galopante foram o congelamento do pagamento do aluguel (dizia-se que “a propriedade deveria fazer sua parte justa nos sacrifícios”) e a venda de itens com valor inferior a vinte francos em casas de penhores. Nove comissões colegiadas também deveriam substituir os ministérios da guerra, finanças, segurança geral, educação, subsistência, trabalho e comércio, relações exteriores e serviço público. Um pouco mais tarde, um delegado foi nomeado para chefiar cada um desses departamentos.
Em 19 de abril, três dias após novas eleições para preencher as trinta e uma cadeiras que vagaram quase que imediatamente, a Comuna adotou uma Declaração ao Povo Francês que continha também uma “garantia absoluta de liberdade individual, liberdade de consciência e liberdade de trabalho” assim como “a intervenção permanente dos cidadãos nos assuntos comunitários”. O conflito entre Paris e Versalhes, afirmou, “não pode ser encerrado por meio de compromissos ilusórios”; o povo tinha o direito e a “obrigação de lutar e vencer!”
Ainda mais significativo do que este texto – uma síntese um tanto ambígua para evitar tensões entre as várias tendências políticas – foram as ações concretas através das quais os Communards lutaram por uma transformação total do poder político. Um conjunto de reformas abordou não apenas as modalidades, mas a própria natureza da administração política.
A Comuna previa a revogação dos representantes eleitos e o controle de suas ações por meio de mandatos vinculantes (embora isso não fosse de forma alguma suficiente para resolver a complexa questão da representação política). As magistraturas e outros cargos públicos, também sujeitos a controle permanente e possível revogação, não deviam ser atribuídos arbitrariamente, como no passado, mas serem decididos após concurso público ou eleições.
O objetivo claro era evitar que a esfera pública se tornasse domínio de políticos profissionais. As decisões políticas não eram relegadas a pequenos grupos de funcionários, mas tinham que ser tomadas pelo povo. Os exércitos e as forças policiais não seriam mais instituições separadas do corpo da sociedade. A separação entre Estado e Igreja também era condição sine qua non.
Mas a visão da mudança política foi ainda mais profunda. A transferência do poder para as mãos do povo foi necessária para reduzir drasticamente a burocracia. A esfera social deveria ter precedência sobre a política – como já havia afirmado Henri de Saint-Simon – para que a política não fosse mais uma função especializada, mas se integrasse progressivamente à atividade da sociedade civil. O corpo social retomaria, assim, funções que haviam sido transferidas para o Estado.
Derrubar o sistema existente de domínio de classe não era suficiente; tinha que haver um fim para o governo de classe como tal. Tudo isso teria cumprido a visão da Comuna da república como uma união de associações livres e verdadeiramente democráticas, promovendo a emancipação de todos os seus componentes. Ela teria levado ao autogoverno dos produtores.
Priorizando reformas sociais
A Comuna considerou que a reforma social era ainda mais crucial do que a mudança política. Essa foi a razão da existência da Comuna, o barômetro de sua lealdade a seus princípios fundantes e o elemento-chave que a diferencia das revoluções anteriores em 1789 e 1848. A Comuna aprovou mais de uma medida com claras conotações de classe.
Os prazos de amortização de dívidas foram adiados por três anos, sem acréscimo de juros. Os despejos por falta de pagamento de aluguel foram suspensos e um decreto permitia a requisição de moradias vagas para pessoas sem teto. Havia planos para encurtar a jornada de trabalho (das dez horas iniciais para as oito horas previstas para o futuro), a prática generalizada de impor multas especiosas aos trabalhadores simplesmente como medida de redução de salários foi proibida sob pena de sanções e salários mínimos foram colocados em um nível respeitável.
Foi feito tanto quanto possível para aumentar a oferta de alimentos e baixar os preços. O trabalho noturno em padarias foi proibido e vários armazéns municipais de carne foram abertos. A assistência social de vários tipos foi estendida aos segmentos mais vulneráveis da população – por exemplo, bancos de alimentos para mulheres e crianças abandonadas – e foram realizadas discussões sobre como acabar com a discriminação entre filhos legítimos e ilegítimos.
Todos os Communards acreditavam sinceramente que a educação era um fator essencial para a emancipação individual e qualquer mudança social e política séria. A presença na escola se tornaria gratuita e obrigatória para meninos e meninas, com a instrução de inspiração religiosa dando lugar ao ensino secular em linhas racionais e científicas. Comissões especialmente nomeadas e páginas da imprensa apresentavam muitos argumentos convincentes para o investimento na educação feminina. Para se tornar um verdadeiro “serviço público”, a educação tinha que oferecer oportunidades iguais para “crianças de ambos os sexos”.
Além disso, “distinções com base na raça, nacionalidade, religião ou posição social” deveriam ser proibidas. As primeiras iniciativas práticas acompanharam esses avanços teóricos e, em mais de um distrito, milhares de crianças da classe trabalhadora entraram em prédios escolares pela primeira vez e receberam material escolar gratuitamente.
A Comuna também adotou medidas de caráter socialista. Decretou que as oficinas abandonadas pelos patrões que haviam fugido da cidade fossem entregues às associações cooperativas de trabalhadores, com garantia de indenização noseu retorno. Teatros e museus – abertos gratuitamente a todos – foram coletivizados e colocados sob a gestão da Federação dos Artistas, presidida pelo pintor e militante incansável Gustave Courbet. Cerca de trezentos escultores, arquitetos, litógrafos e pintores (entre eles Édouard Manet) participaram dessa entidade – um exemplo retomado na fundação de uma “Federação de Artistas” que reúne atores e pessoas do mundo operístico.
Todas essas ações e disposições foram introduzidas no espaço de apenas 54 dias, em uma cidade ainda sofrendo com os efeitos da Guerra Franco-Prussiana. A Comuna só pôde fazer seu trabalho entre 29 de março e 21 de maio, em meio a uma heróica resistência aos ataques dos Versalheses, que também exigia um grande dispêndio de energia humana e recursos financeiros. Visto que a Comuna não tinha meios de coerção à sua disposição, muitos de seus decretos não foram aplicados uniformemente na vasta área da cidade. No entanto, eles demonstraram um impulso notável para remodelar a sociedade e apontaram o caminho para uma possível mudança.
Luta coletiva e feminista
A Comuna foi muito mais do que as ações aprovadas por sua assembleia legislativa. Ela até mesmo aspirou a redesenhar o espaço urbano. Tal ambição foi demonstrada pela decisão de demolir a Coluna Vendôme, considerada um monumento à barbárie e um símbolo repreensível de guerra, e de secularizar certos locais de culto, entregando-os para uso da comunidade.
Foi graças a um nível extraordinário de participação das massas e a um sólido espírito de assistência mútua que a Comuna persistiu por tanto tempo. Clubes revolucionários que surgiram em quase todos os distritos (arrondissement) desempenharam um papel notável. Havia pelo menos vinte e oito deles, representando um dos exemplos mais eloqüentes de mobilização espontânea.
Abertos todas as noites, eles ofereceram aos cidadãos a oportunidade de se encontrarem após o trabalho para discutir livremente a situação social e política, verificar o que seus representantes haviam alcançado e sugerir alternativas para a solução dos problemas do dia a dia. Eram associações horizontais, que favoreciam a formação e expressão da soberania popular, bem como a criação de espaços genuínos de irmandade e fraternidade, onde cada um pudesse respirar o ar embriagante do controle sobre o próprio destino.
Essa trajetória emancipatória não tinha lugar para a discriminação nacional. A cidadania da Comuna se estendia a todos os que lutavam por seu desenvolvimento, e os estrangeiros gozavam dos mesmos direitos sociais que os franceses. O princípio da igualdade era evidente no papel proeminente desempenhado pelos três mil estrangeiros ativos na Comuna. Leó Frankel, um membro húngaro da Associação Internacional dos Trabalhadores, não só foi eleito para o conselho da Comuna, mas serviu como seu “ministro” do trabalho – uma de suas posições-chave. Da mesma forma, os poloneses Jarosław Dąbrowski e Walery Wróblewski foram distintos generais à frente da Guarda Nacional.
As mulheres, embora ainda sem direito de voto ou de assento no Conselho da Comuna, desempenharam um papel essencial na crítica da ordem social. Em muitos casos, elas transgrediram as normas da sociedade burguesa e afirmaram uma nova identidade em oposição aos valores da família patriarcal, indo além da privacidade doméstica para se envolver com a esfera pública.
A União das Mulheres para a Defesa de Paris e Cuidados dos Feridos, cuja origem deve muito à atividade incansável da membra da Primeira Internacional, Elisabeth Dmitrieff, teve um papel central na identificação de batalhas sociais estratégicas. As mulheres conseguiram o fechamento de bordéis licenciados, ganharam igualdade para professoras e professores, cunharam o slogan “salário igual para trabalho igual”, exigiram direitos iguais no casamento e o reconhecimento de uniões livres e promoveram câmaras exclusivamente femininas em sindicatos.
Quando a situação militar piorou em meados de maio, com os Versalheses às portas de Paris, as mulheres pegaram em armas e formaram seu próprio batalhão. Muitas dariam o seu último suspiro nas barricadas. A propaganda burguesa as sujeitou aos ataques mais violentos, apelidando-os de les pétroleuses e acusando-as de terem incendiado a cidade durante as batalhas de rua.
Centralizar ou descentralizar?
Averdadeira democracia que os Communards procuravam estabelecer era um projeto ambicioso e difícil. A soberania popular exigia a participação do maior número possível de cidadãos. A partir do final de março, Paris testemunhou a proliferação de comissões centrais, subcomitês locais, clubes revolucionários e batalhões de soldados, que flanqueavam o já complexo duopólio do Conselho da Comuna e do comitê central da Guarda Nacional.
Este último manteve o controle militar, muitas vezes agindo como um verdadeiro contrapoder ao conselho. Embora o envolvimento direto da população fosse uma garantia vital da democracia, as múltiplas autoridades em jogo tornavam o processo de tomada de decisão particularmente difícil e isso significava que a implementação de decretos era um assunto tortuoso.
O problema da relação entre a autoridade central e os órgãos locais conduziu a algumas situações caóticas, por vezes paralisantes. O delicado equilíbrio se desfez completamente quando, diante da emergência de guerra, da indisciplina dentro da Guarda Nacional e da crescente ineficácia do governo, Jules Miot propôs a criação de um Comitê de Segurança Pública de cinco pessoas, nos moldes do modelo ditatorial de Maximilien Robespierre em 1793.
A medida foi aprovada em primeiro de maio, por maioria de quarenta e cinco a vinte e três. Foi um erro dramático, que marcou o início do fim de um novo experimento político e dividiu a Comuna em dois blocos opostos.
O primeiro deles, formado por neo-jacobinos e blanquistas, tendia para a concentração do poder e, no final, para o primado do político sobre o social. O segundo, incluindo a maioria dos membros da Associação Internacional dos Trabalhadores, considerava a esfera social mais significativa do que a política. Eles pensaram que uma separação de poderes era necessária e insistiram que a república nunca deveria questionar as liberdades políticas.
Coordenado pelo infatigável Eugène Varlin, este último bloco rejeitou fortemente o deslocamento autoritário e não participou das eleições do Comitê de Segurança Pública. Em sua opinião, a centralização de poderes nas mãos de alguns indivíduos era categoricamente contraditória aos postulados fundantes da Comuna, uma vez que seus representantes eleitos não possuíam soberania – a qual pertencia ao povo – e não tinham o direito de cedê-la a um orgão em particular.
Em 21 de maio, quando a minoria novamente participou de uma sessão do Conselho da Comuna, uma nova tentativa foi feita para tecer unidade em suas fileiras. Mas já era tarde demais.
A Comuna como um sinônimo de revolução
AComuna de Paris foi brutalmente esmagada pelos exércitos de Versalhes. Durante a semaine sanglante , a semana de derramamento de sangue entre 21 e 28 de maio, um total de 17 mil a 25 mil cidadãos foram massacrados. As últimas hostilidades ocorreram ao longo das paredes do cemitério de Père Lachaise. Um jovem Arthur Rimbaud descreveu a capital francesa como “uma cidade em luto, quase morta”. Foi o massacre mais sangrento da história da França.
Apenas seis mil conseguiram escapar para o exílio na Inglaterra, Bélgica e Suíça. O número de presos capturados foi de 43.522. Cem deles receberam sentenças de morte, após julgamentos sumários perante tribunais marciais, e outros 13.500 foram enviados para a prisão ou trabalhos forçados, ou deportados para áreas remotas como a Nova Caledônia. Alguns dos que foram para lá se solidarizaram e compartilharam o destino dos líderes argelinos da revolta anticolonial Mokrani, que estourou ao mesmo tempo que a Comuna e também foi afogada em sangue pelas tropas francesas.
O espectro da Comuna intensificou a repressão anti-socialista em toda a Europa. Passando por cima da violência sem precedentes do estado de Thiers, a imprensa conservadora e liberal acusou os Communards dos piores crimes e expressou grande alívio pela restauração da “ordem natural” e da legalidade burguesa, bem como satisfação com o triunfo da “civilização” sobre a anarquia.
Aqueles que ousaram violar a autoridade e atacar os privilégios da classe dominante foram punidos de forma exemplar. As mulheres foram novamente tratadas como seres inferiores, e as operárias, com mãos sujas e calejadas, que descaradamente ousaram governar, foram reconduzidas a posições para as quais eram consideradas mais adequadas.
E, no entanto, a insurreição em Paris deu força às lutas dos trabalhadores e os empurrou em direções mais radicais. No dia seguinte à sua derrota, Eugène Pottier escreveu o hino que estava destinado a se tornar o mais celebrado do movimento operário: “Vamos nos agrupar e amanhã / A Internacional / Será a raça humana!”
Paris havia mostrado que o objetivo deveria ser o de construir uma sociedade radicalmente diferente do capitalismo. Doravante, mesmo que “o tempo das cerejas” [le temps des cerises] (para citar o título do famoso verso do Communard Jean-Baptiste Clément) nunca voltasse para seus protagonistas, a Comuna encarnou a ideia de mudança político-social e sua aplicação prática. Tornou-se sinônimo do próprio conceito de revolução, de uma experiência ontológica da classe trabalhadora. Em A Guerra Civil na França, Karl Marx afirmou que esta “vanguarda do proletariado moderno” havia conseguido “anexar os trabalhadores do mundo à França”.A Comuna de Paris mudou a consciência dos trabalhadores e sua percepção coletiva. À distância de 150 anos, sua bandeira vermelha continua a tremular e a nos lembrar que uma alternativa é sempre possível. Vive la Commune!
Sobre o autor
Marcello Musto é professor associado de Teoria Sociológica na Universidade de York (Toronto) e autor de vários livros, incluindo Another Marx: Early Manuscripts to the International (Bloomsbury, 2018).
Eleições nacionais foram realizadas e Adolphe Thiers foi colocado à frente do poder executivo, com o apoio de uma grande maioria legitimista e orleanista. Na capital, porém, onde o descontentamento popular era maior do que em qualquer outro lugar, as forças republicanas e socialistas radicais viraram o jogo. A perspectiva de um governo de direita que deixaria as injustiças sociais intactas, jogando fardo da guerra sobre os menos favorecidos e procurando desarmar a cidade, desencadeou uma nova revolução em 18 de março. Thiers e seu exército não tiveram outra escolha senão fugir para Versalhes.
Luta e governo
Para garantir a legitimidade democrática, os insurgentes decidiram realizar eleições livres imediatamente. Em 26 de março, uma esmagadora maioria de parisienses (190.000 votos contra 40.000) votou em candidatos que apoiaram a revolta, e setenta dos oitenta e cinco representantes eleitos declararam seu apoio à revolução. Os quinze representantes moderados do partido de prefeitos (parti des maires), um grupo formado pelos ex-chefes de certos distritos (arrondissements), renunciaram imediatamente e não participaram do conselho da Comuna; logo depois, quatro radicais se juntaram a eles.
Os sessenta e seis membros restantes – nem sempre fáceis de distinguir devido à dupla afiliação política – representavam uma ampla gama de cargos. Entre eles estavam cerca de vinte republicanos neo-jacobinos (incluindo os renomados Charles Delescluze e Félix Pyat), uma dúzia de seguidores de Auguste Blanqui, dezessete membros da Associação Internacional dos Trabalhadores (tanto partidários mutualistas de Pierre-Joseph Proudhon quanto coletivistas ligados a Karl Marx, muitas vezes em conflito uns com os outros), e alguns independentes.
A maioria dos líderes da Comuna eram trabalhadores ou representantes reconhecidos da classe trabalhadora, e quatorze eram membros da Guarda Nacional. Na verdade, foi o comitê central desta última que investiu o poder nas mãos da Comuna – o prelúdio, como se viu, para uma longa série de desacordos e conflitos entre os dois órgãos.
Em 28 de março, um grande número de cidadãos se reuniu nas proximidades do Hôtel de Ville para as festividades de celebração da nova assembleia, que agora assumia oficialmente o nome de Comuna de Paris. Embora não sobrevivesse por mais de setenta e dois dias, foi o evento político mais importante da história do movimento operário do século XIX, reacendendo a esperança de uma população exausta por meses de sofrimento. Comitês e grupos surgiram nos bairros populares para dar apoio à Comuna, e todos os cantos da metrópole abrigaram iniciativas para expressar solidariedade e planejar a construção de um novo mundo. O Montmartre foi batizado de “cidadela da liberdade”.
Um dos sentimentos mais difundidos era o desejo de compartilhar com os outros. Militantes como Louise Michel exemplificam o espírito de abnegação; Victor Hugo escreveu sobre ela que “fez o que as grandes almas selvagens fazem. [...] Ela glorificou os oprimidos e vexados.” Mas não foi o ímpeto de um líder ou de um punhado de figuras carismáticas que deram vida à Comuna; sua marca registrada era sua dimensão claramente coletiva. Mulheres e homens se reuniram voluntariamente para perseguir um projeto comum de libertação. O autogoverno não era visto como uma utopia. A auto-emancipação era considerada a tarefa essencial.
A transformação do poder político
Dois dos primeiros decretos de emergência para conter a pobreza galopante foram o congelamento do pagamento do aluguel (dizia-se que “a propriedade deveria fazer sua parte justa nos sacrifícios”) e a venda de itens com valor inferior a vinte francos em casas de penhores. Nove comissões colegiadas também deveriam substituir os ministérios da guerra, finanças, segurança geral, educação, subsistência, trabalho e comércio, relações exteriores e serviço público. Um pouco mais tarde, um delegado foi nomeado para chefiar cada um desses departamentos.
Em 19 de abril, três dias após novas eleições para preencher as trinta e uma cadeiras que vagaram quase que imediatamente, a Comuna adotou uma Declaração ao Povo Francês que continha também uma “garantia absoluta de liberdade individual, liberdade de consciência e liberdade de trabalho” assim como “a intervenção permanente dos cidadãos nos assuntos comunitários”. O conflito entre Paris e Versalhes, afirmou, “não pode ser encerrado por meio de compromissos ilusórios”; o povo tinha o direito e a “obrigação de lutar e vencer!”
Ainda mais significativo do que este texto – uma síntese um tanto ambígua para evitar tensões entre as várias tendências políticas – foram as ações concretas através das quais os Communards lutaram por uma transformação total do poder político. Um conjunto de reformas abordou não apenas as modalidades, mas a própria natureza da administração política.
A Comuna previa a revogação dos representantes eleitos e o controle de suas ações por meio de mandatos vinculantes (embora isso não fosse de forma alguma suficiente para resolver a complexa questão da representação política). As magistraturas e outros cargos públicos, também sujeitos a controle permanente e possível revogação, não deviam ser atribuídos arbitrariamente, como no passado, mas serem decididos após concurso público ou eleições.
O objetivo claro era evitar que a esfera pública se tornasse domínio de políticos profissionais. As decisões políticas não eram relegadas a pequenos grupos de funcionários, mas tinham que ser tomadas pelo povo. Os exércitos e as forças policiais não seriam mais instituições separadas do corpo da sociedade. A separação entre Estado e Igreja também era condição sine qua non.
Mas a visão da mudança política foi ainda mais profunda. A transferência do poder para as mãos do povo foi necessária para reduzir drasticamente a burocracia. A esfera social deveria ter precedência sobre a política – como já havia afirmado Henri de Saint-Simon – para que a política não fosse mais uma função especializada, mas se integrasse progressivamente à atividade da sociedade civil. O corpo social retomaria, assim, funções que haviam sido transferidas para o Estado.
Derrubar o sistema existente de domínio de classe não era suficiente; tinha que haver um fim para o governo de classe como tal. Tudo isso teria cumprido a visão da Comuna da república como uma união de associações livres e verdadeiramente democráticas, promovendo a emancipação de todos os seus componentes. Ela teria levado ao autogoverno dos produtores.
Priorizando reformas sociais
A Comuna considerou que a reforma social era ainda mais crucial do que a mudança política. Essa foi a razão da existência da Comuna, o barômetro de sua lealdade a seus princípios fundantes e o elemento-chave que a diferencia das revoluções anteriores em 1789 e 1848. A Comuna aprovou mais de uma medida com claras conotações de classe.
Os prazos de amortização de dívidas foram adiados por três anos, sem acréscimo de juros. Os despejos por falta de pagamento de aluguel foram suspensos e um decreto permitia a requisição de moradias vagas para pessoas sem teto. Havia planos para encurtar a jornada de trabalho (das dez horas iniciais para as oito horas previstas para o futuro), a prática generalizada de impor multas especiosas aos trabalhadores simplesmente como medida de redução de salários foi proibida sob pena de sanções e salários mínimos foram colocados em um nível respeitável.
Foi feito tanto quanto possível para aumentar a oferta de alimentos e baixar os preços. O trabalho noturno em padarias foi proibido e vários armazéns municipais de carne foram abertos. A assistência social de vários tipos foi estendida aos segmentos mais vulneráveis da população – por exemplo, bancos de alimentos para mulheres e crianças abandonadas – e foram realizadas discussões sobre como acabar com a discriminação entre filhos legítimos e ilegítimos.
Todos os Communards acreditavam sinceramente que a educação era um fator essencial para a emancipação individual e qualquer mudança social e política séria. A presença na escola se tornaria gratuita e obrigatória para meninos e meninas, com a instrução de inspiração religiosa dando lugar ao ensino secular em linhas racionais e científicas. Comissões especialmente nomeadas e páginas da imprensa apresentavam muitos argumentos convincentes para o investimento na educação feminina. Para se tornar um verdadeiro “serviço público”, a educação tinha que oferecer oportunidades iguais para “crianças de ambos os sexos”.
Além disso, “distinções com base na raça, nacionalidade, religião ou posição social” deveriam ser proibidas. As primeiras iniciativas práticas acompanharam esses avanços teóricos e, em mais de um distrito, milhares de crianças da classe trabalhadora entraram em prédios escolares pela primeira vez e receberam material escolar gratuitamente.
A Comuna também adotou medidas de caráter socialista. Decretou que as oficinas abandonadas pelos patrões que haviam fugido da cidade fossem entregues às associações cooperativas de trabalhadores, com garantia de indenização noseu retorno. Teatros e museus – abertos gratuitamente a todos – foram coletivizados e colocados sob a gestão da Federação dos Artistas, presidida pelo pintor e militante incansável Gustave Courbet. Cerca de trezentos escultores, arquitetos, litógrafos e pintores (entre eles Édouard Manet) participaram dessa entidade – um exemplo retomado na fundação de uma “Federação de Artistas” que reúne atores e pessoas do mundo operístico.
Todas essas ações e disposições foram introduzidas no espaço de apenas 54 dias, em uma cidade ainda sofrendo com os efeitos da Guerra Franco-Prussiana. A Comuna só pôde fazer seu trabalho entre 29 de março e 21 de maio, em meio a uma heróica resistência aos ataques dos Versalheses, que também exigia um grande dispêndio de energia humana e recursos financeiros. Visto que a Comuna não tinha meios de coerção à sua disposição, muitos de seus decretos não foram aplicados uniformemente na vasta área da cidade. No entanto, eles demonstraram um impulso notável para remodelar a sociedade e apontaram o caminho para uma possível mudança.
Luta coletiva e feminista
A Comuna foi muito mais do que as ações aprovadas por sua assembleia legislativa. Ela até mesmo aspirou a redesenhar o espaço urbano. Tal ambição foi demonstrada pela decisão de demolir a Coluna Vendôme, considerada um monumento à barbárie e um símbolo repreensível de guerra, e de secularizar certos locais de culto, entregando-os para uso da comunidade.
Foi graças a um nível extraordinário de participação das massas e a um sólido espírito de assistência mútua que a Comuna persistiu por tanto tempo. Clubes revolucionários que surgiram em quase todos os distritos (arrondissement) desempenharam um papel notável. Havia pelo menos vinte e oito deles, representando um dos exemplos mais eloqüentes de mobilização espontânea.
Abertos todas as noites, eles ofereceram aos cidadãos a oportunidade de se encontrarem após o trabalho para discutir livremente a situação social e política, verificar o que seus representantes haviam alcançado e sugerir alternativas para a solução dos problemas do dia a dia. Eram associações horizontais, que favoreciam a formação e expressão da soberania popular, bem como a criação de espaços genuínos de irmandade e fraternidade, onde cada um pudesse respirar o ar embriagante do controle sobre o próprio destino.
Essa trajetória emancipatória não tinha lugar para a discriminação nacional. A cidadania da Comuna se estendia a todos os que lutavam por seu desenvolvimento, e os estrangeiros gozavam dos mesmos direitos sociais que os franceses. O princípio da igualdade era evidente no papel proeminente desempenhado pelos três mil estrangeiros ativos na Comuna. Leó Frankel, um membro húngaro da Associação Internacional dos Trabalhadores, não só foi eleito para o conselho da Comuna, mas serviu como seu “ministro” do trabalho – uma de suas posições-chave. Da mesma forma, os poloneses Jarosław Dąbrowski e Walery Wróblewski foram distintos generais à frente da Guarda Nacional.
As mulheres, embora ainda sem direito de voto ou de assento no Conselho da Comuna, desempenharam um papel essencial na crítica da ordem social. Em muitos casos, elas transgrediram as normas da sociedade burguesa e afirmaram uma nova identidade em oposição aos valores da família patriarcal, indo além da privacidade doméstica para se envolver com a esfera pública.
A União das Mulheres para a Defesa de Paris e Cuidados dos Feridos, cuja origem deve muito à atividade incansável da membra da Primeira Internacional, Elisabeth Dmitrieff, teve um papel central na identificação de batalhas sociais estratégicas. As mulheres conseguiram o fechamento de bordéis licenciados, ganharam igualdade para professoras e professores, cunharam o slogan “salário igual para trabalho igual”, exigiram direitos iguais no casamento e o reconhecimento de uniões livres e promoveram câmaras exclusivamente femininas em sindicatos.
Quando a situação militar piorou em meados de maio, com os Versalheses às portas de Paris, as mulheres pegaram em armas e formaram seu próprio batalhão. Muitas dariam o seu último suspiro nas barricadas. A propaganda burguesa as sujeitou aos ataques mais violentos, apelidando-os de les pétroleuses e acusando-as de terem incendiado a cidade durante as batalhas de rua.
Centralizar ou descentralizar?
Averdadeira democracia que os Communards procuravam estabelecer era um projeto ambicioso e difícil. A soberania popular exigia a participação do maior número possível de cidadãos. A partir do final de março, Paris testemunhou a proliferação de comissões centrais, subcomitês locais, clubes revolucionários e batalhões de soldados, que flanqueavam o já complexo duopólio do Conselho da Comuna e do comitê central da Guarda Nacional.
Este último manteve o controle militar, muitas vezes agindo como um verdadeiro contrapoder ao conselho. Embora o envolvimento direto da população fosse uma garantia vital da democracia, as múltiplas autoridades em jogo tornavam o processo de tomada de decisão particularmente difícil e isso significava que a implementação de decretos era um assunto tortuoso.
O problema da relação entre a autoridade central e os órgãos locais conduziu a algumas situações caóticas, por vezes paralisantes. O delicado equilíbrio se desfez completamente quando, diante da emergência de guerra, da indisciplina dentro da Guarda Nacional e da crescente ineficácia do governo, Jules Miot propôs a criação de um Comitê de Segurança Pública de cinco pessoas, nos moldes do modelo ditatorial de Maximilien Robespierre em 1793.
A medida foi aprovada em primeiro de maio, por maioria de quarenta e cinco a vinte e três. Foi um erro dramático, que marcou o início do fim de um novo experimento político e dividiu a Comuna em dois blocos opostos.
O primeiro deles, formado por neo-jacobinos e blanquistas, tendia para a concentração do poder e, no final, para o primado do político sobre o social. O segundo, incluindo a maioria dos membros da Associação Internacional dos Trabalhadores, considerava a esfera social mais significativa do que a política. Eles pensaram que uma separação de poderes era necessária e insistiram que a república nunca deveria questionar as liberdades políticas.
Coordenado pelo infatigável Eugène Varlin, este último bloco rejeitou fortemente o deslocamento autoritário e não participou das eleições do Comitê de Segurança Pública. Em sua opinião, a centralização de poderes nas mãos de alguns indivíduos era categoricamente contraditória aos postulados fundantes da Comuna, uma vez que seus representantes eleitos não possuíam soberania – a qual pertencia ao povo – e não tinham o direito de cedê-la a um orgão em particular.
Em 21 de maio, quando a minoria novamente participou de uma sessão do Conselho da Comuna, uma nova tentativa foi feita para tecer unidade em suas fileiras. Mas já era tarde demais.
A Comuna como um sinônimo de revolução
AComuna de Paris foi brutalmente esmagada pelos exércitos de Versalhes. Durante a semaine sanglante , a semana de derramamento de sangue entre 21 e 28 de maio, um total de 17 mil a 25 mil cidadãos foram massacrados. As últimas hostilidades ocorreram ao longo das paredes do cemitério de Père Lachaise. Um jovem Arthur Rimbaud descreveu a capital francesa como “uma cidade em luto, quase morta”. Foi o massacre mais sangrento da história da França.
Apenas seis mil conseguiram escapar para o exílio na Inglaterra, Bélgica e Suíça. O número de presos capturados foi de 43.522. Cem deles receberam sentenças de morte, após julgamentos sumários perante tribunais marciais, e outros 13.500 foram enviados para a prisão ou trabalhos forçados, ou deportados para áreas remotas como a Nova Caledônia. Alguns dos que foram para lá se solidarizaram e compartilharam o destino dos líderes argelinos da revolta anticolonial Mokrani, que estourou ao mesmo tempo que a Comuna e também foi afogada em sangue pelas tropas francesas.
O espectro da Comuna intensificou a repressão anti-socialista em toda a Europa. Passando por cima da violência sem precedentes do estado de Thiers, a imprensa conservadora e liberal acusou os Communards dos piores crimes e expressou grande alívio pela restauração da “ordem natural” e da legalidade burguesa, bem como satisfação com o triunfo da “civilização” sobre a anarquia.
Aqueles que ousaram violar a autoridade e atacar os privilégios da classe dominante foram punidos de forma exemplar. As mulheres foram novamente tratadas como seres inferiores, e as operárias, com mãos sujas e calejadas, que descaradamente ousaram governar, foram reconduzidas a posições para as quais eram consideradas mais adequadas.
E, no entanto, a insurreição em Paris deu força às lutas dos trabalhadores e os empurrou em direções mais radicais. No dia seguinte à sua derrota, Eugène Pottier escreveu o hino que estava destinado a se tornar o mais celebrado do movimento operário: “Vamos nos agrupar e amanhã / A Internacional / Será a raça humana!”
Paris havia mostrado que o objetivo deveria ser o de construir uma sociedade radicalmente diferente do capitalismo. Doravante, mesmo que “o tempo das cerejas” [le temps des cerises] (para citar o título do famoso verso do Communard Jean-Baptiste Clément) nunca voltasse para seus protagonistas, a Comuna encarnou a ideia de mudança político-social e sua aplicação prática. Tornou-se sinônimo do próprio conceito de revolução, de uma experiência ontológica da classe trabalhadora. Em A Guerra Civil na França, Karl Marx afirmou que esta “vanguarda do proletariado moderno” havia conseguido “anexar os trabalhadores do mundo à França”.A Comuna de Paris mudou a consciência dos trabalhadores e sua percepção coletiva. À distância de 150 anos, sua bandeira vermelha continua a tremular e a nos lembrar que uma alternativa é sempre possível. Vive la Commune!
Sobre o autor
Marcello Musto é professor associado de Teoria Sociológica na Universidade de York (Toronto) e autor de vários livros, incluindo Another Marx: Early Manuscripts to the International (Bloomsbury, 2018).
Nenhum comentário:
Postar um comentário