30 de abril de 2020

Sanções e doença

O combate à pandemia no Irã, duramente atingido, prejudicado pelo regime de sanções punitivas de Washington.

Vira Ameli

New Left Review

NLR 122, MAR/APR 2020

Tradução / Na pandemia global hoje em curso, o Irã tem posição muito especial. Um dos primeiros países a conhecer o surto de COVID-19, o Irã também é alvo de bloqueio econômico que já dura não anos, mas décadas. O modo como o Irã conseguiu enfrentar esse duplo massacre é determinado pela interação entre o lugar singular que o país tem na ordem geopolítica e o caráter distintivo de suas próprias instituições. A potência dominante na política internacional e seus aliados puseram a sociedade iraniana sob pressão terrível; mesmo assim, entre países com PIB semelhante ao seu, poucos – parece mesmo que nenhum – alcançou resultados positivos mais impressionantes na construção de sistema de saúde pública realmente efetivo. O curso da pandemia no Irá é o resultado de um encontro desses dois fatores. Para compreender isso, é preciso exame cuidadoso. Mas, antes, um rápido histórico do surgimento e da disseminação da pandemia.

Há rumores de que o vírus teria começado a circular no Irã em janeiro, mas só dia 19 de fevereiro foram confirmados os dois primeiros casos de infecção, em Qom. Destino chave de peregrinação e de estudos religiosos, a cidade atrai anualmente 20 milhões de visitantes, inclusive professores, acadêmicos e turistas de cerca de 80 países – incluindo a China, que é atualmente o mais próximo parceiro comercial do Irã, com relações comerciais e projetos comuns de construção em Qom e em outras cidades. Por que a demora para anunciar a chegada do COVID-19? Embora a mídia ocidental tenha atribuído a demora a um esforço do governo para tentar encobrir as notícias, o fato é que os kits de testagem só chegaram da China dia 17 de fevereiro. Outro impedimento aconteceu quando os kits de testagem que a Organização Mundial da Saúde (OMS) enviou ao Irã não foram entregues, detidos pelos impedimentos de embarque impostos pelo regime de sanções dos EUA. – Adiante os kits chegaram, em voo comercial a partir de Bagdá, mas o atraso impediu a detecção precoce de casos da doença, crucial para controlar a pandemia. Rapidamente se tornou claro que o vírus estava muito mais disseminado do que já se sabia, tendo já chegado a Teerã, Arak e Gilan, e que as autoridades de saúde estavam atrasados na corrida para detecção de casos. Essa defasagem não aconteceu só no Irã, é claro, mas em todos os países que não conseguiram enfrentar o contágio com a necessária prontidão.

Dia 21 de fevereiro havia 17 casos confirmados, com quatro óbitos ocorridos logo depois do diagnóstico. No mesmo dia, o país realizou eleições legislativas, apesar do pânico crescente que cercava a pandemia. As eleições estavam marcadas há muito tempo, mas a ocasião levantou questões posteriores, sobre se as eleições deveriam ter sido canceladas e sobre por que Qom não foi imediatamente posta sob quarentena. A realidade é que, no dia das eleições, o vírus já se disseminara por todo o país. Pôr Qom sob quarentena pouco ajudaria a impedir que chegasse Teerã. Seja como for, de um ponto de vista de saúde pública, o Irã sem dúvida deveria ter adiado as eleições e intensificado o trabalho de identificação de novos infectados, com rastreamento dos contatos. Fato é, contudo, que se a resposta do país à pandemia parece ter sido desqualificada por incompetência e inação política, não se pode dizer que se trate de negligência mal-intencionada. Foi, isso sim, o mesmo tipo de mistura de perplexidade e complacência frente a uma colossal ameaça de saúde pública, que adiante também paralisaria outras nações. A França e os EUA também realizaram eleições e não impuseram o isolamento social senão várias semanas depois de os primeiros casos terem sido detectados. Naquele momento, o Irã não estava desobedecendo quaisquer orientações da OMS sobre conter a disseminação da pandemia. Dia 26 de fevereiro já havia fechado todas as escolas e universidade em todo o país, embora atividades não essenciais só tenham sido fechadas pouco antes do Nowruz, o feriado do Ano Novo Iraniano.

Agora, a linha de frente da defesa contra a pandemia é o sistema público nacional de saúde. Depois da Revolução de 1979, reformas muito amplas estenderam o acesso a tratamento médico a todo o Irã, criando uma vasta rede de trabalhadores da comunidade de saúde e Centros de Atendimento Primário à Saúde. Instituído durante a guerra 1980-88 com o Iraque, o sistema foi depois descrito pela OMS como “inacreditável obra-prima”.1 Orquestrado numa estrutura piramidal com eficiente sistema de referência, suas realizações foram notáveis: imunização universal; redução dramática nas taxas de mortalidade materna e infantil; e planejamento familiar e controle populacional efetivos. Avanços estratégicos em capacidade de resposta, igualdade e universalidade focados em monitoramento continuado das necessidades da população e sistemas de entrega de serviços adequado às necessidades da população. Entre os ganhos na saúde pública iraniana está “o mais rápido declínio na taxa de nascimentos de toda a história”, de uma média de sete para duas crianças por mãe, ao final do século – transição demográfica de proporções imensas”.2

Atualmente, o sistema de saúde do Irã conta com 150 mil médicos, 1.500 hospitais e 140 mil leitos hospitalares, para uma população de 82 milhões – uma média de 1,7 leitos por mil pessoas. Ocupa o 16º lugar no mundo em termos de resultados de pesquisas em Medicina. Na luta contra o HIV e uso de drogas, duas epidemias interconectadas dentro do país, o Irã alcançou sucesso notável, por padrões regionais e globais, assegurando acesso livre e universal à terapia com antirretrovirais e programas para redução de danos, e na oferta de atenção modelada para as necessidades culturais locais e comunitárias. Além disso, uma política pós-revolucionária de autossuficiência avançou muito na oferta de medicamentos e equipamentos a preços acessíveis, só importando matérias primas. Antes da Revolução, 80% dos medicamentos em uso eram importados. Hoje, 97% deles são produzidos internamente, manufaturados por cerca de cem empresas farmacêuticas locais, a maior parte das quais do setor privado. Mas, embora apenas 3% da demanda corresponda a importações, esses produtos incluem medicação vital para crianças e pacientes vulneráveis com doenças raras ou em estágio avançado, e o acesso a esses 3% foi interrompido por efeito das sanções norte-americanas.

Todos esses ganhos foram alcançados contra as garras e os dentes dos mais viciosos e longos regimes de sanções de toda a história. Vale a pena recordar que as primeiras sanções contra o Irã foram impostas por Carter, continuadas por Reagan, Bush Pai, Clinton e Bush Kid, muito intensificadas na sequência por Obama e aprofundadas ainda mais por Trump. Diferente do que crê a opinião pública no ocidente, o chamado ‘Acordo Nuclear para o Irã’ [em inglês no original JCPOA] que Obama extorquiu de Rouhani e Zarif não levantou sanções que havia contra o Irã; simplesmente suspendeu as sanções que a Casa Branca impusera ao Irã mediante a ONU (com uma cláusula que tornava automática a rápida reimposição dessas sanções), deixando inalteradas as sanções impostas exclusivamente pelos EUA, que continuaram vigentes – e desde então têm sido ampliadas por efeito da campanha de “Máxima Pressão” de Trump, imposta em maior de 2019. As sanções do governo Trump são claramente concebidas para derrubar o governo do Irã por estrangulamento econômico. As potências europeias que são também signatárias do “Acordo Nuclear para o Irã” – França, Grã-Bretanha e Alemanha – apesar de terem arrochado os parafusos aplicados contra o Irã para assegurar seus objetivos ocidentais comuns no Oriente Médio, não apoiaram a decisão de Washington de rasgar o Acordo Nuclear, e em 2019 construíram um veículo específico, INSTEX, para contornar as sanções dos EUA contra o Irã. Contudo, quando se tornou bem claro que a operação levaria a ‘castigos’ a serem aplicados pelos EUA, o projeto foi silenciosamente abandonado: o INSTEX só completou uma transação desde que foi estabelecido.

O atual impacto desse bloqueio sobre o sistema de saúde iraniano atinge sobretudo três principais áreas. Em primeiro lugar, as sanções bloqueiam quase todas as transações financeiras necessárias para a atividade comercial do Irã, incluindo compras no campo médico; as exceções de itens ditos ‘humanitários’ não cobre materiais de proteção dos profissionais médicos. Em segundo lugar, as sanções interrompem as cadeias de suprimento da produção doméstica, dado que mesmo os medicamentos e equipamentos médicos localmente produzidos dependem de itens de vários fabricantes em vários países do mundo. A falta de um único ingrediente, como embalagens a vácuo para pílulas, pode paralisar toda a produção. Em terceiro lugar, ao reduzir o poder de compra em todo o campo econômico, as sanções ferem tanto provedores como consumidores. Ao tempo em que o governo Trump festeja a contração de 14% na economia do Irã e o rápido crescimento da inflação causada pela “Pressão Máxima”, essa queda reduziu os fundos com que o governo conta, o que por sua fez pressionou o programa iraniano de seguro-saúde universal, e aumentou o custo dos atendimentos em cerca de 20%, por efeito da inflação crescente. Para proteger os doentes contra a instabilidade do mercado, o Ministério da Saúde regula os preços de todos os medicamentos. Efeito disso, as empresas farmacêuticas também são pressionadas, tendo de viver com margem mínima, ou sem margem alguma, para superar a pressão da inflação e das flutuações de preços. O controle burocrático de preços em condições de escassez leva, tipicamente, ao surgimento de mercado negro, e o Irã não é exceção. O resultado é escassez ainda maior para todos os iranianos, especialmente para os trabalhadores, dado que a OMS não pode fazer frente aos preços exorbitantes do mercado negro.

Além das sanções, o Irã foi acossado por crises ao longo do ano passado, algumas naturais, outras políticas, que puseram à prova a confiança do povo nos governantes. Em março de 2019 foram grandes inundações que começaram em cidades do norte e rapidamente avançaram para regiões sul e oeste do país, causando centenas de mortes e de famílias sem-teto. Em maio, a campanha “Pressão Máxima” de Trump foi intensificada, apertando as sanções sobre as vendas de petróleo. O governo Rouhani foi forçado a cortar subsídios à gasolina, o que resultou em o preço triplicar em novembro, gerando protestos em todo o país. No início de janeiro de 2020, os EUA assassinaram o general Qasem Soleimani, comandante da Brigada Quds do Corpo de Guardas da Revolução Iraniana. O Irã retaliou com ataque de mísseis contra uma base aérea dos EUA no Iraque. Adiante, suas forças armadas derrubaram, erradamente, um avião de passageiros ucraniano, matando 176 passageiros e provocando luto e ira dentro do Irã – um erro que, num ano caótico, só fez reforçar a desconfiança da sociedade, no próprio estado.

Contra esse pano de fundo, a tarefa de equilibrar uma ameaça de saúde pública contra uma crise econômica às vésperas do Nowruz é muito complexa e desafiadora. Os iranianos vivem vidas altamente independentes, e seria preciso mobilizar força militar para manter a população confinada durante as festividades anuais, o que gerava o risco de confrontações hostis como aconteceu noutros lugares. O governo Rouhani também enfrentou preocupações legítimas quanto ao risco de fome entre os mais pobres, se a economia, já ferida pela “Pressão Máxima” fosse paralisada pelo confinamento. Em vez disso, dia 22 de março foi ordenado o fechamento de todas as atividades comerciais não essenciais que deveriam ser retomadas dia 4 de abril, depois dos feriados de Nowruz, e alocados 18% do orçamento nacional, mais de $6 bilhões, para cobrir pagamentos a desempregados e do seguro social, com apoio estendido a pequenos negócios que não demitissem. Mais $1 bilhão do fundo soberano do país está sendo agora alocado para a batalha contra o coronavírus. Foi constituído um novo centro de operações, para centralizar uma resposta coordenada à pandemia, sob os auspícios do ministro da Saúde.

Além do mais, apesar da confiança no governo, que está em queda, a sociedade civil iraniana conseguiu mobilizar-se e cooperar com eficiência. Grupos surgem mobilizando diferentes classes sociais e posições ideológicas em torno de uma campanha para reunir massas e recursos de capital na luta contra o vírus. Enquanto o governo está comprometido com cobrir 90% das despesas médicas de cada paciente de COVID-19, essas campanhas levantaram dinheiro, mobilizaram ventiladores de clínicas privadas e aumentaram a produção de kits de testagem, máscaras, vestimentas e ventiladores para apoiar hospitais estatais dedicados a pacientes de COVID-19. Recentemente foi construído um hospital completamente equipado, com 300 leitos, mediante uma campanha “do setor privado para o bem público”. Veio dinheiro também da diáspora iraniana, apesar das sanções financeiras que travam todos os negócios. Além desses esforços da sociedade civil, os militares liberaram um total de 4.000 leitos de clínicas, com leitos especiais para atenção de emergência; e o Corpo de Guardas Revolucionários construiu pequenos hospitais em partes remotas do país.

Atendentes de saúde dos Centros para Atenção Primária à Saúde organizaram-se numa campanha para localização de infectados e rastreamento de contatos, mediante telefonemas, mensagens por e-mail e aplicativos para telefones celulares. Com a ajuda da Cruz Vermelha e da Sociedade Crescente Vermelho do Irã, o Exército também mobilizou-se para medir a temperatura corporal de viajantes e isolar casos sintomáticos e respectivos contatos. Por fim, rápidos investimentos na produção doméstica de ventiladores destinados a garantir que nenhum paciente seja deixado sem o necessário apoio ou equipamento. No momento em que escrevo, os hospitais e UTIs do país não estão todos ocupados, demonstrando que, até aqui, o Irã tem conseguido manter a pandemia dentro dos limites da capacidade de atendimento nas unidades de saúde pública – principal razão que justificava o esforço para “derrubar a curva”. Assim, apesar do choque inicial da crise, que pegou o Irã com a guarda baixa, a força do sistema de saúde pública, aliada à mobilização institucional, combinaram-se para reduzir o número de mortes pelo coronavírus.3

Depois de a pandemia ter explodido, países europeus piedosos pediram aos EUA que reduzissem as sanções, pelo menos no que tivesse a ver com alívio médico para os doentes. Só conseguiram ouvir, de Mike Pompeo, que “suprimentos humanitários e medicamentos não estão sancionados”. E, isso, apesar da obstrução feita por Washington, de canais financeiros e de transporte – com empresas internacionais de navegação e serviços de correio ou já impedidas de negociar com o Irã, ou cobrando preços inacessíveis para o mercado iraniano – a qual, como vimos, impediu que o Irã recebesse em tempo os kits de testagem e equipamento médico. Uma das consequências foi manter o Irã dependente, de modo não usual, de centros regionais, para transporte aéreo e expedição de mercadorias –, situação que agravou as dificuldades quando países vizinhos impuseram restrições impostas para combater a epidemia. Mas fato é que os EUA redobraram as medidas punitivas, movendo-se para bloquear o pedido do Irã, ao FMI, de um empréstimo emergencial de $5 bilhões –, primeira vez que o país apresenta tal pedido, desde a fundação da República Islâmica –, para enfrentar o coronavírus.

Nesse contexto, a ‘notícia’ do New York Times, de que “as sanções dos EUA não seriam responsáveis pela disseminação do corona vírus no Irã” é caso exemplar de ‘desnotícia’. Os EUA – cuja estratégia é chamada de “terrorismo econômico” pelos funcionários iranianos – são responsáveis primários por minar a capacidade do Irã para enfrentar uma crise que já incapacitou e paralisou alguns dos sistemas de saúde mais prestigiados do mundo.4 Mas os iranianos comuns não deixarão de ver com clareza a culpa do governo Trump, e a cumplicidade, nos mesmos atos, de potências europeias que discordam nos discursos, mas são cúmplices nas ações. Numa pandemia global, é essencial questionar as ações de governos nacionais – mas o objetivo de qualquer discurso crítico tem de ser benefícios para a saúde pública, não ‘lucros’ políticos. A cobertura depreciativa que o ocidente dá à resposta do Irã à crise acabou por ter efeito ainda mais deletério: a campanha da mídia-empresa hegemônica para deslegitimar a República Islâmica acabou por minar os esforços de autoridades globais da saúde pública, bloqueando o fluxo de informação correta. A extensão do muito que a análise epidemiológica da experiência iraniana foi enviesada e distorcida por essas denúncias descabidas pode ser vista claramente pelo fato de que EUA, Reino Unido e França também fracassaram na tentativa para evitar os mesmos erros no modo de abordar questões de saúde pública. Em vez de quebrar a cadeia da transmissão viral, governos do ocidente e respectiva mídia-empresa comercial quebraram, isso sim, a cadeia da transmissão de conhecimento prestável.

O padrão assimétrico de condenação acrescenta mais uma dimensão de caos, à crise humanitária já muito complexa e desafiadora. Exemplos não faltam. Quando o Irã impôs proibição de viagens para suas cidades do norte, a mídia ocidental condenou a medida. A manchete do Guardian dizia que “Irã ameaça usar a força para restringir viagens”.5 Mas a proibição foi medida policial, não algum tipo de lockdown militar, e foi depois criticada por não ter sido aplicada antes! Restringir viagens seria medida apresentada como abuso de poder; não restringir viagens seria atitude denunciada por criar risco de vida para os cidadãos. Fazer eleições mostraria descuido com a saúde pública. Cancelá-las seria declarado pretexto para ocultar o baixo comparecimento de eleitores às urnas.6 Virtualmente qualquer decisão tomada pela República Islâmica – independentemente de qualquer mérito ou demérito – é alvo do mais incansável ataque pela mídia-empresa, de todos os lados do espectro político ocidental. Quando o vice-ministro da Saúde do Irã testou positivo para COVID-19, seria ‘prova’ da resposta disfuncional que os iranianos teriam dado ao vírus. Quando políticos nos EUA, Reino Unido e Canadá adoeceram, não se viu sensacionalismo semelhante.

Campanhas de desinformação também são disseminadas pelas redes em idioma persa, financiadas por opositores geopolíticos do Irã – Arábia Saudita, EUA e Reino Unido – e acessadas dentro do país por canais de satélite, Rádio Farda, um dos braços da Rádio Europa Livre/Rádio Liberdade, anunciou recentemente que “o número de mortos por coronavírus no Irã é cinco vezes mais alto do que noticiado”. O periódico norte-americano Foreign Policy ‘repercutiu’ a notícia, citando como fonte a Rádio Farda.7 Contudo, não passa de observação feita por um representante da OMS, e distorcida, de que o número de infectados – não de mortos – talvez fosse até cinco vezes maior que o já sabido. Dada a proporção de doentes assintomáticos e a falta de kits de testagem que se observam em praticamente todos os países afetados, é óbvio que o número dos detectados sempre será inferior ao dos infectados. Mas este tipo de truísmo raramente tem eco entre os meios de comunicação social liberais no Ocidente. Outro exemplo das mentiras e distorções de que o jornalismo ocidental é capaz aparece no Washington Post, que comentou sobre “covas para enterrar vítimas do coronavírus no Irã” – “tão vastas que podem ser vistas do espaço”. Dessa vez, quem ‘repercutiu’ sem criticar foi o Guardian.8 De fato, eram covas normais, num cemitério normal, ampliadas por recursos de imagem de satélite para parecer “valas comuns” nas quais, ficava implícito, as autoridades estariam jogando secretamente centenas de corpos – isso, num momento em que a OMS não discordara das estatísticas de mortos no Irã. Parece, assim, que fatores ideológicos, não científicos, modelaram em grande parte a cobertura da pandemia no país, com especialistas de saúde alinhados contra os fatos e a favor de cientistas políticos e jornalistas.

A politização da pandemia de coronavírus – e de outras crises – na República Islâmica é, claro, entretecida com campanhas para mudança de regime. Lobbies como “United Against Nuclear Iran” que há muito tempo pressiona a favor de sanções ainda mais violentas, têm feito campanha contra venda de medicamentos ao país, atacando empresas ocidentais que ainda negociam com o Irã. Houve um coro de indignação quando o Irã rejeitou a oferta de Médicos sem Fronteiras, de um hospital de campanha com 50 leitos, ignorando o fato de que o cofundador dessa ONG e ex-ministro de Relações Exteriores da França Bernard Kouchner, ao longo dos últimos três anos tem apoiado e participado das reuniões conhecidas como “Pró Irã Livre”, do MEK (Mujahedin do Povo do Irã), – um culto dedicado a promover a mudança violenta de regime, e que, desde a queda de seu antigo patrocinador, Saddam Hussein, mudou-se para a Albânia. Ao ver a pandemia COVID-19 pelo prisma da política do poder internacional, governos, observadores políticos e especialistas midiáticos ocidentais erram não só ao não conhecer os fatos em campo; também perdem várias oportunidades para aprender com a experiência do Irã – no que o país acertou na resposta que deu à pandemia e também nos pontos em que errou –, o que poderia ter beneficiado também outros países e respectivas populações, num mundo que hoje é interdependente, não só economicamente e culturalmente, mas talvez acima de tudo, em questões de saúde pública.

Oxford, 1º de abril de 2020

Notas:

1. Seyyed Meysam Mousavi, Jamil Sadeghifar, "Universal health coverage in Iran", The Lancet Global Health, vol. 4, no. 5, May 2016, pp. 305–6.

2. Kevan Harris, A Social Revolution: Politics and the Welfare State in Iran, Oakland 2017, pp. 18–19, 119 FF.

3. "Coronavirus Deaths by US State and Country Over Time", New York Times, 1 April 2020.

4. "This Coronavirus Crisis Is the Time to Ease Sanctions on Iran", New York Times editorial, 25 March 2020.

5. "Coronavirus cases pass 100,000 globally as Iran threatens force to restrict travel", The Guardian, 6 March 2020

6. As eleições legislativas de 21 de fevereiro foram apresentadas como teste final da unidade entre estado e sociedade, aferida pelo comparecimento às urnas. Com apenas 40% de eleitores votantes, o baixo comparecimento foi atribuído à pandemia, por apoiadores do estado e pela baixa qualifidação de muitos candidatos reformistas e centristas, alguns dos quais, como Ali Motahari, mesmo assim compareceu para votar em Teerã.

7. Maysam Behravesh, "The Untold Story of How Iran Botched the Coronavirus Pandemic", Foreign Policy, 24 March 2020.

8 "Valas para sepultar vítimas de Coronavirus são tão vastas que podem ser vistas do espaço", Washington Post, 12 March 2020; "Imagens de satélite mostram que o Irã cavou valas para sepultamentos em massa, em pleno surto de coronavírus", The Guardian, 12 March 2020.

Emitindo moeda, o Estado cria poder de compra que antes não existia

Grupo de economistas afirma que argumento da falta de recursos não cabe na pandemia e que emissão de moeda traria benefício social

Monica de Bolle
André Roncaglia
Fábio Terra
Gabriel Galípolo
Igor Rocha
Julia Braga
Luiz Gonzaga Belluzzo
Paulo Gala

Folha de S.Paulo

Homem usa máscara em mercado de rua no Rio de Janeiro. Mauro Pimentel/AFP.

Colocar a economia acima da vida é reconhecer o fracasso da humanidade.

Para evitar a morte pelo Covid-19 é preciso que apenas as pessoas na linha de frente e nos serviços essenciais saiam de casa. O desemprego e a fome podem matar mais do que o vírus, é verdade. Mas este não precisa ser o nosso destino. Colocar a saúde contra a economia é criar divisão onde pode haver cooperação.

As medidas anunciadas até aqui pelo governo vão na direção correta. Com a atividade econômica parada, acionar os canhões fiscais e monetários do Estado para manter as famílias em casa é a única e necessária saída.

Mas, como manter milhões de pessoas em casa? O governo não está quebrado? O dinheiro não acabou?

Não. Diferente de famílias e empresas, o Estado pode emitir moeda ou pode se endividar em uma escala bem diferente de famílias.

Emitindo moeda, o Estado cria poder de compra que antes não existia. Endividando-se, toma emprestado de quem tem dinheiro sobrando e transfere para quem não tem como consegui-lo. Emitindo ou endividando-se, o Estado injeta dinheiro na economia, e é disso que precisamos urgentemente.

Estados Unidos, Japão, Canadá, Reino Unido estão emitindo. Além disso, estão se endividando, todos estes países possuem dívida pública acima de 100% do PIB, a nossa está abaixo de 80%. Eles estão entre os dez mais ricos do mundo, assim como nós. O que nos impede de agir como eles? Nada, a não ser nosso descrédito em nós mesmos.

E a inflação? Não acontecerá. Com a atividade econômica parada, estamos longe dela agora e no médio prazo. Apenas como exemplo, mesmo com a enxurrada de liquidez ofertada pelos bancos centrais das maiores economias do mundo, no dia 20 de abril os contratos futuros do petróleo foram negociados em valores negativos pela primeira vez na história. Além disso, as nossas autoridades econômicas e políticas são responsáveis e quando a atividade econômica privada estiver reabilitada, será hora de retirar os esforços estatais.

A emissão de moeda reduzirá os juros e o custo da dívida pública, ajudando a reduzir os gastos públicos. Porém, pode ampliar a saída de dólares do Brasil o que, no médio prazo, pode impactar a inflação. Temos instrumentos para lidar com o câmbio agora, e a atividade econômica está tão deprimida que mesmo a recente forte desvalorização do Real não foi capaz de gerar repasse significativo na inflação. No médio prazo, com a economia em melhor condição, centraremos esforços em outros objetivos. Eles não são o foco agora.

O Estado não enfrenta os limites do orçamento familiar, e ele é o único que consegue, agora, dar vida aos orçamentos familiares e empresariais. Ele já vem agindo, medidas já foram tomadas, mas o momento de exceção exige muito mais.

Dizer que não há fontes de recursos é faltar com a verdade. Nossas regras fiscais são autoimposições que nos protegem dos excessos em tempos normais. Apegar-se a elas em meio a uma calamidade sem precedentes equivale a mentir para a população e para os estados e municípios. É discutir a vã filosofia enquanto o país pega fogo. Superar a crise de saúde pública não exige que mergulhemos em uma depressão econômica.

O Estado detém os meios para manter a coesão social e proteger o pacto federativo. A maioria de prefeitos e governadores enfrenta desafios reais que requerem auxílio decisivo e imediato. O oportunismo de algumas corporações do Estado pode ser corrigido por meio de lei complementar ou compromissos diretos com entes federativos.

Nossa segurança sanitária e econômica é um recurso comum, cuja exaustão é acelerada pela disputa política. O momento exige confiança mútua entre os três poderes, União, estados e municípios, e toda a sociedade.

A política econômica não é dogma, não tem fórmula única e requer vigilância e capacidade de iniciativa. Ela depende crucialmente do governo federal, que é o maior ente do setor público brasileiro. A União precisa ajudar a todos, inclusive estados e municípios, que estão na linha de frente do combate efetivo ao coronavírus.

Em momentos de crise, o que mais devemos temer é o próprio medo de agir. Se quisermos sair desta crise, precisamos impedir que a calamidade sanitária se converta em caos social. É hora de a economia servir à sociedade.

A União tem o poder e os instrumentos para coordenar os setores essenciais e para garantir o pão nosso de cada dia. A cura não precisa ser pior que a doença. Até agora talvez tenha sido e, se assim continuar, é porque escolhemos. ​

Sobre os autores

André Roncaglia de Carvalho, professor da Universidade Federal de São Paulo e pesquisador do Cebrap

Fabio Terra, professor da Universidade Federal do ABC e da Univerdidade Federal Fluminense; Gabriel Galípolo, mestre em Economia pela PUC-SP

Igor Rocha, doutor em Estudos do Dsenvolvimento pela Universidade de Cambridge

Julia Braga, professora da Universidade Federal Fluminenese

Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, professor da UNICAMP e da FACAMP

Monica De Bolle, diretora do Programa de Estudos Latino Americanos da Universidade Johns Hopkins e pesquisadora do Peterson Institute for International Economics

Paulo Gala, professor da FGV-SP

29 de abril de 2020

Socialistas devem apoiar os trabalhadores - não a classe dominante chinesa ou americana

A pandemia do COVID-19 provocou uma escalada perigosa nas tensões entre a China e os Estados Unidos. Mas nossa lealdade não deve ser com a classe dominante de nenhum país - deve ser com os trabalhadores de ambos os países.

Uma entrevista com
Eli Friedman

Entrevistado por
Ashley Smith

Jacobin

O secretário de Estado Mike Pompeo fala enquanto o presidente Donald Trump ouve durante uma entrevista coletiva sobre a COVID-19 em 20 de março de 2020 em Washington, DC. (Alex Wong / Getty Images)

Tradução / A pandemia do COVID-19 provocou uma escalada perigosa nas tensões entre a China e os Estados Unidos. Mas nossa lealdade não deve ser com a classe dominante de nenhum dos dois países – deve ser com os trabalhadores de ambos os países.

Em meio à pandemia e à recessão global, a classe dominante dos EUA intensificou sua “nova Guerra Fria” com a China.

O presidente Donald Trump e seus companheiros têm usado repetidamente termos racistas como o “vírus chinês”, elevaram as teorias de conspiração, alegando que um laboratório em Wuhan intencionalmente lançou o COVID-19 para devastar os EUA e aumentou o impasse militar de Washington com Pequim ao implantar uma flotilha de navios de guerra no Mar da China Meridional. Joe Biden atacou Trump por ser brando com a China e lançou um anúncio profundamente sinofóbico no início deste mês.

Do outro lado do Pacífico, o governo de Xi Jinping tentou transformar a pandemia – que ele tratou mal inicialmente – em proveito próprio. Pequim enviou testes, ventiladores e máscaras para muitos outros países, tentando se projetar como uma potência global benevolente, ao mesmo tempo em que se recusa a conceder direitos trabalhistas básicos aos seus trabalhadores.

Ashley Smith conversou recentemente com Eli Friedman (EF), autor do artigo “Insurgency Trap: Politics Labour in Post Socialist China” (Armadilha da Rebelião: Política Trabalhista na China pós-socialista) , sobre a resposta de Pequim à COVID-19, a consequência doméstica e geopolítica da pandemia, e por quê os socialistas devem rejeitar o nacionalismo, seja chinês ou americano.

Ashley Smith

Trump estimulou o racismo anti-chinês ao chamar o coronavírus de “vírus chinês”, e seu secretário de Estado, Mike Pompeo, divulgou várias teorias da conspiração que culpavam um laboratório chinês, em Wuhan, por liberar o vírus. Qual é a verdadeira explicação para o surgimento do vírus e qual tem sido o impacto do racismo de Trump?
EF

Há um debate sobre onde e como um ser humano contraiu o vírus pela primeira vez, e não posso comentar sobre a ciência. Certamente, os primeiros casos identificados do que veio a ser chamado COVID-19 estavam em Wuhan, e essa cidade também experimentou a primeira propagação comunitária no mundo.

Portanto, o vírus de fato apareceu pela primeira vez na China e terei mais a dizer sobre como os profissionais médicos e os funcionários do governo responderam a essas informações. Mas a decisão de Trump e da maioria do Partido Republicano de se referir a ele como o “vírus chinês” (ou “vírus Wuhan” ou, mais ofensivamente, “Kung Fu”) é claramente um esforço para desviar a culpa, de suas próprias falhas catastróficas.

Como evidenciado pelo relativo sucesso de muitos países, principalmente os da Ásia, houve realmente tempo para se preparar para a chegada do coronavírus após sua disseminação inicial na China. Os EUA não fizeram isso, e é, em grande parte, culpa do governo federal.

A rejeição racializada (que revelam distinção racial) das próprias falhas dos Estados Unidos não é novidade para o projeto Trumpiano. Os latinos e muçulmanos suportam o peso dessa política há anos, e o povo chinês também está diretamente na mira. Existem grandes consequências da retórica do “vírus da China”, tanto nacional quanto internacionalmente.

Internamente, houve um aumento maciço de incidentes racistas contra chineses e outros asiáticos, incluindo ataques verbais e físicos. Na China, confirma-se para muitos cidadãos a posição do Partido Comunista de que os EUA são fundamentalmente anti-China, o que, por sua vez, torna mais provável a intensificação do conflito nacionalista. E, apesar de alguma resistência dos democratas a isso, Joe Biden parece ter decidido que a xenofobia anti-chinesa é uma estratégia vencedora em 2020.

Esta é realmente uma situação extremamente perigosa.

Ashley Smith

Como o estado chinês reagiu à pandemia? E como Pequim usou seu sucesso posterior para projetar seu poder internacionalmente como uma alternativa aos EUA?
EF

Os EUA não têm o monopólio da má administração do surto. Mas as especificidades do manuseio incorreto do governo chinês são obviamente muito diferentes. O problema fundamental foram os esforços das autoridades locais para encobrir o surto, o mais famoso esforço foi tentar silenciar denunciantes como o Dr. Li Wenliang (que mais tarde morreu de COVID-19).

Isso reflete uma dinâmica de longa data na política chinesa, na qual os governos locais tentam impedir que os superiores tenham conhecimento dos problemas locais, por medo de serem punidos. Também é evidente que o governo central sabia do surto muitas semanas antes de reconhecê-lo publicamente.

Parece provável que, se os avisos iniciais dos médicos em Wuhan catalisassem uma ação imediata, o surto teria tomado um caminho completamente diferente, uma questão que tenho certeza de que ficaremos pensando por um longo tempo. Também é importante observar que o governo chinês não foi totalmente transparente a respeito dos primeiros dias do surto e, dado o quão intensamente politizado o assunto se tornou, o governo chinês quase certamente continuará a manter um alto nível de controle de informações.

Após a confusão inicial que permitiu que o coronavírus viajasse por toda a China e pelo mundo, o governo chinês tomou uma ação decisiva e, finalmente, eficaz. Mesmo considerando que os dados relatados certamente contêm imprecisões de motivação política, é evidente que eles fizeram um trabalho melhor ao gerir a propagação do que na maioria da Europa ou nos EUA. O governo tem se comprometido a encobrir seu fracasso inicial enquanto se concentra em esforços mais eficazes para a contenção do vírus.

É difícil dizer quão eficaz será essa estratégia. Muitos outros países em diferentes partes do mundo e com formas variadas de governo foram igualmente ou mais competentes em sua resposta à epidemia. O mais vexatório para o Partido Comunista Chinês (PCCh) foi o sucesso de Taiwan, com apenas seis mortes relacionadas ao COVID até agora.

Embora Taiwan seja excluída da Organização Mundial da Saúde, tem sido bastante ativa no cenário mundial na tentativa de compartilhar suas experiências, além de fornecer milhões de máscaras cirúrgicas – um esforço que ganhou elogios da União Europeia e denúncias de Pequim. Tudo isso enfraquece o argumento de que a China está singularmente mais bem posicionada para liderar a resposta à epidemia. Certamente, a direita norte-americana está obcecada com o surto inicial, com o senador Tom Cotton do Arkansas promovendo a noção insana de que o governo chinês tomou uma decisão consciente ao deixar a propagação do vírus correr solta em nível mundial.

A pista (alameda) para exercer liderança global nisso é bastante larga. Dada sua capacidade industrial, a China poderia e deveria fornecer equipamentos médicos para outros países duramente atingidos. Isso será cada vez mais importante à medida que o vírus se expande da Europa e América do Norte para a África e América Latina. Se o governo chinês aparecer nos países pobres com ventiladores gratuitos ou baratos, equipamentos de proteção individual e voluntários médicos, sem restrições, devemos aplaudir. Eu não acho que isso seja provável, mas eu adoraria provar que estou errado.
Ashley Smith

Qual o impacto da recessão global e da pandemia na economia chinesa? A China será capaz de sair desta crise como ocorreu na Grande Recessão?

EF: O impacto na economia da China foi profundo. Depois da talvez maior expansão capitalista que o mundo já viu na geração passada, a economia encolheu 6,8% no primeiro trimestre do ano. Portanto, embora estejamos apenas no início da crise, é aparente que isso será bem diferente de 2008-9, quando gastos massivos com estímulos permitiram à China manter um crescimento relativamente alto.

Como era de se esperar, a resposta à última crise (2008-2009) molda os contornos desta crise atual, bem como as ferramentas disponíveis para o Estado. Embora a China tenha escapado relativamente ilesa da última crise (2008-2009), ela o fez através de um enorme aumento no investimento financiado pela dívida. Muito disso foi empregado produtivamente, pois eles construíram a maior rede ferroviária de alta velocidade do mundo, as principais redes de metrô em várias cidades e ampliaram aeroportos e portos marítimos.

Mas havia também elefantes brancos e construção excessiva em certos mercados imobiliários. Parte do motivo pelo qual a China ainda não divulgou planos de gastos na escala que vimos nos EUA ou no Japão deve-se à preocupação com uma crise financeira.

Notavelmente, embora o consumo doméstico tenha realmente aumentado nos últimos anos, o Estado não conseguiu atingir seu objetivo declarado de criar uma grande classe média com capacidade de alto consumo. Isso se deve em grande parte ao problema político gerado pela repressão política dos trabalhadores e pelas moribundas instituições oficiais de representação trabalhista.

Dada a profundidade da crise em todo o mundo, a China provavelmente não pode exportar seu caminho de volta à saúde econômica. Os investimentos no exterior associados à iniciativa Belt and Road1 também estão enfrentando grandes tormentas. Sem a aura de legitimidade revolucionária que Mao Zedong e Deng Xiaoping desfrutavam, e nem mesmo uma simulação de processo democrático, o Partido Comunista tem sido altamente dependente de melhorias materiais para justificar seu governo. Essa crise vai colocar muita pressão no pacto básico entre o PCCh e a sociedade que existe desde pelo menos 1989.

AS

Como os trabalhadores reagiram em meio a essa crise? O que isso significará para o movimento trabalhista no país?
EF

Como tem sido o caso em todo o mundo, os trabalhadores na China estão sofrendo. Com uma taxa de crescimento negativa, não há dúvida de que o desemprego aumentou. A taxa de desemprego oficial de 5,9% é sem dúvida extremamente otimista, pois não inclui em sua totalidade dezenas de milhões de trabalhadores migrantes rurais que constituem a espinha dorsal da classe trabalhadora do país.

Apesar de morar e trabalhar nas cidades, é quase certo que esses migrantes serão excluídos até mesmo dos poucos benefícios aos desempregados oferecidos aos residentes urbanos. E são precisamente aqueles trabalhadores nos setores onde o emprego tem sido robusto nos últimos anos – serviços, entretenimento, transporte, trabalho baseado em plataforma digital e construção – que têm menos probabilidade de ter um contrato de trabalho e acesso a proteções sociais.

O governo central pediu que os migrantes fossem incluídos no seguro-desemprego e fez da proteção do emprego uma prioridade. Mas, repetidamente, temos visto uma retórica progressiva de Pequim sem esforços concomitantes para financiar os mesmos programas que eles estão pedindo. O centro não alocou fundos para a expansão dos benefícios aos desempregados, e não estou otimista de que este anúncio recente ajude significativamente os trabalhadores migrantes.

É difícil dizer que impacto isso terá sobre a inquietação dos trabalhadores. O governo teve sorte porque o surto inicial ocorreu durante o Ano Novo Lunar, quando a maioria dos migrantes deixa as cidades para visitar suas famílias. O governo então prolongou o feriado e várias formas de controle da mobilidade foram mantidas por um longo período de tempo.

Um grande número de empresas privadas simplesmente se recusou a trazer os trabalhadores de volta quando a economia começou a reabrir – a dispersão espacial da força de trabalho provavelmente ajudou a reduzir a inquietação que poderia ter levado a demissões em massa, particularmente no setor manufatureiro duramente atingido.

No entanto, os trabalhadores chineses continuaram com sua antiga disposição de protestar, embora de maneira altamente dividida e politicamente circunscrita. Um exemplo impressionante são os trabalhadores da construção civil em Wuhan que construíram um enorme hospital nos arredores da cidade em apenas alguns dias – um fato que o governo orgulhosamente elogiou como indicativo de sua resposta efetiva.

No entanto, mais tarde foi revelado que os migrantes que trabalhavam dia e noite no canteiro de obras não estavam sendo adequadamente pagos enquanto mantidos em quarentena. Quando centenas de trabalhadores protestaram, eles foram recebidos com violência policial. Se mesmo os trabalhadores neste local simbolicamente importante estão sendo tratados com tal desrespeito, isso não é um bom presságio para o resto do país.

AS

Como a epidemia impactou outras dinâmicas políticas na China? Houve uma repressão mais ampla à dissidência, particularmente em áreas agitadas, como Hong Kong?

EF

O governo chinês certamente está tentando fazer bom uso dessa crise. As forças armadas têm intensificado suas atividades expansionistas no mar da China Meridional, enfurecendo as Filipinas, o Vietnã e outros países. Infelizmente, poucas informações foram extraídas de Xinjiang, embora existam preocupações justificáveis de que o vírus possa causar estragos entre as centenas de milhares de muçulmanos internados nos campos de reeducação da região.2

O governo também está avançando com esforços de longa prazo em Hong Kong, onde o PCCh ainda tem muitas contas a acertar em função da revolta social de 2019. As autoridades de Hong Kong, agindo claramente a mando de Pequim, prenderam recentemente quinze proeminentes ativistas da democracia, supostamente por participarem de assembleias ilegais no ano anterior.

Isso aconteceu logo após uma série de declarações mal feitas, nas quais o governo de Hong Kong esclareceu a base legal do “gabinete de ligação” de Pequim, interferindo nos assuntos locais. Vários oficiais renovaram recentemente os pedidos de promulgação do tão odiado projeto de lei antisubversão do “Artigo 23”, apresentado desde os protestos em massa contra ele em 2003. Isso ocorre no momento em que o tipo de assembleia pública que frequentemente paralisava a cidade no ano passado não é possível, de modo que o estado está tentando aproveitar o momento da dispersão social induzida pelo vírus.

Se for seguro assumir que as crises abrem possibilidades políticas anteriormente impedidas, é igualmente importante fazer um balanço do que o governo chinês não fez. Uma coisa que me impressionou é que, até agora, não houve um esforço para reformular o sistema de saúde fraturado e extremamente desigual do país. As epidemias revelam a natureza social da saúde e teria sido um momento oportuno para Pequim estabelecer um plano nacional de seguro ou, mais ambiciosamente, um sistema de saúde nacional totalmente público.

Embora pareçam ter feito um trabalho melhor fornecendo testes e atendimento a pacientes com COVID-19 do que os EUA (um atendimento reconhecidamente baixo), também é aparente que Pequim está disposta a viver com um sistema de assistência médica parcialmente privatizado, extrema e geograficamente desigual oferecendo cobertura mínima ou zero cobertura para a população rural e trabalhadores migrantes. Fala-se que a expansão da repressão em Hong Kong e a expansão militar no Mar da China Meridional são as áreas em que o Estado deseja avançar nesse momento de vantagem estratégica.

AS

Como o movimento socialista deve se posicionar nessa guerra de narrativas e rivalidades entre os EUA e a China?

EF

Estamos entrando em um período incrivelmente perigoso. Além dos deslocamentos econômicos e sociais provocados pela pandemia, forças poderosas na China e nos EUA pretendem alimentar a animosidade. Enquanto Tom Cotton e Trump propagam a noção de que a China é a única culpada pelas consequências do COVID-19 nos EUA, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Zhao Lijian, reafirma a alegação infundada de que os militares americanos trouxeram o coronavírus para a China. Dada essa retórica hostil e francamente desequilibrada das elites políticas de ambos os países, formas cada vez mais diretas de conflito estão no horizonte.

Nosso trabalho é reafirmar os valores internacionalistas de forma contínua e vigorosa: tomamos partido dos pobres, das classes trabalhadoras e das pessoas oprimidas de todos os países, o que significa que não compartilhamos absolutamente nada com os estados e as empresas dos EUA ou da China. Se aderirmos a um enquadramento nacionalista da crise, avançaremos em um entendimento de soma zero em que as perdas sofridas pela China são os ganhos obtidos pelos Estados Unidos. Esta política nos coloca no caminho para a guerra, seja ela econômica ou militar. As pessoas pobres de ambos os países têm mais a perder se isso vier a acontecer.

É ainda mais importante que os esquerdistas se manifestem sobre esse assunto, porque os liberais estão muito confusos. Enquanto alguns democratas se opuseram à retórica do “vírus da China”, eles não têm visão de como seria uma forma de interação ética com a China.

Por um lado, eles estão assombrados por uma “política de envolvimento” zumbi que sustenta que a interação incondicional reforçará “partes interessadas” dentro do PCCh. Mas até os Clintonistas incondicionais entendem, em algum nível, que essa ideologia está extinta. Isso, por sua vez, deixou os democratas tranquilos, o que tornou possível a mudança sinofóbica de Biden. Existem poucas coisas mais patéticas e perigosas do que seguir Trump com a xenofobia.

Uma grande reavaliação das relações EUA-China nos apresenta oportunidades. Ao invés de basear o relacionamento entre empresas americanas que exploram mão-de-obra chinesa e consumidores dos EUA que compram mercadorias chinesas, como tem sido o caso da geração passada, devemos exigir cooperação em saúde pública global, mudanças climáticas, desmilitarização e engajamento econômico que privilegie os trabalhadores e os pobres. As elites políticas de ambos os lados do Pacífico detestam reconhecer esses objetivos, precisamente porque sua realização se baseia em cooperação social profunda, em vez de competição e guerra étnico-nacional.

Sobre o autor

Eli Friedman é o autor de Insurgency Trap: Politics Labour in China Post-Socialist. Ele é Professor na Universidade de Cornell.

Sobre o entrevistador

Ashley Smith é um escritor socialista e ativista em Burlington, Vermont. Ele escreveu para várias publicações, incluindo Truthout, The International Socialist Review, Socialist Worker, ZNet, Jacobin, New Politics, e muitas outras publicações on-line e impressas. Atualmente, ele está trabalhando em um livro para a Haymarket Books, intitulado Socialismo e Anti-Imperialismo.

27 de abril de 2020

O coveiro-em-chefe do Brasil

Forrest Hylton

LRB Blog

Na semana passada, um jornalista perguntou a Jair Bolsonaro quantas pessoas no Brasil morreriam de Covid-19. O presidente respondeu que não tinha ideia: 'Eu não sou um coveiro', disse ele. Alguns dias antes, ele havia demitido seu ministro da Saúde, Luiz Enrique Mandetta. Falando cientificamente em suas coletivas de imprensa diárias e agindo consequentemente entre eles, Mandetta eclipsou Bolsonaro. Trabalhando com os governadores estaduais (os principais oponentes políticos do presidente), Mandetta alcançou um índice de aprovação quase o dobro de Bolsonaro e, mais importante, salvou centenas, senão milhares de vidas.

Em 27 de abril, o número oficial de casos de Covid-19 no Brasil é de 63.328 (20.715 em São Paulo) e houve 4.298 mortes (1.700 em São Paulo). Os números reais provavelmente são muitas vezes maiores, e a taxa de mortalidade diária não atingirá o pico antes de maio.

O sucessor de Mandetta, Nelson Teich, vem do setor de saúde privado. Seu primeiro passo foi nomear um general para trabalhar sob seu comando. Mesmo antes do início da crise, Teich havia expressado idéias neo-eugenistas sobre o valor da vida, com base em cálculos de lucros e perdas.

Como ele declara em suas aparições na TV, a principal preocupação de Bolsonaro é a economia; isso e a suposta conspiração contra ele pelos tribunais, pelo congresso e pela mídia. Não importa se todos eles são dominados pela direita e apoiaram o golpe parlamentar contra Dilma Rousseff em 2016.

Bolsonaro ainda não apresentou os resultados dos testes do Covid-19 e continua fungando e tossindo em público, em um caso limpando o nariz no braço antes de apertar a mão de uma mulher idosa. Ele sai frequentemente e nunca usa máscara ou luvas. Supõe-se amplamente que ele tem o vírus e o está disseminando para seus seguidores evangélicos, que não acreditam nele, apesar de acreditar neles. Alguns certamente entendem isso: quando saem às ruas para protestar em favor da abertura de empresas, o fazem não a pé, mas isolados em seus carros de luxo. Outros aparentemente preferem o beijo da morte em comícios em massa. Em 19 de abril, os apoiadores de Bolsonaro se reuniram para exigir uma repetição do golpe de 1968 que fechou o Congresso, os tribunais e a mídia. Um dos divulgadores de uma manifestação em março morreu de Covid-19.

Como Trump, Bolsonaro tentou sequestrar remessas de equipamentos médicos destinados aos governadores da oposição de estados em necessidade, em particular o Maranhão, onde o governador comunista, Flávio Dino, comprou ventiladores de Santa Catarina. Os tribunais decidiram a favor de Dino. Bolsonaro ordenou que o exército e a indústria farmacêutica aumentassem a produção de hidroxicoloroquina e, como Trump, promoveu-a como uma possível cura milagrosa. Depois de se reunir com Bolsonaro em 24 de abril, o Conselho Federal de Medicina do Brasil aprovou seu uso, apesar da falta de evidências científicas.

Na cidade amazônica de Manaus, pessoas pesquisando a eficácia do medicamento receberam ameaças de morte. Uma possível fonte foi a milícia digital administrada pelos filhos de Bolsonaro, que, segundo a polícia federal, podem estar por trás de campanhas de notícias falsas, negando a seriedade do vírus. Em breve, Manaus terá 100 mortes por Covid-19 por dia, já que os hospitais estão em lotados, com 75% dos leitos de UTI já ocupados, e equipamentos de proteção individual estão faltando junto com ventiladores e médicos. O sindicato dos médicos do estado do Amazonas está exigindo que o governador e o vice-governador se demitam por negligência no uso de fundos públicos antes da pandemia.

No estado do Ceará,  violento e atingido pela pobreza, no nordeste, onde Bolsonaro promoveu recentemente greves e motins ilegais da polícia, está previsto um número diário de mortos de 250 em maio. Não graças ao governo federal, em 26 de abril o estado recebeu 90 toneladas de suprimentos médicos, EPIs e máscaras em cooperação com o consórcio dos governadores do nordeste.

Em 24 de abril, o ministro da Justiça, Sergio Moro, renunciou, alegando ter evidências de que Bolsonaro havia violado a lei ao demitir o chefe da polícia federal, mentindo para o Diário Oficial e tentando nomear outra pessoa para interromper a investigação em andamento sobre seus filhos e, em vez disso, iniciar novos contra os governadores do Rio e São Paulo, bem como o chefe do Congresso, Rodrigo Maia (os três são ex-aliados do presidente). Bolsonaro chamou Moro de mentiroso; seus filhos o chamaram de traidor. Um candidato a ser o novo chefe da polícia federal, Alexandre Ramagem, é amigo dos filhos de Bolsonaro. Quando perguntado sobre isso, Bolsonaro respondeu: "E daí?"

Em seu discurso de demissão, Moro relutantemente elogiou os governos do PT de Lula e Dilma por respeitarem a independência do judiciário. Isso confirmou as suspeitas dos seguidores de Bolsonaro de que Moro é um "lixo comunista". Como juiz, Moro liderou a campanha anticorrupção que colocou Lula na cadeia. No ano passado, Glenn Greenwald recebeu uma série de mensagens privadas do Telegram que pareciam mostrar Moro colaborando com a promotoria e violando a lei, ao mesmo tempo que conscientemente fornecia cobertura aos políticos mais corruptos do Brasil. Mais do que o próprio Bolsonaro, Moro era o homem dos Estados Unidos na luta para destruir Lula e o PT. Sem ele, Bolsonaro não poderia ter sido eleito.

Os militares expressaram preocupação com as acusações de Moro contra Bolsonaro. O procurador-geral quer investigá-lo. Alguns dos ex-apoiadores do presidente no Congresso estão considerando processos de impeachment. Ele está ainda mais isolado, desesperado e vulnerável do que antes. É provável que o exército seja o árbitro final de seu destino, mas, neste momento, a questão para um número crescente de figuras importantes, junto com seus aliados políticos de direita, é se o impeachment ou a renúncia oferecem um caminho a seguir. É difícil imaginar o impeachment avançando, e mais difícil imaginar Bolsonaro renunciando. Se ele cair, no entanto, ninguém será capaz de culpar Lula, Dilma e o PT por sua morte: será culpa de Bolsonaro (e de seus filhos) sozinho.

Independentemente disso, à medida que as maquinações avançam, os brasileiros, principalmente os pobres negros e pardos das cidades, continuarão morrendo a uma taxa mais alta do que em qualquer outro lugar da América Latina.

Gigantes da tecnologia estão usando essa crise para colonizar o sistema de assistência social

Nos últimos anos, empresas como Google e Facebook usaram o Sul Global como uma base de testes para novas e não regulamentadas formas de coleta de dados. Diante do coronavírus, os mesmos mecanismos estão sendo implementados em todo o mundo - com a coleta de dados com fins lucrativos se tornando cada vez mais central na gestão dos estados de seus sistemas de bem-estar.

João Carlos Magalhães e Nick Couldry


Um sinal de "curtir" fica na entrada da sede do Facebook em 18 de maio de 2012 em Menlo Park, Califórnia. Stephen Lam / Getty.

Tradução / Na infinidade de prognósticos sobre como a pandemia do coronavírus transformará o mundo, uma previsão se destaca: retornaremos a um renovado Estado de bem-estar social. O jornal The Economist disse: “O Estado grande está de volta”. Invertendo o lema de Thatcher, Boris Johnson observou que “existe sim essa coisa de sociedade”. Argumenta-se que a pandemia poderia superar o neoliberalismo, triunfando onde a crise financeira de 2008 fracassou.

Em certa medida, a mudança parece já estar em andamento. Governos estão resgatando empresas, nacionalizando folhas salariais e redirecionando a produção industrial para necessidades sanitárias urgentes. Ideias há muito tempo discutidas e rechaçadas, como as garantias mínimas de renda, de repente se tornaram realidade em países como a Espanha. Alguns afirmam (ou esperam) que a natureza coletiva da atual catástrofe pode promover o ressurgimento da solidariedade social, revivendo um certo “espírito” da Segunda Guerra Mundial.

Mas se um novo bem-estar social vai surgir desta crise, será um “bem-estar” bem diferente daquele imaginado no período pós 1945. Ele será fortemente impulsionado por empresas privadas, que usarão suas ferramentas e plataformas, cujo objetivo final é gerar lucro. Fundamentalmente, esse bem-estar social será baseado em formas opacas e intrusivas de dataficação. Com isso, queremos dizer não apenas a intensificação da vigilância digital – o que, como foi tantas vezes dito, já está acontecendo – mas dois processos interconectados: “a transformação da vida humana em dados por meio de processos de quantificação e a geração de diferentes tipos de valor a partir dos dados”. Um sistema de bem-estar dataficado consolidará as grandes empresas de tecnologia (Big Tech) como instituições essenciais no funcionamento básico do Estado e da sociedade. Se isso acontecer, não veremos um retorno ao mundo que existia antes do neoliberalismo, como alguns esperam, mas o surgimento de uma nova ordem social centrada no que Nick Couldry e Ulises Mejias chamaram recentemente de colonialismo de dados.

Relações entre público e privado

É preciso contextualizar esse processo para entendê-lo. O entrelaçamento da dataficação e do bem-estar social não é novo, e muitas vezes representa uma ameaça aos próprios direitos humanos que esses arranjos deveriam proteger.

Uma excelente introdução a essas questões foi publicada em outubro de 2019 por Philip Alston, professor de direito da New York University e relator especial da ONU. O relatório da Alston demonstra que, tanto nos países ricos quanto nos pobres, a seguridade social é cada vez mais impulsionada por “dados e tecnologias digitais que são usados para automatizar, prever, identificar, vigiar, detectar, direcionar e punir”. Essas tecnologias envolvem o desenvolvimento de sistemas de identificação biométrica, como o Aadhaar na Índia, e de sistemas automatizados em países como Reino Unido, Alemanha e Estados Unidos, que avaliam quem é elegível para determinados programas de assistência social e quanto deve ser pago aos beneficiários.

As evidências examinadas por Alston sugerem que as consequências negativas superam largamente as positivas. Apesar de alguns ganhos em eficiência, esses sistemas são propensos a produzir erros e injustiças e a reduzir a capacidade dos cidadãos de compreender e negociar a injustiça dessas decisões computacionais. Eles também geralmente dependem dos dados coletados em condições desiguais, comprometendo a própria ideia de consentimento, sem falar na constante ameaça de tais dados serem acessados ​​ou hackeados para fins comerciais, criminais e políticos. Esses sistemas também arriscam, como diz Virginia Eubanks em seu extraordinário estudo sobre a dataficação do bem-estar social nos Estados Unidos, criando uma “distância ética” entre as classes, enquanto reproduz antigas “hierarquias de valor humano”. Mesmo onde esses danos específicos estão ausentes, o direito das populações de viverem livres da vigilância contínua e da experimentação baseada em dados tem sido corroído.

A situação não é muito melhor quando consideramos o bem-estar social em escala global – o que geralmente é chamado de “desenvolvimento internacional” e ajuda humanitária. “Em nome do desenvolvimento”, afirmam os pesquisadores Linnet Taylor e Dennis Broeders, sistemas difíceis de entender ​​e práticas injustas de coleta de dados foram amplamente adotados.

Populações vulneráveis ​​têm sido usadas como campo de teste para novas tecnologias de extração e desenvolvimento de dados. Um exemplo é o surto de Ebola de 2014, quando atores da comunidade humanitária tiveram acesso a registros telefônicos detalhados de cidadãos da Libéria. Os registros foram praticamente inúteis – mas as organizações que pressionaram pelo acesso puderam “ganharam comercialmente” com isso, “por meio da vantagem competitiva sobre outras organizações humanitárias ou por meio de testes de produtos comerciais”.

Como o caso do Ebola demonstra, Estados são apenas um dos diversos atores nas parcerias público-privadas consideradas necessárias para fornecer soluções “inovadoras” de bem-estar social. Programas e projetos são geralmente desenhados e executados por organizações que ou trabalham em mercados competitivos, como ONGs, ou são, elas próprias, empresas com fins lucrativos. Esses arranjos emergem da percepção de que os governos não possuem a expertise humana, a capacidade tecnológica e os dados necessários para “solucionar” questões sociais complexas, como pobreza, desigualdade e saúde.

Nessas iniciativas, a dataficação do bem-estar e do desenvolvimento social depende de uma típica racionalidade neoliberal, e sua crença de que as empresas privadas devem preencher o vazio deixado por Estados ineficazes, tanto no Sul quanto no Norte Global.

Inteligência Artificial para o bem social?

Uma lógica semelhante afeta projetos em todo o mundo que, no jargão dos “empreendedores sociais” e consultores digitais, foram denominados “Inteligência Artificial (IA) para o bem”. As Big Tech aderiram ansiosamente ao hype. O Facebook lançou seu “Fórum sobre o Bem Social” em 2017, oferecendo “ferramentas e iniciativas para ajudar as pessoas a manterem-se seguras e com o apoio do Facebook”. A empresa tem criado várias iniciativas para fornecer conectividade , e seu controverso programa Free Basics ainda está em expansão, embora exija que os usuários concedam seus dados em troca de uma conexão simplificada (uma razão pela qual foi banido na Índia).

Depois de “Lucy”, um projeto lançado no Quênia em 2014 que prometeu usar IA para “resolver questões de saúde, educação, água, saneamento, mobilidade humana e agricultura” – e amplamente criticado por suas soluções vagas e interesse comercial – a IBM apresentou uma iniciativa intitulada de “Ciência e Bem Social”. Seu objetivo é nada menos do que “resolver os problemas mais difíceis do mundo” por meio de “ciência e tecnologia”.

Em 2019, o Google.org – a divisão filantrópica do gigante das buscas – redirecionou seu projeto multimilionário Impact Challenge para propostas que tenham a finalidade de ” usar a IA para ajudar a enfrentar os desafios da sociedade“. A Microsoft chama sua iniciativa de “IA para o Bem”. Ela aborda questões como mudança climática, crise humanitária e saúde.

Alguns desses projetos são formas tradicionais de caridade – por exemplo, a doação de dinheiro e de recursos humanos e computacionais para ONGs e pesquisadores poderem desenvolver suas próprias tecnologias. Outros envolvem práticas que intensificam a coleta de dados de populações vulneráveis. Mas todos representam um aumento em massa da capacidade das empresas de intervir na gestão da vida social: o meio apenas melhora sua capacidade de extrair e processar dados.

Considere a “ferramenta de prevenção ao suicídio” do Facebook, que emprega aprendizado de máquina para interpretar vários sinais comportamentais e identificar postagens que sugerem que “alguém pode estar em risco” de se matar: esse projeto simplesmente não poderia existir sem o poder preexistente do Facebook de acessar e analisar todas as ações dos usuários em sua plataforma, por mais pessoais que sejam. Recentemente, o sistema foi patenteado pela empresa.

Na América do Sul, a Microsoft é parceira do Projeto Horus, que diz ajudar governos com o uso de “inteligência artificial na prevenção de gravidez na adolescência e da evasão escolar“. Na Argentina, o projeto coletou “informações completas, constantes, compartilhadas e atualizadas” sobre menores vulneráveis ​​na província de Salta. Esse “banco de dados único”, como argumentaram seus criadores em 2018, alimentou um sistema de aprendizado de máquina que poderia supostamente “prever” quem teria mais chances de parar de frequentar a escola ou engravidar, conclusões que embasariam a ação do governo sobre esses indivíduos. O fato de o projeto ter sido amplamente criticado na Argentina por sua vigilância agressiva e previsões errôneas não impediu que ele fosse incentivado pelo UNICEF e pilotado no Brasil, com a cooperação do governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro. No país, a iniciativa se concentra em crianças pobres que já estão registradas no Cadastro Único do governo federal – um dos maiores bancos de dados de assistência social do mundo, com informações de mais de 73 milhões de pessoas.

Quando o novo coronavírus surgiu, foi para uma versão desse discurso de “bem social” que as Big Tech se voltaram. Embora Estados tenham se atrapalhado com suas respostas à crise, as empresas reagiram rapidamente e, para todos os efeitos, de forma decisiva. Mark Zuckerberg mencionou a COVID-19 pela primeira vez em 4 de março. Ele disse então que o Facebook não apenas ajudaria as pessoas a “permanecerem conectadas”, mas também forneceria “informações confiáveis ​​e precisas” e contribuiria para os “esforços no sentido de conter o surto”.

Desde então, as notícias não pararam de chegar: o Facebook financiaria “a aquisição de máquinas de diagnóstico para COVID-19 aprovadas pela FDA [agência regulatória norte-americana]”, iniciaria um “Fundo de Resposta Solidária”, “investiria” US$ 100 milhões para ajudar pequenas empresas, lançaria um “Centro de Informações sobre Coronavírus” e permitiria que os pesquisadores realizassem uma “pesquisa sobre sintomas” em sua plataforma, além de várias doações multimilionárias para pesquisas em saúde e iniciativas de fact-checking. O Facebook não está sozinho. O Google também doou muitos milhões de dólares e dados de mobilidade e colaborou com várias autoridades públicas. Ele também criou um portalque registra os sintomas das pessoas, classifica-as para determinar quem precisa do teste drive-thru e exibe os resultados dos testes assim que disponíveis., levando alguns a suspeitar que isso pode ser um golpe para capturar dados. O CEO do Twitter prometeu doar um quarto de sua riqueza, aproximadamente US $ 1 bilhão.

Tomada de território

Não há evidências de que essas organizações não sejam sinceras em seu desejo de ajudar. Nem se pode dizer que o trabalho delas não salvará vidas; muito possivelmente salvará. No entanto, as implicações de suas intervenções são muito mais ambíguas. Dizer que essa crise pode ajudar as Big Tech a recuperar seu prestigio moral, revertendo o “techlash” pós-2016 pode estar correto – mas é também míope. Suas respostas à pandemia estão inerentemente relacionadas à principal forma de criação de valor das empresas: o colonialismo dos dados.

Esta é a grande história aqui: a continuação e a aceleração de uma nova tomada de território de proporções sem precedentes, merecendo o termo “colonialismo”. Há cinco séculos, o colonialismo histórico tomou posse de terras, seus recursos e corpos. Hoje, essa apropriação é direcionada à própria vida humana e ao valor que pode ser extraído dela na forma de dados. Como essa extração de dados funciona apenas por meio do rastreamento contínuo de inúmeros aspectos da vida cotidiana, o direito fundamental dos seres humanos de viver livre da vigilância se torna o dano colateral do avanço corporativo.

Que tipo de “bem-estar” isso produz? Quando se diz que as plataformas emergirão dessa crise como ” utilidades digitais “, geralmente se supõe que essas utilidades estejam relacionadas ao fornecimento de informações e espaços para interação virtual – o cerne dos modelos de negócios das Big Tech. Mas, desde o início, essas empresas foram marcadas por uma agressiva visão expansionista, que coloniza partes cada vez maiores da vida humana para extração de dados.

O objetivo é tomar não apenas um tipo de prática social, mas a própria vida humana. O Google começou como um organizador de banco de dados, mas agora é um conglomerado (Alphabet) que opera em áreas tão diversas como saúde, infraestrutura urbana, transporte e manejo de capital financeiro. O Facebook começou como uma ferramenta de networking para estudantes de universidades norte-americanas de elite, mas agora diz ser capaz de conectar uma “comunidade global” de mais de 2 bilhões de pessoas, e planeja criar uma moeda digital global, suscitando preocupações de que possa “corroer o controle nacional sobre o dinheiro“, há séculos considerado uma prerrogativa dos governos. Não há limites claros sobre quais áreas podem ser exploradas com fins lucrativos, mesmo que certos segmentos da população representem alvos particularmente úteis.

Até que ponto os Estados ricos, enfraquecidos pela crise da COVID-19, aproveitarão as novas oportunidades de provisão de bem-estar baseada em dados, não é, neste momento, exatamente claro. O que é aparente é que a doença apresenta mais uma oportunidade – particularmente importante – para essa expansão. Há alguns meses, as Big Tech teriam sido alvo de críticas se tentassem usar os dados de bilhões de pessoas para rastrear um surto de vírus, como estão fazendo Facebook, Google e Apple. A pandemia parece ter tornado esse trabalho repentinamente desejável.

Há diversas questões sobre os perigos criados por essas iniciativas. No entanto, a novidade reside menos em algum conjunto particular de aplicativos ou dados, ou no que acontecerá com eles após a pandemia, do que na suposição de que é a esse novo tipo de poder corporativo, com sua capacidade global sem precedentes de produzir novas formas de conhecimento para controle social, que devemos recorrer em um momento de crise pública. O resultado é menos que as Big Tech vão oferecer um novo tipo de utilidade pública e mais que os recursos de dados das Big Tech vão se tornar essenciais para a autoridade do Estado e o ordenamento da vida social. Elas não serão apenas “plataformas de mídia sociais”, “mecanismos de busca” e fabricantes de computadores, mas – juntamente com os governos – o próprio lastro do nosso bem estar.

Gestão de população

Durante e após essa crise, veremos um aumento das “parceria público-privado de vigilância” que vem sendo construídas há alguns anos. Saúde e bem-estar são apenas duas áreas afetadas por esse modelo de gestão da população; outros podem ser educação, infraestrutura laboral e aplicação de leis.

Haverá resistência, sem dúvida, e é improvável que essa transformação ocorra de forma homogênea em todo o planeta – desenvolvimentos paralelos também estão em andamento na China, mesmo que com um equilíbrio diferente entre empresas e Estado. No entanto, há poucas evidências de que essa resistência represente um obstáculo real à aceleração de um tipo de colonização que já estava em curso antes mesmo da pandemia.

À medida que o colonialismo dos dados se desenvolve, o resultado será um novo e muito mais complexo tipo de bem-estar social, que só pode ser realizado por meio da corrosão de liberdades fundamentais. Muito foi dito sobre como uma renovada valorização dos serviços públicos de saúde significaria o fim da estridente retórica neoliberal. Essa previsão pode ser surpreendentemente posta à prova quando, ao final desta crise, a linha divisória entre mercado e sociedade que o neoliberalismo sempre atacou tiver sido desmantelada em nome de um “bem-estar social” lastreado por conglomerados globais privados.

Sobre os autores

João Carlos Magalhães é pesquisador de pós-doutorado no Instituto Humboldt de Internet e Sociedade, em Berlim. Ele é PhD pela London School of Economics and Political Science.

Nick Couldry é professor de mídia, comunicação e teoria social na London School of Economics and Political Science e autor (com Ulises A. Mejías) de The Costs of Connection (Stanford UP 2019).

A reabertura da economia nos levará ao inferno

As pessoas precisam desesperadamente voltar ao trabalho e salvar o que podem de suas vidas. Mas Mike Davis argumenta que uma rápida reabertura da economia resultaria em tragédia indescritível para milhões de pessoas.

Mike Davis


Trabalhadores da saúde se preparam com equipamento de proteção individual (EPI) antes de entrar em um prédio residencial em 27 de abril de 2020 em um bairro do bairro do Brooklyn, em Nova York. Spencer Platt / Getty

Tradução / Conforme entramos no quinto mês do surto da COVID-19, milhões de famílias trabalhadoras sentem que foram sequestradas e enviadas ao inferno.

Ao passo que o desemprego (segundo dados oficiais) ultrapassa 30% ou mais, estima-se que 20 milhões de pessoas a mais irá, incontornavelmente, cair abaixo da linha de pobreza. Em uma pesquisa recente do Pew Research, 60% dos latino americanos informaram que perderam seus empregos ou salários, assim como mais da metade de todos os trabalhadores abaixo dos 30 anos. Além dos empregos, milhões perderão tudo que passaram a vida inteira trabalhando para conseguir: casas, pensões, cobertura médica e poupanças.

Muitos de nós já atravessamos uma prévia brutal de colapso econômico: a “Grande Recessão” de 2008-09. Em um período de 18 meses, a maioria das famílias afro e latino-americanas perderam todo seu patrimônio líquido e universitários recém-formados de origem não privilegiada encontraram-se encalhados, talvez para a vida toda, em posições de baixa remuneração na economia de serviços. É por isso que milhões se juntaram para empunhar a bandeira do New Deal de Bernie Sanders. Porém, a ameaça que se apresenta é a de pauperização econômica e fome em uma escala não vista desde 1933.

As pessoas precisam desesperadamente voltar aos seus empregos e salvar o que puderem em suas vidas. Mas dar ouvidos ao canto da sereia dos manifestantes da MAGA [abreviação de Make America Great Again – Faça a América Grandiosa Novamente], marionetes manipuladas por fundos de risco e donos de cassinos bilionários, para “reabrir a economia” resultaria apenas em um resultado: tragédia. Considere esses pontos:

  • Pôr milhões de pessoas de volta ao trabalho sem proteção ou testes seria uma sentença de morte para muitos. Trinta e quatro milhões de trabalhadores possuem mais de 55 anos; dez milhões deles, mais de 65 anos. Adicionalmente, milhões sofrem de diabetes, problemas respiratórios crônicos, entre outras doenças. Irão direto de casa para a UTI e então para a cova.
  • Milhões dos nossos “trabalhadores essenciais” encaram perigos intoleráveis por causa da escassez de equipamento de proteção. Levará semanas, no melhor dos cenários, até que trabalhadores da saúde contem com suprimento adequado. Trabalhadores em armazéns, feiras e fast food não têm garantia sequer de receber máscaras, a não ser que a legislação obrigue. Se isso é uma guerra, a recusa de Donald Trump em usar leis existentes para federalizar a manufatura de máscara e ventiladores é um crime de guerra.
  • A proposta de realizar testes de sangue e emitir certificados de permissão de volta ao trabalho a quem possuir os anticorpos certos é, no momento, mera fantasia. Washington permitiu que mais de uma centena de empresas vendesse kits sorológicos não testados em humanos ou sem certificação da FDA [Food and Drugs Administration – agência norte-americana equivalente à ANVISA]. Os resultados que dão são desorganizadíssimos, uma bagunça. Pode levar semanas ou mais até que trabalhadores da saúde pública contem com diagnósticos confiáveis para usar. Ainda assim, levaria meses para testar toda a força de trabalho e é questionável que um número suficiente de pessoas teria os anticorpos para abastecer de funcionários, com segurança, todas as empresas fechadas.
  • A hipótese mais heróica é que uma vacina esteja disponível na primavera de 2021, embora ninguém saiba por quanto tempo ela é capaz de conferir imunidade. Enquanto isso, centenas de termos de pesquisa e pequenas companhias de biotecnologia estão trabalhando para desenvolver medicamentos que reduzam o risco de falha respiratória e danos sérios ao coração e aos rins. Porém, essa difusão de experimentos científicos não conta com a coordenação nem o financiamento de Washington.

Lockdown indefinido

Em certo sentido, nós estamos vivendo um lockdown indefinido, tendo de lidar com um governo que dá mais prioridade à destruição do Serviço Postal Americano do que à organização de um programa de choque que produza testes, equipamentos de segurança e antivirais que permitirão aos estados norte-americanos retornarem ao trabalho.

Os cúmplices de Trump são monstros como a Amazon, que em duas semanas tornou Jeff Bezos US$ 25 bilhões mais rico, e o United Health Group, a maior companhia de seguros de saúde do mundo, cujo lucro aumentou em US$ 4,1 bilhões nos primeiros três esses da pandemia. Seguradoras médicas estão surfando em uma onda de sorte, pois, a maioria dos seus segurados estão atualmente impossibilitados de agendar operações ou obter tratamento vital.

Uma fúria vulcânica está emergindo rapidamente à superfície desse país e nós precisamos detê-la para defender e construir sindicatos, garantir assistência médica para todos e derrubar os patifes malditos dos seus tronos dourados.

Como chegamos até aqui

No último ano novo, enquanto estávamos brindando nossas taças, abraçados os companheiros e cantando alguns versos de alguma canção escrita há vário séculos por revolucionários escoceses, médicos chineses estavam notificando colegas ao redor do mundo que um rápido crescimento do número de casos de pneumonia aguda, situados ao redor da cidade de Wuhan, era resultado de uma infecção causada por um vírus até então desconhecido.

Dentro de uma semana, sua sequência genética já havia sido identificada e ele foi desvendado como sendo um “coronavírus”. Até 2003, pesquisas sobre essa família de vírus correspondiam principalmente às sérias doenças que causavam em vários animais, incluindo gado e aves. Sabia-se que apenas dois deles eram capazes de infectar humanos e, já que causavam apenas sintomas moderados de gripe, os pesquisadores consideraram insignificantes até então.

Então, em 2003, uma nova epidemia viral começou com um viajante em um hotel de um aeroporto chinês que transmitiu sua infecção para todos com quem interagiu. Dentro de 48 horas o vírus se espalhva para cinco outros países. A Severe Acute Respiratory Syndrome (SARS) – Síndrome Respiratória Aguda Severa – matou uma em cada dez vítimas.

O patógeno da SARS foi identificado como outro coronavírus, transmitido de morcegos para pequenos carnívoros conhecidos como civetas, há muito valorizados na gastronomia do sul da China. A SARS atingiu 30 países e causou intenso pânico internacional. Contudo, ele possuía um calcanhar de Aquiles: era contagioso apenas na fase em que pessoas infectadas apresentavam sintomas como tosse seca, febre e dores musculares. Por ser tão facilmente reconhecível, o vírus da SARS foi finalmente contido.

Um vírus similar, um tipo de maldição da múmia transmitida de ratos para camelos, emergiu em 2012 e matou mil pessoas, a maioria na península arábica. Porém, ele propagava-se sobretudo através do contato direto com camelos e por isso foi descartado como um candidato para engatilhar uma pandemia.

O vírus furtivo

Os pesquisadores tinham esperança que o assassino atual, um vírus conhecido por SARS-COV-2 que compartilha a maioria de seus genes com o SARS original, seria igualmente fácil de identificar através da correlação com os sintomas dos pacientes. Eles estavam terrivelmente enganados.

Após quatro meses de circulação no mundo humano, nós agora sabemos que o vírus, ao contrário dos predecessores, voa nas mesmas asas da influenza: é espalhado facilmente por pessoas sem sinais visíveis da doença. O patógeno atual revelou-se um “vírus furtivo” em uma escala que supera as influenzas e talvez como nada antes vistos nos anais da microbiologia. A marinha testou quase toda a tripulação do infestado porta-aviões Theodore Roosevelt e descobriu que 60% dos contagiados nunca mostraram algum sintoma visível.

Um amplo universo de casos não detectados pode ser considerado uma boa notícia se as infecções produzissem imunidade duradoura, mas não parece ser o caso. As dúzias de testes de sangue que detectam anticorpos atualmente em uso, todas sem certificado pela FDA, estão produzindo resultados confusos e contraditórios, tornando impossível, no momento, a ideia de emitir registros de permissão de volta ao trabalho com base na presença de anticorpos.

Contudo, pesquisas recentes (que podem ser analisadas no website do Instituto Nacional de Saúde, LitCovid) sugerem que a imunidade conferida após infecção é muito limitada e o coronavírus poderia se tornar tão perene quanto a influenza. Se não houver mutações dramáticas, segundas e terceiras reinfecções serão provavelmente menos perigosas aos sobreviventes, mas não existe evidências de que serão menos perigosas para pessoas não-infectadas em grupos de risco. Portanto, a COVID-19 será o monstro em nosso porão por muito tempo.

Eles sabiam que isso estava por vir

Entretanto, a doença não é uma erupção totalmente desconhecida, um asteroide biológico. Ainda que a transmissibilidade seja inesperada para um coronavírus, a pandemia corresponde em muito ao cenário descrito há muito para um surto de gripe aviária.

Há praticamente uma geração, a Organização Mundial de Saúde (OMS) e boa parte dos governos tem se planejado para detectar e responder a tal pandemia. Sempre houve um entendimento internacional muito claro sobre a necessidade de detecção em estágios iniciais, grandes estoques de suprimentos médicos emergenciais e alta capacidade em leitos de UTI. Mais importante foi o consenso que os membros da OMS em coordenar suas respostas com base em orientações votadas democraticamente. A contenção inicial era crucial: ampla testagem, rastreio de contágios e o isolamento de casos suspeitos. Quarentenas de larga-escala, fechamento de cidades e de setores da economia – essas deveriam ser as últimas alternativas, tornadas desnecessárias dado o planejamento extensivo.

Nesse sentido, depois da chegada da gripe aviária em 2005, o governo norte-americano publicou uma ambiciosa “Estratégia Nacional para a Pandemia de Influenza” baseado na descoberta de que todos os níveis do sistema público de saúde dos Estados Unidos estavam completamente despreparados para um surto de larga-escala. Após o assombro da gripe suína em 2009, a estratégia foi atualizada e, em 2017, uma semana antes da posse de Trump, oficiais da transição do governo Obama e administradores da equipe de Trump conduziram em conjunto uma simulação ampla que testou a resposta das agências e hospitais federais a uma pandemia, a partir de três cenários: gripe aviária, Ebola e Zika vírus.

Na simulação, o sistema, claro, falhou em evitar o surto da doença ou, em decorrência disso, achatar a curva a tempo. Parte do problema foi a detecção e a coordenação. Outra foi o estoque inadequado e cadeias de suprimento com gargalos óbvios, tal como a profunda dependência de poucas fábricas estrangeiras para produzir equipamento de proteção vital. E, por detrás de tudo isso, está a falha em tomar vantagens agressivas de avanços revolucionários no desenvolvimento biológico ao longo da última década, o que resultaria em um arsenal de reserva de novos antivírus e vacinas.

Em outras palavras, os Estados Unidos não estavam prontos e o governo sabia disso.

Desastre em dominó

Por volta do fim de janeiro de 2020, três coisas aconteceram. Primeiro, a OMS rapidamente distribuiu centenas de milhares de kits de teste desenvolvidas por cientistas alemães que foram, contudo, subutilizados visto que cada nação trancou suas portas e ignorou consensos prévios de ajuda mútua.

Segundo, três nações da Ásia Oriental com arsenais médico bem preparados e com sistemas de saúde de pagador único – Coreia do Sul, Singapura e Taiwan – foram bem-sucedidas na contenção do surto com mínima mortalidade e moderados períodos de isolamento social. Após desastres iniciais que permitiram que o vírus escapasse em viagens aéreas e forçada a manter um lockdown em Wuhan, a China se mobilizou em uma escala sem precedente e rapidamente extinguiu todos os focos de COVID-19 fora de Wuhan.

Terceiro, nossos Centros para Controle e Prevenção de Doenças (CDC, em inglês) decidiram criar seus próprios kits de testes ao invés de usar aqueles distribuídos pela OMS. Porém, as linhas de produção dos CDC’s estavam contaminadas com o vírus e os kits foram inutilizados. Todo o mês de fevereiro, quando ainda era possível evitar um aumento exponencial da infecção através de testes e rastreio de contágio, foi desperdiçado.

Esse foi o primeiro desastre. O segundo foi em março, quando casos severos e críticos começaram a lotar os hospitais. Conforme as instituições começaram a ficar sem respiradores, máscaras N-95 e ventiladores suficientes, elas se voltaram aos seus Estados e então para a Estratégia Nacional de Estoque federal, que havia sido designada especificamente para uso durante um surto como o de COVID-19.

Mas os armários estavam quase vazios. Foram em grande parte se esgotando durante o pânico nacional provocado pela gripe suína em 2009 e várias outras emergências subsequentes. A administração de Trump foi alertada repetidas vezes sobre seu dever estatutário de reabastece-los, mas estava focada em outras prioridades tais como cortar o orçamento dos CDC’s e destruir a Lei de Proteção e Cuidado ao Paciente [o Obamacare].

Como resultado, milhões de trabalhadores norte-americanos tem ido à luta em hospitais, asilos, trânsito público e depósitos da Amazon sem proteção essencial que custa apenas centavos para manufaturar. Nada é tão emblemático o abandono de deveres do governo Trump frente ao fato de que no mesmo dia em que o presidente se gabava da “superioridade tecnológica e científica sem igual” dos Estados Unidos, o New York Times dedicava uma página inteira a “Como Costurar uma Máscara em Casa”.

Sobre o autor

Republicado de Labor Notes.

Mike Davis é autor de vários livros, incluindo Planeta Favela e Cidade de Quartzo: Escavando o Futuro em Los Angeles.

24 de abril de 2020

Muito barulho por quase nada

É preciso ser muito papalvo para achar que R$ 30 bi do Pró-Brasil quebrarão o país

Nelson Barbosa

Folha de S.Paulo


Ainda em aberto, envolverá a indústria, agronegócio, serviços e turismo na busca de ações do estado para esses setores da economia. Lalo de Almeida/Folhapress

O governo lançou intenção de plano de investimento nesta semana. Falo do plano Pró-Brasil, que tem por objetivo aumentar o investimento e gerar empregos, acelerando a recuperação da economia no pós-crise, seja lá quando isso começar.

Para alguns, a imagem de um general anunciando mais investimento público relembrou o segundo Plano Nacional de Desenvolvimento (PND 2), do governo Geisel. Já outros fizeram paralelo com o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), lançado por Lula em 2007.

Nos dois casos, nossos neoliberais de jardim de infância entraram em pânico e atacaram o chefe da Casa Civil de Bolsonaro, pela suposta incongruência de suas intenções com a estabilidade fiscal. Isso é um exagero por pelo menos três motivos.

Primeiro, no formato atual, o plano Pró-Brasil é uma carta de intenções, inclusive com slides a serem preenchidos. O governo não detalhou várias das ações anunciadas. A iniciativa parece ter sido gestada fora do Ministério de Ideologia Econômica e, por causa disso, sem dados e equipe necessária para fazer uma proposta mais consistente.

Segundo, o valor anunciado de investimento público, de R$ 30 bilhões em três anos, é baixíssimo. Caso a distribuição seja linear, teremos estímulo fiscal de 0,1% do PIB ao ano, por três anos, via investimento com emissão de dívida.

É preciso ser muito papalvo para achar que cifra tão pequena quebrará o país. No formato atual, o Pró-Brasil é uma tentativa de evitar queda maior do investimento do governo.

Terceiro e mais importante, após o pior desta crise, o setor privado estará mais endividado, com elevado desemprego e capacidade ociosa, em um contexto doméstico ainda instável (família Bolsonaro versus impeachment) e situação externa provavelmente incerta (efeitos estruturais da Covid-19 na economia mundial, eleições nos EUA, discordâncias entre europeus e evolução da China pós crise).

É possível, mas altamente improvável, que o setor privado lidere uma rápida recuperação da economia em 2021. Na verdade, é mais provável que ocorra o inverso, caso o governo retome a agenda de forte ajuste fiscal no próximo ano, revertendo as medidas de auxílio financeiro a empresas, família, prefeitos e governadores planejadas para este ano, sem colocar nada no seu lugar.

Nossa história recente indica que consolidação fiscal prematura tende a piorar em vez de melhor a economia. Foi isso que aconteceu em 2011, 2015 e 2017. Sugiro tentar algo diferente agora.

Sim, devemos continuar a agenda de reformas, sobretudo da tributação direta e indireta, bem como da remuneração e da estrutura de carreira de servidores públicos. Porém, essas duas iniciativas não impedem o papel mais ativo do Estado na reconstrução da economia pós Covid-19, via investimento. O programa Pró-Brasil ainda não chegou e talvez nunca chegue a esse estágio.

E, independentemente da opinião de nós, economistas, sobre o Pró-Brasil, parafraseando Churchill, ainda não chegamos ao “fim do começo” da crise atual.

O contágio continua crescendo, a capacidade dos hospitais já se esgotou em várias cidades e a maioria das medidas anunciadas pelo governo (executivo e legislativo) ainda não foi posta em prática.

Há perigo claro e imediato de mais e mais mortes por falta de atendimento médico adequado. Também há risco iminente de quebradeira em massa de famílias e empresas por falta de auxílio financeiro do governo. Nessa situação, é um luxo debater o que o paciente fará quando sair do hospital. Antes disso, precisamos mover o paciente da UTI para o quarto.

Sobre o autor

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

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