14 de abril de 2020

Da exposição à manifestação

Poderes engajados e subvertidos

Wendy Brown


Tradução / O coronavírus simultaneamente engaja, intensifica e subverte os arranjos políticos e econômicos existentes. Ele engaja desigualdades abjetas de todo tipo, incluindo o acesso a abrigo, saúde, educação, assistência, e a uma existência vivível quando o vírus recuar. Ele intensifica vulnerabilidades existentes em um mundo organizado pelos poderes crus e negligentes dos estados-nações e do capitalismo. No entanto, subverte temporariamente a pulsão cotidiana desses poderes de priorizar a riqueza sobre a vida; de supetão, o objetivo dessa pulsão falha radicalmente. Não foi uma erupção de virtude e sim um novo microrganismo que a tirou dos trilhos.

O vírus também desfaz algumas (mas dificilmente todas) das proteções usuais garantidas pela riqueza e pelo poder, como as do indivíduo e as da nação. Enquanto o microrganismo se propagar através de barricadas sofisticadas e fronteiras policiadas, procurando novos hospedeiros a cada expiração humana, a cada mão estendida, todas as pessoas estão vulneráveis, ainda que amparadas ou tratadas de maneira desigual. É necessário o envolvimento de todas e todos para impedir a contaminação, para impedir a movimentação, para impedir que sejamos governados pela ilusão e pela desilusão e parar a indulgência e negação social. A imobilidade e a contenção não são uma autoproteção individual, mas um pacto social mútuo de ordem mundial. A riqueza não pode comprar um lugar fora desse pacto. Em movimento, aqueles que se encontram no topo das hierarquias levam tanto perigo uns aos outros quanto são ameaçados por quem está embaixo, cujo trabalho barato eles precisam. Por toda a parte, o servo pode envenenar o mestre.

O colapso dos limites

O vírus é inextricável da sociedade, da economia, do conhecimento, da política. Isso não é apenas porque ele está quebrando mercados, fechando negócios e destruindo trabalho e renda. Não só porque as perversas cadeias de sobrevivência — saúde assegurada por planos vinculados a empregos formais e a famílias nucleares; pais e mães que trabalham e dependem das escolas para cuidado e alimentação de suas crianças; abrigo amarrado ao aluguel pago por trabalhos em uma economia do desperdício consumista — foram subitamente rompidas pelo microrganismo. O coronavírus é mais que biológico ou médico porque tudo o que é humano é experienciado e moldado através de poderes criados, mas não controlados por humanos, poderes que ao mesmo tempo nos sustentam e nos destroem, criam relações e nos separam, nos conectam e nos estratificam. O percurso do vírus é material e discursivo, matéria de imensa cooperação social e de uma inventividade, habilidade ou insensatez política extraordinária; uma cena de razão e sentimento, de ciência, senso e sofrimento. O vírus e os danos gerados por ele não podem ser contidos fora da complexidade e da convergência desses planos de fazer-mundo e fazer-sentido. Ele não será gerido pelo conhecimento que emana de uma disciplina isolada. O campo da saúde pública sempre soube disso, mas agora nem os economistas conseguem mais ficar dentro de suas salas limpinhas, conjurando um modelo ou mercado perfeito para endireitar o navio. As economias “financeira” e “real” exibem diariamente seu entrelaçamento, sua dependência do mesmo Estado que elas restringem, manipulam e ameaçam. O perigo de uma “infecção reversa” da economia real, decorrente do deslize contundente da economia financeira, ameaça inclinar esse deslize da recessão para a depressão. A gestão do vírus é, ao mesmo tempo, gestão política das finanças e da produção, das saúdes humana e econômica e de psique e soma de cada um.

Revelação

Muitos consideram que o coronavírus traz uma profunda suspensão das fronteiras da nação, da casa, da família ou de si mesmo. De fato, o vírus nos virou do avesso, fomentando uma cooperação global entre pesquisas médicas sem precedentes, inspirando milhares de pequenas redes de apoio mútuo, forçando os bancos a suspender a cobrança de dívidas e as classificações de crédito punitivas, forçando Estados neoliberais a providenciar renda básica, forçando o sistema de encarceramento a soltar os prisioneiros, revelando por toda parte a necessidade de compartilhar em vez de acumular, de prover em vez de contrair, de abrigar em vez de abandonar as populações. Acima de tudo, o coronavírus evidenciou que a economia do cuidado, em seu sentido amplo, é indispensável, e que a perfídia e a pilhagem da maioria da produção e da exploração capitalista são supérfluas. Ele elevou o valor das trabalhadoras médicas não-brancas que são desproporcionalmente mal remuneradas e subvalorizadas, de trabalhadores rurais, de trabalhadores do ramo alimentício, atendentes de farmácia, trabalhadores da área de saneamento, empregados de mercearia, caminhoneiros, encanadores e eletricistas, cuidadores domiciliares, zeladores, trabalhadores da manutenção da infraestrutura, guardas de trânsito, assistentes sociais, professores, enfim, cuidadores de todos os tipos. Enquanto trabalhadoras e trabalhadores da saúde exaustos mantêm os corpos vivos, as pessoas criativas — musicistas, artistas, poetas, contadores de história — levantam e acalmam os espíritos. Cientistas traduzem as descobertas, os caminhos, o que ainda é desconhecido, jornalistas, que fazem jus ao ofício, afastam os rumores e as conspirações, explicam as novas regras, quantificam e nomeiam os mortos. Claro que sentimos saudades de baristas e bartenders, guardas de trânsito e atletas, mas o que o mundo assolado pela pandemia não sente falta é das operações de investimento dos banqueiros, dos planejadores de eventos corporativos, dos especuladores financeiros, dos especialistas do marketing e publicitários, gerentes de seguros, incorporadores imobiliários, atuários, advogados, ou daquela triste estirpe conhecida como influenciadores. Também não faz falta a maioria das mercadorias produzidas pelo capitalismo. Precisamos de respiradores para quem está doente, de EPI para quem está trabalhando ativamente, e de comida e abrigo para todo mundo. Precisamos do que vem de baixo do sistema econômico, não do que vem de cima.

Manifestação

O vírus revela tudo isso e mais. Mas não existe revelação política sem interpretação, contestável e disputável por outras pessoas. O que é revelado deve ser transformado em manifesto, formulado em linguagem, imagem e política como crítica e possibilidade visível. Uma revelação delineada em manifestos que se contraponham e transformem a ânsia ubíqua de “voltar ao normal” — o normal de avenidas entupidas, ar imundo, trabalho sem sentido, prisões abarrotadas, populações sem-teto abandonadas, práticas de conhecimento compartimentadas, economias desenvolvimentistas destruindo o planeta, estratificação e abjeção por classe, gênero, raça e hemisfério, e de mestres do universo super-remunerados de volta ao trono.

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