J.S. Tan
J.S. Tan é um escritor e ativista.
Um ciclista passa próximo da sede do Google em 17 de julho de 2008 em Mountain View, Califórnia. Justin Sullivan / Getty |
Tradução / Quando a COVID-19 apareceu pela primeira vez no Estado chinês de Wuhan, o governo de Xi Jinping – já equipado com uma avançada infraestrutura de vigilância – respondeu de uma maneira bastante surpreendente: com mais vigilância. As autoridades chinesas utilizaram Big Data para implantar sistemas de reconhecimento facial que detectam temperaturas altas nas pessoas em meio às multidões, rastreiam o movimento da população usando dados de celulares e criam novos modelos de inteligência artificial para identificar as pessoas, mesmo quando estão usando máscaras. O governo incentivou os cidadãos a monitorar os vizinhos e denunciar os suspeitos de portar o vírus.
Sem nenhuma surpresa, os governos ocidentais e seus aliados – rápidos em ressuscitar os conflitos da Guerra Fria – tomaram a resposta agressiva de Pequim como uma oportunidade de ganhar pontos contra o Estado chinês. Especialistas em privacidade digital alertaram que Xi Jinping estava usando a pandemia para reforçar seu aparato de espionagem e criticaram o governo chinês por operar nada menos que um Estado distópico baseado na vigilância. Na verdade, com a repressão chinesa aos uigures de Xinjiang, o incansável programa de censura da Internet no país e o recém implantado “sistema de crédito social”, muitas dessas críticas são justificadas.
Mas, por enquanto, as medidas de vigilância da China parecem ter funcionado. O surto em Wuhan parece estar sob controle, com o governo relatando que não há novos casos locais. E embora o governo chinês tenha sido condenado por reprimir as pessoas denunciadas por estarem com coronavírus, o uso de Big Data para encontrar pessoas infectadas e colocá-las em quarentena tem sido elogiado como um modelo para o resto do mundo.
Enquanto isso, os Estados Unidos tornaram-se o novo epicentro da pandemia, com mais de 500.000 casos e sem um término à vista. Enquanto a maioria dos estados emitiu ordens para as pessoas ficarem em suas casas, as autoridades não têm como garantir que seus conselhos sejam atendidos sem os meios de monitorar as atividades das pessoas. As elites dos Estados Unidos estão preocupadas com o fato de o modelo chinês estar se mostrando superioridade, aumentando a possibilidade de um dilema preocupante: adotar as medidas draconianas de vigilância de Pequim ou deixar o vírus ficar fora de controle.
No entanto, a crença de que a vigilância seja algo exclusivamente chinesa é, na melhor das hipóteses, ingênua e, na pior, sinofóbica, um sentimento anti-China. Enquanto a palavra “vigilância” evoca imagens de sociedades distópicas distantes das democracias liberais ocidentais, os governos ao redor do mundo estão muito dispostos a se associar a empresas com fins lucrativos para aumentar o monitoramento doméstico – e as empresas têm demonstrado seu grande apetite por rastrear trabalhadores.
Infraestrutura de vigilância
Em meados de março, o Washington Post informou que o governo dos EUA estava conversando com Facebook, Google e outras empresas do Vale do Silício sobre como as informações de geolocalização coletadas de celulares poderiam ser usadas para mapear a disseminação da COVID-19 e determinar se as pessoas estavam se mantendo em quarentena.
Evidentemente, contar para isso com empresas de tecnologia voltadas ao lucro pode nos levar a ver uma bola de neve que faz corroer as proteções de privacidade. Mas não são apenas nossas liberdades civis imediatas que estão em jogo. Ao se posicionar a si mesmo como um servidor público em meio a uma pandemia, o Vale do Silício pode usar a crise para expandir seu controle e jurisdição sobre nossos modos de vida digitais após a crise da pandemia. No futuro, eles podem apontar seu serviço como um motivo para manter a fiscalização pública (mais) afastada: “Se você nos regulamentar, não poderemos proteger os cidadãos do mundo”.
O resultado poderia ser mais uma expansão das infraestruturas de vigilância construída após o 11 de setembro, que deu ao governo um controle quase completo sobre nossos dados sob o pretexto de prevenção ao terrorismo e levou as empresas a um casamento traiçoeiro com o Estado. Como Edward Snowden revelou em 2013, os programas que dependem de dados coletados por empresas privadas são facilmente violados – e, muitas vezes, como no caso do NSA Phone Program, são completamente ineficazes para atingir seus objetivos.
Enquanto isso, com a expansão da COVID-19 por todo o mundo, as empresas estão aproveitando ao máximo seus aparatos de vigilância interna. A Amazon continua monitorando os trabalhadores de seus galpões, que trabalham em condições brutais para aproveitar a enorme demanda pelos serviços de entrega da empresa. A Bloomberg informou recentemente que as empresas estavam comprando de forma desesperada um novo software de vigilância para garantir que os funcionários que trabalham em casa estão de fato trabalhando.
Talvez o mais perturbador seja que a empresa Palantir Technologies – alimentada pela plataforma de nuvem da Amazon – ainda esteja fornecendo tecnologia de rastreamento para o Serviço de Imigração e Alfândega dos EUA, cujos agentes – indiferentes à pandemia – estão prendendo imigrantes e mantendo-os em espaços fechados e insalubres.
Esses são os tipos de atores que queremos ver emergir da crise com mais poder? Justamente quem já demonstrou ter mais interesse em lucros do que em salvar vidas?
As empresas chinesas de tecnologia não estão se comportando de maneira diferente. Quando o surto de coronavírus causou o lockdown no país, os trabalhadores da área de tecnologia que já estavam trabalhando por longas horas deveriam dedicar ainda mais tempo ao trabalho em casa. Como seus colegas dos Estados Unidos, os empregadores chineses usaram todas as ferramentas de rastreamento de produtividade que puderam para monitorar os trabalhadores e impedir que eles ficassem de folga. Sem qualquer separação entre trabalho e vida, o infame horário de trabalho chinês “996” (9 da manhã às 9 da noite, seis dias por semana) tornou-se um permanente estado de prontidão, 24 horas por dia, 7 dias por semana.
A despeito das sensações de Guerra Fria nos últimos dias, as empresas privadas de tecnologia tanto China quanto nos Estados Unidos não demonstraram qualquer constrangimento em ajudar a vigilância governamental ou aumentar o monitoramento dentro das empresas. De fato, muitos estão aproveitando a oportunidade para ampliar a vigilância em nome da saúde pública. E se não tomarmos cuidado, essas medidas invasivas poderão sobreviver à própria pandemia.
Uma alternativa
Dada a gravidade do coronavírus, alguns podem argumentar que a implementação de medidas extremas que sacrificam a privacidade individual é razoável. E talvez seja verdade que, no mundo de hoje, quando a maior parte de nossas infraestruturas tecnológicas está nas mãos de empresas privadas, empresas como o Google poderiam ajudar a frear a pandemia. Mas antes de avançarmos com a vigilância em massa, devemos lembrar que essas medidas apenas empurram o poder para aqueles que já o têm.
Afinal, em sua essência, a vigilância consiste em dar aos que têm poder a capacidade de rastrear (e frequentemente disciplinar) os que não têm. E empresas como Google e Alibaba, com suas visões panópticas de bilhões de usuários, estão na posição perfeita para fazer esse trabalho.
Há alguma alternativa? Alguma que busque frear o vírus sem afetar os valores democráticos?
Enquanto inúmeros relatórios focam na eficácia dos programas de vigilância “de cima para baixo” da China, um repórter do Buzzfeed, que ignorou os canais oficiais chineses e investigou como os moradores de Wuhan estavam lidando com a doença durante seu pico, descobriu que “as redes altamente sofisticadas de cooperação locais” eram tão cruciais quanto qualquer outra medida estatal. “Não foram apenas as medidas de cima para baixo que frearam com sucesso as infecções em Wuhan, mas também a organização dinâmica de baixo para cima de grupos hiperlocais emergentes”. Algumas redes similares também começaram a aparecer nos Estados Unidos.
Nessas redes descentralizadas, os dados desempenham um papel crítico. Mas, diferentemente das medidas de vigilância panóptica, os dados são distribuídos e a transparência é incentivada. Os participantes inventam novos sistemas em planilhas e outras ferramentas online, permitindo que as pessoas se verifiquem com segurança enquanto definem coletivamente as regras de como seus dados são geridos. É o ethos da segurança coletiva, não da espionagem punitiva.
É possível que essas iniciativas auxiliadas por tecnologias também sobrevivam a esse momento de crise e se tornem um local para suporte mútuo e duradouro – um local que não ajude apenas a superar a alienação que vivenciamos como trabalhadores todos os dias, mas também sirva como base para uma perspectiva radicalmente diferente de construção de tecnologias.
Em um mundo diferente, onde os dados sejam de propriedade individual e geridos democraticamente, a tecnologia poderia proporcionar alívio em tempos de crise – não para monitorar e disciplinar, mas para aprimorar nossos instintos mais básicos para apoiar uns aos outros. E é esse futuro que ameaça os autocratas em todos os lugares, seja em Pequim, em Washington ou no Vale do Silício.
Sobre o autor
Mas, por enquanto, as medidas de vigilância da China parecem ter funcionado. O surto em Wuhan parece estar sob controle, com o governo relatando que não há novos casos locais. E embora o governo chinês tenha sido condenado por reprimir as pessoas denunciadas por estarem com coronavírus, o uso de Big Data para encontrar pessoas infectadas e colocá-las em quarentena tem sido elogiado como um modelo para o resto do mundo.
Enquanto isso, os Estados Unidos tornaram-se o novo epicentro da pandemia, com mais de 500.000 casos e sem um término à vista. Enquanto a maioria dos estados emitiu ordens para as pessoas ficarem em suas casas, as autoridades não têm como garantir que seus conselhos sejam atendidos sem os meios de monitorar as atividades das pessoas. As elites dos Estados Unidos estão preocupadas com o fato de o modelo chinês estar se mostrando superioridade, aumentando a possibilidade de um dilema preocupante: adotar as medidas draconianas de vigilância de Pequim ou deixar o vírus ficar fora de controle.
No entanto, a crença de que a vigilância seja algo exclusivamente chinesa é, na melhor das hipóteses, ingênua e, na pior, sinofóbica, um sentimento anti-China. Enquanto a palavra “vigilância” evoca imagens de sociedades distópicas distantes das democracias liberais ocidentais, os governos ao redor do mundo estão muito dispostos a se associar a empresas com fins lucrativos para aumentar o monitoramento doméstico – e as empresas têm demonstrado seu grande apetite por rastrear trabalhadores.
Infraestrutura de vigilância
Em meados de março, o Washington Post informou que o governo dos EUA estava conversando com Facebook, Google e outras empresas do Vale do Silício sobre como as informações de geolocalização coletadas de celulares poderiam ser usadas para mapear a disseminação da COVID-19 e determinar se as pessoas estavam se mantendo em quarentena.
Evidentemente, contar para isso com empresas de tecnologia voltadas ao lucro pode nos levar a ver uma bola de neve que faz corroer as proteções de privacidade. Mas não são apenas nossas liberdades civis imediatas que estão em jogo. Ao se posicionar a si mesmo como um servidor público em meio a uma pandemia, o Vale do Silício pode usar a crise para expandir seu controle e jurisdição sobre nossos modos de vida digitais após a crise da pandemia. No futuro, eles podem apontar seu serviço como um motivo para manter a fiscalização pública (mais) afastada: “Se você nos regulamentar, não poderemos proteger os cidadãos do mundo”.
O resultado poderia ser mais uma expansão das infraestruturas de vigilância construída após o 11 de setembro, que deu ao governo um controle quase completo sobre nossos dados sob o pretexto de prevenção ao terrorismo e levou as empresas a um casamento traiçoeiro com o Estado. Como Edward Snowden revelou em 2013, os programas que dependem de dados coletados por empresas privadas são facilmente violados – e, muitas vezes, como no caso do NSA Phone Program, são completamente ineficazes para atingir seus objetivos.
Enquanto isso, com a expansão da COVID-19 por todo o mundo, as empresas estão aproveitando ao máximo seus aparatos de vigilância interna. A Amazon continua monitorando os trabalhadores de seus galpões, que trabalham em condições brutais para aproveitar a enorme demanda pelos serviços de entrega da empresa. A Bloomberg informou recentemente que as empresas estavam comprando de forma desesperada um novo software de vigilância para garantir que os funcionários que trabalham em casa estão de fato trabalhando.
Talvez o mais perturbador seja que a empresa Palantir Technologies – alimentada pela plataforma de nuvem da Amazon – ainda esteja fornecendo tecnologia de rastreamento para o Serviço de Imigração e Alfândega dos EUA, cujos agentes – indiferentes à pandemia – estão prendendo imigrantes e mantendo-os em espaços fechados e insalubres.
Esses são os tipos de atores que queremos ver emergir da crise com mais poder? Justamente quem já demonstrou ter mais interesse em lucros do que em salvar vidas?
As empresas chinesas de tecnologia não estão se comportando de maneira diferente. Quando o surto de coronavírus causou o lockdown no país, os trabalhadores da área de tecnologia que já estavam trabalhando por longas horas deveriam dedicar ainda mais tempo ao trabalho em casa. Como seus colegas dos Estados Unidos, os empregadores chineses usaram todas as ferramentas de rastreamento de produtividade que puderam para monitorar os trabalhadores e impedir que eles ficassem de folga. Sem qualquer separação entre trabalho e vida, o infame horário de trabalho chinês “996” (9 da manhã às 9 da noite, seis dias por semana) tornou-se um permanente estado de prontidão, 24 horas por dia, 7 dias por semana.
A despeito das sensações de Guerra Fria nos últimos dias, as empresas privadas de tecnologia tanto China quanto nos Estados Unidos não demonstraram qualquer constrangimento em ajudar a vigilância governamental ou aumentar o monitoramento dentro das empresas. De fato, muitos estão aproveitando a oportunidade para ampliar a vigilância em nome da saúde pública. E se não tomarmos cuidado, essas medidas invasivas poderão sobreviver à própria pandemia.
Uma alternativa
Dada a gravidade do coronavírus, alguns podem argumentar que a implementação de medidas extremas que sacrificam a privacidade individual é razoável. E talvez seja verdade que, no mundo de hoje, quando a maior parte de nossas infraestruturas tecnológicas está nas mãos de empresas privadas, empresas como o Google poderiam ajudar a frear a pandemia. Mas antes de avançarmos com a vigilância em massa, devemos lembrar que essas medidas apenas empurram o poder para aqueles que já o têm.
Afinal, em sua essência, a vigilância consiste em dar aos que têm poder a capacidade de rastrear (e frequentemente disciplinar) os que não têm. E empresas como Google e Alibaba, com suas visões panópticas de bilhões de usuários, estão na posição perfeita para fazer esse trabalho.
Há alguma alternativa? Alguma que busque frear o vírus sem afetar os valores democráticos?
Enquanto inúmeros relatórios focam na eficácia dos programas de vigilância “de cima para baixo” da China, um repórter do Buzzfeed, que ignorou os canais oficiais chineses e investigou como os moradores de Wuhan estavam lidando com a doença durante seu pico, descobriu que “as redes altamente sofisticadas de cooperação locais” eram tão cruciais quanto qualquer outra medida estatal. “Não foram apenas as medidas de cima para baixo que frearam com sucesso as infecções em Wuhan, mas também a organização dinâmica de baixo para cima de grupos hiperlocais emergentes”. Algumas redes similares também começaram a aparecer nos Estados Unidos.
Nessas redes descentralizadas, os dados desempenham um papel crítico. Mas, diferentemente das medidas de vigilância panóptica, os dados são distribuídos e a transparência é incentivada. Os participantes inventam novos sistemas em planilhas e outras ferramentas online, permitindo que as pessoas se verifiquem com segurança enquanto definem coletivamente as regras de como seus dados são geridos. É o ethos da segurança coletiva, não da espionagem punitiva.
É possível que essas iniciativas auxiliadas por tecnologias também sobrevivam a esse momento de crise e se tornem um local para suporte mútuo e duradouro – um local que não ajude apenas a superar a alienação que vivenciamos como trabalhadores todos os dias, mas também sirva como base para uma perspectiva radicalmente diferente de construção de tecnologias.
Em um mundo diferente, onde os dados sejam de propriedade individual e geridos democraticamente, a tecnologia poderia proporcionar alívio em tempos de crise – não para monitorar e disciplinar, mas para aprimorar nossos instintos mais básicos para apoiar uns aos outros. E é esse futuro que ameaça os autocratas em todos os lugares, seja em Pequim, em Washington ou no Vale do Silício.
Sobre o autor
J.S. Tan é um escritor e ativista.
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