16 de abril de 2020

Toda ajuda federal deve ser dada, mas com recibo

Cidadãos estaduais e municipais também são brasileiros e, portanto, arcarão com as consequências de qualquer dívida federal

Nelson Barbosa

Folha de S.Paulo


A maioria dos economistas concorda em que, assim como ocorre com famílias e empresas, o governo federal deve transferir recursos para prefeitos e governadores pagarem suas despesas na crise.

No caso de estados e municípios, a ajuda é ainda mais urgente, pois prefeitos e governadores são encarregados de serviços públicos essenciais, cuja demanda tende a aumentar no combate à pandemia.

Agora, o dissenso. O socorro poder ser via transferência (doação) ou financiamento (dívida). A ajuda também pode ter valor fixo ou proporcional a um indicador, como folha de pagamento, arrecadação de tributos ou população.

Seja qual for a alternativa, a ajuda da União implica emissão de dívida federal. Do ponto de vista financeiro, é como se Bolsonaro tomasse recursos emprestados em nome de prefeitos e governadores.

Porém, como estados e municípios ficarão com os recursos, e a União, com a dívida, a ajuda às vezes é caracterizada como “almoço grátis”, uma doação federal para contribuintes municipais e estaduais. Essa concepção está errada.

Cidadãos estaduais e municipais também são brasileiros e, portanto, arcarão com as consequências de qualquer dívida federal emitida para ajudar prefeitos e governadores, mas não de modo igual.

Por exemplo, suponha que a União emita $ 100 para compensar a perda de ICMS dos estados. Assumindo que a perda relativa seja a mesma para todos os estados, o contribuinte paulista “ganhará” $ 29 da União, pois São Paulo concentra 29% da arrecadação de ICMS.

Porém, como o contribuinte paulista também é brasileiro, ele arcará com parte dos $ 100 “doados” pela União ao Brasil. Quanto? Há várias formas de estimar isso. Usarei a população por ser mais simples.

São Paulo concentra 22% dos brasileiros. Logo, se a dívida emitida for distribuída de modo per capita, os brasileiros do estado arcarão com $ 22 da ajuda federal para compensar ICMS. O ganho líquido é, portanto, de $ 7 para os paulistas.

Transferências para compensar perdas de ICMS e ISS tendem a beneficiar mais a população de estados e municípios “ricos”, isto é, estados que conseguem arrecadar mais tributos localmente.

No sentido contrário, transferências via fundo de participação dos estados e municípios (FPE e FPM) tendem a beneficiar mais a população de estados mais “pobres”, que recebem uma parcela de recursos proporcionalmente maior do que sua população justificaria.

Diferenças regionais na alocação de recurso federais são normais em um país continental e desigual como o Brasil. Áreas mais ricas normalmente financiam áreas mais pobres, recebendo em troca acesso preferencial ao mercado das áreas mais pobres, além do valor intangível de fazer parte do Brasil.

Já transferências no sentido inverso são difíceis de justificar. Por isso, a melhor forma de ajuda federal às regiões mais ricas do país é financiamento, em vez de transferência.

Empréstimos temporários para quem tiver dificuldade de pagar a seus servidores, sendo esses empréstimos posteriormente pagos pelos cidadãos estaduais e municipais das áreas que tomaram os recursos, quando o pior passar.

Estados e municípios mais ricos precisam de ajuda urgente, mas há mais de uma maneira de fazer isso. O modo de enfrentar o problema hoje é importante, pois ele pode facilitar ou dificultar a saída da crise amanhã.

E, como apontou o FMI (eu também tenho um lado neoliberal), toda ajuda federal deve ser dada, mas com recibo, pois a conta será de todos os brasileiros depois da crise.

Sobre o autor

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

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