O governo de centro-esquerda de Portugal anunciou que todos os migrantes com pedidos de residência aberta receberão status regularizado, permitindo-lhes acesso total a serviços de saúde e serviços sociais. O exemplo do país mostra que nossa resposta à pandemia deve ser coletiva e incluir a todos, independentemente de onde tenham nascido.
Joana Ramiro
Jacobin
Tradução / Além de suas praias, Portugal é talvez mais conhecido pelo fado, um gênero nacional de canto folclórico. Tradicionalmente, o fado reconta histórias de almas doloridas, amores perdidos, saudades e má sorte. Durante a ditadura, quando a retórica do jingoísmo era diariamente bombardeada pelos escritórios de propaganda estatal, o fado se tornou o hino da identidade portuguesa. Esse canto retratava o país como um antigo e digno império, pequeno, porém grande — humilde diante da grande hegemonia anglófona, mas ainda suficientemente vigoroso para manter meia dúzia de colônias na África e na Ásia.
Enquanto a independência das remanescentes colônias portuguesas foi reconhecida após a Revolução dos Cravos em 1974, essa ideia de “pequenos, mas grandes” perseverou no imaginário de muitos portugueses — bem como nas políticas de diferentes governos. Um dos bastiões finais dessa ideologia foi, sem dúvida, o ministério da imigração. As leis sobre quem pode e não pode receber cidadania portuguesa têm sido amplamente punitivas para as comunidades migrantes que vivem em Portugal, muitas vezes descendentes das populações das antigas colônias.
Nesse sentido, um dos debates mais acalorados nas eleições gerais do ano passado dizia respeito à possibilidade da cidadania abraçar todas as crianças nascidas em solo português, um princípio também conhecido como “jus soli“. Essa proposta seria controversa, mesmo que simplesmente por violar a convenção da União Europeia de “jus sanguinis“, segundo a qual a cidadania é transmitida por descendência. Mas foi especialmente contestado porque estenderia a cidadania aos filhos de milhões de migrantes negros e pardos das antigas colônias — uma maldição na psique chauvinista portuguesa.
No entanto, essa resistência pode estar entrando em colapso. A decisão do governo português de legalizar imediatamente todos os migrantes com pedidos de visto ou de asilo em andamento não foi simplesmente um gesto de solidariedade em meio à pandemia mundial de coronavírus. Foi um marco de mudança no paradigma jurídico e político do país.
Essa medida ainda é temporária — projetada para durar até julho — e não se aplica a todas as pessoas não documentadas. Mas possibilita a libertação de um grande número de migrantes não europeus do seu limbo, lhes concedendo o direito de trabalhar e acessar o serviço nacional de saúde e demais serviços sociais. O governo português começou a reconhecer que não é possível enfrentar esta crise a menos que todos tenham o tratamento que precisam — assim como uma renda que lhes permita ficar em casa. Esse é um exemplo que outros países deveriam seguir.
A paralisação europeia
A necessidade de cuidados de saúde pública como causa de tais medidas pode parecer convincente. No entanto, não havia nada inevitável no anúncio de Portugal. Na verdade, a decisão do país destoa de uma Europa que usou a pandemia como desculpa para fechar fronteiras, aumentar a retórica xenofóbica e terminar com a democracia. Da obstinada oposição holandesa aos “coronabonds” europeus, ao “golpe do coronavírus” de Viktor Orbán na Hungria, e até a priorização de Boris Johnson dos interesses comerciais sobre a saúde dos cidadãos no Reino Unido, a crise gerada pela COVID-19 deixou transparecer a recusa do conservadores em tratar seriamente dos riscos associados a ela. Ou estão permitindo que o ônus da crise recaia sobre as pessoas da classe trabalhadora e das minorias étnicas, ou estão ativamente usando a crise como alavanca para minar os direitos dessas pessoas.
Nesse sentido, a concessão de direitos de cidadania a milhares, talvez dezenas de milhares, de migrantes em Portugal é uma verdadeira vitória para a política progressista. A eleição geral de 2019 foi a primeira vez que a extrema-direita chegou ao parlamento português desde a redemocratização do país, há 45 anos — mas hoje, a lógica isolacionista dessas forças foi marginalizada por uma ousada política de inclusão. O que também coloca uma questão mais ampla: se Portugal — um país de 11 milhões de pessoas, com uma dívida pública equivalente a 119% do seu PIB, difamado pelas grandes potências da UE durante a crise financeira pós-2008 — pode abrir seus braços e seus recursos aos migrantes, por que não podem as economias mais fortes fazer o mesmo?
Por fim, a regularização desses cidadãos estrangeiros sinaliza que o governo português se deu conta que, mesmo após o auge da crise, não podemos continuar a operar com o status quo anterior. Como já discuti em outros lugares, o primeiro-ministro António Costa realizou um ato de malabarismo admirável para aderir às demandas do Banco Central Europeu e, ao mesmo tempo, avançar com um projeto de investimento nacional, injetando dinheiro em infra-estrutura social — onde governos de outros países defenderam cortes.
O esforço de Costa obteve diferentes graus de sucesso, mas certamente proporcionou ao primeiro-ministro a aprovação do eleitorado português, que lhe concedeu um segundo mandato em outubro de 2019. A abordagem do seu governo à gestão econômica tem sido social-democrata, e não um programa ousado de reforma socialista — mas, diante dessa crise, reconheceu a necessidade de uma resposta em larga escala como forma de evitar danos humanitários e econômicos potencialmente duradouros.
Regularização a longo prazo
Isso ajuda a explicar o porquê de Portugal ter anunciado o lockdown e o estado de emergência com tanta rapidez — aparentemente permitindo um desenvolvimento mais lento do número de casos do que a vizinha Espanha. Mas também é um motivo aparente por trás do movimento geral para a regularização dos migrantes. Ignorar as necessidades de cuidados de saúde de dezenas de milhares de pessoas apenas por causa de seu status migratório os deixaria em grande perigo — e também minaria toda a resposta coletiva.
Portugal merece crédito por ter percebido desde cedo que sua prioridade deveria ser o Estado de bem-estar, sua proteção contra o colapso e sua recuperação após a crise do coronavírus. No entanto, isso também destaca outra dimensão do problema, pois a recuperação exigirá ousados esforços para reforçar os cofres estatais, a fim de aumentar os gastos públicos e fortalecer o Estado de bem-estar social. Num país cuja população envelhece rapidamente como Portugal, a solução mais rápida e eficiente para este problema é reconhecer a realidade da migração — dando aos migrantes o status regular que lhes permita obter um trabalho adequadamente remunerado, ter os mesmos direitos trabalhistas disponíveis a todos os portugueses e, certamente, pagar impostos.
Outros governos podem insensivelmente enxergar o coronavírus como uma maneira de liberar o estado do gasto com o cuidado de idosos e vulneráveis. Essa foi, ao que parecia, uma das considerações do governo britânico quando adotou uma estratégia de “imunidade de grupo” que considerava certas as mortes em massa. Portugal, por outro lado, procurou maneiras de salvar as vidas e garantir os meios de subsistência de todos os que vivem no país, sejam velhos ou jovens, nascidos em solo português ou não.
A crise do coronavírus levou à consciência dominante a necessidade de remodelar nosso sistema econômico. E os sinais são de que Portugal está na vanguarda desta transição. Regularizar migrantes não é apenas economicamente útil ou uma resposta necessária ao coronavírus, é a coisa certa a se fazer. Que outros países sigam e estendam o exemplo de Portugal.
Sobre a autora
Joana Ramiro é jornalista, escritora, radialista e comentarista política residente em Londres.
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