Imre Szijarto e Rosa Schwartzburg
Jacobin
O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orban, fala à mídia antes das conversações na Chancelaria em 10 de fevereiro de 2020 em Berlim, Alemanha. Sean Gallup / Getty. |
Tradução / Em um pronunciamento, na manhã do dia 30 de março, Viktor Orbán leu um texto em voz alta no salão revestido de madeira. Com os seus altos arcos neogóticos, esse palco imponente é um remanescente da época da legislatura bicameral do parlamento húngaro, antes da Segunda Guerra Mundial. Atualmente, na suposta democracia unicameral, esse espaço é usado principalmente para fins cerimoniais ou visitas turísticas. Hoje, porém, o espaço extra é necessário para o distanciamento social – permitindo que os parlamentares se sentem duas cadeiras de distância uns dos outros.
Alguns parlamentares possuíam máscaras brancas atadas ao rosto – e a matéria que tinham em mãos era sobre a ameaça do coronavírus. Em pé ao centro do salão, vestindo um sóbrio terno preto de corte aberto, Orbán leu calmamente a introdução de um ato legislativo que lhe garantiriam poderes excepcionais por um período de tempo indefinido. Como era esperado, os parlamentares aprovaram a “Lei Coronavírus” – um documento sem data de expiração, permitindo ao oficioso autocrata governar por decretos.
Não havia dúvidas de que a lei passaria – o partido de Orbán, FIDESZ, controla cerca de dois terços das cadeiras no parlamento. Contudo, a medida permite que Orbán atropele o Congresso Nacional, ao passo que promete sentenças de dois a cinco anos de prisão a qualquer um que “distorcer fatos” ou publique “informações falsas”.
“Vocês querem aprovar essa lei”, disse o legislador de oposição Timea Szabo ao parlamento, “que os autoriza a governar praticamente sem qualquer controle significativo. E ela dá a vocês liberdade para se livrarem inclusive da imprensa de esquerda e prender jornalistas, médicos e deputados de oposição se nós dissermos coisas que vocês não gostam – ou seja, a verdade”.
É compreensível que algumas medidas emergenciais devam ser tomadas durante a pandemia. Parlamentos ao redor do planeta tem garantido poderes governamentais não vistos desde a Segunda Guerra Mundial, em um esforço de conter a disseminação do vírus e proteger vidas. Mas nenhuma democracia garantiu autoridade completa por tempo indefinido aos líderes do governo. E Orbán conseguiu esse feito.
No passado, ele, individualmente, articulou uma nova Constituição, sistematicamente erodiu o sistema de freios e contrapesos, apresentando um novo sistema eleitoral, favorecendo seu partido, e aparelhou distritos eleitorais para manter seus redutos. Ele intimidou seus críticos em esferas culturais e acadêmicas e estabeleceu um controle quase total sobre a arena midiática, usando muito dinheiro público – para elencar apenas algumas de suas ações.
O atual temor é que o regime cleptocrático de Orbán use o Estado de emergência para ampliar seus poderes muito além das respostas ao COVID-19. E os passos tomados desde 30 de março mostram que é exatamente o que está acontecendo.
Ataques à liberdade de imprensa
O concentração dos poderes governamentais é mais visível nos termos de detenção prometidos para aqueles condenados por “espalhar inverdades” relacionadas ao COVID-19. Isso é supostamente necessário para prevenir desinformação, o que poderia representar uma ameaça potencialmente letal à saúde humana. Não é explicado porque a moldura legal existente para a disseminação de desinformação foi considerada suficiente.
Dado o histórico de Orbán e do FIDESZ de silenciamento a jornalistas, podemos esperar uma aplicação seletiva da lei. No programa pró-governo Hit TV, Gábor Megajda – pesquisador líder do grupo de consultoria de estimação de Orbán, o Századvég – disse, em referência aos jornalistas independentes críticos às respostas do governo à pandemia: “Eu poderia sugerir que sejam presos, em uma crise como essa”. Isso foi, é claro, “apenas uma piada”.
A bem da verdade, o governo de Orbán tem espalhado muita desinformação sobre o vírus. Gerley Gulyás, ministro do gabinete do primeiro ministro, afirmou que pessoas abaixo dos 65 podem contrair o coronavírus sem riscos de longo prazo à saúde, e que o vírus não acarretaria em fatalidades às pessoas saudáveis abaixo dos 50. Ambas as declarações são falsas e obstruem a luta contra a pandemia.
O medo é de que essa legislação seja usada, ainda, para silenciar aqueles que elaboram críticas legítimas ao modo com que o governo lida com a situação. E terreno para críticas é o que não falta. Apesar da Hungria ter instituído medidas de distanciamento social relativamente cedo, o número de testes realizados ainda é baixo se comparado com outros países da União Européia. Além disso, muitas vezes faltam aos mal remunerados trabalhadores da saúde equipamentos de proteção – tais como máscaras e luvas – requeridos para reduzir o risco de infecção deles.
Cortina de fumaça de emergência
A pandemia encontrou o sistema de saúde húngaro em destroços, após décadas de austeridade. Tal negligência coincidiu com a escalada de investimentos do governo em projetos de estimação, como um estádio de futebol na cidade natal de Orbán, impulsionados por créditos fiscais dado às corporações. Ainda assim, existem poucos sinais de que o governo vá direcionar o foco para a situação da saúde especificamente.
Desde que a Lei Coronavírus foi aprovada, Orbán começou a emplacar mudanças regressivas em variadas frentes. Em 31 de março, seu vice-primeiro ministro, Zsolt Semjén, apresentou uma lei contendo 57 mudanças legislativas – o que os húngaros chamam de “projeto de lei salada” – colocando juntas medidas completamente sem relação umas com as outras, tudo sob o pretexto de uma resposta ao coronavírus.
Como é típico de expedientes assim, a lei irá aumentar o controle do FIDESZ sobre as artes – e, mais especificamente, sobre produções teatrais, talvez o terreno menos provável para uma resposta ao coronavírus. Há muito tempo o governo vem travando uma guerra contra a “hegemonia cultural liberal”, voltada para atacar a independência artística e a contracultura húngara. A legislação vai inundar as instituições de controle com indicados do governo – expandindo a censura.
A lei, que já é usada para vultuosos ganhos financeiros, vai forçar o avanço de um dos projetos favoritos de Orbán: a construção de novos prédios de museus em um dos maiores parques públicos da capital. Gergely Karácsony, prefeito de Budapeste, tentou barrar a iniciativa, visto que consumiria muito do espaço verde tão necessário para os residentes da cidade. Contudo, a lei também fornece cobertura para transações mais sombrias do primeiro ministro. Documentos relacionadas à entrega da construção de uma ferrovia de Budapeste à Belgrado – um megaprojeto no qual os comparsas de Orbán tem notório e significativo interesse – foram classificados como sigilosos por 10 anos.
Inicialmente, o pacote de Semjén também incluía a suspensão da autonomia municipal – ou seja, os governos locais não teriam mais nenhum poder independente. Entretanto, confrontado com o clamor da oposição – que obteve ganhos significativos nas últimas disputas municipais no outono de 2019, incluindo a eleição de Karácsony em Budapeste – essas medidas foram anuladas. Gergely Gulyás justificou esse ziguezague dizendo que “o governo busca unidade a despeito da filiação partidária e irá abster-se de promulgar essa mudança”. É um movimento típico de um governo que é notável pelo que o próprio Orbán chama de “dança de pavão” – retrocedendo em alguns dos elementos mais controversos de mudanças propostas enquanto ainda mantém outros aspectos delas de modo a ostentar uma “sensível vontade de compromisso”.
Semjén não é um membro do FIDESZ, mas de um de seus aliados, da facção ultraconservadora do Partido do Povo Democrático Cristão. E notável nesse sentido foi o fato de que o pacote legislativo proposto por ele também apresentou leis que atacam direitos de transexuais. A medida, apresentada em 31 de março – o dia internacional da visibilidade transgênero –, força pessoas trans a manter o mesmo gênero que foi atribuído ao nascimento ao mesmo tempo que bane procedimentos cirúrgicos para mudanças de sexo.
Após o fim da pandemia, Orbán pode ou não entregar de volta os poderes confiados a ele. Mas, o que parece mais certo é que muitas dessas mudanças regressivas instaladas nesse período vieram para ficar.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) tem fornecido instruções detalhadas, baseadas em dados, para que os governos sigam afim de evitar a propagação do COVID-19 no interior de sua população. Seus pilares chave incluem testagem ampla e acessível; suprimento de equipamento de proteção para trabalhadores da saúde; e diretrizes claras ao público sobre a importância do distanciamento social adequado. Não há pesquisa que sugira que arroubos de censura das artes, roubo de direitos de pessoas trans, ou financiamento de projetos de construção de museus irá de alguma forma ajudar a deter a difusão do COVID-19.
"Os cães ladram, a caravana continua"
A lei tem provocado forte discordância entre setores da oposição húngara, bem como de setores da mídia internacional. Mais de 100 mil húngaros protestaram contra a Lei Coronavírus em uma manifestação online, e a Comissão Europeia declarou que está “investigando a nova lei” e irá debater sua validade essa semana.
O Partido do Povo Europeu (PPE) – a poderosa aliança dos partidos conservadores europeus – protelou mais uma vez a proposta de expulsar o já-suspenso FIDESZ de suas fileiras. Nos anos recentes, o PPE se absteve de tal ação mesmo tendo testemunhado o desdobramento de táticas intencionais para deixar morrer de fome quem buscava asilo em prédios de detenção, nem mesmo quando da expulsão da Universidade Centro-Europeia do país. O ministro de relações internacionais, Peter Szijarto, membro do FIDESZ, desfez críticas – comentou que “os cães ladram, a caravana continua”.
Já que as ações de Orbán tem provocado descontentamento mesmo entre conservadores estrangeiros, isso quer dizer que ele se está indo de encontro a uma verdadeira ditadura? A aprovação da Lei Coronavírus é motivo para preocupações profundas visto a tendência de Orbán e do FIDESZ de desmantelar instituições democráticas.
Entretanto, algumas reações à lei têm sido alarmistas e prematuras. A Aliança Liberal Democrata pela Europa – um grupo liberal de centro no interior do Parlamento Europeu – chamou a aprovação da lei de ascensão de uma “corona ditadura”, ao passo que a imprensa alemã vem traduzindo o título da lei como “Ermächtigungsgesetz” ou “Lei Concessionária” – evocando o nome similar do ato que garantiu total poder a Adolf Hitler, depois do incêndio de Reichstag e 1933. Nos Estados Unidos, um artigo no Washington Post afirmou que a Hungria é a primeira democracia a morrer por causa do coronavírus. E as redes sociais húngaras ficaram repletas de memes e vídeos comparando as ações de Orbán com a ascensão de Palpatino ao trono, em Star Wars.
A ascensão do FIDESZ empurrou claramente a Hungria para o autoritarismo e para o abandono de processos democráticos. Ainda que controle as instituições do Estado e possua a maioria das cadeiras da Corte Constitucional, isso não é, por enquanto, uma ditadura plena. Cientistas políticos tem descrito a Hungria como um “sistema autoritário competitivo” ou uma “ditadura com urna eleitoral” – ou seja, é um sistema no qual eleições tem significado real, mas ao mesmo tempo fortemente manobrada por meio de disseminação de propaganda partidária e desinformação, tanto pela mídia público-estatal quanto por veículos privados “doados” para empresários em 2018. Outros tem descrito a Hungria como regime híbrido, paralisado entre ditadura e democracia. Alguns chamam ainda de “regime híbrido com restrição externa” – admitindo (talvez de forma otimista) que a União Europeia de alguma maneira se mobilize para conter as ações de Orbán.
Até aqui, Orbán tem governado com “punhos de veludo” – uma estratégia baseada em manipulação midiática, distorção de regras institucionais, corrupção, aparelhamento de distritos eleitorais e a habilidosa arte de elaborar leis com o propósito de destruir quem julgue oponente, como universidades e ONGs. Ainda que exista autocensura na mídia, que provavelmente vai piorar por causa da lei excepcional, táticas como a que Vladmir Putin emprega, como aprisionamento ou ameaças físicas a jornalistas, ainda não fazem parte do repertório do FIDESZ. Por enquanto não há como saber se ou quando o sistema autoritário competitivo da Hungria vai descambar para uma ditadura escancarada – e se Orbán vai, em algum ponto, começar a governar com “punhos de ferro”.
As medidas tomadas desde a aprovação do Lei Coronavírus são preocupantes – e podem marcar uma derrapagem rumo um território ditatorial. Ao mesmo tempo, o estado de emergência e os poderes autoritários adquiridos podem ser um movimento de relações públicas com o objetivo de difamar politicamente a oposição, fazendo parecer que ela está obstruindo os esforços para lutar contra a pandemia. Assim, a melhor maneira de confrontar a praga política do pós-fascismo é similar ao modo como devemos confrontar a própria pandemia do COVID-19: permanecer calmos, mas vigilantes.
Sadismo social
Certamente, uma das desafortunadas consequências das justificadas preocupações sobre a lei é que desvia a atenção pública de outra coisa que Orbán está fazendo. Em meio a pandemia, ele tem avançado numa guerra elitista implacável contra os estratos mais baixos da sociedade húngara em interesse dos mais ricos e, em algum nível, escalões da classe média alta. Isso é similar à “política de choque” descrita pela autora e ativista Naomi Klein – hoje altamente visível na política norte americana. Donald Trump e emprega “choques contínuos” para congelar o público e a oposição em um estado de pânico para em seguida forçar sua própria agenda.
Isso não deve nos cegar para a agenda social de Orbán. Frente à recessão que certamente resultará da pandemia, ele tem dado atenção às classes alta e média-alta da sociedade húngara – ignorando todo o resto. Particularmente, o seu plano econômico tem sido centrado na ajuda aos negócios, sendo boa parte do suporte que os indivíduos recebem fornecido por meio de créditos tributários. Obviamente que é difícil se beneficiar de tais benefícios se você não tem qualquer fonte de renda. E mesmo que o pagamento de hipotecas e outros compromissos financeiros tenham sido suspensos, alugueis ainda são uma obrigação. Em comparação com outros países da União Europeia, a Hungria é um ponto fora da curva em mais uma questão: dificilmente fornecerá qualquer assistência financeira a trabalhadores afetados pela crise.
Um comentarista de um site de notícias de esquerda, Merce.hu, descreveu a relutância de Orbán de suspender o recebimento de dívidas como “sadismo social”; o Congresso de Sindicatos Europeus enviou uma carta para o Primeiro Ministro, protestando contra o abandono da classe trabalhadora húngara em seu momento de maior necessidade. Ainda não é claro como esse aspecto da crise vai se desenrolar. Mas os sinais são de que o governo vai continuar extremamente generoso quando se trata de auxiliar a classe dos comparsas capitalistas que estão ficando mais ricos – um elemento chave do que Orbán chama de “sistema nacional de cooperação”.
Discípulo de Schmitt
Em sua Teologia Política, o jurista e teórico político nazista Carl Schmitt apontou as falhas das normas liberais aparentemente mais sofisticadas – constituições liberais que ele buscou desfazer. Em circunstancias excepcionais, ele insistiu, alguém irá decidir sobre o “Estado de exceção” e suspenderá as normas previamente estabelecidas. Schmitt declara que a soberania reside onde essa decisão sobre exceções podem ser feitas. Em O Conceito do Político, Schmitt definiu um ato político como um ato de soberania que diferencia amigos de inimigos potencialmente mortais.
Orbán colocou a teoria de Schmitt em prática de duas formas. Primeiro, ele usou a pandemia para decidir sobre o Estado de exceção – reafirmando desta forma sua própria regra de soberania. Segundo, ele declarou que nós estamos “em guerra” com o COVID-19: declarando que a oposição deve estar do lado do vírus, visto que se opõem ao seu governo. Ele também buscou levar adiante a velha distinção amigo-inimigo ao relacionar a pandemia à migração, mas essa narrativa se provou pouco convincente.
Em sua juventude, Orbán aspirava ser um teórico político, tendo escrito sua tese de graduação sobre o marxista italiano Antonio Gramsci. Frente à oportunidade excepcional oferecida pelo coronavírus, ele revelou-se um discípulo estranhamente fiel da “Coroa Jurista do Terceiro Reich”. A Hungria não é uma ditadura ainda, mas o Estado de emergência está precipitando o desaparecimento das normas liberal-democráticas.
Sobre os autores
Imre Szijarto é um ativista húngaro, escritor, e mestrando na Universidade Centro-Europeia. Ele é membro fundador do grupo de estudantes ativistas na Hungria, o Szabad Egyetem.
Rosa Schwartzburg foi bolsista Fulbright na Nova Zelândia em 2018 e recebeu o título de mestre pela Universidade Centro-Europeia em Budapeste. Atualmente, ela está na Escola de Graduação de Jornalismo na Universidade Columbia.
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